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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS CENTRO DE CIÊNCIAS DO AMBIENTE MESTRADO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA OS IGARAPÉS DE MANAUS NA PERCEPÇÃO DE JOVENS MANAUARAS KARLA DA SILVEIRA GOMES MANAUS 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS CENTRO DE CIÊNCIAS DO AMBIENTE

MESTRADO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA

OS IGARAPÉS DE MANAUS NA PERCEPÇÃO DE JOVENS MANAUARAS

KARLA DA SILVEIRA GOMES

MANAUS 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS CENTRO DE CIÊNCIAS DO AMBIENTE

MESTRADO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA

KARLA DA SILVEIRA GOMES

OS IGARAPÉS DE MANAUS NA PERCEPÇÃO DE JOVENS MANAUARAS

Dissertação apresentada ao

Mestrado em Ciências do Ambiente e

Sustentabilidade na Amazônia da

Universidade Federal do Amazonas, como

requisito parcial para a obtenção do título

de Mestre em Ciência do Ambiente, área de

concentração Serviços Ambientais e

Recursos Naturais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sandra Nascimento Noda

MANAUS 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS CENTRO DE CIÊNCIAS DO AMBIENTE

MESTRADO EM CIÊNCIAS DO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA

OS IGARAPÉS DE MANAUS NA PERCEPÇÃO DE JOVENS MANAUARAS

KARLA DA SILVEIRA GOMES

MANAUS 2004

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Gomes, Karla da Silveira Os igarapés de Manaus na percepção de jovens manauaras / Karla da Silveira Gomes.-Manaus, AM: UFAM, 2004. 146 p. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestre em Ciências do Ambiente. Área de concentração: Serviços Ambientais e Recursos Naturais). Universidade Federal do Amazonas. Orientadora: Profa. Dra. Sandra Noda. 1. Ecologia urbana – Manaus (AM) 2. Planejamento urbano – Aspectos ambientais – Manaus (AM) 3. Ecologia dos rios – Manaus (AM) 4. Ecologia social – Manaus – AM 5. Gestão ambiental 6. Ciências ambientais I. Título

CDU: 504(811.3)(043.3) / G633i

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KARLA DA SILVEIRA GOMES

OS IGARAPÉS DE MANAUS NA PERCEPÇÃO DE JOVENS MANAUARAS

Dissertação apresentada ao

Mestrado em Ciências do Ambiente e

Sustentabilidade na Amazônia da

Universidade Federal do Amazonas, como

requisito parcial para a obtenção do título

de Mestre em Ciência do Ambiente, área de

concentração Serviços Ambientais e

Recursos Naturais.

Aprovada em ......................... de 2004.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Sandra Nascimento Noda – Presidente

Universidade do Amazonas

Prof.ª Dr.ª Sandra Nascimento Noda – Membro Universidade do Amazonas

Prof.ª Dr.ª Sandra Nascimento Noda – Membro

Universidade do Amazonas

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Aos meus filhos Paulo, Pedro e Tomás.

Ao meu companheiro Carlos Jennings.

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À Universidade Federal do Amazonas; Ao Centro de Ciências do Ambiente, Coordenação, Docentes e Funcionários; À minha orientadora pelo acompanhamento; Ao Professor Carlos Jennings pela parceria na concepção e produção desta pesquisa; Às escolas, Professores e Alunos pela disposição em colaborar.

AGRADEÇO.

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Será que é prudente Avisar a água Que desce da montanha E junta-se a outras, Vertentes da mata, Que há grande perigo No jeito inocente De andar sempre em frente? É o próprio destino Ou um gesto suicida Esse de achegar-se À terra dos homens? As que antes vieram Estão todas mortas. Alcides Werk

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RESUMO

Partindo do pressuposto segundo o qual a paisagem é depositária de valores da

população e de que o lugar é identidade, buscou-se desvelar as diversas imagens, os

sentimentos, os valores e as atitudes que diferentes grupos sociais possuem dos igarapés de

Manaus. Este é um estudo sobre a percepção e valoração de paisagens inserido na linha de

estudo da chamada fenomenologia do meio ambiente. A pesquisa foi implementada por meio

de duas categorias analíticas, a perceptual e a experiencial, utilizando mapas mentais e

questionários abertos como recursos metodológicos para desvelar o valor atribuído aos

igarapés, detectar o nível de afeição/rejeição que a população jovem, entre 14 e 20 anos de

idade, mantém por eles, visando ao resgate das relações de parentesco entre a cidade de

Manaus e os seus igarapés como elemento cultural. Foram aplicados e coletados 150 mapas

mentais e 166 questionários em escolas públicas e privadas da área urbana de Manaus,

alcançando estudantes que perfizeram um mosaico de residentes de 54 bairros diferentes.

Foram identificados baixos níveis de interação dos respondentes com o meio, de forma

específica com o igarapé, e de modo mais amplo com o bairro. Detectou-se que poucos

percebem os igarapés constituintes da paisagem urbana como algo significativo no que

concerne aos valores recreativo, utilitário ou estético, não sendo percebidos sequer como

lugar, uma vez que, profundamente modificados, perderam seu conjunto de significados

culturais e identitários. Os jovens manauaras não percebem os igarapés como paisagem que

inspire sentimentos de afeição ou admiração estética (topofilia), evidenciando, ao contrário,

fortes sentimentos de repulsa, desconforto e aversão (topofobia), associando-os a riscos

ligados à incidência de doenças e de mortes advindas da péssima qualidade de suas águas. A

percepção dos igarapés, a partir do ambiente urbano, torna difícil o desenvolvimento de uma

postura ambiental responsável e de uma percepção dos importantes serviços ambientais

oferecidos por esses cursos d’água ao meio da cidade. Contraditoriamente, os igarapés

afastados da experiência cotidiana na área urbana, permanecem de forma surpreendente como

sentimento na relação do manauara com o ambiente natural, indicando forte valor de uso

recreativo, estético e afetivo.

Palavras-chave: Percepção Igarapés

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ABSTRACT

Based on the assumption that the landscape is the depositary of the population’s values

and that place is identity, an attempt has been made to uncover the images, feelings, values

and attitudes that different social groups possess in relation to the narrow waterways

(igarapés) of Manaus. This is a study of perceptions and the appreciation of the landscape

within a line of study called phenomenology of the environment. The research was

implemented based on two analytical categories, perceptual and experiential, using mental

maps and open questionnaires as methodological tools to uncover the importance attributed to

the igarapés, to detect the level of affection/rejection that the young, 14- to 20-year-old

population has for them, aiming to focus upon the relationship between the city of Manaus

and its igarapés as a cultural element. A total of 150 mental maps and 166 questionnaires

were filled out and collected in public and private schools in the urban area of Manaus,

including students that formed a mosaic of residents from 54 different neighborhoods. Low

levels of interaction by the respondents with the environment were identified, specifically

with the igarapé, and in a broader sense with the neighborhood. It was found that few of

them perceive the igarapés making up the urban landscape as something significant in terms

of recreational, utilitarian or aesthetic values, and they are not even perceived as a place that,

because it has undergone profound changes, has lost its set of cultural and identity-based

meanings. The young population of Manaus does not perceive the igarapés as a landscape

that inspires feelings of aesthetic attachment or admiration (topophilia), demonstrating, on the

contrary, strong feelings of repulsion, uneasiness and aversion (topophobia), associated with

the risks linked to illness and death resulting from the extremely poor quality of its waters.

This population's perception of the igarapés as part of the city environment makes the

development of a responsible environmental stance a hard task, as is fostering an awareness of

the significant environmental services offered by these water courses in the middle of the city.

Paradoxically, the igarapés that are removed from everyday urban experience are surprisingly

thought of sentimentally by those living in Manaus in their relationship to the natural

environment, indicating strong recreational, aesthetic and emotional values.

Key words: Perception Igarapés

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SUMÁRIO

CAPITULO I....................................................................................................... 12

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 12 1.1 O PROBLEMA.......................................................................................... 12 1.2 OBJETIVOS DO ESTUDO ...................................................................... 20

1.2.1 Objetivo Geral ..................................................................................... 20 1.2.2 Objetivos Específicos .......................................................................... 20

CAPÍTULO II ..................................................................................................... 23

2 ESTRATÉGIA METODOLÓGICA................................................................ 23 2.1 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ............................... 23

2.1.1 Geografia e Meio Ambiente................................................................ 23 2.1.2 Geografia, Percepção e Fenomenologia.............................................. 30 2.1.3 Paisagem e Valor na Perspectiva da Geografia ................................. 40 2.1.4 A Preservação da Paisagem Cultural ................................................. 45

2.2 QUESTÕES METODOLÓGICAS ........................................................... 49 2.2.1 Linhas Teóricas ................................................................................... 50 2.2.2 Instrumentos e Categorias de Análise ................................................. 51 2.2.3 Análise Perceptual............................................................................... 51 2.2.4 Análise Experiencial ........................................................................... 54

2.3 DELIMITAÇÃO DO UNIVERSO ........................................................... 56 2.3.1 Sujeitos ................................................................................................ 56 2.3.2 Área de Estudo .................................................................................... 57 2.3.3 Localização de Manaus ...................................................................... 60 2.3.4 Geomorfologia..................................................................................... 61 2.3.5 Hidrografia .......................................................................................... 61

CAPÍTULO III .................................................................................................... 66

3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ........................... 66 3.1 A DESCONSTRUÇÃO CULTURAL DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA DE MANAUS.................................................................................................. 66

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3.2 PERFIL ATUAL DOS PRINCIPAIS IGARAPÉS DE MANAUS .......... 86 3.3 OS IGARAPÉS PERCEBIDOS EM MAPAS MENTAIS ....................... 92 3.4 A PERCEPÇÃO DOS IGARAPÉS NA ANÁLISE EXPERIENCIAL.. 106

3.4.1 Modalidade de igarapés..................................................................... 108 3.5 UTILIDADE DOS IGARAPÉS .............................................................. 109 3.6 PROTEÇÃO DOS IGARAPÉS............................................................... 112 3.7 A VISÃO DE RESPONSABILIDADE QUANTO AOS IGARAPÉS... 115 3.8 EQUILÍBRIO AMBIENTAL X SAÚDE PÚBLICA ............................. 117

3.8.1 Igarapés e riscos ................................................................................ 120 3.9 AS INTERVENÇÕES PÚBLICAS NOS IGARAPÉS DE MANAUS .. 122

3.9.1 A técnica criando não-lugares ........................................................... 122 3.9.2 A Percepção dos Não-Lugares ......................................................... 127

3.10 PRESERVAÇÃO .................................................................................. 130 3.11 TOPOFILIA........................................................................................... 132

CAPÍTULO IV.................................................................................................. 134

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 134 4.1 CONCLUSÕES .......................................... Erro! Indicador não definido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS ................................................................ 145

ANEXOS........................................................................................................... 150

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CAPITULO I

1 INTRODUÇÃO

“A água, que é mãe da vida

(antes pura, clara, doce),

passa aí prostituída

triste, amarga, poluída,

como se mater não fosse”.

Igarapé de Manaus Alcides Werk

1.1 O PROBLEMA

Porque nasci na Região Amazônica, a visão de grandes rios foi algo permanente em

minha vida. Também a prática de atividades costumeiras motivadas pelas águas: quando

criança, um dos programas de lazer realizados com maior freqüência era o “banho de

igarapé”, pelo qual denunciávamos nossas origens e fortalecíamos os laços identitários. A

palavra Igarapé significa caminho da canoa, ou seja, passagem estreita por onde só pode

passar as igaras, canoas pequenas.

A representatividade do igarapé no quadro dos costumes do manauara mereceu, a

propósito, emblemático registro de Luiz Agassiz, em Viagem ao Brasil: 1865-1866, ao relatar

um passeio nos arredores de Manaus:

É impossível passear fora da cidade, em qualquer direção, sem observar um traço característico dos habitantes da terra e de seus costumes. Esta manhã, por volta das sete horas, dava eu o meu passeio habitual pela floresta vizinha de nossa casa, à beira de um igarapé, teatro habitual de quase todas as cenas da vida exterior. Aí se reúnem os pescadores, as lavadeiras, os banhistas, os apanhadores de tartaruga (AGASSIZ et al, 2000, p.175, grifo nosso).

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Muitas são as lembranças de minha família organizando-se para passar o dia –

geralmente domingo ou feriado – refrescando-se nas águas limpas e geladas de um dos

igarapés localizados nos limites da cidade. Ser manauara era ser de igarapé.

Até a década de setenta, muitos balneários de Manaus ainda resistiam mantendo seus

formatos originais – em regra, áreas arborizadas que ladeavam as chamadas piscinas naturais,

obtidas à custa do represamento dos igarapés. Alguns desses balneários eram administrados

por associações de funcionários públicos e de empregados da iniciativa privada. Mas o maior

interesse da população centrava-se nos espaços públicos, aos quais acorria expressivo número

de banhistas aos fins de semana. As cachoeiras do Tarumã, nas cercanias da cidade, a Ponte

da Bolívia e o balneário do Parque Dez de Novembro, construído num trecho do igarapé do

Mindu, eram os lugares mais concorridos, embora fossem muito freqüentados os igarapés do

Franco, do Quarenta e do Mestre Chico.

Esses momentos da história dos igarapés – e da gente da cidade – foram perenizados

nos álbuns de família e permaneceram orbitando minhas melhores lembranças infantis.

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Figura 1 - Imagem fotográfica do igarapé do Tarumã, em 1972. Município de Manaus, AM. Brasil. Fonte: Álbum de família de Karla da Silveira Gomes.

Não sei precisar no tempo o início do ocaso desses balneários, mas certamente está

relacionado aos surtos de crescimento da área urbana da cidade, que recrudesceu a partir da

década de setenta com o advento da Zona Franca de Manaus. Toda essa vivência em relação

aos igarapés ficou em mim sem que eu me desse conta, por muitos anos, das representações e

dos valores encerrados por essa ancestralidade.

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Marcadamente nas décadas de oitenta e noventa, os igarapés só aparecem como

objeto de interesse dos noticiários quando vetores de tragédias. No período das chuvas as

águas retomam provisoriamente os espaços que lhes foram suprimidos, alcançando as casas

construídas nas áreas naturalmente destinadas ao escoamento, produzindo calamidades e

pondo os igarapés na ordem do dia, passando assim, tragicamente, de concorrido modo de

lazer a ameaça à segurança das populações marginais e à saúde pública, num curto período

histórico de três décadas, em que se revelaram catastróficos os produtos da associação

perversa, produzida no imaginário coletivo, entre os igarapés e as calamidades, mercê de uma

relação mecânica e horizontal de causa e efeito.

Desde que se iniciou o tempo de agonia dos igarapés, eles foram – e são – objeto de

reduzidas, pontuais e esparsas ações de governo, implementadas tão-somente com o objetivo

de produzir resultados meramente cosmetológicos imediatos, sem atacar verdadeiramente as

causas da degradação desses cursos d’água.

No momento em que esse debate ganhava visibilidade, puxado por um momento de

reclamo de setores da sociedade, eu estava tentando definir o tema para a minha dissertação

no Mestrado em Ciências do Ambiente. Como geógrafa, e atuando como professora, pensava

em algo relacionado à educação ambiental, mas nada estava definido. Foi aí que, realizando

um levantamento bibliográfico, entrei em contato com o livro Percepção Ambiental: A

experiência brasileira, organizado por Vicente Del Rio e Lívia de Oliveira. A partir daí,

aprofundei a compreensão de que o estudo dos processos mentais relativos à percepção

ambiental é a nota fundamental para melhor desvendar as interações do ser humano com o

meio ambiente, e de que a realidade, na condição de tecido complexo, é reconstruída

mentalmente por cada um de nós em nosso cotidiano. E, ainda, que o ambiente que envolve o

homem, seja físico, social ou psicológico, influencia a percepção e a conduta.

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Nas leituras, também sedimentei a busca que muitos geógrafos (e não-geógrafos)

começaram a empreender nos estudos de percepção ambiental por uma nova alternativa

epistemológica. A maior parte dos trabalhos desenvolvidos na Geografia e em ciências afins,

nos anos sessenta e no início dos anos setenta do século passado, era direcionada

prevalentemente por duas orientações epistemológicas: de um lado, a qualificação e a

sistematização dos neopositivistas, em grande parte geógrafos físicos, que desconsideraram

em seus estudos a abordagem das relações sociais enquanto componente das diversas

paisagens; de outro lado, o materialismo e o economismo dos neomarxistas aproximou a

chamada geografia marxista da sociologia, da história e da economia, em detrimento da

abordagem do suporte físico-territorial sobre o qual são processadas as atividades sociais.

Ambas as correntes, em suas manifestações extremas, conduziam a um excesso de abstração e

de teorização.

Pelo fato de criticar essas duas correntes e de preconizar a priorização não mais

apenas de um conhecimento pretensamente objetivo e/ou teórico, mas das percepções,

representações, atividades e valores dos homens em geral, os estudos de percepção ambiental

foram abarcados por um grande movimento que recebeu, na década de setenta, o nome de

Geografia Humanística, orientada para a busca de um entendimento do mundo humano por

meio do estudo das relações que as pessoas mantém com a natureza, do seu comportamento

geográfico bem como dos seus sentimentos e idéias a respeito do espaço e do lugar.

Em contraste a um conhecimento geográfico altamente cônscio e especializado, o

geógrafo humanista tem como tarefa elucidar a complexidade do processo pelo qual um mero

espaço torna-se um lugar intensamente humano, apoiando-se, para tanto, em interesses

distintamente humanísticos, como a natureza da experiência, a qualidade da ligação

emocional aos objetos físicos, as funções com conceitos e símbolos na criação da identidade

do lugar. Algumas contribuições recentes nesse campo apresentam densidade capaz de

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conferir-lhes a condição de marcos fundamentais no desenvolvimento e na consolidação dessa

linha de pesquisa ambiental.

Passei a lançar sobre o núcleo das minhas inquietações – os igarapés – um olhar mais

crítico na tentativa de construir uma explicação mais rigorosa da passagem desses elementos

naturais da condição de geradores de lazer, prazer e entretenimento familiar a estorvo urbano,

esgotos a céu aberto, geradores de risco à saúde e calamidades públicas – numa viagem

avassaladora do paraíso à desgraça –, buscando elucidar as diferentes representações que os

jovens habitantes de Manaus têm desse processo, das relações dos igarapés com a cidade e

eles próprios, sem recorrer, contudo, à idéia de que o meio ambiente poderia induzir

comportamentos à maneira de estímulos mecânicos.

O problema, então, não é apenas o de inventariar ou colecionar fatores de uma

relação estrita entre determinada característica física do espaço – os igarapés neste trabalho –

e o seu efeito sobre o comportamento, mas de precisar os processos pelos quais os dados da

situação espacial, que são também econômicos, sociais, estéticos e culturais, exercem

influência sobre as atitudes num sistema de interdependências complexas, cujo papel e valor é

determinado pela avaliação subjetiva e pela percepção, das quais o homem se utiliza para

transformar o espaço em objeto. O que se pretende, conforme escrito por Bourdieu (1996,

p.14-15), é “capturar a lógica do mundo social que submerge de uma realidade empírica,

historicamente situada e datada, para construí-la como invariante, na variante observada”. Ou

seja, os princípios de construção do espaço social nas particularidades de histórias coletivas

diferentes. Importa então, neste trabalho, captar o engendramento entre a valoração e a

percepção que os jovens manauaras têm dos igarapés, que são elementos característicos da

cidade, da história e da cultura amazonense, tentando, no sentido do que propõe Lineu Bley

(1999, p.121), “(...) ultrapassar a paisagem como aspecto visual para chegar ao seu significado

e valor”.

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A explicação simplista consoante à qual o progresso irresistível é o “culpado” pela

flagrante agressão aos igarapés – e ao meio ambiente da cidade como um todo – é superficial,

porque se limita à aparência, e insuficiente, porque recai apenas sobre o recorte dos aspectos

físicos de um fenômeno complexo. Pior ainda é a explicação sensorial e imediata, tristemente

difundida, que aponta o morador das margens como o causador da poluição que arruinou os

igarapés da cidade.

O crescimento abrupto da cidade em vários períodos de sua história sempre seguiu a

lógica e o planejamento do colonizador e do neocolonizador. Manaus cresceu aos saltos. Isso

só pode ser explicado pelo fato de que a constituição da cidade como tal se deu segundo

interesses externos localizados em certos momentos históricos, ou seja, o meio citadino – o

espaço dotado de significados – foi organizado e produzido pelo europeu em função de seus

condicionamentos, sua educação, suas normas sociais e econômicas, que nada mais são que

valores inscritos no espaço. E exatamente por isso – em razão dos valores nele inscritos,

atuando como elementos normativos sobre os comportamentos e as representações –, é que o

meio ambiente, constituído e reconstituído pelo estrangeiro de ontem e de hoje, exerceu e

exerce influência sobre o comportamento do manauara.

Podemos, então, afirmar que a paisagem urbana de Manaus não é depositária dos

valores de sua gente porque construída contra a história e a cultura de sua gente. Isso enseja

indagações relevantes, cujas respostas não podem ser buscadas ou alcançadas por mecanismos

lineares limitados à aparência: a cognição histórica do amazonense, que o leva a ver a história

do outro como a sua, reservaria lugar para uma memória da Manaus dos igarapés? Não teria a

Manaus de hoje se constituído historicamente a partir do destino trágico de suas águas e de

sua gente? Ou ainda, os igarapés, enquanto lugares, encerram valor na percepção dos

manauaras?

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Na verdade, os propósitos que impeliram o crescimento da cidade sempre

encontraram obstáculos nos igarapés e adotaram a solução mais simples de avançar sobre os

espaços tomados das águas. Teria esse processo de desconstrução soterrado na memória

histórica dos descendentes dos manáos, banibas, barés e passés a imagem prazerosa de um

banho de igarapé?

A desconstrução da memória ancestral ocorre “no processo histórico amazonense,

por força da cultura da colonização e, hoje, da neocolonização”, pela inculturação de “uma

consciência histórica negadora da história; uma consciência que só apreende o instante, que

opera sob a regência do sensível e do imediato” (OLIVEIRA, J. Alcimar, 2002, p.37).

Dado o imediatismo operado pela cultura do colonizador na consciência do

amazonense, perceberia ele a qualidade das águas dos igarapés de Manaus como bem de uma

vida civilizada?

José Alcimar de Oliveira (2002, p.34) entende que:

O meio ambiente de Manaus não pode ser dissociado do meio ambiente do Amazonas. Sem que se operem profundas mudanças nos valores ético-políticos da vida citadina, sem que se supere a cultura do arrivismo, antiecológica, que tem presidido aos destinos de Manaus e do Amazonas, só nos resta afundar no regime de barbárie já instalado.

O desenvolvimento de uma compreensão cada vez maior da dimensão planetária da

problemática ambiental permitirá perceber que a resolução dos problemas ambientais

necessita ter como eixo fundamental a efetiva participação dos cidadãos nas discussões e

decisões sobre a questão ambiental e para a construção de soluções mais eficazes.

Em reforço, Oliveira, J. Alcimar (2002, p.33) diz ainda que “(...) enquanto os povos

dessa vastidão verde e aquática permanecerem vítimas da cultura predatória e arrivista de boa

parte das elites locais e exógenas, não haverá preservação nem convivência civilizada entre o

homem e seu hábitat”.

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Na lição de Montesquieu (JENNINGS, 2003), a servidão começa sempre pelo sono.

Sono da razão crítica, da capacidade ou da vontade de resistir ao poder alienante, da

imaginação que nada vê que opor ou substituir à força coerciva. A complexidade da vida na

cidade deve ser instrumentalizada como um poderoso recurso capaz de despertar o

amazonense de seu sono da servidão.

1.2 OBJETIVOS DO ESTUDO

1.2.1 Objetivo Geral

– Elucidar as diversas representações, os sentimentos e as atitudes que diferentes

grupos sociais manauaras possuem dos igarapés da cidade – como espaço

percebido –, por meio de uma prospecção dessa percepção e das imagens

guardadas e processadas na memória dos jovens moradores; como eles lidam com

esses dados sensoriais e os organizam para dar-lhes um significado, no processo de

suas próprias constituições como sujeitos, a partir do aporte teórico que considera

a paisagem como depositária de valores da população.

1.2.2 Objetivos Específicos

– Verificar se os jovens moradores de Manaus valoram os igarapés como uma

paisagem natural e cultural que precisa ser preservada;

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– Investigar a percepção dos riscos ambientais que os igarapés poluídos significam e

as respostas humanas a esses riscos.

– Verificar se os igarapés são considerados paisagem com valor estético;

– Determinar as qualidades que tornam os igarapés objeto de valoração.

Partindo do pressuposto segundo o qual a paisagem é depositária de valores da

população e de que o lugar é identidade, buscaremos desvelar as diversas imagens, os

sentimentos, os valores e as atitudes que diferentes grupos sociais – balizados por faixas

etárias distintas – possuem dos igarapés de Manaus, na qualidade de espaços apreendidos pela

percepção, no cenário da passagem desses elementos naturais da condição de objetos

culturais, de contemplação estética, vetores de entretenimento e lazer, à condição de “clones

paisagísticos” – invocando expressão de Lecione (1999, p.154).

Cada indivíduo possui uma visão de mundo que se compõe de um conjunto de

realidades subjetivas. A percepção consiste em trocas funcionais do indivíduo com o meio

exterior, marcadas fundamentalmente por dois aspectos: o cognitivo e o afetivo (Battro, 1969

apud Del Rio, 1999). O impulso que direciona a percepção é a afetividade, levando o homem,

assim, a organizar os dados sensíveis para atribuir-lhes um sentido. É possível investigar – tal

como propomos neste trabalho – qual a percepção que as pessoas têm do seu espaço ou de

algum elemento específico dele; quais os modos de subjetivação e as atitudes em relação ao

meio ambiente; qual é o papel que a percepção ambiental desempenha no arranjo espacial e,

ainda, qual o potencial informativo do espaço percebido (os igarapés), ao nível da formação

da imagem mental, o modo de apreensão sensível do espaço urbano, onde a noção do espaço

funciona como resultante da dinâmica de assimilação e adaptação humana. (KOHLSDORF,

1999).

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Pretendemos, com essas linhas de investigação, alcançar uma compreensão

significativa dos fenômenos cognitivos visando contribuir na identificação dos grupos sociais

mais sensíveis à situação dos igarapés e à necessidade de uma ação emergente de recuperação

desses recursos como patrimônio ambiental e paisagem cultural da sociedade manauara.

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CAPÍTULO II

2 ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

2.1 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.1.1 Geografia e Meio Ambiente

Realizaremos uma panorâmica histórica para dar densidade à compreensão de que a

Ciência Geográfica, não obstante tenha nascido com uma perspectiva integradora da

paisagem, não resistiu e foi capturada pela força do desenvolvimento disciplinar das ciências

e pelo estabelecimento da superespecialização e fragmentação do saber – nos moldes do

ocorrido com outras áreas do conhecimento. Não resistiu também ao processo de

desligamento operado entre as Ciências da Natureza e as denominadas Ciências do Homem

(MORIN, 2002). Apontaremos também as tendências atuais de promover a aproximação dos

saberes da Geografia Física e da Geografia Humana por meio de novas perspectivas

integralizadoras.

A preocupação do homem com a natureza adquiriu importância e ocupa lugar de

destaque em diferentes organizações sociais da atualidade. A realidade das condições

ambientais e de qualidade de vida dos homens, neste final de século XX, comprova que o

aprofundamento dos estudos na temática ambiental é necessário e urgente.

Após duzentos anos de um intenso processo de industrialização do planeta, o homem

produziu uma grave degradação do meio ambiente, comprometendo de forma nunca antes

vista a cadeia de manutenção da vida.

Para ilustrar a superaceleração desse processo, imaginemos que toda a história do

universo pudesse ser comprimida em um único ano, como propôs Carl Sagan (1934-1996): os

seres humanos teriam surgido na Terra há apenas sete minutos. Nesse período, o homem

inventou o automóvel e o avião, viajou à Lua e voltou, criou a escrita, a música e a Internet,

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venceu doenças, triplicou sua própria expectativa de vida. Também nos últimos sete minutos a

espécie humana agrediu a natureza mais que todos os outros seres vivos do planeta em todos

os tempos. Os excessos cometidos mostram seus sinais irretocáveis na atividade industrial, na

ocupação humana dos últimos redutos selvagens e na interferência do homem na produção

dos animais e plantas que domesticou.

Quanto aos seus bens mais preciosos, a água e o ar, o balanço mostra uma tendência

suicida. A humanidade despeja na natureza, todos os anos, 30 bilhões de toneladas de lixo. Os

efeitos da poluição são claramente mais sentidos quando atingem os recursos hídricos:

embora dois terços do planeta sejam água, apenas uma fração dela se mantém potável. Como

resultado, a falta aguda de água já atinge 1,3 bilhão de pessoas em todo o mundo

(BARBOSA, 2001).

A degradação do ambiente e, conseqüentemente, a queda da qualidade de vida

acentuam-se principalmente nos centros urbano-industriais, onde os rios, fundos de vales e

bairros residenciais periféricos dividem o espaço com o lixo e a miséria.

A grande contradição expressa pelo declínio da qualidade de vida do homem está no

fato de que a sociedade humana vive hoje um momento de grande progresso, tanto na

ampliação do conhecimento científico como nos avanços tecnológicos, inéditos na história da

humanidade.

No âmbito das ciências, a temática ambiental tem sido uma presença constante,

assumindo conformações distintas de acordo com diferentes momentos históricos que

caracterizam o desenvolvimento do conhecimento científico que, de forma geral, tem

contribuído muito para o melhor equacionamento da questão.

A Geografia, desde a sua gênese, debruçou-se vocacionalmente sobre a relação entre

os homens e o meio natural. Isto estava demonstrado nos princípios básicos que a norteavam,

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nos seus objetivos principais e no objeto de estudo, todos de caráter eminentemente

ambientalista.

As bases do conhecimento geográfico de cunho científico foram lançadas por dois

cientistas alemães: Humboldt e Ritter. O primeiro era naturalista, preocupado com as

descrições das características físico-naturais das paisagens; o segundo era filósofo,

historiador, dedicava-se a descrever as várias organizações espaciais dos homens sobre os

diferentes lugares. Surgem, desse modo, as linhas de uma ciência preocupada com o que hoje

se define como meio ambiente.

No curso do desenvolvimento do pensar geográfico, inúmeros geógrafos

contribuíram para ampliação do conhecimento acerca do quadro natural (meio ambiente) do

Planeta com enfoques diferenciados. São referenciais os nomes de Ratzel, que defendia o

determinismo dos lugares sobre os homens, e La Blache, que, em oposição a Ratzel, lançou os

princípios do que se denominou corrente possibilista. Ambos, contudo, estavam unidos pelo

objetivo comum de escamotear a intenção de dominação dos povos brancos sobre os demais.

La Blache é responsável pela ruptura que divide os interesses de estudo entre

elementos físico-naturais e elementos humano-sociais, abrindo caminho para o

aprofundamento do divisionismo na Geografia.

A Geografia Física passa a ser responsável pelo tratamento dos aspectos

naturais/físicos das paisagens, centrando seus focos de preocupação na temática ambiental, de

onde emergiram sub-ramos específicos – a Geomorfologia, a Climatologia, a Biogeografia e a

Hidrografia – que se caracterizavam por não propor nenhuma interação entre os elementos

naturais da paisagem, evidenciando grande influência do método positivista na produção

científica deste período.

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A proposição de uma abordagem das paisagens a partir de uma perspectiva dinâmica

significa um salto qualitativo para a Geografia Física, sem que esta consiga, no entanto,

inserir nos seus fundamentos o homem como agente modificador das paisagens.

A história do pensamento geográfico pode ser dividida em dois grandes períodos: o

primeiro será identificado como Ambientalismo Geográfico Naturalista, que vai do século

XIX até meados das décadas de 50/60 do século XX; e o segundo chamaremos de

Ambientalismo Geográfico Transformador, que vai dos meados dos anos 60 até os dias atuais.

1. As preocupações de estudo típicas do primeiro período caracterizam-se,

fundamentalmente, por uma esquemática abordagem da temática ambiental em que o meio

ambiente é “desvendado” pela descrição exaustiva do quadro natural do Planeta, constituído

pelo relevo, clima, pela vegetação, hidrografia, fauna e flora, dissociadamente da sociedade

humana.

A Geografia, marcada pelo forte apelo empirista da época, ocupava-se de descrições

detalhadas das características físicas dos lugares: verdadeiros inventários naturais

desenvolvidos em trabalhos de campo e nas tão famosas expedições científicas na própria

Europa e em outros continentes.

2. A Segunda Guerra Mundial e algumas contingências mundiais, ocorridas entre os

anos de 40 e 60 do século XX, tiveram reflexos na ordem econômica, social, científica e

tecnológica, e foram o combustível para o desenvolvimento de uma nova abordagem

ambientalista da Geografia. Nascem, com efeito, na Europa e nos Estados Unidos, com o

objetivo de preservar o meio ambiente e garantir a paz, movimentos ecológicos que alcançam

o seu apogeu nos anos 60 e 70.

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A polarização do mundo em torno dos modelos de produção típicos das economias

capitalista e socialista – imposta pelas duas potências vencedoras da Segunda Guerra

Mundial: Estados Unidos e URSS –, submeteram os países dependentes dos dois blocos a

uma política de caráter imperialista e a um processo de exploração de seus recursos naturais,

conduzindo-os ao elevado estágio de degradação ambiental dos dias atuais.

Segue-se a isto uma alarmante explosão demográfica, constatada nas décadas de 60

e 70, notadamente nos países dependentes, escancarando, desse modo, as disparidades sociais

decorrentes da desigualdade na distribuição de recursos e rendas, tanto na realidade

internacional como na intranacional, processo que conduziu à eclosão de muitos movimentos

sociais.

A realização da Primeira Conferência Mundial do Desenvolvimento e Meio

Ambiente, em 1972, em Estocolmo significou a primeira tentativa mundial de

equacionamento dos problemas ambientais.

No âmbito das Ciências Humanas, as correntes de pensamento contrárias ao

positivismo foram, a partir da década de 60, fortalecidas em termos ideológico-filosóficos

(Mendonça, 1993:51). O marxismo, primeiramente nos países europeus, passa a ser

amplamente empregado como paradigma de análise em todas as ciências que compõem o

campo das humanidades, resultando em um salto qualitativo e quantitativo sem precedentes,

confirmado pelo atual estágio de desenvolvimento em que se encontra esse campo do

conhecimento.

É neste contexto que nasce um novo período no ambientalismo geográfico. A

aplicação do marxismo à Geografia, impondo-lhe significativo desenvolvimento, ocorreu

fortemente na esfera do estudo da sociedade – Geografia Humana –, que experimentou

momento de grande evidência suplantando os estudos voltados para a natureza – Geografia

Física.

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Esse período é particularmente notável porque apresenta no seu vórtice o

rompimento operado por grande parte dos geógrafos com a perspectiva geográfica positivista,

deflagrando um momento de busca de novos caminhos, de nova linguagem, de novas

propostas em relação ao objeto, ao método e ao significado da Geografia. Instala-se, de forma

sólida, um tempo de críticas e de propostas no qual os geógrafos vão se abrir para novos

caminhos metodológicos e perspectivas não trilhadas. A Geografia marxista aproximou-se da

Sociologia, da História e da Economia, em detrimento da abordagem do suporte físico-

territorial sobre o qual são processadas as atividades sociais.

Na perspectiva marxista, o ambiente deve ser entendido segundo a lógica do sistema

de produção social numa abordagem de análise globalizante. Os limites que se impõem a esse

método, que pretende uma abordagem mais global, são compreensíveis diante de uma

realidade positivista onde o conhecimento é atomizado pelo caráter da especialização

(MENDONÇA, 1993).

Os geógrafos físicos desconsideraram em seus estudos a abordagem das relações

sociais enquanto componentes das diversas paisagens. Na esteira de tais movimentos, surge a

necessidade de integrar a dinâmica natural das paisagens às relações sociais de produção

mesmo nos trabalhos de enfoque físico, o que tem contribuído para o desenvolvimento de

metodologias próprias para alcançar tal abordagem.

Alguns geógrafos físicos desenvolveram o conceito de geossistema, proposto no

início dos anos 60, e o dotaram de um novo elemento de análise – a ação antrópica –,

constituindo uma nova variável pela qual buscariam demonstrar que é possível o tratamento

do meio ambiente de forma integrada no âmbito da Geografia Física. Os maiores expoentes da

Geografia que adotam tal postura teórica são: Georges Bertrand, Jean Tricart e Jean Dresh

(MENDONÇA, 1993). No Brasil, podemos citar: Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro,

Aziz Nacib Ab’Saber e Orlando Valverde.

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A adoção dessa nova perspectiva – pela Geografia Física – ocorreu de forma gradual

durante as décadas de 70 e 80. Seus defensores acreditam que o seu desenvolvimento vai

privilegiar o enfoque ambiental, carregando a possibilidade de diminuir ou atenuar a histórica

dicotomia Geografia Física versus Geografia Humana.

Já o pensamento da geógrafa Dirce Suertegaray (apud MENDONÇA, 1993, p.63),

nos leva para outro provável elo de união entre esses dois sub-ramos: a Geografia da

Percepção/Topofilia, que incorporou e salientou a dimensão dos valores sociais e culturais,

bem como a valorização da história e do mundo vivido, apontando e privilegiando aspectos

historicamente negligenciados na investigação geográfica ao incorporar os elementos estéticos

e simbólicos, bem como os valores e as intenções, na análise da construção social do lugar

(LECIONE, 1999).

A Geografia da Percepção e do Comportamento não é unanimidade entre os

geógrafos: muitos a caracterizam como conservadora e reacionária. Não obstante, mesmo

entre os críticos, há o reconhecimento de que esta nova prática geográfica reafirma a

importância da Geografia nas lutas sociais e revigora seu caráter de ciência engajada na

defesa da qualidade de vida. Também porque se afirma uma nova forma multidirecional de

olhar e sentir o meio ambiente, com a intenção de superar o tratamento meramente descritivo

e contemplativo que colocava o espaço circundante na posição de que pudesse existir paralelo

à sociedade (MENDONÇA, 1993, p.63).

O papel da Geografia de cunho ambientalista, engajada na transformação da

realidade, vai além da instrumentalidade. Deve-se concretizar não apenas em uma atuação

técnica para a elaboração dos EIAs (Estudos de Impactos Ambientais) e RIMAs (Relatórios

de Impactos Ambientais) na implantação das atividades produtivas que encerrem riscos

potenciais ao meio ambiente. Os geógrafos físicos e os geógrafos humanistas além de

participar da elaboração de tais documentos devem, sobretudo, agir conjuntamente no âmbito

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político das questões ambientais, lutando de forma direta e indireta para interferir nos rumos

que conduzirão a uma reestruturação do espaço brasileiro, a fim de torná-lo menos degradado,

desigual e injusto. Seja qual for o sub-ramo ou a especialidade do geógrafo, este deve estar

comprometido com a superação das condições degradantes das populações humanas e no

resgate da dignidade e do estabelecimento da cidadania da população brasileira. Pensamos

que somente na perspectiva interdisciplinar é que a Ciência Geográfica encontrará o seu papel

e a sua vocação.

2.1.2 Geografia, Percepção e Fenomenologia

Segundo Nogueira (2001), os estudos interessados na percepção do espaço marcaram

os debates teórico-metodológicos da Geografia desde a Antiguidade, quando os gregos já

investigavam a relação entre os dados psicológicos dos povos e o entendimento do meio

ambiente.

Intensificam-se na França, no início do século passado, os estudos acerca da

percepção, acentuando-se a busca do significado do espaço a partir da percepção das

populações primitivas pelo resgate de certas formas da percepção do meio e sua significação

geográfica. É o momento em que várias teses passam a introduzir na interpretação dos lugares

“a subjetividade coletiva” dos grupos estudados. Nesse campo, Nogueira (2002) cita Albert

Demangeon (1903), que dedicou parte de seu trabalho à interpretação das informações

resultantes da análise psicológica coletiva; Jean Brunhes que procurou demonstrar em suas

reflexões um interesse pelos fatos culturais, comportamentos e crenças locais; e Deffontaines,

com suas reflexões sobre as atividades das civilizações perante a vida e a morte.

Houve até a proposta, segundo Andrade (apud NOGUEIRA, 2001, p.54-55), para a

criação de uma Geopsicologia, isso nos primórdios da Geografia Moderna.

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A Geografia Francesa, comparativamente a outras escolas, valorizou os debates

sobre a percepção e sua relação com a organização do espaço. Não obstante, mostrou-se

resistente em ampliar a discussão sobre os modos de como o espaço é vivido – o sentido da

vivência local – considerada por muitos clássicos da escola francesa uma atitude perigosa e

presunçosa.

As Geografias Alemã e Americana, marcadas pela tradição naturalista, também

demonstraram interesse pelos fatos culturais e locais sem, no entanto, abandonar a descrição

dos lugares de forma pretensamente neutra, influenciada pela psicologia comportamental,

segundo o modo behaviorista, e imersa no cientificismo – marcas metodológicas dessas

escolas (NOGUEIRA, 2001).

Contudo é exatamente nos países Anglo-Saxões que a percepção é retomada com

forte interesse nos estudos da Geografia, dentro de uma atmosfera de intensa crítica à

chamada Geografia Analítico-quantitativa – linha anglo-americana que predominou durante a

década de 60 – e como resultado de um intenso diálogo com os economistas preocupados com

os empreendimentos de economia espacial. Como conseqüência, a Geografia Anglo-Saxônica

inicia uma sedimentação dos estudos sobre a percepção do meio utilizando-se, inicialmente,

de uma via específica – a busca de respostas aos anseios dos economistas – e como forma de

rivalizar-se com a chamada Geografia Quantitativa.

Segundo alguns autores, a Geografia Comportamental ou da Percepção foi

inaugurada com o trabalho de Julian Wolpert, de 1964, que discutiu o problema da migração

buscando ultrapassar a explicação meramente econômica dada ao fato. Ele trabalha sobre as

imagens dos lugares distantes para identificá-las e estudá-las como possível fonte geradora de

satisfação pessoal. E conclui, fundamentalmente, que a decisão de sair de um lugar é

amadurecida no indivíduo em dois momentos: primeiro ele decide se vai sair; depois, opta

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pelo lugar do qual detenha imagens satisfativas, ou seja, a decisão de sair é tomada com base

nas imagens do lugar para onde pretende migrar.

O trabalho de Wolpert – construtor da chamada Teoria de Tomada de Decisão –

serviu de aporte para a ampliação dos estudos geográficos dentro uma perspectiva subjetiva e

com o interesse em explorar os universos vividos. Ao discutir a migração, Wolpert aproveita

em sua análise a dimensão subjetiva dos indivíduos para compreender os motivos que os

fizeram migrar. Até então, na Geografia, a única interrogação em termos comportamentais

dizia respeito a como o homem era condicionado pelo meio; por isso, a incorporação da

subjetividade desses sujeitos à análise geográfica pode ser considerada inovadora.

Muitos trabalhos de Geografia passaram a discutir o comportamento do homem ante

a natureza, a percepção da natureza e da paisagem urbana, assim como dos espaços do medo e

do ódio, incorporando à análise geográfica a dimensão psicológica (LECIONE, 1999).

Nogueira (2001) afirma que a Geografia definiu-se pela explicação psicologista da

percepção, priorizando a mente, os aspectos cognitivos de construção da realidade. A

percepção é investigada tendo como preocupação central o comportamento humano diante do

mundo real. As análises comportamentais apresentavam como eixo principal de discussão os

tópicos ligados à tomada de decisões em contextos espaciais. O eixo consistia em avaliar os

comportamentos dos homens frente ao mundo real para propor decisões de organização

espacial. Como exemplo dessa abordagem psicologista da percepção – preocupada com a

organização do espaço –, a autora relaciona alguns estudos voltados para os problemas das

catástrofes naturais e da influência climática na organização espacial. Nessa linha, geógrafos

passam a investigar a percepção do risco de inundação das avenidas fluviais e os riscos de

ocupação das planícies costeiras. Para entender por que as pessoas escolhem viver em áreas

que são sujeitas às cheias, embora fossem perscrutados elementos na percepção das

populações locais, no final predominava mesmo a decisão técnica de reorganizar o lugar.

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Essa vertente da Geografia, conhecida como Geografia da Percepção e do

Comportamento, desdobra-se em Geografia Humanista, voltada mais para a análise da

literatura, dos significados e dos símbolos (LECIONE, 1999).

Paralelamente aos debates da Psicologia acerca da percepção, filósofos de formação

fenomenológica compreendem-na sob uma outra perspectiva, com severas críticas à

interpretação reducionista da relação do homem com o mundo a uma relação causa–ação. A

Geografia, por toda a década de 60, absorve a interpretação assumida pela Psicologia,

atraindo a crítica de alguns geógrafos resistentes que, desde a década de 50, opunham-se à

explicação psicologista da percepção e ressaltavam a necessidade de considerar a realidade

dada através da experimentação e da convivência entre o homem e o lugar. Entre eles,

destaca-se Eric Dardel (NOGUEIRA, 2001).

Apesar das críticas, as pesquisas sobre as percepções espaciais prosseguem, mas sob

novos enfoques. Ao invés das avaliações sobre o meio, pondera-se sobre as preferências

espaciais.

A pesquisa feita por Peter Gould – que retoma o tema da migração já investigado por

Julian Wolpert – parte da idéia de que os homens têm preferências por certos lugares em

função da imagem que dele constroem. A novidade no trabalho de Gould é a utilização dos

mapas mentais dos lugares que cada entrevistado trazia arquivado em sua memória.

R. White, do Departamento de Geografia de Bristol, seguindo a mesma metodologia

de Gould, procura avaliar a preferência espacial de crianças no universo dos municípios

britânicos.

Dentro desse enfoque, também podemos citar o trabalho de Kevin Lynch,

considerado o ponto de partida na defesa da idéia de que as percepções cotidianas é que

estruturam as imagens na mente humana. Esse autor concentrou-se nos elementos das

paisagens apreendidas pelos cidadãos de três cidades americanas para concluir que em torno

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desses elementos é que a imagem da cidade se forma, inspirando-se claramente na Psicologia

da Gestalt (NOGUEIRA, 2001).

A partir daí, abre-se um amplo leque de interesses voltados para o meio ambiente tais

como: percepção de pragas e praguicidas; mensuração de paisagens estéticas e de atitudes em

relação aos riscos ambientais. Na área da pesquisa de campo merece destaque a obra de

Whyte (1977), que balizou inúmeros estudos no Brasil. A obra apresenta o papel da percepção

ambiental e trata de métodos e técnicas a serem aplicadas em campo (OLIVEIRA, L., 2001).

Por toda a década de 60 e 70, é crescente a elaboração de modelos para explicar a

relação da percepção com o comportamento e o meio real. Nogueira (2001) explica que as

pesquisas da Geografia Comportamental adotam uma perspectiva indutiva com o objetivo de

construir generalizações, a partir de processos em andamento, unificadas pela preocupação de

construir a teoria geográfica com base em postulados que considerem o comportamento

humano. Os métodos variam, mas a orientação geral é sempre dada por generalizações

indutivas que levam ao planejamento da mudança do ambiente. Nogueira também assevera

que, ainda hoje, os métodos positivistas são utilizados para avaliar a relação homem–meio,

principalmente por geógrafos que trabalham com planejamento ambiental. Predomina a idéia

de que há uma relação causal entre a percepção e o mundo real, e que os nossos

comportamentos são definidos pela forma como percebemos a realidade (NOGUEIRA, 2001).

Não obstante os estudos de visão metodológica positivista tenham predominado nas

investigações sobre a percepção, paralelamente construíram-se alternativas que buscavam

alicerçar-se em filosofias mais humanistas, sob a argumentação de que a realidade não deveria

ser analisada separada do sujeito, como se este a observasse, distante, numa relação entre

sujeito e objeto. Embora apresentassem consistência, estas idéias passam por toda a década de

50 sem ter merecido qualquer registro.

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Alguns geógrafos destacaram-se nas críticas à visão positivista das pesquisas sobre a

percepção. Desde 1947, o geógrafo Jonh K. Wright, citado por Jonhston (apud NOGUEIRA,

2001, p.69), mostra-se preocupado com a valorização do conhecimento do homem comum, a

quem ele reputava como “geográfico”, e introduz o termo “Geosofia”, como uma tentativa de

resgatar as percepções humanas como saber considerado verdadeiro sobre os lugares.

Para Wright, os conhecimentos geográficos:

(...) cobrem as idéias geográficas tanto verdadeiras como falsas, de todas as camadas do povo – não somente geógrafos, mas também agricultores e pescadores, executivos e poetas, novelistas e pintores... é por esta questão, que estes estudos têm a ver com as questões subjetivas... o conhecimento geográfico é universal entre os homens. Sua aquisição é condicionada pela complexa inter-relação de fatores culturais e psicológicos (apud NOGUEIRA, 2001, p. 69).

Nogueira (2001) apresenta o geógrafo britânico Kirk (1951) como sendo um dos

primeiros a enfatizar a importância para as interpretações fenomenológicas: ele considera o

ambiente como um conjunto com “forma”, coesão e significado que lhe são adicionados pelo

ato da percepção humana. Reconhece que nos lugares há dois ambientes separados, mas não

interdependentes, um ambiente dos fenômenos e o outro ambiente comportamental

compreendido como a porção percebida e interpretada do ambiente.

Na França, Dardel, contemporâneo de Kirk, insiste em que a Geografia dê atenção à

compreensão fenomenológica do mundo. Para ele, a percepção não se dá na relação, mas na

inter-relação do homem com o mundo. A percepção, por isso, não pode ser vista como um

processo simples de estímulo versus resposta. Ela encontra o seu substrato na presença do

homem no mundo, no lugar.

No início da década de 60, toda essa discussão foi retomada por David Lowenthal,

para quem:

(...) a superfície da Terra é modelada, para cada pessoa pela refração através de lentes culturais e pessoais de costumes e fantasia. Todos somos artistas e arquitetos da paisagem, criando ordem e organizando o espaço, o tempo e a causalidade de acordo com nossas interpretações e predileções (apud NOGUEIRA, 2001, p.70).

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Lowenthal defende que, mesmo em sociedades de indivíduos com semelhante

embasamento cultural, ocorrem distintas percepções e compreensões do mundo. Na

publicação que fez sobre a epistemologia da Geografia, ele reforça a importância do mundo

vivenciado, dos sistemas de significados e das perspectivas fenomenológicas. Há um

fortalecimento das pesquisas em que a percepção é tratada enquanto conhecimento sobre os

lugares adquiridos na inter-relação do homem com o mundo. Mas, segundo Nogueira (2001),

os insistentes debates não foram suficientes para superar as investigações da Geografia da

Percepção de caráter positivista, fundamentadas na relação homem versus mundo como uma

relação de estímulo–resposta.

Assim, sob a influência da fenomenologia, mais que do existencialismo e do

idealismo, a Geografia colocou em cena elementos negados pelo positivismo, criticando

sistematicamente a depreciação do vivido em favor do concebido (LECIONE, 1999).

Considerando a dimensão estética que a realidade social apresenta em sua formação

multifacetada, a Geografia afirmou a importância da estética e do imaginário para a análise do

mundo real, questionando a ausência da dimensão pessoal e subjetiva presentes na Nova

Geografia. Assim, quando o pesquisador se debruça sobre a realidade o faz imbuído de seus

valores, sentimentos e percepções. Em outros termos, a Geografia, sob a influência da

fenomenologia, afirmou que a consciência diante de qualquer objetivação científica é sempre

uma consciência engajada, negação a qualquer imparcialidade, nas palavras de Lecione

(1999).

A Geografia da Percepção e do Comportamento, assim como a Geografia Humanista,

procurou um enfoque globalizador e subjetivo da realidade, no qual a intuição passou a

figurar como elemento constitutivo e importante do processo de conhecimento.

Essa perspectiva geográfica constrói-se a partir da importância que a Geografia dá

aos significados e valores que os homens atribuem ao espaço. Por isso, considera que o

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pesquisador deve comprometer-se com o que analisa, fazendo parte da pesquisa, exercendo

uma observação participante. Ou seja, a investigação à distância não possibilita a

compreensão da realidade social. Desse modo, a Geografia da Percepção e do

Comportamento, enquanto corrente de pensamento, rompe a oposição entre sujeito e objeto,

tanto quanto entre ator e observados (LECIONE, 1999).

A influência da fenomenologia ensejou persistente crítica à Geografia concebida

como uma ciência espacial voltada para a elaboração de técnicas de organização do espaço,

abrindo um fluxo na contramão da Nova Geografia, e dos seus desdobramentos, no uso dos

modelos matemáticos. Essa crítica se desenvolveu, sobretudo, onde a Geografia positivista

não era proeminente, como na Austrália e no Canadá. Apenas posteriormente, a Geografia de

inspiração fenomenológica chegou aos Estados Unidos e a Grã-Bretanha, centros eminentes

da Nova Geografia.

Lecione (1999) explica que, em 1974, Yi-Fu Tuan, com seu com seu livro Topofilia,

e E. Relph, com Place and Placelessness, de 1976, apontam para elementos bastante

negligenciados na investigação geográfica ao incorporarem os aspectos estéticos e simbólicos,

bem como os valores e as intenções, à análise da construção social do lugar.

Oliveira defende que:

Para a ciência geográfica foi uma nova abertura, um novo e fértil campo de investigação científica. Coincide, com a nova procura em ciência de se encontrar caminhos para a explicação das relações e porque não se apontar, as reais interações entre Sociedade e Natureza, de uma maneira não tão quantificável, mas, sim qualificável (OLIVEIRA, L., 2001).

Firmou-se, com essa perspectiva fenomenológica, uma visão antropocêntrica do

mundo e a recuperação do humanismo que havia sido lançado ao ostracismo pelos modelos

teóricos da Nova Geografia. Podemos dizer que a Geografia de inspiração fenomenológica, ao

incorporar e salientar a dimensão dos valores sociais e culturais, valorizando a história e o

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mundo vivido, colocou o Homem, como no Renascimento, no centro de suas preocupações

intelectuais.

Sob inspiração do humanismo, surge um novo trilhar da Geografia. O espaço, em

função de sua dimensão abstrata, perde o posto de referência central. O espaço vivido – o

lugar construído socialmente a partir da percepção das pessoas, portanto, interpretado pelos

indivíduos e revelador de práticas sociais – passa a cumprir esse papel.

A percepção do espaço vivido tem no lugar o seu centro de análise, uma vez que é

nele, mais do que no espaço, que se relaciona a existência real à experiência vivida. Na

Geografia, o lugar é visto, sob a ótica da fenomenologia, não como um lugar objetivo, mas

como algo que transcende sua materialidade, por ser repleto de significados. Por isso, o lugar

– concreto, único e caracterizado por uma paisagem não apenas natural, mas essencialmente

cultural –, torna-se o centro e o objetivo do conhecimento geográfico (LECIONE, 1999).

Reiterando, a fim de marcar um dos conceitos primordiais no presente trabalho: o

lugar transcende a sua realidade objetiva e é interpretado como um conjunto de

significados. Nesse sentido, os monumentos, as obras de arte, assim como cidades constituem

lugares porque contêm um conjunto de significados. Então, contrário sensu, podemos

concluir, a partir de lição de Lecione (1999), que quando um lugar sofre intervenções técnicas

severas, numa ordem capaz de afastá-lo do seu conjunto de significados, transforma-se em

verdadeiro “clone paisagístico”, ou seja, “os lugares passam a ser não-lugares”.

O conceito de lugar como identidade – lugar com significado – permeia, neste

trabalho, nossa busca da valorização e melhoria das condições qualitativas de vida, da

compreensão dos mecanismos perceptivos e cognitivos utilizados pelo Homem, quer como

indivíduo, quer como grupo, ao relacionar-se com o meio ambiente. O desafio histórico que

se impôs aos geógrafos – incluir o psicológico e o biológico no campo visual da Geografia –

continua atual e instigante.

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A questão básica imposta aos estudos da percepção do meio ambiente é compreender

e explicar as complexas inter-relações entre o Homem e a biosfera. Como um grupo cultural

percebe, individualmente ou coletivamente, o seu meio ambiente? Que decisões e ações estão

implícitas ao serem assumidas as atitudes e implementadas proposições diante desta questão?

As respostas nem sempre são objetivas; pelo contrário, baseiam-se em necessidades

imediatas, prementes e prioritárias do ponto de vista técnico.

Neste trabalho, alguns aspectos tratados no livro Topofilia de Yi-Fu Tuan nos

interessam como pressuposto teórico, como o conceito de topofilia que, para o autor citado, “é

um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido amplo, incluindo todos os laços

afetivos dos seres humanos com meio ambiente material”. Valemo-nos da compreensão de

que os laços afetivos do ser humano pelo meio ambiente diferem em intensidade, sutileza e

modo de expressão, e de que “a apreciação da paisagem é mais pessoal e duradoura quando

está mesclada com lembranças de incidentes humanos” ou quando combinam o prazer

estético com a curiosidade científica.

O autor aborda as relações de saúde, familiaridade e conhecimento do passado para

com a topofilia. A familiaridade engendra afeição ou desprezo. Uma pessoa no transcurso do

tempo investe parte de sua vida emocional em seu lar e em seu bairro, como forma de

proteger-se das perplexidades do mundo exterior. Observa-se em algumas pessoas –

especialmente idosas – uma relutância em abandonar seu velho bairro por um novo lugar para

morar. A consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar. A topofilia

não se manifesta por um vasto território, mas parece necessitar de um tamanho compacto,

reduzido às necessidades biológicas do homem e às capacidades limitadas dos sentidos.

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2.1.3 Paisagem e Valor na Perspectiva da Geografia

Os geógrafos têm, ao longo do tempo, proposto concepções diferenciadas para o

termo paisagem. Houve até quem dedicasse parte de seus estudos a uma análise comparativa

do significado dos vocábulos: do alemão landschaft, do inglês landscape e do francês

paysage. Esta discussão feita por Hartshorne acabou por esclarecer a grande confusão que

ocorria, pois num mesmo idioma, dependendo do autor, o termo era aplicado no sentido das

características estéticas, de uma área ou como porção da face da Terra e do céu e também

como sinônimo de região.

Em português, “paisagem” tem origem no termo francês e assume todos esses

significados, mas nosso trabalho – impelido pelos objetivos a que se propõe – quer ultrapassar

a mera análise lexical.

Segundo Bley (1999), atualmente as descrições das paisagens e sua análise

pormenorizada retomam relevância na Ciência Geográfica, como nos trabalhos de La Blache,

geógrafo francês, em que paisagem e região aparecem como sinônimos. A diversidade do

meio explica a diversidade dos gêneros de vida que são um conjunto de técnicas e costumes

criados pelo homem para adaptar-se ao meio em que vive. O que reforça a idéia de que

paisagem e região são compreendidas como a área de um determinado grupo humano.

No estudo da paisagem, Bley (1999) destaca as figuras exponenciais e suas principais

idéias, dando conta da dimensão da contribuição francesa ao tema.

A paisagem como objeto de estudo da Geografia foi defendida por Rougerie,

geógrafo francês, para quem o centro de interesse da Ciência Geográfica reside nas paisagens.

Segundo ele, cabe à Geografia localizar fatos, compreender as diferenciações do espaço

terrestre e comparar conjuntos desvendando seu dinamismo interno e suas relações recíprocas.

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Outro grande geógrafo francês, George, afirma que a paisagem é objeto da

curiosidade e dos estudos geográficos. Mas, quando analisa o procedimento geográfico do

ponto de vista da observação do espaço, considera a paisagem resultante de forças atuais ou

do passado, portanto essencialmente do que é visível.

Para Dollfus, estudioso francês, a paisagem é o aspecto visível e diretamente

perceptível do espaço. Mas a tal conceito de paisagem falta o essencial: a conceituação do

objeto e um método de tratamento específico. Essa ausência seria explicada pela

complexidade e pelo caráter heterogêneo dos componentes das diferentes paisagens.

Mais recentemente, um conjunto de dados científicos, alguns deles exteriores à

Ciência Geográfica, contribuiu para que a paisagem passasse a ser objeto de pesquisa própria.

Isto porque se desenvolveram outras formas de entender a paisagem, considerando-a em suas

relações com a sociedade, ou seja, enfatizando seus aspectos sociais, histórico, políticos,

culturais entre outros. A partir desse raciocínio, a definição de paisagem volta-se para o que se

poderia chamar de paisagem social.

Para Bley (1999), o que vários geógrafos defendem hoje é olhar a paisagem a partir

de uma perspectiva histórica, compreendendo-a como reflexo de valores sociais e padrões

culturais, expressão e maneira de viver, paisagem social e política. Esta visão vai além dos

interesses de estudo das relações entre o homem e o meio e avança para a proposta de se

estudar as relações do homem com o meio e do homem com o homem por meio da análise das

paisagens.

Essa é a definição abraçada por Milton Santos (1982, p.37), que aponta o duplo

caráter do “traço comum” a diferentes espaços resultantes de uma combinação de objetos

naturais e objetos fabricados – ou sociais – e da acumulação da atividade de muitas gerações.

Ao definir a paisagem como resultado de um processo histórico, o autor coloca num mesmo

patamar o que define como objetos naturais e objetos sociais sem estabelecer entre eles

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qualquer relação de prevalência. Neste ponto, ao expormos e criticarmos os vários conceitos

de paisagem, teremos particularmente presentes as idéias de Santos.

A importância que a paisagem histórica e culturalmente construída assume no

presente trabalho está justificada pelo trajeto que escolhemos para alcançar os objetivos

propostos: à luz da experiência histórica, estudar a percepção dos igarapés de Manaus. Tal

percurso conduz a uma outra linha de pensamento, que define paisagem como espaço

subjetivo, sentido e vivido individualmente. Buscando dar densidade ao nosso eixo de

investigação, não adotaremos exclusivamente nenhuma das tendências, porque entendemos

que este estudo está obrigado a tomá-las associadamente na medida em que se lança à

investigação da percepção da paisagem numa perspectiva da história.

A paisagem pode ser compreendida como um espaço subjetivo, sentido e vivido.

Essa linha de pensamento que define a paisagem como um espaço de cada ser humano,

portanto, um espaço individualizado, tem sido um caminho muito adotado por geógrafos,

arquitetos e sociólogos, principalmente quando trabalham na solução de problemas de

reestruturação de paisagem cotidiana partindo da análise dos indivíduos e de coletividades.

Bley (1999) explica que, para Collot, a paisagem só pode ser apreendida pela

percepção, configurando-se, portanto, como um espaço percebido. Essa percepção distingue-

se das construções e símbolos elaborados a partir dela e exige outros métodos de análise. Na

percepção da paisagem, o sujeito não se limita a receber passivamente os dados sensoriais,

mas os organiza para dar a eles um sentido. A paisagem percebida é, portanto, construída e

simbólica.

Collot afirma que, a paisagem percebida possui três elementos essenciais: a idéia de

ponto de vista, a de parte e a de unidade ou conjunto (BLEY, 1999). A paisagem é definida

em função do ponto de vista de onde ela é observada, isso supõe como condição de existência

da paisagem a atividade de um sujeito. Dessa pressuposição, poderíamos chegar a uma

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definição simplista: paisagem é tudo que se vê. Porém, definir assim paisagem implicaria

excluir dela a noção de distância. Isso a tornaria incompleta, já que, a grandes distâncias, a

paisagem ameniza-se em razão da diminuição de elementos que a compõem e, além do espaço

que os olhos podem perceber, desaparece. Podemos afirmar, então, que a noção de escala é

indissociável da noção de paisagem. Há um ponto inicial mínimo e máximo na percepção da

paisagem, possível de ser calculado em termos de distância.

A paisagem também não é simples objeto em face do qual o sujeito se situa em

relação de exterioridade. Na paisagem, sujeito e objeto estão juntos, inseparáveis. Isto porque

o objeto espacial é constituído pelo sujeito e, ainda, porque o sujeito está envolvido na

paisagem, ou melhor, ele está dentro da paisagem (BLEY, 1999).

Quando olhamos uma paisagem ela nos oferece apenas parte de uma área. Essa

limitação é determinada por dois fatores: a posição do observador, que é estabelecida

fisiologicamente pela extensão de seu campo visual e o relevo da área observada. As lacunas,

que ocorrem provocadas por essas restrições, são aspectos que podemos considerar negativos

da percepção da paisagem; elas são, de alguma forma, preenchidas pela percepção que

ultrapassa o simples dado sensorial e completa as falhas. E por não permitir ver tudo a

paisagem se constitui uma totalidade coerente.

Iniciaremos uma discussão sobre uma questão muito complexa, fundamental neste

estudo: o valor da paisagem.

Uma corrente filosófica – a axiologia – afirma que o homem, em todos os atos e ante

todos os fatos, define, analisa, aceita ou rejeita, isto é, realiza uma valoração, que está

consubstanciada por uma apreciação de valores, um juízo de valor. Os juízos de valor

enunciam algo que não se junta nem se tira da existência do objeto. Para os axiólogos

modernos “os valores não são, os valores valem”, como dito por Bley (1999, p.126).

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Outros aspectos polêmicos que se apresentam no juízo de valor é a classificação –

valor relativo ou absoluto – e a hierarquia de valor. Uma simples transposição para o nosso

tema poderia gerar indagações do tipo: uma bela paisagem pode ser sacrificada (valor

relativo), em favor de um elemento do desenvolvimento econômico (valor absoluto)? Na

hierarquia, o que tem mais valor: a área industrial ou a beleza da paisagem? Questões

relevantes e difíceis de responder.

A natureza do valor é controvertida: no julgamento de valor de uma paisagem

evidencia-se um valor utilitário, financeiro, comercial e um valor estético. Bley (1999),

citando Lacoste, reconhece que a paisagem além de um valor estético, simbólico, um

procedimento de valoração ideológico, é também um valor de mercado. No entorno de uma

paisagem reconhecidamente bela, logo se instala a especulação imobiliária.

A respeito do estudo das paisagens valorizadas, Lowenthal, pesquisador que buscou

identificar a preferência por determinadas paisagens, afirma que as preferências e o valor de

determinada paisagem não estão vinculados apenas à beleza. A preferência estética é apenas

uma das muitas fontes de vínculos afetivos com a paisagem.

Nessa mesma esteira, Gold & Burgess, citados por Bley (1999), afirmam o papel

preponderante do lugar na constituição das representações do sujeito, asseverando que todos

buscam sempre um lugar como meio de alcançar a satisfação de suas necessidades básicas:

abrigo para nascer e morrer, locais que propiciam prazer, lugares que marcam o passado e aos

quais está ligado o futuro. Segundo os autores, os indivíduos, independentemente do seu papel

ou posição social, exigem possuir e criar suas próprias paisagens; nesses verbos encontra-se

o verdadeiro significado do valor das paisagens. Disso se pode depreender que o cotidiano é

capaz de forjar no indivíduo as representações que vão levá-lo a valorar as paisagens

cotidianas, aquelas em cujo contexto de relações complexas ele se realiza e se individualiza.

Os autores criticam o descompasso que há entre o privilégio à proteção de paisagens que são

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parcelas da herança nacional e o pouco caso que se faz em relação à proteção ou preservação

das paisagens que são pano de fundo da vida cotidiana. Não há uma preocupação com

paisagens ditas comuns a não ser quando estão ameaçadas de mudança ostensivamente

perceptível.

As mudanças de larga escala nas paisagens, modificadoras de seu conjunto de

significados e planejadas fora do controle dos habitantes de uma área, são comumente

perturbadoras e violentas, por conta da profunda afeição que as pessoas sentem pelos lugares

onde vivem. Há uma demanda crescente pelo maior envolvimento das populações nas

decisões ambientais. Salvaguardar o interesse público é o discurso utilizado por planejadores

para uma ação potencialmente transformadora do meio em escala macro.

A tarefa, segundo os autores, consiste em encontrar perspectivas e caminhos que

permitam atingir a verdadeira natureza e o significado das paisagens valorizadas sem perder

de vista o vasto contexto da sociedade e o todo associado à necessidade de resolver as

questões ambientais.

2.1.4 A Preservação da Paisagem Cultural

A preservação de paisagem hoje se atrela necessariamente aos processos sociais; será

sempre um conceito cultural sob o olhar arquitetônico, pois este se refere necessariamente a

lugares com presença humana, mesmo em se tratando do meio natural.

O conceito de paisagem natural é útil no debate da preservação de bens patrimoniais

por que é, ao mesmo tempo, abrangente e restritivo. Abrangente por conter diversos

componentes da cultura espacial humana, definindo o alcance da paisagem pela demarcação

do bem preservado: paisagens são edifícios, conjuntos deles ou seus interiores; frações

urbanas ou cidades inteiras; jardins, parques, sítios naturais ou arqueológicos. O conceito de

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paisagem é restritivo quando, vinculado à percepção, concentra a observação do espaço em

sua porção abrangida pela visão. Mas essa redução é positiva na medida em que enlaça a

preservação da paisagem cultural e uma certa modalidade cognitiva – a percepção.

A paisagem cultural, quando se refere ao patrimônio histórico, artístico e afetivo dos

povos, é uma categoria complexa porque abriga patrimônio de natureza material e imaterial, e

porque neles há concentrações sociais com rico espectro de práticas culturais que, se

resguardadas, formam a memória dos povos. Entre tais práticas, encontram-se aquelas de

espaço, cuja materialidade configura a paisagem visualmente apreensível e transformada por

ações em sociedade, estas marcadas pelo diálogo entre saberes, fazeres, afetos e símbolos. Por

isso, a paisagem cultural não é um cenário inerte, mas possui natureza histórica e está em

permanente construção e mudança.

Podemos afirmar, então, que paisagens são patrimônio material que se apresenta aos

indivíduos por meio de sua forma física e perceptível, a qual, em se tratando de lugares, os

expõe, revelando sobre a vida social dos mesmos e interagindo com os indivíduos que neles

estão imersos. Por isso, atributos morfológicos das paisagens são elementos vivos que

permitem, facilitam e induzem, ou inibem, restringem e impossibilitam fazeres que não

prescindem da espacialidade. A configuração dos ambientes tem sido, ao longo da história da

humanidade, mais do que o meio ou produto dos processos sociais: trata-se de um tipo de

prática indispensável à vida grupal.

Neste trabalho, classificamos os igarapés como paisagem cultural –conforme já

fundamentado – e como patrimônio cultural, em razão de alçarmos esses cursos d’água à

qualidade de bem a ser preservado. No sentido do que Kohlsdorf (2001) entende: a paisagem

cultural, elevada a bem preservável, transmite uma condição patrimonial para a sua

forma e justifica os cuidados para com a mesma. Pois, convertida em bem, por sua

configuração, ela é veículo de transmissão da identidade e da história do lugar, sendo o meio

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pelo qual se contam fatos, processos e práticas. Essas evocações articulam-se em processos

cognitivos e possibilitam disponibilizar elementos, encontrados nos lugares cotidianos dos

indivíduos, para a edificação da história social. Tais elementos tornam a configuração das

paisagens sob proteção um bem simbólico que participa ativamente da formação da memória

dos povos (KOHLSDORF, 2001).

Genericamente, a memória é entendida como a possibilidade de dispor

presentemente de acontecimentos passados, sempre que estes já tenham sido anteriormente

disponibilizados. Para Certeau (1994), a memória tem caráter ativo de escolha e sua

implantação em certo lugar representa um momento de ação, uma vez que ocorre o

aproveitamento de uma ocasião para mobilizar lembranças relacionadas a um acontecimento

presente e reinstalar, ainda que virtualmente, eventos passados. É dada à memória a

prerrogativa de recortar certos elementos de recordações coletivas ou individuais, inverter a

ordem ou o lugar nesses elementos, ainda que os espaços vividos representem mero resgate de

ausências. Ao mesmo tempo, a memória permite localizar o que não está presente, porque a

inscrição em nossa mente dos fatos evocados se exerce apenas em práticas espaciais, que são,

na verdade, a maneira irrestrita de transmitir ausências pelo espaço, quando se está em

determinado lugar. Pela transmissão de ausências por meio de paisagens é que se dá a

espacialização da memória; pode também ser elemento formador de cidadania se, ao

possibilitar reminiscências, expuser identidades coletivas, ainda que para este conceito sejam

dadas definições diferentes.

Kohlsdorf (2001) diz que Aristóteles definiu identidade como unidade de substância;

Leibnitz como uma questão de substitutibilidade; e Weismann como uma convenção, já que a

identidade poderia ser reconhecida a partir de qualquer parâmetro estabelecido. Considerados

assim, desarticulados, as divergências advindas de tais conceitos permitiriam inclusões

injustificadas e exclusões irreparáveis de bens nas listas de preservação, caso não se

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relacionassem os conceitos de identidade e de memória e não se considerasse o papel dos

lugares nos processos de identificação e de construção de lembranças, vinculando-se a

afetividade à memória. No campo afetivo, memória e identidade são indissociáveis, porque a

primeira indica a coerência da historia interior, e a segunda, como permanência no tempo,

constrói a história do sujeito (KOHLSDORF, 2001).

A formação da memória e da identidade passa pela trama das relações sociais, o que

não se dá senão pelo compartilhamento de códigos; nesse caso, o símbolo ultrapassa seu papel

de substituto de alguma coisa para constituir-se em instrumento de ligação entre memória e

identidade. Sendo código ou símbolo, há elementos da configuração da paisagem cultural

capazes de revelar traços fisionômicos desses lugares, permitindo que eles sejam conhecidos e

incorporados afetivamente ao sujeito e passem a fazer parte de sua trajetória em certo ciclo

temporal. Cuidar deles e expô-los às populações é o objetivo das ações de preservação, as

quais precisam responder à revelação da identidade dos lugares – ou seja, mostrar as feições

que permanecem no tempo e participam da construção da história dos grupos sociais.

Preservá-los significa definir suas permanências, em termos do quê, como e para quem

preservar, requerendo coleta e análise de informações capazes de revelar a identidade dos

lugares.

A paisagem culturalmente significativa deve ser, por isso, objeto de preservação.

Deve-se considerar que essa identidade dos lugares assimila o tempo. Para compreendê-la,

então, elegemos uma abordagem que não negligencia o processo em que ela se constitui como

conjunto de atributos. A identidade dos lugares apenas se mostra consistente quando a

associamos à abrangência do método histórico, que seleciona fatos e os interpreta à luz de

hipóteses totalizantes, oferecendo um contexto explicativo no qual dados morfológicos

adquirem significado e papel. Assim, as análises configurativas são fios condutores que

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possuem capacidade de descrever morfologicamente cada momento, mas não o explicam

dissociado do olhar integral da Ciência Histórica.

A História explica o processo social, relacionando etapas temporais específicas de

cada contexto; a análise configurativa produz os correspondentes dados morfológicos. A

interação de ambas fornece a representação elucidada das transformações da paisagem, como

uma narrativa de seu processo de vida.

2.2 QUESTÕES METODOLÓGICAS

Sendo este um estudo sobre a percepção e valoração de paisagens, e estas resultantes

de complexo engendramento de múltiplos fatores, estamos obrigados a olhar em todas as

direções e para todas as áreas do conhecimento que possam subsidiar a sua explicação, porque

entendemos que não há caminho para a Geografia senão o da síntese interdisciplinar.

Sob esse enfoque, adotamos uma modalidade de pesquisa histórica sobre o sujeito;

uma investigação de como ele foi estabelecido em diferentes momentos como objeto de

conhecimento, transformação e elaboração, com particular interesse pelos modos com os

quais o homem percebe e valora a paisagem a partir da perspectiva histórica, como reflexo de

valores socialmente dados, determinações culturais, econômicas e estéticas, como expressão

de um modo de vida e como paisagem social e política.

O prisma adotado deve ser o que transcende à mera relação entre o homem e o meio

ambiente para interessar-se pelo estudo da paisagem humanizada – aquela da qual o homem

participa como parte integrante –, nos termos da dinâmica que Milton Santos (apud BLEY,

1999, p.125) defende para o conceito: “A paisagem nada tem de fixo, de imóvel, cada vez que

a sociedade passa por um processo de mudança... a paisagem se transforma para se adaptar às

novas necessidades da sociedade”.

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Para tanto, pareceu-nos um bom caminho começar pela reconstrução da trajetória

histórica da cidade de Manaus, na tentativa de construir uma análise precisa do passado,

utilizando o método histórico-axiológico para encontrar pressupostos – não apenas de ordem

lógica, uma vez que a busca de pressupostos de ordem lógica envolve sempre indagações de

natureza ôntica e axiológica –, à luz da experiência histórica. Partimos da constatação de

Ferrara (1999, p.64) de que a cidade – como objeto de estudo da percepção ambiental urbana

– é concreta e situada histórica e espacialmente e, por causa disso, não se estudam “cidades”,

mas:

(...) estuda-se sempre uma cidade particular e perceptível por meio das marcas e dos sinais decorrentes da relação cotidiana do homem com o espaço específico. Esses signos dispersam-se na imagem urbana natural e construída e nos hábitos que caracterizam certo modo de subsistência física e sensível. São relevantes e altamente expressivos, na medida em que entendemos a percepção ambiental como estudo da linguagem que o homem desenvolve para intervir na natureza e construir seu espaço. Esses signos medeiam a relação do indivíduo com o ambiente urbano e o modo como se apresentam é significativo para a percepção daquela relação.

2.2.1 Linhas Teóricas

A linha de estudo na qual este trabalho está inserido é a fenomenologia do meio

ambiente, buscando o que se pode denominar de conhecimento holístico. Neste sentido,

entende-se que todo o ambiente que envolve o homem – seja físico, social, psicológico ou até

mesmo imaginário – influencia a percepção e a conduta. Esta vertente não aceita a

possibilidade de relações ambientais diretas do tipo causa e efeito, nem de fenômenos

independentes. A fenomenologia é o estudo das essências e considera que não se pode

compreender o homem e o mundo senão a partir de sua factualidade. Sob o olhar

fenomenológico, todos os problemas limitam-se a definir essências: essência da percepção,

essência da consciência, e.g.

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Este trabalho enquadra-se dentro da profícua linha de pesquisa em Geografia que se

volta para o estudo da paisagem enquanto depositária de valores da população (DEL RIO,

1999). Tal perspectiva geográfica destaca os significados e valores que os homens atribuem

ao espaço. Considera que o pesquisador deve-se comprometer com o que analisa, fazendo

parte da pesquisa, exercendo uma observação participante, ou seja, defende que a investigação

à distância não possibilita a compreensão da realidade social, cujo desvendamento só será

alcançado pela imersão pró-ativa do pesquisador na realidade objeto de sua investigação. Para

melhor aquilatar a propositura de tal corrente de pensamento – que aqui abraçamos –,

observa-se que o conhecimento holístico, a ser assim produzido, carrega em seus métodos a

ruptura da oposição entre sujeito e objeto, tanto quanto entre ator e observados.

2.2.2 Instrumentos e Categorias de Análise

A exemplo de outras pesquisas sobre esse tema, utilizaremos estratégias, métodos e

instrumentos diversificados e complementares que podem ser classificados como descritivos,

nos quais não existe o rigor de inferições rígidas de causa-efeito e nem sempre se pode

atribuir correlações diretas entre os fenômenos observados. A parte da pesquisa relativa à

análise ambiental dos igarapés será implementada por meio de dois tipos de categorias

analíticas:

2.2.3 Análise Perceptual

O mapa é uma forma de linguagem anterior à própria escrita. Povos primitivos e

ainda hoje as populações tradicionais que não desenvolveram um sistema de escrita

recorreram aos mapas como modo de comunicação (OLIVEIRA, L., 1999). O interesse em

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tornar nossas representações mais pontuais e voltadas a uma função de localizar com maior

precisão tem o objetivo não só de conhecer os lugares, mas de dominá-los. A intenção de

conquistar dá uma dimensão científica às representações, tornando-as distanciadas do homem

comum já que a preocupação passa a ser a representação exata dos lugares.

Os mapas mentais, diferentemente dos mapas cartográficos, que buscam elaborar

uma representação objetiva do espaço, são subjetivos e construídos a partir da percepção, em

cujo âmbito os homens elaboram imagens acerca do espaço. Os mapas mentais são, portanto,

reveladores dos processos de apreensão das imagens que os indivíduos têm acerca dos

lugares, procurando relacionar essas imagem às características sócio-culturais e entender uma

das dimensões das relações que os indivíduos estabelecem com o espaço (NOGUEIRA,

2001).

Nossa pesquisa não tem interesse nos mapas produzidos em laboratórios com base

em fotografias, mas nos chamados mapas mentais, elaborados a partir das imagens e

percepções que as pessoas têm dos lugares vividos a partir de seus universos simbólicos

produzidos por acontecimentos históricos, sociais e econômicos.

Na Geografia, os geógrafos comportamentais foram os pioneiros na utilização de

mapas mentais, na discussão sobre a percepção do meio e do comportamento, objetivando

recolher dados sobre os lugares para fins especificamente de planejamento. Com a valorização

do saber cotidiano dos lugares, amplia-se o suporte teórico acerca dos mapas mentais

(NOGUEIRA, 2001), que passam a ser utilizados como instrumentos no desenvolvimento de

várias pesquisas interessadas nas representações de uma realidade subjetiva e nas imagens que

cada sujeito seleciona, organiza e dota de sentido conforme seus objetivos.

As imagens mentais dos lugares podem ser construídas de forma direta quando

adquirimos informações por meio das imagens pessoais, e de forma indireta por meio de

informações que adquirimos a partir do que lemos, ouvimos, vemos, ou mesmo, de conversas

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com outras pessoas. Com o avanço das pesquisas, cresce a compreensão de que as imagens

do meio ambiente são resultado de um processo bilateral entre o observador e o meio. A

imagem de uma dada realidade pode variar significativamente entre diferentes observadores.

Cada indivíduo cria sua própria imagem, mas constroem-se nele também as imagens de

grupo, revelando o consenso entre os observadores de classes homogêneas (sexo, idade,

cultura, ocupação...) (LYNCH, 1988, p.17).

Os elementos destacados pelos mapas mentais contemplam, além de um significado

individual e afetivo, um significado sócio-cultural e geográfico. Representam o visível, mas,

também, os símbolos que aparecem assinalados, dando pistas de um significado invisível

(NOGUEIRA, 2001).

Nesta categoria analítica, a técnica empregada objetivou-se por meio da consecução,

pelos sujeitos, de mapas mentais, bastante úteis para identificar as imagens mais

significativas geradas pela forma de vida urbana na cognição do homem. A interpretação do

conteúdo dos mapas mentais examina as imagens que são retidas no “baú da memória” que é

a mente humana, facilitando a compreensão do que é mais facilmente retido pela percepção

subjetiva dos contornos de Manaus – notadamente dos igarapés, elementos típicos do percurso

histórico-cultural da cidade.

Solicitamos aos respondentes que elaborassem mapa mental em que se registrassem

os aspectos mais significativos do seu bairro, a fim de identificar possíveis correlações de

valor entre os diversos eventos referenciais retidos em sua memória imediata.

Utilizamos os mapas mentais como recurso metodológico para obtenção de

informações sobre os igarapés, no sentido de obter uma representação do espaço vivido,

resultado da relação intersubjetiva do próprio sujeito com o lugar.

Por este recurso técnico, é possível obter uma representação formal do bairro, ou

seja, uma representação que os respondentes elaboram do seu entorno espacial, porque

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permite que eles fixem imagens e precisem os limites dos conhecimentos espaciais do seu

bairro.

A aplicação dos mapas mentais tem como objetivo explorar se os igarapés são

percebidos e como eles são percebidos pelo sujeito no espaço do bairro onde mora, embora

não seja significativo que exista necessariamente ali um igarapé, uma vez que importa

também perscrutar a percepção do indivíduo quanto às interdependências dos vários

elementos constituintes do meio ambiente.

Foram coletados 150 mapas mentais, perfazendo um mosaico de residentes de 54

bairros diferentes, dos quais a grande maioria é drenada por igarapés tributários das bacias de

Educandos e de São Raimundo. Consideramos apenas os principais afluentes das duas bacias.

Desse modo, a quase totalidade dos respondentes residia em bairros drenados por igarapés,

em diferentes relações de posição quanto a eles.

2.2.4 Análise Experiencial

Esta categoria analítica preocupa-se com a manifestação do fenômeno no qual os

elementos caracterizadores do ambiente não são apenas visuais: para ser significativo, o

repertório de elementos deve incluir, também, elementos sensoriais, perceptíveis no nível das

sensações outras que não apenas visuais. A análise assim engendrada volta-se para o exame

das experiências cotidianas de uso e fruição dos igarapés pela comunidade,

operacionalizando-se pela determinação dos vários modos pelos quais é vivenciado o

ambiente, para tentar compreender por que é assim vivenciado.

Interessa desvelar o valor atribuído aos igarapés, detectar o nível de afeição/rejeição

que a população mantém por eles, o que pode ser aferido pela percepção das atitudes e da

experiência de uso desses cursos d’água, visando ao resgate das relações de parentesco entre a

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cidade de Manaus e os seus igarapés como elemento cultural, ambiental e paisagístico que se

encontra latente na mente da população manauara. Por meio da pesquisa, entendemos possível

levantar os operadores capazes de ativar essa memória em favor da construção de posturas

cidadãs.

Ainda dentro da mesma categoria analítica, consideramos importante também

averiguar as atitudes da população frente às intervenções que afetam os igarapés. Isto está

relacionado com outro campo da percepção, qual seja, aquele que a população têm a respeito

de seu próprio potencial de participar de decisões que atingem o ambiente coletivo. A técnica

aplicada nessa terceira categoria está consubstanciada por questionários abertos (anexo 2)

que vão procurar revelar, por meio das respostas diretas e do cruzamento de dados, aspectos

relacionados ao processo perceptivo dos sujeitos da pesquisa.

A concepção de tais instrumentos segue um quadro metodológico segundo o qual se

agrupa um conjunto de perguntas que formam eixos de investigação, de acordo com os seus

objetivos específicos, articulados para possibilitar uma prospecção significativa e refletir

categorias distintas do processo perceptivo acima descrito.

N.º Categorias Itens (anexo 1 e 2) I Identidade com o bairro enquanto lugar 1.1, 1.2, 1.3 II Percepção dos igarapés 2.1, 2.2, 2.3 III Utilidade dos igarapés 2.3 IV Proteção dos igarapés 2.4 V Responsabilidade quanto aos igarapés 2.5 VI Preservação dos igarapés 2.6 VII Afetividade para com os igarapés 2.7, 2.9, 2.10, 2.11 VIII Riscos advindos dos igarapés 2.8 IX Valor dos igarapés 2.11

Quadro 1 – Categorias de análise utilizadas para a Pesquisa de Campo. Manaus, AM. 2004

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2.3 DELIMITAÇÃO DO UNIVERSO

2.3.1 Sujeitos

Consideramos o total de 166 respondentes como suficientemente representativo para

nossos objetivos, pois interessa-nos a qualidade e o conteúdo das respostas mais do que uma

rígida representatividade estatística.

Para a análise experiencial, recortamos do universo de moradores da área urbana de

Manaus um grupo com limites balizados por intervalo etário – encerrando indivíduos jovens

de distintas classes sociais, cujos papéis, supomos, deveriam gerar percepções diferenciadas,

em razão dos distintos modos de concepção de mundo, representação do meio, elaboração de

correlações, além de esquemas de percepção e memória decorrentes de suas experiências na

realidade vivida, assim definido:

2.3.1.1 – Alunos de escolas públicas e particulares, com idades no intervalo de 14-20

anos. O limite inferior é justificado por considerarmos que os adolescentes são capazes de

construir um sistema combinatório de idéias e proposições, isto é, têm capacidade de

expressar relações entre eles próprios e a paisagem.

Aplicamos 49 questionários nas Escolas Públicas Escola Estadual Vicente Schettini

localizada no bairro de Aparecida, Escola Estadual Padre Agostinho Martins localizada no

bairro de Petrópolis e na Escola Estadual Presidente Castelo Branco, localizada no bairro de

São Jorge. Aplicamos 51 questionários nas escolas particulares Escola Concórdia da Ulbra,

localizada no bairro do Japiim e no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, localizada no Centro

de Manaus.

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2.3.2 Área de Estudo

Para a determinação da área física de realização da pesquisa, elegemos os bairros que

são drenados pelos igarapés tributários das duas bacias hidrográficas mais densamente

povoadas – as de São Raimundo e Educandos – pelo fato de que o resgate histórico que

realizamos identificou os igarapés constituintes dessas duas bacias como importantes áreas de

lazer e entretenimento para a população de Manaus no passado.

De acordo com informações da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Meio

Ambiente – SEDEMA (2000) – os cursos superficiais que drenam a área urbana do município

de Manaus dividem-se em quatro grandes bacias hidrográficas:

– São Raimundo, Educandos e Puraquequara, a leste;

– Tarumã, a oeste.

Nossa pesquisa recai no recorte metodológico das bacias hidrográficas de São

Raimundo e Educandos por duas razões:

a) por força de estratégia militar, Manaus nasceu situada entre elas;

b) os igarapés dessas bacias suportam grandes concentrações populacionais (Quadros

2 e 3).

Da primeira bacia são tributários principais os igarapés: do Franco, do BIS, dos

Franceses, do Bindá e do Mindu, que drenam 33 bairros. Da segunda, os igarapés: de Manaus,

do Bittencourt, do Mestre Chico e do Quarenta, cujos meandros percorrem 14 bairros.

Para aplicar os questionários aos indivíduos da faixa etária de 14 a 20 anos, elegemos

três escolas públicas e privadas – por uma questão operacional –, situadas em bairros das duas

bacias referenciais. Ficando assim, a Escola Estadual Vicente Schettini , a Escola Estadual

Presidente Castelo Branco e a escola particular Nossa Senhora Auxiliadora situadas em

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bairros drenados pela bacia do São Raimundo. A Escola Estadual Padre Agostinho Martins

Escola particular Concórdia da Ulbra situadas em bairros drenados pela bacia de educandos.

A clientela de tais escolas é majoritariamente formada de alunos residentes nas áreas

drenadas por igarapés constituintes das bacias aludidas. Dos 166 questionários aplicados 119

respondentes são moradores de bairros drenados pelos igarapés que compõem a bacia

hidrográfica dos Educandos e 47 respondentes são moradores de bairros drenados por

igarapés ligados a bacia hidrográfica de são Raimundo.

No total conseguimos atingir 54 bairros diferentes sendo que 15 desses bairros

estavam ligados à bacia hidrográfica de Educandos entre os quais podemos citar: Educandos,

Centro, Cachoeirinha, Zumbi dos Palmares, Japiim, Distrito Industrial, Petrópolis, São

Francisco e São Lázaro. Atingimos mais 30 bairros ligados a bacia do São Raimundo como:

São Jorge, Santo Antônio, Aparecida, São Raimundo, Glória, Santo Agostinho, Compensa,

Vila da Prata, Nova Esperança, Dom Pedro, Bairro da Paz, Redenção, Chapada, Flores,

Parque 10, Jorge Teixeira, Tancredo Neves, São José, Coroado, Aleixo, Cidade Nova e

Adrianópolis.

Daí se infere que a amostra assim determinada apresenta características pluridiversas

e, ao mesmo tempo, encerra nitidamente os limites experienciais que servirão de substrato à

análise comparativa entre as várias formas distintas de percepção.

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IGARAPÉS BAIRROS DRENADOS POPULAÇÃO

São Jorge 46.753 São Geraldo 7.168 Pres. Vargas 11.539

Santo Antônio 21.945 Aparecida 6.645

São Raimundo 17.495

Igarapé de São Raimundo

Glória 12.490 Santo Agostinho 10.036

Compensa 75.402 Vila da Prata —

Santo Antônio —

Igarapé do Franco

São Jorge — Nova Esperança 22.438 Igarapé do Bis

Dom Pedro — Novo Israel 3.734

Bairro da Paz 6.881 Redenção 20.416 Alvorada 47.243

Dom Pedro 22.679

Igarapé dos Franceses

Chapada 8.741 Flores 17.868

Parque 10 23.530

Igarapé do Bindá Chapada —

Cidade de Deus — Valparaíso —

Jorge Teixeira 22.093 Tancredo Neves 17.286

São José 62.927 Coroado 39.123 Aleixo 12.628

Cidade Nova 95.350 Parque 10 —

Adrianópolis 9.614

Igarapé do Mindu

N. S. das Graças 14.487

TOTAL 656.511

Quadro 2 – População urbana moradora de bairros drenados pela Bacia de São Raimundo. Manaus, AM. 2004. Fonte: Lei Orgânica do Município de Manaus, 1995.

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IGARAPÉS BAIRROS DRENADOS POPULAÇÃO

Educandos 19.153 Igarapé de Educandos Centro 46.753

Igarapé de Manaus Centro — Igarapé Bittencourt Centro —

Praça 14 15.077 Igarapé Mestre Chico Cachoeirinha 32.175

Zumbi dos Palmares 24.210 Armando Mendes 11.617

Japiim 56.669 Distrito Industrial 24.210

Raiz 21.897 Betânia 13.161

Morro da Liberdade 13.969 Crespo 9.839

Santa Luzia 11.206 Petrópolis 50.526

Cachoeirinha — São Francisco 15.404

São Lázaro 13.142

Igarapé do Quarenta

Cachoeirinha —

TOTAL 379.008

Quadro 3 – População urbana moradora de bairros drenados pela Bacia de Educandos. Manaus, AM. 2004. Fonte: Lei Orgânica do Município de Manaus, 1995.

2.3.3 Localização de Manaus

Manaus, capital do Estado do Amazonas (Norte do Brasil), está situada na

microrregião denominada Médio Amazonas, na confluência do rio Negro com o Solimões, no

centro da maior floresta equatorial-tropical-úmida do Planeta, sendo recortada por uma rede

de cursos de água que desembocam no rio Negro.

Apresenta-se distante do Oceano Atlântico cerca de 1.700km em linha reta. O

município de Manaus apresenta uma extensão de 14.337km2, dos quais, 433km2 são ocupados

pelos 56 bairros que compõem a cidade de Manaus, que hoje concentram 1.405.835

habitantes, cuja maioria verifica-se em bairros periféricos, sob condições de vida e

saneamento insatisfatórias. Não obstante a parcela da população que reside às margens dos

igarapés seja a principal prejudicada, todos os manauaras têm a saúde comprometida pelas

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doenças parasitárias, infecciosas e toxicológicas, veiculadas pela água desses cursos, que é

vastamente utilizada, inclusive para recreação e lazer (IMPLAM, 1995 apud GUIMARÃES,

2002).

Manaus faz fronteira, ao norte, com o município de Presidente Figueiredo; ao sul,

com os municípios de Iranduba e Careiro; a leste com os municípios de Itacoatiara e Rio Preto

da Eva, e a oeste com o município de Novo Airão. Suas coordenadas geográficas são: Leste:

03°01’04”LS e 59°49’27” de LW; Oeste: 03°09’32” de LS e 59°58’55” de LW (VIEIRA,

1998 apud GUIMARÃES, 2002).

2.3.4 Geomorfologia

O município de Manaus está inserido no planalto dissecado rio Trombetas – rio

Negro, que apresenta intensa atuação de processos erosivos. O relevo apresenta altimetria em

torno de 120 metros e é classificado como interflúvios tabulares, sendo cortado por uma rede

de igarapés. Estes interflúvios tabulares apresentam topos de extensão que variam de 250 a

1.750 metros e transitam por colinas que se estendem até o limite com o planalto rebaixado da

Amazônia Ocidental (COSTA, 1978, apud GUIMARÃES, 2002).

O Planalto de Manaus é caracterizado por colinas que não ultrapassam a altimetria

dos interflúvios tabulares regionais, ficando em torno de 120 metros (Idem, 2002).

2.3.5 Hidrografia

Falar de Manaus é falar de suas águas, já que a estrutura geral da rede hidrográfica

local é marcada por uma disposição centrípeta, semelhante a um leque cujas varetas são

formadas por grandes rios, alguns dos quais convergem do Oeste, do Noroeste, de Sudoeste

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em direção a um determinado trecho do tabuleiro, justamente onde se encontra a cidade de

Manaus.

Essa disposição da hidrografia tem indubitavelmente exercido grande influência

sobre os modos de desenvolvimento da cidade que, por mais de dois séculos, não se ligava

por via terrestre a nenhum outro centro, a não ser por meio dos rios. Tal característica deu a

Manaus uma história econômica intimamente ligada à navegação fluvial.

A cidade de Manaus está situada sobre um tabuleiro de 40 metros de altitude que, até

a década de 70, encontrava-se profundamente entalhado por amplos sulcos de igarapés, braços

d’água laterais, semelhantes a verdadeiros e pequenos vales, modelados também pelas águas

das chuvas com bordas íngremes, que alcançavam alturas de 7 a 12 metros, dividindo a cidade

em diversos setores ligados entre si por numerosas pontes.

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Figura 2 – Drenagem dos bairros de Manaus Fonte: CPRM – Cartografia

Os dois principais igarapés que cortam a cidade, hoje, são: o igarapé do Mindu, com

aproximadamente 22 km e uma superfície de 66,02 km2 de bacia, que deságua no igarapé do

São Raimundo e corre no sentido NE – SW; e o igarapé do Quarenta, com aproximadamente

9,5 km e 38,40 km2 de superfície de bacia, que deságua no igarapé de Educandos e corre no

sentido NW – SE e NE – SW (VIEIRA, 1998, apud GUIMARÃES, 2002, p.04).

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Os cursos d’água superficiais que drenam a área urbana do município de Manaus

dividem-se em quatro grandes bacias hidrográficas: Tarumã, a oeste; São Raimundo,

Educandos e Puraquequara, a leste.

Manaus surgiu entre as bacias hidrográficas de São Raimundo e Educandos. Os

igarapés dessas bacias suportam, hoje, grandes concentrações populacionais. Da primeira

bacia, que drena 33 bairros, são tributários principais os igarapés: do Franco, com

aproximadamente 6 km, que nasce no bairro de Santo Agostinho e deságua no igarapé

Cachoeira Grande (de São Jorge); do BIS, com aproximadamente 5 km; dos Franceses, com

aproximadamente 10 km; do Bindá, com aproximadamente 8 km e do Mindu. Da segunda, os

igarapés: do Mestre Chico, com aproximadamente 8 km, tendo sua montante no bairro

Boulevard Amazonas; de Manaus, do Bittencourt e do Quarenta, cujos meandros percorrem

14 bairros. Cada um desses principais cursos possui em torno de 10 a 40 afluentes com vazão

contínua, nos termos do quadro abaixo:

12757TOTAL

)(nº Afluentes(km) ExtensãoIgarapé

145BIS106Franco158Bindá1810Franceses3010Quarenta4018Mindu

Quadro 4 – Principais igarapés, sua extensão e número de afluentes. Manaus, AM. 2004.

Todos esses igarapés funcionam como receptores de esgotos ao longo de seus

respectivos cursos. Estão bastante contaminados, principalmente por dejetos residuais de

residências e indústrias.

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Os igarapés, em Manaus, estão sujeitos à oscilação anual do nível do rio Negro

(AB’SABER, 1953, apud GUIMARÃES, 2002, p.05). No período da estiagem, os igarapés se

transformam em modestos ribeirões em função da baixa das águas. O curso desses igarapés é

marcado, neste período, por rasos bancos arenosos onde alguns decímetros de água escorrem

sinuosamente.

Na área urbana, os interflúvios tabulares, sobre os quais se posiciona a cidade de

Manaus, são divisores de uma vasta rede de igarapés, que, barrados em sua foz, formam lagos

que se voltam para o interior com conformação de “vales afogados” (GUIMARÃES, 2002, p.

06).

As áreas de maior declividade concentram-se nas encostas do rio Negro, com

destaque para o trecho que vai do Mauazinho até Educandos, e de São Raimundo até as

proximidades da Ponta Negra. As áreas de menor declividade encontram-se na confluência

dos igarapés do Mindu, Franceses, Bindá e igarapé do Franco e na confluência dos igarapés

do Gigante e Tarumã-Açu, na região da Ponta Negra (BENTO, 1998 apud GUIMARÃES,

2002, p.06). Localmente esses terraços são denominados de barrancos. Em São Raimundo os

barrancos chegam a 50 metros de altura e, nos Educandos, 30 metros de altura. A declividade

desses barrancos diminui conforme adentramos em direção ao interior do sítio urbano

(VIEIRA, 1998, apud GUIMARÃES, 2002, p. 06).

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CAPÍTULO III

3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

3.1 A DESCONSTRUÇÃO CULTURAL DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA

DE MANAUS

Não se pode contar a história de Manaus sem falar de seus igarapés, dos que existem

e dos que desapareceram. São elementos naturais que caracterizam a nossa região e que,

teimosamente, marcam a cidade e a sua gente desde os primeiros momentos de sua formação,

seja como constituintes dos hábitos locais, seja como definidores, muitas vezes, dos limites

entre bairros ou, ainda, como entraves ao desenvolvimento. É o caso, por exemplo, dos

igarapés de São Vicente e do Aterro que, como tantos outros, foram extintos para dar

passagem ao progresso.

Conforme explica Antonio Loureiro (2001), em sua Resenha Histórica, a topografia

de Manaus reflete a organização espacial das tabas indígenas, enquanto acampamentos

militares, instaladas sempre em pontos estratégicos. A parte alta dos Educandos, a ponta de

São Raimundo, a ponta dos Remédios, a ilha do Caxangá e a ponta onde foi construída a

fortaleza do Rio Negro constituem pontos geográficos dos quais se podia ter uma ampla visão

do rio por dois ou três lados de um rio secundário ou igarapé – facilitando as fugas rumo às

terras centrais – e uma faixa estreita de terra a ser constantemente vigiada (LOUREIRO,

2001). A cidade nasce, por força de estratégia militar, entre as bacias hidrográficas de São

Raimundo e dos Educandos.

Onde hoje se localiza o prédio da Fazenda Pública do Estado, na rua Monteiro de

Souza (Centro), estão enterradas as ruínas da Fortaleza de São José do Rio Negro, que deu

origem à cidade de Manaus. Centenas de urnas funerárias (igaçabas) foram encontradas nas

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cercanias do Forte e os vestígios indicam que se tratava do núcleo principal de um cemitério

indígena.

Esses elementos denunciadores das origens de nossa cidade estão duplamente

enterrados, ignorados pelos passos apressados dos citadinos que se amiúdam no passeio

público, sem saber que pisam os vestígios dos antepassados de cuja história deriva

indissociavelmente nossa própria identidade – ou a negação dela. Sem memória e destituído

dos referenciais de suas próprias origens, o amazonense se olha e não se reconhece. José

Alcimar de Oliveira, no contundente livro intitulado Cultura, História e Memória, assevera

que a cognição histórica do amazonense se acha tão heteronomizada que ele “vê sua história

como a história do outro, olha para si e não se vê e se se vê, vê-se sempre pelo espelho do

preconceito” (OLIVEIRA, J. Alcimar, 2002, p. 38).

O que se deve ressaltar na história da cidade de Manaus é a história de sua

constituição como cidade, como centro referencial e de suporte das operações do capitalismo

de arribação que, por meio de seus ciclos de barbárie, condenou o amazonense a uma

existência psitacídica em que ele constrói uma desidentidade na identidade do opressor. Como

nas sábias palavras do poeta Alcides Werk – que nos acompanha, com a sua poesia e o seu

amor pelas águas do Amazonas, em outros momentos deste trabalho – no poema “Papagaio”,

do livro In Natura: poemas para a juventude:

Por falar engraçado, dizer “louro”, o papagaio perde a liberdade. Troca o universo verde da floresta pelo pequeno espaço da cidade. Move-se trôpego, andar desengonçado, gingando vai atrás do carcereiro; domesticado, esquece a própria espécie – galináceo entre as aves do terreiro. Para prazer dos homens é um palhaço, em busca da comida é um flibusteiro, acostuma-se ao trato das comadres e segue parolando o dia inteiro. Já vai longe a lembrança da floresta. Como escravo, entre as almas mais pequenas, do seu mundo selvagem só lhe resta o verde claro de suas próprias penas (WERK, 1999, p. 53).

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Construída em 1669, a Fortaleza de São José do Rio Negro é a concretização

da necessidade lusitana de garantir o controle estratégico da boca do Rio Negro para evitar o

acesso dos jesuítas espanhóis e dos indígenas hostis, aliados dos holandeses da Guiana. Em

torno do Forte, logo se fixaram numerosos indígenas das tribos Manáo, Baré, Baniba e Passé,

que ajudaram na construção da fortificação por influência dos catequistas portugueses. Nasce,

assim, o Lugar da Barra.

Figura 3 – Gravura Fortaleza do Rio Negro. Fonte: Loureiro, Antônio. CD Rom ed. Aniversário de Manaus, 2001.

Com a criação da Capitania de São José do Rio Negro, em 1735, a localização

estratégica do Lugar da Barra garante-lhe status de sede da Capitania.

Em 1832, contando com poucas ruas, pontilhadas de casas de palha, o Lugar da

Barra passa à categoria de Vila sob a denominação de Manaus – nome que manteria até 1848,

quando veio a chamar-se Cidade da Barra do Rio Negro. Só em 1856, depois da criação da

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Província do Amazonas, recebeu a designação definitiva de Cidade de Manaus quando já

contava com cerca de 4 mil habitantes.

Esse núcleo inicial, embrião da cidade de Manaus – o Lugar da Barra – pode ser

tomado como um marco histórico também por possibilitar a análise que desnuda a lógica da

organização e apropriação do espaço na Amazônia, como correias de um processo aniquilador

de conquista e colonização, transformando-a espacialmente e às suas populações, seus

recursos, suas culturas, para convertê-los em patrimônio europeu.

Antes do colonizador, na espacialidade amazônica predominava a diversidade de

povos e de formas diferenciadas de produção do espaço, sem que tais diferenças

representassem desigualdades excludentes, embora marcassem espaços de uma dinâmica

caracterizada pela competição. Segundo Marilene Correa da Silva, “O mundo indígena é

composto de uma constelação de sociedades e culturas particulares e relativamente

autônomas, coexistentes e competitivas” (SILVA, 1996, p.152).

O europeu, encharcado da idéia segundo a qual ele próprio consistia raça superior e

ideal de homem, deflagra os ditames de uma nova lógica perversa, excludente e calcada na

segregação, sob a inspiração de um preceito iluminista simples e poderoso: “Quanto mais

formos capazes de compreender racionalmente o mundo, e a nós mesmos, mais poderemos

moldar a história para nossos próprios propósitos. Temos de nos libertar dos hábitos e

preconceitos do passado a fim de controlar o futuro” (GIDDENS, 2000, p.14).

O colonizador europeu, ao encontrar-se com as multidões de nativos – “desservidos

de cultura material e espiritual”, nos dizeres de Arthur Cezar Ferreira Reis (1997, p.02) –,

dedicou-se a pôr em prática mecanismos para represar a impetuosidade do gentio visando

enquadrá-lo no sistema de trabalho que caracterizava a civilização ibérica. Tal propósito, para

lograr êxito, demandava modificar os hábitos de nomadismo; difundir o ensino da língua

portuguesa e preparar tecnicamente o nativo para os ofícios mecânicos; agrupar as tribos em

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núcleos de sentido urbano; converter o regime de trabalho dispersivo num trabalho

disciplinado de fundo agrícola; reformar os modos de vida social através dos vínculos de

família e de maior exaltação às fórmulas de dignidade individual e doméstica (REIS, 1997,

p.08).

Tais são as raízes do processo de aniquilação histórico-cultural pelo qual:

(...) o amazonense de ontem e de hoje, com a conivência e, pior, com o patrocínio de boa parte de suas elites, continua submetido à lógica do colonialismo, do neocolonialismo, do colonialismo interno e externo e do neocolonialismo interno e externo, cuja conseqüência mais perversa é a sedimentação de uma consciência cultural regida pela lei da heteronomia. O amazonense perdeu a posse de si mesmo, internalizou o etnocentrismo da cultura do colonizador europeu de ontem e de hoje e do neocolonizador estadunidense de hoje (OLIVEIRA, J. Alcimar, 2002, p.34).

A “domesticação” do homem amazônico, a organização e a produção do espaço,

concomitantes e indissociavelmente ligadas, constituem aspectos de um mesmo processo de

inculturação.

Conforme a cidade de Manaus crescia e espraiava-se sobre novos terrenos, outros

igarapés iam-se incorporando ao mapa do perímetro urbano, sendo ocultados ou simplesmente

engolidos por ele. E, ao mesmo tempo em que representavam sérios desafios administrativos,

porque obrigavam a gastos adicionais como a construção de pontes para ligar os bairros ou a

mobilização de grande quantidade de terra para aterro, constituíam concorridas áreas de lazer

familiar e meio de provimento de atividades domésticas para vários extratos da população,

desprovidos dos benefícios de uma infra-estrutura mínima.

A respeito disso, Araújo e Amazonas, no seu Dicionário Topográfico, Histórico e

Descritivo da Comarca do Alto Amazonas (apud BITTENCOURT, 1999, p.16), publicado em

1852, já afirma que, na iminência da fundação da Província, em 1840, aquele incipiente

povoamento, que dará origem à cidade de Manaus, “(...) está em aprazível colina, com três

pontes de madeira. (...) Tem três bairros: São Vicente, a oeste, e a leste uma cachoeira, a que

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aflui a população a passeios e banhos, principalmente a de oeste, a não saberem ainda a

apreciar”.

Após a instalação da Província, a 1º de janeiro de 1852, seu primeiro presidente, João

Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, em relatório, fala de duas pontes de madeira, já

arruinadas, que ligavam o bairro de São Vicente ao da Matriz e este ao dos Remédios.

Ao descrever a Manaus de então, Araújo e Amazonas (1999) apresenta uma cidade

com uma praça, dezesseis ruas curtas e estreitas, sem calçamento e iluminação. E, ainda, com

as ruínas da Fortaleza de São José do Rio Negro e do Hospital de São Vicente, destruídos por

um incêndio. A população é constituída por brancos, mamelucos, indígenas, mestiços e

escravos, que se vestem séria e asseadamente, falam muito bem o português e, segundo o

autor, passam parte do dia em banhos, o que caracteriza o asseio como uma de suas

qualidades inatas.

Cortavam a cidade os igarapés de São Vicente, de Manaus, do Bittencourt, mais o do

Aterro e o do Espírito Santo – muitos deles hoje desaparecidos –, que drenavam extensas

áreas da cidade. O igarapé do Aterro cortava a área onde hoje existe a avenida Eduardo

Ribeiro. Podia ser percorrido por pequenas embarcações nos meses de cheia; na seca,

transformava-se em um pantanal, que ia da ponte da Manaos Harbour Ltd. ao edifício do

Jornal do Commércio, onde hoje é a confluência da Avenida Eduardo Ribeiro com a rua

Saldanha Marinho.

Quanto ao igarapé do Espírito Santo, seguia o curso das atuais avenidas Getúlio

Vargas e Floriano Peixoto. No inverno, era percorrido por embarcações até onde hoje é a

esquina das avenidas Getúlio Vargas e Sete de Setembro, atravessado por três pontes.

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Figura 4 – Igarapé do Espírito Santo. Fonte: Loureiro, Antônio. CD Rom ed. Aniversário de Manaus, 2001.

A cidade, nesse período, era limitada ao norte pela rua Monsenhor Coutinho; ao sul

pelo rio Negro; a leste pela rua Joaquim Nabuco e a oeste pelo igarapé de São Vicente. Além

daí, existiam os domínios dos bairros de Educandos, Cachoeirinha, Campinas e São

Raimundo.

Alguns desses igarapés eram freqüentados, aos domingos e feriados, por famílias

finas que iam tomar banho e fazer piquenique na longínqua Cachoeirinha. É dessa época o

relato de Agassiz (2000, p.158, grifo nosso):

Ontem, às seis horas da manhã, primeiro passeio. Fomos ver um lindo recanto da floresta, cujo atrativo muito gabam os habitantes de Manaus. Vão aí tomar banho, comer ao ar livre e desfrutar de todos os prazeres campestres. Chama-se cascatinha, para distinguir este lugar dum outro, mais pitoresco ainda, parece, situado a meia légua do outro lado da cidade, e onde existe uma queda d’água mais considerável. (...) Enquanto a cheia do rio, na época das chuvas, não vem inundar e cobrir, por seis meses, essas Termas da floresta, os habitantes de Manaus fazem delas o maior uso; nós mesmos não resistimos ao prazer de mergulhar nessa água que atrai.

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O hábito do banho de igarapé aparece como um traço cultural dos mais resistentes

quando analisamos historicamente a expansão da cidade em oposição à manutenção do modo

de vida caboclo. Ele persiste ainda fortemente caracterizado até o início da década de setenta

do século XX, quando os igarapés das cercanias da cidade ainda apresentavam razoável

qualidade de água.

A segunda metade do século XIX demarca o início de um período em que a cidade

de Manaus iria passar por uma série de mudanças significativas em sua paisagem urbana. A

exploração da borracha deu grande fôlego aos cofres do governo, favorecendo a execução de

uma série de obras que visavam ao embelezamento, saneamento e à modernização da cidade.

Iniciava-se uma escalada de modificação dos espaços urbanos a fim de inserir Manaus no

mundo civilizado, conforme relata Nascimento (2002): “A cidade não poderia fugir à regra,

era imperativo tornar-se bela, aconchegante, requintada e moderna”.

Uma nova cidade vai espraiando seus limites sobre áreas de floresta, agredindo

severamente os igarapés que se colocavam no caminho da apressada expansão urbana voltada

para o lucro. Morros foram aplanados, depressões foram corrigidas e a cidade ganhava

terrenos tomados dos perfis naturais.

A revolução urbana ocorrida nesse período modificou radicalmente o mapa dos

igarapés que cortavam a cidade. Valle (2002) explica que, segundo a planta (croquis) de 1852,

na época da instalação da Província, o incipiente núcleo central de Manaus e os primeiros

bairros da cidade eram drenados por sete igarapés: de Manaus, de São Vicente, Monte Cristo,

Bica da Boa Vista, do Aterro ou dos Remédios, do Espírito Santo e da Ribeira das Naus.

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Figura 5 - Planta (croquis) da cidade de Manaus (1852). Fonte: Loureiro, Antônio. CD Rom ed. Aniversário de Manaus, 2001.

Em relatórios da Secretaria de Estado da Indústria, de 1898, consta o grande

programa de obras executadas na cidade nos anos de 1896 e 1897, em que se registra com

destaque o enorme volume de terra transportada para aterros e desaterros na cidade (VALLE,

2002). Embora sejam grandezas inteiramente distintas, tanto a escalada do progresso quanto a

intensidade da agressão aos igarapés podem ser diretamente medidas pelas toneladas de terra

mobilizadas para o soterramento dos caminhos das águas. Selou-se definitivamente o destino

de igarapés como o do Espírito Santo e o dos Remédios.

A paisagem da cidade se tornaria expressão de uma nova realidade. Já na primeira década do século XX, o quadro que se apresentava era o de uma cidade perfeitamente inserida na atmosfera da belle-époque, com melhoramentos e serviços urbanos razoavelmente eficientes, diversos prédios públicos e particulares inseridos no contexto da moderna arquitetura, ruas e praças embelezadas (NASCIMENTO, 2002).

A cidade constituía-se e crescia marcada pelos valores do individualismo, dos

privilégios e da acumulação. A cultura exógena elege e impõe seus símbolos de progresso e

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modernidade corporificados, entre outras coisas, pela superioridade sobre a natureza e pela

degradação ambiental. A floresta e os igarapés, e.g., representavam, aos olhos do alienígena,

obstáculos que a civilização precisaria remover: aterramentos e progresso nunca mais se

separaram na lógica de expansão da cidade.

Figura 6 - Av. Eduardo Ribeiro canto com a Av. Sete de setembro (charrete). Fonte: Loureiro, Antônio. CD Rom ed. Aniversário de Manaus, 2001.

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Figura 7 - Igarapé do Espírito Santo, aterrado para dar passo a Av. Eduardo Ribeiro. Fonte: Loureiro, Antônio. CD Rom ed. Aniversário de Manaus, 2001.

Gradualmente, o manauara foi sendo isolado do contato imediato com os igarapés,

ora ocultados sob as avenidas, ora soterrados. Afastado do traço ancestral do banho e da visão

cotidiana dos igarapés, o registro na memória e a percepção lentamente se esmaeciam, ao

mesmo tempo em que davam lugar a novos registros: aspecto da progressiva operação de

desmanche cultural da história e da memória de nossa gente.

Essa visão extrema das relações entre o homem e a natureza traduz bem a

mentalidade de uma época que forjou o nosso tempo. A respeito disso, Giddens (2000, p.130)

afirma que:

Nossa época se desenvolveu sob o impacto da ciência, da tecnologia e do pensamento racional, que tiveram origem na Europa dos séculos XVII e XVIII. A cultura industrial ocidental foi moldada pelo Iluminismo – pelos escritos de pensadores que se opunham à influência da religião e do dogma e desejavam substituí-los por uma abordagem mais racional à vida prática.

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O espírito daquilo que Bacon e Descartes, respectivamente no Novum Organum e no

Discurso do Método, propunham como uma nova ambição ao conhecimento humano – tornar-

se senhor e possuidor da natureza (segundo os termos de Descartes); obedecer à natureza para

melhor a dominar (segundo os de Bacon) – instrumentalizou a sanha predatória européia

(JENNINGS, 2003). Tais idéias acabavam de revolucionar a definição de natureza, até então

objeto de contemplação e respeito, uma entidade muito distante sobre a qual o homem tinha

um fraco domínio. A noção de domínio da natureza pelo homem transformava-a

radicalmente, dando-lhe a imagem de uma entidade passiva, maleável que podia

perfeitamente ser submetida e livremente transformada pelo homem.

Descobertas e invenções – como a vulcanização da borracha, a eletricidade, os cabos

submarinos, os telefones, as bicicletas, os automóveis e os esportes de massa – forçaram

violentamente a demanda de produção de borracha, obrigando o estabelecimento imediato de

novos seringais e, conseqüentemente, o recrutamento de uma enorme massa de seringueiros

visando avolumar a produção do látex a níveis compatíveis com as exigências da produção. A

partir de 1856, inicia-se um grande fluxo migratório para a Amazônia, que não contava com

mão-de-obra suficiente para atender a demanda.

Assim é que tanto a Província quanto Manaus receberam um grande e contínuo fluxo

migratório. Para se ter uma idéia, em 1883, entraram na Província 5.020 nacionais e 577

estrangeiros, totalizando 5.597 novos habitantes. As populações da Capital e da Província

cresceram, respectivamente, 1.111% e 358% no período de 34 anos, entre 1856 a 1890. A

minoria estrangeira fixou-se na capital e com os lucros da monocultura importava todos os

bens de que necessitava para garantir uma vida confortável. A grande massa dos migrantes,

prevalentemente oriunda do Nordeste, era despachada para os seringais onde a utilização do

dinheiro era restrita e as relações de trabalho eram determinadas pela “escravidão por dívida”

(LOUREIRO, 2001).

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Manaus crescia, em 1880, na direção da atual avenida Sete de Setembro, até além da

avenida Joaquim Nabuco, já ultrapassando a primeira e a segunda pontes; e na direção dos

Remédios, após a construção da ponte de ferro, indo até a região do mercado, logo a ser

construído. Usando referências atuais, a cidade alcançava a Praça da Saudade, pela

Epaminondas, e a praça de São Sebastião, para o interior.

Figura 8 - Ponte de ferro da Cachoeirinha Fonte: Loureiro, Antônio. CD Rom ed. Aniversário de Manaus, 2001.

Nesse período, as melhorias urbanas foram contínuas. De 1854 a 1869, podemos

citar a construção do Cemitério dos Remédios, a iluminação a gasogênio, a construção do

cemitério São José, o estabelecimento do Centro de Formação de Educandos Artífices, a

reconstrução do Hospital Militar de São Vicente e o calçamento de várias praças e ruas.

Para assegurar uma urbanidade estável, toda essa movimentação no espaço da cidade

obriga a elaboração de um novo Código de Posturas para Manaus, mais complexo que o

primeiro – o de 1838, que em apenas vinte quatro artigos tratava de matérias genéricas,

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refletindo o estado incipiente da organização administrativa da cidade, com um núcleo central

diminuto que abrigava confortavelmente a elite comerciante.

O segundo Código, feito em 1872, proibia as escavações nos leitos e nas margens

dos igarapés, o depósito de lixo, pedras, coisas pútridas ou outros materiais que pudessem

alterar a qualidade das águas, o corte de árvores das beiras dos igarapés. Aquele diploma

obrigava, ainda, a manter sempre limpas as vasilhas para transportar e vender água, lançar as

matérias fecais coletadas na correnteza do rio Negro, a partir das nove da noite; controlava o

tráfego de veículos de tração animal; disciplinava a abertura de ruas; proibia o uso de

foguetes; disciplinava o entrudo, as farmácias, os pesos e medidas; proibia insultos, ofensas,

alaridos, assuadas e correrias nas vias públicas, a embriaguês pública, o banho nu no litoral e

igarapés, andar seminu, portar facas, o trânsito de pessoas alienadas ou com elefantíase;

obrigava o uso da vacina antivariólica para crianças acima de três anos, entre outros deveres

de fazer e de não fazer típicos da vida urbana.

A elite da borracha começava a ter problemas em razão da sobrecarga da infra-

estrutura da cidade de Manaus provocada pelo aumento da população em escala que fugira ao

controle. Observa-se, a teor do novo Código de Posturas, que os esforços regulamentadores

visavam preservar o núcleo central da cidade, disciplinar as atividades que pudessem afetar a

qualidade das águas e coibir práticas que atentassem contra o conforto, o sossego e a

qualidade de vida da minoria espoliadora. Os efeitos colaterais do inchaço da cidade

começavam a constituir-se como focos de inquietação administrativa e política.

A cidade concentrava a riqueza dos seringais nas mãos de poucos estrangeiros e

mamelucos da terra e segregava violentamente os migrantes nordestinos que não podiam

sequer desembarcar na “Paris dos Trópicos”, a não ser quando conseguiam acumular riqueza

para esbanjar na infra-estrutura turística da Manaus da belle-èpoque.

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No período de 1890 a 1910, Manaus atingiu o auge da qualidade de vida urbana,

colocando-se entre as mais progressistas capitais brasileiras da época, superando quase todas

as outras em seus melhoramentos urbanos. A população do município atingiu 52.000

habitantes, em 1900, alcançando por volta de 100.000 habitantes, em 1910. A maior parte da

população, porém, vivia à margem dos benefícios e confortos da Manaus civilizada,

amargando praticamente um estado de indigência (BITTENCOURT, 1999).

A cidade crescera até a Cachoeirinha, chegando às imediações da atual avenida

Castelo Branco e ruas Borba e Carvalho Leal, por onde seguia a linha de bondes; a

Constantinópolis, a leste; a São Raimundo, a oeste; e a norte, ultrapassava o Boulevard, com

as linhas de bondes indo ao longínquo bairro de Flores.

A riqueza originada pela borracha – que chegou à incrível cotação de 20 quilos de

ouro por tonelada –, alimentava a voracidade dos cofres do Império Britânico com 600

toneladas de ouro por ano e financiava, também, ações no restante do Brasil, como campanhas

de saúde, estradas de ferro, colonização, portos e ainda gerava lastro para segurar o preço do

café. A fonte de onde jorrava tamanha riqueza drenava a energia de uns 300 a 400 mil

seringueiros nordestinos, dos quais mais de 10%, por ano, eram ceifados por doenças tropicais

e pelos perigos da selva, o que obrigava a uma constante reposição da força de trabalho

(LOUREIRO, 2001).

O embelezamento e a modernidade de Manaus dependiam diretamente dos impostos

arrecadados pelo Estado – numa alíquota de 25% de toda a produção de borracha –, que

propiciaram as comodidades urbanas tais como: Teatro Amazonas, instalação de cabo

subfluvial para Belém, e daí para a Europa, Palácio da Justiça, Porto e rede de esgotos.

Adélia Engrácia de Oliveira discorda da idéia largamente difundida de que a época

conhecida como o “fausto da borracha” representa período de grande prosperidade e

desenvolvimento, uma vez que “(...) a maior parte da população então existente vivia

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praticamente na indigência sendo, em geral, explorada e vilipendiada por esta minoria que

prosperava e vivia num fausto desgastante” (SALATI, 1983, p.235).

A cidade prosperava para os poucos elementos endinheirados para quem eram

construídos os confortos urbanos e os aparelhos civilizatórios portadores e transmissores da

cultura européia. Ao restante da população, o alcoolismo, a indigência, o ostracismo.

José Alcimar de Oliveira lança novas luzes sobre esse debate quando assevera que

“na cidade ou no interior, o amazonense sente a cultura como uma forma de prisão”, o que

está em oposição ao desafio ético-político de “promover formas comunitárias de existência”,

imposto à cultura da cidade. “As cidades no Brasil, e Manaus não foge à regra, foram

construídas pelos pobres, mas contra os pobres” (OLIVEIRA, J. Alcimar, 2002, p.32).

De acordo com Antonio Loureiro, além dos melhoramentos em equipamentos

urbanos, a cidade recebeu, nesse período, “(...) trabalhos de controle de moléstias infecto-

contagiosas, vacinações, calçamento de praças, abertura de avenidas, aterro de igarapés,

monumentos, construção de edifícios públicos e particulares de ótimo padrão” (LOUREIRO,

2001).

Não se pode deixar de notar que o historiador relaciona entre as ações que, aos seus

olhos, representam melhorias estruturais e de qualidade de vida da cidade, o aterro de

igarapés. O desenvolvimento de Manaus ocorreu numa esteira de destruição e ocultação de

seus cursos d’água e, o que é pior, isso passou a ser visto como conceito de modernização e

de urbanização bem sucedida, consubstanciando um discurso hoje amplamente difundido e

acriticamente reproduzido.

A partir de 1910, em razão das sucessivas quedas do preço da borracha e do aumento

da produção da Malásia e Indonésia, a cidade e a região entraram em declínio. Em 1913,

existiam, somente no centro de Manaus, mais de 25.000 casas abandonadas, o que

representaria umas 20 mil pessoas a menos. Abate-se sobre a parcela despossuída da

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população, por falta de recursos e de gêneros alimentícios, uma pandemia de gripe espanhola

que, entre setembro de 1918 e janeiro de 1919, matou cerca de 6 mil pessoas no município,

mais de 2 mil só no Centro da cidade (LOUREIRO, 2001).

Em 1920, a população chega aos 70 mil habitantes; em 1940, recua para 66 mil e só

volta a crescer a partir de 1950. Nesse intervalo de trinta anos, o preço da borracha caiu a

valores vis e a produção só não foi completamente abandonada porque a produção foi

carreada para o abastecimento das indústrias de pneumáticos implantadas em São Paulo.

Com o advento da Segunda Guerra Mundial e o bloqueio dos seringais asiáticos,

inicia-se um período de grande euforia – que ficou conhecido como “Batalha da Borracha” –

motivado pela possibilidade de retorno aos grandes lucros da época áurea de exploração do

látex. No entanto isso pouco contribuiu para uma eventual superação da inércia econômica da

região e de Manaus.

No ensaio A Geografia do Centro e da Margem: a produção do espaço na periferia,

José Aldemir de Oliveira assevera que, entre os anos de 1941 e 1942, entraram em Manaus

152.138 pessoas, das quais 78.022 vindas de outros Estados, 76.988 do interior do Estado e

1.128 estrangeiros, conforme dados do Departamento Estadual de Estatística (OLIVEIRA,

J.Aldemir, 2002).

Com o fim da guerra, e o conseqüente definhamento da atividade gomífera catalisada

pelo conflito, as populações das cidades do interior e, posteriormente, dos seringais, órfãs da

sanha predatória do capitalismo extrativista, migraram para Manaus colapsando a restrita

infra-estrutura da cidade, inchando o já enorme contingente dos indigentes amontoados em

casebres de palha, palafitas e flutuantes nos igarapés do centro da cidade e dos novos bairros –

Imboca/Santa Luzia, Morro da Liberdade, Raiz, Crespo, São Lázaro, Betânia, São Francisco e

Petrópolis, a leste; Santo Antônio, Glória e Compensa, a oeste; Matinha, São Geraldo,

Chapada, São Jorge, Beco do Macedo e Vila Amazônia, a norte; e a cidade flutuante, no

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centro (sul), verdadeiro monumento à história de uma cidade contada em ciclos de

expropriação dos recursos naturais de seu chão e do aniquilamento da subjetividade cultural

de seus homens. Os rejeitos da gananciosa exploração do látex e do homem vieram, na forma

de restos desumanizados, dar às portas de Manaus, coalhando as águas do rio Negro de

miséria e vergonha.

Figura 9 - Cidade Flutuante. Manaus, AM. Brasil. Fonte: Acervo particular de Joaquim Marinho.

Nos anos cinqüenta do século passado, o Governo Federal inicia a chamada política

de integração da Amazônia, que se torna mais contundente a partir dos anos sessenta com a

implantação dos projetos de “desenvolvimento regional”, visando à ocupação da região e sua

integração ao restante do Brasil. Na esteira desse integracionismo, Manaus, sob a euforia

desmedida da elite governante local, abre espaço para a Zona Franca que planta seu ícone

mais expressivo – o Distrito Industrial – na paisagem urbana de Manaus, compondo a face

mais aparente de uma política que empurrou a cultura amazonense para um salto abismal: do

marasmo que antecedeu a zona de livre comércio “para o arrivismo e o mercenarismo

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promovidos por um progresso sem alma, sem ética e sem estética, e exclusivamente fundado

em bases mercadológicas” – conforme observa J. Alcimar Oliveira (2002, p.39).

Os projetos para a Amazônia fundavam-se em pelo menos dois grandes eixos de

interesses: primeiro, o governo empenhava-se por todos os meios em concretizar e sedimentar

o seu projeto geopolítico, visando a um maior controle e ao reforço dos laços da região com o

conjunto do país; segundo, o projeto desenvolvimentista em curso deveria culminar com a

abertura da Amazônia ao capital nacional e estrangeiro. A defesa de tais eixos, porém, vinha

travestida num discurso que apregoava a criação de alternativas econômicas viáveis e

compatíveis com o modo de vida, as potencialidades e as peculiaridades do lugar.

O aeroporto internacional foi construído e a cidade recebeu ainda melhorias na infra-

estrutura viária, no fornecimento de água e na ampliação da base energética instalada. Em

meados de 1975, segundo dados revelados no trabalho de Miguel Rabelo Ribeiro (1998), a

Zona Franca de Manaus recebeu investimentos num total de 140 projetos industriais

aprovados pela Suframa, o que impulsionou a expansão da atividade comercial com base nos

produtos importados e provocou impactos significativos para o Estado do Amazonas e a sua

capital. O crescimento da população de Manaus atingiu taxas anuais superiores a 5%,

passando de 154.040 habitantes residentes em seu perímetro urbano, em 1960, para 284.118

habitantes, em 1970. Em 1980, registrava mais de 600 mil habitantes e, após trinta anos de

instalação da Zona Franca, atingiu mais de 1 milhão de habitantes.

Para J. Aldemir Oliveira (2002, p.31-32):

Nenhuma capital brasileira teve, proporcionalmente, sua população aumentada nos níveis verificados em Manaus nos últimos 30 anos. A cidade inchou e diminuíram as já poucas possibilidades de vida civilizada. Os apelos de libertação que a Manaus da Zona Franca apresentou ao homem do interior do Amazonas logo se mostraram enganosos e trágicos para a maioria que, fugindo ao isolamento e ao abandono da vida interiorana, não logrou, na cidade, a prometida existência menos isolada e abandonada. (...) Mesmo assim foi se arrumando como pôde, porque, regra geral, o êxodo não tem retorno.

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Atraídos pelo eldorado baré pós-moderno, os imigrantes que acorreram à próspera

capital do Amazonas, encantados pela promessa de emprego e vida feliz na Zona Franca de

Manaus, encontraram uma cidade loteada pelas poderosas oligarquias locais e, sem

alternativa, ocuparam vertiginosamente as áreas que margeiam os igarapés, destituídas de

valor econômico.

A infra-estrutura urbana herdada do ciclo da monocultura do látex não se ampliara de

forma significativa para suportar as nuvens de encegueirados pelas luzes do progresso e pelo

paraíso do emprego. O colapso foi inevitável. Hoje, somente às margens dos igarapés do

centro da cidade, amontoa-se uma população igual a que Manaus possuía na década de

setenta, quando da instauração da Zona Franca.

Figura 10: Imagem das palafitas localizadas nas margens do igarapé do Quarenta. Manaus, AM. 2004. Fonte: Juca Queiroz, Arquivo do jornal A Crítica

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Manaus foi repentinamente sacudida do marasmo balizado pelo tempo do mormaço

para ser inserida, pela força de interesses externos, num sistema governado por um tempo

medido pela lógica do lucro a qualquer custo.

São oportunas as palavras de José Alcimar de Oliveira quando diz que Manaus foi

“pós-modernizada sem que tenha realizado as conquistas mínimas da modernidade” e, por

isso mesmo, “busca no consumo do supérfluo um modelo identitário exógeno e etnocida,

moldado pela ostentação e arrogância consumistas de boa parte de suas elites” (OLIVEIRA, J.

Alcimar, 2002, p.43).

Manaus vê mais uma vez reproduzida nos meandros do seu destino a barbárie dos

ciclos de exploração a partir dos quais vem-se constituindo como cidade.

De um regime de latência histórica, cuja cronologia acompanhava a lentidão da cultura extrativista, o amazonense passou, por força da euforia da zona de livre comércio, para um regime de aceleração irracional de seu tempo histórico, cuja conseqüência mais visível tem sido a destruição cultural de sua história e de sua memória (OLIVEIRA, J. Alcimar, 2002, p.40).

É corriqueiro ouvir dizer que a cidade de Manaus foi construída praticamente sobre

as águas. Tomando as águas por igarapés e tomando os igarapés por traço cultural do

amazonense, é possível reestruturar essa afirmação costumeira para atribuir-lhe um novo

sentido, que nos parece conclusivo: Manaus foi construída pela desconstrução cultural da

história e da memória de sua gente.

3.2 PERFIL ATUAL DOS PRINCIPAIS IGARAPÉS DE MANAUS

Na área urbana da cidade de Manaus, alguns igarapés realizam o papel de divisores

da malha hidrográfica. Dentre eles, destacam-se:

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1. O igarapé do Quarenta, que em seu curso apresenta margens desmatadas em

alguns trechos e, em outros, cobertas por vegetação secundária. Contíguo a este igarapé, está

localizado o Distrito Industrial, com aproximadamente 850 indústrias. Sua nascente fica no

bairro Armando Mendes, apresentando águas de cor marrom escura e, na jusante, totalmente

barrentas, com bastante material em suspensão. Em seu percurso, recebe cargas de esgotos

domésticos e, na área do Distrito Industrial, recebe efluentes industriais, e a jusante, próximo

à foz, recebe novamente esgotos domésticos (GUIMARÃES, 2002).

Figura 11 – Imagem do lançamento de esgoto doméstico no igarapé do 40. Manaus, AM. 2004.

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Fonte: Juca Queiroz, Arquivo do jornal A Crítica.

Segundo dados da SEDEMA (2000), na bacia do igarapé do Quarenta foram

identificadas várias nascentes em boas condições. Nove delas encontram-se protegidas dentro

da Unidade de Conservação do Campus da Universidade Federal do Amazonas. Também

protegidas, há uma nascente localizada na área da Escola Agrotécnica Federal de Manaus e

outra na Reserva Ecológica Sauim Castanheira. As demais nascentes, infelizmente muito

agredidas, estão em áreas degradadas ou nas proximidades delas.

Figura 12 – Imagem de uma das principais nascentes do igarapé do 40. Manaus, AM. 2004. Fonte: Juca Queiroz, Arquivo do jornal A Crítica.

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2. O igarapé do Mestre Chico nasce no bairro de São Francisco, próximo ao

Boulevard Álvaro Maia, corta os bairros de Praça 14 de Janeiro e Cachoeirinha e deságua no

igarapé de Educandos. Sua nascente encontra-se com as margens cobertas de vegetação

secundária. Em seu percurso, recebe cargas de esgotos domésticos. Na área próxima à ponte

de Ferro da Avenida Sete de Setembro, avolumam-se os detritos jogados no igarapé

(GUIMARÃES, 2002).

3. O igarapé de Manaus nasce no bairro da Praça 14 de Janeiro entre as avenidas

Barcelos, ao Norte, Nhamundá, ao Sul, Getúlio Vargas, a Oeste, e rua do Moco, a Leste,

recebendo carga de esgoto em todo o seu percurso, principalmente nas proximidades do

centro urbano da cidade de Manaus, onde suas margens estão inteiramente tomadas por

barracos e as águas apresentam cor preta, devido à grande quantidade de chorume que

recebem. Também deságua no igarapé de Educandos (GUIMARÃES, 2002).

4. O igarapé do Mindu corta algumas áreas de vegetação, mas recebe esgotos

domésticos em quase todo o seu percurso. Corta os bairros de Valparaíso, Jorge Teixeira,

Tancredo Neves, São José, Coroado, Aleixo, Cidade Nova, Parque Dez, Adrianópolis e Nossa

Senhora das Graças. Sua principal nascente, que se localiza no bairro Cidade de Deus,

próximo ao Jardim Botânico Adolpho Ducke, com margens desmatadas em alguns trechos e,

em outros, cobertas de palmeiras, está relativamente protegida. As demais nascentes estão

perigosamente próximas a áreas adjacentes degradadas.

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Figura 13 – Imagem de uma das principais nascentes do igarapé do Mindu. Manaus, AM. Brasil. 2004. Fonte: Juca Queiroz, Arquivo do jornal A Crítica.

5. O igarapé da Cachoeira Grande (de São Jorge) recebe águas do Mindu e

deságua no igarapé de São Raimundo. Suas Margens estão repletas de barracos. Recebe

esgotos domésticos em todo o seu percurso (GUIMARÃES, 2002).

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Figura 14 – Imagem das palafitas nas margens do igarapé da Cachoeira Grande no bairro de São Jorge. Manaus, AM. Brasil. 2004. Fonte: Karla Gomes.

6. O igarapé do Franco nasce no bairro de Santo Agostinho com água totalmente

turva e alto grau de materiais em suspensão, apresentando aspecto barrento. Banha os bairros

de Santo Agostinho, Compensa, Vila da Prata, Santo Antônio e São Jorge. Recebe esgoto

doméstico e, em pequeno trecho, efluentes industriais. Também deságua no igarapé de São

Raimundo.

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Figura 15 – Imagem da técnica de “rip-rap” nas margens do igarapé do Franco, no trecho da Compensa. Manaus, AM. Brasil. 2004. Fonte: Karla Gomes.

3.3 OS IGARAPÉS PERCEBIDOS EM MAPAS MENTAIS

A amostra incluiu 150 sujeitos majoritariamente – alunos de escolas públicas e

particulares – com idade entre 14 e 20 anos. Feita a identificação dos jovens entrevistados, a

orientação era a seguinte: desenhe um mapa de seu bairro como se fosse para um estranho,

incluindo todas as características principais. Conforme demonstrado nos gráficos abaixo:

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sem informação1,2%

14 a 20 anos84,9%

21 a 25 anos7,2%

mais 25anos6,6%

Gráfico 1 – Percentual dos atores sociais entrevistados, por faixa etária. Manaus, AM. 2003

Escola Particular50,6% Escola Pública

49,4%

Gráfico 2 – Percentual dos atores sociais entrevistados,nas escolas da rede pública e particular. Manaus, AM. 2003

O bairro como objeto de percepção nos possibilitou verificar eventuais coerências e

discrepâncias entre os instrumentos utilizados na pesquisa: mapas e questionários. Mesmo não

sendo prioridade em nossa investigação, aproveitamos os mapas para avaliar a relação dos

sujeitos com os elementos físico-espaciais do bairro onde moram e com as eventuais imagens

que estão impregnadas de memórias. Identificando para cada sujeito os principais pontos de

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referência, investigamos se os igarapés aparecem na memória imediata como alguma

referência no contexto do bairro.

No tocante à percepção dos limites espaciais, a análise dos mapas sugere que a

maioria dos respondentes tende a estabelecer como bordas do bairro onde mora apenas a área

compreendida por seus movimentos habituais, num tracejado que une alguns pontos

referenciais da comunidade. O bairro, portanto, restringe-se na memória à espacialidade

cotidiana fixada pelo indivíduo e na qual ele realiza sua existência comunitária.

Com base nisso, fixando-se o bairro como referência, fizemos um agrupamento dos

níveis de interação que os respondentes mantêm com o meio, especificamente com o igarapé,

não apenas como algo notável no espaço físico existente, mas como objeto passível de

valoração nas suas inter-relações com o homem.

Apenas com o desenho da casa

5,3%

Sem desenhos ou incompletos

4,6%Com o desenho do

percurso Casa-Escola3,3%

Com desenho dos arredores da casa

86,8%

Gráfico 3 – Características dominantes dos mapas mentais elaborados pelos atores sociais entrevistados. Manaus, AM. 2003.

O primeiro grupo, 5,3% dos respondentes revela baixa interação com o local de

moradia, limitando-se ao registro da própria casa no esboço requerido. Nesse grupo, os mapas

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sugerem que os indivíduos entrevistados pouco interagem com o bairro como e possível

observar no mapa abaixo.

Figura 16 – Mapa mental elaborado por J.F.O.O., 17 anos. Mostrando o desenho do bairro com o registro e identificação apenas da própria casa. Manaus, AM. 2003.

O segundo grupo, composto por 3,3% dos entrevistados, desenhou tão-somente o

caminho da casa à escola. Os elementos espaciais que compõem o trajeto da casa à escola não

estão presentes na representação cartográfica o que sugere também uma baixa interação com o

espaço bairro.

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Figura 17 – Mapa mental elaborado por L.B.S., 16 anos. Mostrando o desenho do bairro com o registro do trajeto da casa para a escola.. Manaus, AM. 2003.

A baixa interação dos jovens entrevistados com o espaço do bairro, caracterizada nos

mapas mentais, remete ao trabalho de Mariza Weber Alves (apud Del Rio, 1999, p.164), no

qual se atesta que o modelo de meio ambiente apresentado a crianças de diferentes classes

sociais é marcado pelo distanciamento, descolado da realidade mais próxima e em relação à

cidade; do meio ambiente construído pouco se fala, tornando o espaço urbano, ao mesmo

tempo em que tão próximo, pouco vivenciado e compreendido. A autora também assevera que

as crianças de classe média e alta estão-se afastando das ruas, enquanto que as crianças das

classes populares convivem de forma mais intensa com o ambiente externo à casa. Para as

crianças de classe média e alta “a cidade passou a ser simbolicamente negativa, não só por sua

falta de infra-estrutura, mas pela falta de liberdade de se andar nela, de se tomar posse dela.

Ela ficou distante, vista das janelas dos carros no percurso às escolas, aos shoppings e aos e

aos condomínios”.

Não obstante terem sido colhidos em faixa etária distinta daquela considerada no

trabalho antes referido, os dados de nossa pesquisa permitem concluir que, na realidade

manauara, a falta de infra-estrutura, a ausência de calçadas, praças e áreas destinadas à prática

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de esportes e lazer, associada à violência representada pela ação das gangues juvenis

(“galeras”), à sujeira das ruas e ao tráfego intenso, têm afastado os jovens das classes média e

subalternas de uma convivência mais intensa com o seu bairro e, conseqüentemente, com a

cidade. Tal conclusão encontra relação de coerência com o que Tuan (1983, p.221, apud Del

Rio, 1999, p.164) afirma: os espaços não-conhecidos são espaços não-amados. Conquistamos

e somos conquistados pelos espaços e pela multiplicidade de seus lugares em relações que se

estabelecem por meio do sentir e do compreender o espaço ou os lugares, em termos do

significado da experiência que é estar no mundo. Quando experienciamos os espaços em sua

infinitude de aspectos, desenvolvemos um verdadeiro senso de aventura, de conquista, de

qualidade superior e refinada.

Tudo isso nos leva a pensar: como se pode desenvolver uma consciência sobre

a necessidade de preservação ambiental sem a constituição de uma experiência (vivência)

ambiental?

O terceiro grupo, composto pela grande maioria 87,3%, apontou, sem muitos

detalhes, o lugar de situação de sua casa, uma igreja e uma escola próximas; dificilmente

esses elementos referenciais não estão presentes. Esse subconjunto apresentou, ainda, mapas

em que aparecia caracterizada a área comercial (padaria, farmácia, mercado, posto de

gasolina) e uma avenida principal como elementos predominantes na paisagem do bairro. As

figuras abaixo representam o referido grupo.

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Figura 18 – Mapa mental elaborado por C.V.N., 16 anos. Mostrando o desenho do bairro com registro da área comercial (São Francisco). Manaus, AM. 2003.

Figura 19 – Mapa mental elaborado por R.C.B., 18 anos. Mostrando o desenho do bairro sem registro do igarapé (São Jorge) Manaus, AM. 2003.

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Figura 20 – Mapa mental elaborado por S.M.C., 18 anos. Mostrando o desenho do bairro com o registro dos arredores, incluindo igreja, escola e praça (Glória). Manaus, AM. 2003.

Esse parco conjunto de referenciais, restrito aos movimentos habituais dos sujeitos,

resulta no registro de uma relação vivida com o bairro com base em dimensões

subjetivamente determinadas. Por isso, muito poucos aparentam ter um conhecimento mais

amplo das reais dimensões do bairro e da complexidade das relações que ele enseja,

dificultando a sua objetivação pelo sujeito como unidade administrativa (a representação das

fronteiras poucas vezes aparece) e o desenvolvimento de laços comunitários. Em apenas 3,3%

dos mapas os sujeitos delinearam os limites de seus bairros e, ainda assim, os que o fizeram

moram na linha divisória entre dois, a saber, Petrópolis e São Francisco, ambos cortados pelo

igarapé do Quarenta.

Como já dissemos, a maioria dos entrevistados mora em bairros drenados por

igarapés contribuintes da bacia de Educandos e de São Raimundo. No que diz respeito à

percepção dos respondentes em relação aos igarapés foi possível fazer um agrupamento dos

respondentes que conseguiram de alguma forma em seus mapas identificar os igarapés.

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Sem a identificacao dos igarapes

84,1%

Registro gernerico dos igarapes

6,6%

Com igarapes identificados

15,9%

Igarape poluido ou esgoto2,0%

Rip -Rap1,3%

Registro com o nome do igarape

3,3%

Registros pictograficos

2,6%

Gráfico 4 – Esquema demonstração da percepção dos respondentes em relação aos igarapés.

Podemos dizer, inicialmente, que poucos percebem os igarapés como algo

significativo não importando a distância em que ele se encontra da sua residência. A forma de

identificação variou bastante. Em apenas 15,9% do total de mapas o igarapé apareceu

representado; destes, 22,2% identificaram o igarapé pelo nome, mas a maioria (33,3%)

utilizou a denominação genérica “igarapé”. Como se pode observar nas figuras abaixo:

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Figura 21– Mapa mental elaborado por I.A.N.M., 18 anos. Mostrando o desenho do bairro com o igarapé identificado pelo nome (igarapé do Franco). Manaus, AM. 2003.

Figura 22–: Representação cartográfica elaborado por I.N.N., 36 anos. Mostrando o desenho do bairro com o registro do igarapé apresentando a denominação genérica “igarapé” (São Francisco). Manaus, AM, 2003.

11,1% dos entrevistados identificaram como “igarapé poluído” e igual número como

“rip-rap”; como “esgoto” (5,5%); e 16,6% como registro apenas pictográfico. Como se pode

observa nas figuras abaixo:

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Figura 23 – Mapa mental elaborado por G.J., 16 anos. Mostrando o desenho do bairro com o igarapé identificado como “igarapé poluído” (Japiim). Manaus, AM. 2003.

Figura 24 – Mapa mental elaborado por L.G.S. 32 anos. Mostrando o desenho do bairro com o igarapé identificado como “rip-rap” (Petrópolis). Manaus, AM. 2003.

Figura 25 – Mapa mental elaborado por T.P., 16 anos. Mostrando o desenho do bairro com o igarapé pictografado (Coroado) Manaus, AM. 2003.

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Mesmo quando na entrada dos conjuntos habitacionais há uma ponte sobre o igarapé,

que precisa ser atravessada diariamente, os moradores não registraram o curso d’água em seus

mapas mentais. Como se pode observar nos mapas mentais de um entrevistado do conjunto

habitacional Jardim de Versalhes, e cinco entrevistados moradores do conjunto Nova

República.

Figura 26 – Mapa mental elaborado por T.P.G., 17 anos. Mostrando o desenho do bairro sem identificação do igarapé (Conjunto Jardim de Versalhes) Manaus, AM. 2003.

Nos parece que há, de modo geral, um desconhecimento acerca do meio onde

habitam. Já que a maioria dos mapas não apresenta detalhes sobre o local onde moram, os

limites dos bairros não são identificados, os igarapés mesmo estando nas áreas de circulação

diárias não são identificados. É o caso de moradores da compensa que desenharam a Avenida

Brasil sem o registro do igarapé pictográfico ou sob qualquer outra forma de representação.

Como fica claro no mapa mental a seguir reproduzido.

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Figura 27– Mapa mental elaborado por D.G.S., 19 anos. Mostrando o desenho do bairro sem o registro do igarapé na Avenida Brasil. Manaus, AM. 2003.

Dos jovens entrevistados 84,1%, ao cartografarem seu bairro, não fizeram o registro

dos igarapés.

Esse número tão expressivo de mapas mentais sem o registro dos igarapés esta

coerente com dados obtidos às questões destinadas a recolher elementos sobre a percepção do

bairro e onde os jovens entrevistados afirmam que entre os elementos que eles gostariam que

desaparecesse de seu bairro os igarapés só perderam para o item violência. Ao que parece, o

igarapé não está nos mapas mentais por que não deveriam nem existir em função ao grau de

rejeição em relação aos mesmos. Outros elementos que compõem o bairro e que inspiram

sentimentos de topofobia, ou seja, capazes de provocar sentimentos de repulsa, desconforto e

medo, também foram identificados pelos jovens entrevistados, dentre os quais: a violência, a

poluição dos igarapés, os esgotos a céu aberto, o lixo nas ruas, além da poluição visual e

sonora com os bares, as casas noturnas, a pobreza e as invasões. Todos esses elementos

tornam o bairro um espaço do abandono e do medo em função da ausência dos serviços

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públicos. De acordo com os dados obtidos os aspectos que tornam o bairro um lugar

agradável é à tranqüilidade e a presença de áreas destinadas à prática do esporte e lazer.

É importante aqui salientar que a atribuição de valor à paisagem vivida está

intimamente relacionada com a solução de problemas de atendimento às necessidades básicas.

É pouco provável que os residentes valorizem a paisagem em que vivem, numa realidade

onde falta água encanada, rede de esgoto, pavimentação de ruas, coleta de lixo. É importante

ter em mente que os sentimentos de indiferença, de afeição ou de aversão dos indivíduos

pelos lugares em que vivem vão, em última instância se refletir na postura em relação ao

meio.

Talvez aqui possa está um dos aspectos que explicam as condutas individuais e

coletivas de agressão ao meio.

Foi identificado um baixo nível de interação dos jovens com o bairro. No espaço

bairro, a área comercial é apresentada como principal característica, e as áreas destinadas para

a prática do esporte e do lazer aparecem como os elementos que mais valorizam o bairro,

enquanto os igarapés representam um dos principais problemas.

Os mapas mentais também indicam que os jovens, apesar de distanciados dos

problemas da rua onde moram, são conscientes da existência deles e capazes de identificá-los:

o igarapé é tipificado como um dos principais transtornos à qualidade de vida na comunidade.

O igarapé “urbano” não é compreendido como um patrimônio cultural ou natural que deva ser

preservado. Ao contrário, a compreensão corrente aponta para a idéia de que, sem a presença

incômoda do igarapé, o bairro seria mais valorizado.

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3.4 A PERCEPÇÃO DOS IGARAPÉS NA ANÁLISE EXPERIENCIAL

O termo experiência abarca os diferenciados modos que o indivíduo conhece e a

partir dos quais constrói a realidade (TUAN, 1983). Para registrar a experiência dos jovens

entrevistados, oportunizamos as condições necessárias por meio de um questionário aplicado

em duas partes: uma com questões destinadas a recolher elementos sobre a percepção do

bairro, e outra com um conjunto de questões sobre os igarapés. Buscamos as convergências

nas descrições da experiência. Para isso, consideramos o total de 166 respondentes como

suficientemente representativo para alcançar os objetivos delimitadores deste trabalho. A fim

de realizar o estudo dos igarapés como lugar, considerando a percepção, as atitudes e os

valores atribuídos aos igarapés como aspectos formadores da topofilia.

Iniciamos o bloco sobre os igarapés indagando: o que lhe vem à mente quando se

fala em igarapé? Os dados obtidos permitiram concluir que os igarapés de Manaus, no estado

em que se encontram, não são percebidos pelos jovens entrevistados nem como um lugar,

porque tão profundamente modificados que perderam seu conjunto de significados culturais e

identitários, nem como uma paisagem que inspire sentimentos de afeição, simpatia ou

admiração estética (topofilia), evidenciando, ao contrário, fortes sentimentos de repulsa,

desconforto e aversão (topofobia).

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59,6

18,7

13,9

3,6 3,60,6

0

10

20

30

40

50

60

70

topofobia definição topofilia outros modalidades deigarapés

sem resposta

Respostas Obtidas

Res

pond

ente

s (%

)

Gráfico 5 – Percepção dos atores sociais entrevistados sobre seus sentimentos de topofobia e topofilia em relação aos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

Os termos utilizados pelo expressivo grupo de 59,6%, na tentativa de sintetizar uma

idéia sobre esses igarapés, resultaram numa extensa lista de expressões como “poluição”,

“sujeira”, “imundície”, “inundação”, “lixo”, “mau-cheiro”, “água suja”, que revelam fortes

sentimentos topofóbicos. Alguns respondentes, contudo, esclareceram que esses termos

referem-se à idéia que têm a respeito dos igarapés sujos e poluídos que cortam a cidade. Essa

ressalva pode significar que os sujeitos deste subconjunto têm uma outra referência de igarapé

sobre a qual não poderia recair a mesma qualificação topofóbica.

Curiosamente, o terceiro grupo mais expressivo (13,9%) evidencia grande apreço

pelos igarapés que ainda permitem o usufruto do contato prazeroso com o elemento água,

como forma de lazer e divertimento. Porém, pelo que facilmente se depreende das expressões

utilizadas para definir uma idéia de igarapé (“um banho bem gostoso”, “lazer”, “um lugar

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para diversão”), os lugares assim caracterizados pelos sujeitos não são, certamente, os

igarapés do perímetro urbano de Manaus, nos quais essas atividades resultam impossíveis.

Claramente, este subconjunto privilegiou o igarapé como lugar (portador de signos

caracterizados por qualidades positivas), buscando o resgate da relação histórico-cultural que

lhe dá significado e, ao mesmo tempo, possibilita o registro satisfativo na memória. Com

efeito, diante da necessidade de içar esse registro memorial ao plano de uma resposta (“o que

primeiro lhe vem à mente quando você ouve a palavra igarapé?”), esse expressivo

subconjunto optou por recuperar eventos prazerosos, mesmo sendo constituído por sujeitos

cujas idades não permitem que tenham vivido essa experiência nos igarapés de Manaus. Ou

seja, é possível concluir, à luz dos dados, que a fruição dos igarapés, como objeto de lazer e

entretenimento, continua impelindo o manauara a persistir nos laços culturais dessa relação,

buscando o confortante banho de igarapé em águas cada vez mais distantes do aglomerado

urbano da cidade.

O segundo subconjunto (18,7%) limitou-se a lançar um olhar romântico sobre os

igarapés, sem vinculá-los a nenhuma circunstância qualificadora de afeição ou rejeição: “rio

pequeno”, “riacho”, “lago”, ou “caminho de água”, “passagem de água”. Talvez afetados pela

pressão da formalidade do ambiente escolar em que responderam o questionário.

3.4.1 Modalidade de igarapés

É importante ressaltar que embora haja um subgrupo de sujeitos (3,6%) que declare

expressamente sentimentos de afeição quanto aos igarapés limpos, afastados do perímetro

urbano, em todos os outros subgrupos esse sentimento topofílico apareceu como ressalva. Ou

seja, ao expressar rejeição aos igarapés urbanos, os entrevistados, majoritariamente,

ressalvaram que tais sensações topofóbicas não se aplicavam aos cursos d’água ainda

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preservados, capazes, por isso mesmo, de proporcionar a fruição do prazer histórico do banho

de igarapé. Assim é que se pode inferir dos dados que, mesmo na faixa etária caracterizadora

do universo desta pesquisa, a escalada de destruição dos igarapés da cidade não destruiu nos

indivíduos a idéia de igarapé como vetor de entretenimento e lazer.

Nas respostas, essa constatação aparece na forma do cuidado com que os jovens

entrevistados trataram os itens relativos aos sentimentos de afeição/rejeição aos igarapés. Não

se compreende o termo “igarapé” genericamente. Os dados dão conta de que os entrevistados

detectam, diretamente dos rigores do cotidiano, do dia a dia da cidade, não mais o igarapé,

simplesmente, mas o igarapé-poluído, merecedor de rejeição em razão dos altos graus de

desconforto que produz. O termo simples “igarapé” parece aplicável apenas quando se faz

referência às águas que tornam possível a contemplação estética, o banho agradável, o lazer

sem riscos à saúde. Desse modo, o termo “igarapé” aparece em confronto ao termo “igarapé-

poluído” ou “igarapé urbano”, indicando uma oposição entre duas modalidades de igarapés

sobre as quais vão recair os sentimentos antagônicos de topofilia e topofobia.

3.5 UTILIDADE DOS IGARAPÉS

Outro aspecto investigado nesta pesquisa recaiu na utilidade enquanto categoria:

Para que servem os igarapés? Tratamos o valor utilitário com uma visão qualitativa

vinculada ao valor de uso, como propriedade do objeto somente quando em relação ao homem

social, isto é, a interpretação dos valores atribuídos aos igarapés pelos sujeitos não é aqui

definida em termos financeiros ou econômicos.

Neste sentido, os igarapés apareceram com forte valor recreativo. Os respondentes

atribuíram valor de uso aos igarapés prevalentemente como espaço de lazer, entre tantas

outras utilidades. “Banho”, “lazer” e “divertimento” representaram 44,5% entre as

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110

possibilidades de uso para os igarapés. Como se pode observar nos trechos de depoimentos

seguintes: “... sem poluição, pode [o igarapé] ser fonte de diversão”; “para tomar banho,

brincar...”; “para tomar banho, se refrescar, se divertir”; “servem para as pessoas tomarem

banho nos fins de semana”.

30,7

21,1 21,1

12,7

3,01,8

9,6

0

5

10

15

20

25

30

35

valorrecreativo

prático-utilitaristanegativa

utilitarista valor de uso denaturza difusa

nada ou nãosei

sem resposta modalidades deigarapés

Respostas Obtidas

Res

pond

ente

(%)

Gráfico 6 – Categorias perceptivas representativas da descrição social da utilidade dos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

Mais uma vez está presente a oposição entre as duas formas de existência

apreendidas pela percepção dos sujeitos para o termo “igarapé”. Quando os respondentes

revelaram como prevalente o valor recreativo dos igarapés, cercaram-se, ao mesmo tempo, da

precaução de esclarecer que se referiam aos igarapés limpos, de águas refrescantes, existentes

fora dos limites da cidade.

Um objeto, natural ou construído, não detém o valor como propriedade em si, mas o

assimila na sua relação com o homem social, com seus interesses e suas necessidades. Mesmo

que não tenha relação direta com os igarapés (na qualidade de objetos naturais) nos quais

reconheça as propriedades que lhe sustentam o valor – segundo o conceito que abraçamos

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111

neste trabalho –, o indivíduo pode tê-los como valiosos em potência. A teor dos dados, é

possível concluir que, apesar de os igarapés urbanos (segundo definição dos respondentes)

não apresentarem as propriedades que lhes assegurem valor de uso recreativo, o conceito

igarapé surpreendentemente permanece como sentimento na relação do manauara com o meio

ambiente. Agora ele busca, quando tem meios, o “igarapé da área rural”, “do sítio” ou “do

interior”.

Ainda na categoria utilidade dos igarapés, mostrou-se interessante o confronto entre

duas concepções utilitaristas opostas. Um segundo subconjunto de respondentes (21,1%)

atribuiu aos igarapés uma propriedade prático-utilitarista negativa, segundo a qual esses

cursos d’água servem: “para jogar lixo neles”, “como esgoto”, “para provocar doenças”, “para

criar problemas”, “para poluir” ou, simplesmente, “não servem para nada”.

Para compreender tais posicionamentos, devemos nos remeter a uma pergunta

fundamental formulada pelos utilitaristas sobre a relação entre o bom e o útil: o que significa

ser útil? Quando alguém diz que os igarapés “não servem para nada”, provavelmente está

dizendo que os igarapés “não são bons porque deles não retiro nenhum proveito”, numa

postura extrema e unilateral. O bom seria o útil “para mim”.

No terceiro e quarto subconjunto (que representam 21,1% e 12,7%,

respectivamente), agrupamos os respondentes minoritários que reconheceram nos igarapés

utilidade: “como fonte de água”, “para evitar as enchentes escoando as águas da chuva”, “para

os afazeres domésticos”, “transporte”, “moradia”, “embelezar”, “manter o equilíbrio

ecológico”, “irrigação”, “criar peixe”, “sobrevivência”. As finalidades assim expressas

desvelam, de certa forma, uma concepção de utilidade vinculada a um valor de uso de

natureza difusa, em que os beneficiários não podem ser individualizados. Um meio ambiente

ecologicamente equilibrado, e.g., não beneficia exclusivamente um certo extrato do tecido

social, uma vez que os resultados daí advindos não podem ser apropriados por esse extrato.

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112

Assim, a visão utilitarista que daí se depreende, ao contrário da postura anterior, assinala que

o bom é o útil para a maior parte da população, “mesmo que dessa parcela eu esteja excluído”.

A finalidade ecológica dos igarapés dentro desses grupos pouco foi ressaltada pelos jovens

estudantes, revelando coerência com o grupo (3,0%) dos que “não sabem” explicar para que

servem os igarapés.

Como se vê, a interpretação da experiência humana, sua ambivalência, ambigüidade

e complexidade, parece estar revelada em toda a sua plenitude na relação do manauara com

seus igarapés. Poder sistematizá-la nos aproximará do significado dos conceitos, dos símbolos

e das aspirações concernentes ao espaço, ao lugar e suas paisagens. Só assim será possível

mostrar que o igarapé, compreendido como lugar, é conceito e sentimento.

3.6 PROTEÇÃO DOS IGARAPÉS

Conhecer a história, a cultura e a experiência de determinado grupo, no contexto de

seu meio ambiente físico, é fundamental para entender as suas atitudes. Invariavelmente,

envolve-se nesse processo um conjunto organizado de sentimentos e experiências que

influenciam a conduta individual e de grupo. Um ambiente conservado significa respeito ao

patrimônio natural e reputa-se como uma grande força modeladora do meio, por meio das

ações, escolhas e condutas pertinentes a esse meio.

Para perscrutar os modos, concebidos pelos sujeitos como efetivos na proteção aos

igarapés, perguntamos aos jovens respondentes: como cuidar dos igarapés? Podemos

afirmar, mediante a análise das respostas, que se formou um certo consenso em torno da idéia

de que a principal estratégia para cuidar dos igarapés resume-se a “não jogar lixo neles”.

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113

74,7

8,4

7,2

5,4

2,4

1,2

0,6

0 10 20 30 40 50 60 70 80

não jogar lixo

propositiva

prevenção

educativa

sem resposta

pessimista

normativa

Res

post

a O

btid

as

Respondentes (%)

Gráfico 7 – Categorias perceptivas representativas da descrição social sobre cuidados para proteção dos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

Isso parece indicar a existência de uma compreensão dominante segundo a qual a

proteção/recuperação dos igarapés da cidade podem ser obtidas pela simples retirada do lixo

neles depositado. Coincidentemente, ou não, é exatamente essa a proposta central das recentes

campanhas veiculadas exaustivamente na mídia pelo Poder Público nas quais se prega a

“salvação dos igarapés”. Conforme já explicitamos, o “Programa SOS Igarapés”,

implementado pela Prefeitura de Manaus, está adstrito à retirada dos resíduos sólidos dos

leitos dos cursos, proteção das nascentes e campanha de educação ambiental voltada para os

moradores das margens. Promove-se pesada divulgação de imagens (mostrando a coleta de

toneladas de lixo) associada à disseminação do discurso de que, por tais meios e com a

colaboração dos ribeirinhos, os igarapés serão salvos.

Quando a maioria dos sujeitos (74,7%) reproduz com riqueza esse discurso,

demonstra-se quanto os jovens estão à mercê da força da mídia e da idéia de infalibilidade da

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114

técnica, aceitando, sem hesitação, as “respostas” oficiais transmitidas por slogans. Como nos

depoimentos:

A Prefeitura faz o possível, mas não é o suficiente, as pessoas voltam a sujar e a poluição não acaba. Temos que aprender a conviver com isso (I.A.N.M., aluno de escola pública, 18 anos, morador há 18 anos do bairro Santo Antonio).

Não só depende da Prefeitura limpar os igarapés com máquinas, mas, também, depende da sociedade não jogar lixos nos igarapés (J.K.S.C., aluno de escola pública, 18 anos, morador há 11 anos do bairro Lírio do Vale).

As pessoas que moram perto dele [igarapé] não deveriam jogar lixo nele, isto deve ser motivo para multas, com isso elas não jogariam lixo (M.R.A.T., aluno de escola particular, 15 anos, morador há 9 anos do bairro Planalto).

Ao apontar com tamanha força a singela atitude de “não jogar lixo” nos igarapés

como a melhor estratégia para protegê-los/recuperá-los, os sujeitos demonstram, também,

ignorância quanto à amplitude e à natureza da agressão por que passam esses elementos da

paisagem da cidade. Isto porque este subconjunto majoritário revela, associadamente à idéia

de proteção dos igarapés, uma percepção da poluição restrita ao lixo passível de registro pelo

sentido da visão (os resíduos sólidos).

Dentre os outros modos, registrados minoritariamente, aparece uma atitude

propositiva (8,4%) pelos sujeitos como capazes de promover a proteção/recuperação dos

igarapés. Podemos destacar entre os mais significativos: “evitar o lançamento de esgoto nos

igarapés e criar uma estação de tratamento”; “proteger as nascentes”; “não aterrar os

igarapés”.

Os outros grupos, também minoritários, consideraram algumas atitudes importantes,

postas no campo das ações educativas, como “conscientizar através de campanhas e

programas” (5,4%); no campo da prevenção, “evitar a poluição” (7,2%). Apenas um

entrevistado revelou posição pessimista, afirmando que: “não tem solução por causa dos

moradores” (1,2%).

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115

Não houve qualquer referência à legislação ou a fiscalização como instrumentos para

se obter uma efetiva proteção dos igarapés. Um dos entrevistados, desacreditando no papel da

Administração Pública como detentora da tutela sobre os igarapés, propôs que uma ONG

cuidasse desses cursos d’água.

3.7 A VISÃO DE RESPONSABILIDADE QUANTO AOS IGARAPÉS

A visão de responsabilidade em relação aos igarapés, revelada nas respostas, seguiu

uma linha normatizada: responsáveis são as autoridades e, de modo geral, toda a sociedade.

No entanto, no âmbito do termo “toda a sociedade” estabeleceu-se um escalonamento da

responsabilidade de cuidar, apontando para os moradores das margens dos igarapés a

principal parcela de obrigação. A posição a seguir ilustra bem o pensamento do subconjunto

mais expressivo:

A responsabilidade é de todos, principalmente das pessoas que moram perto deles [igarapés] e jogam seu lixo e esgoto no igarapé (V.B., aluna de escola particular, 17 anos, moradora há 3 meses do bairro Japiim).

Restou patente a divisão que se instaura em relação aos setores da sociedade aos

quais deveria caber uma maior ou menor obrigatoriedade quanto à responsabilidade sobre os

igarapés. Os dados expressam com clareza a responsabilização em dois níveis: um relativo,

dado aos moradores da cidade que não os da margem; e outro, absoluto, dado aos moradores

das margens. Para justificar esse maior quinhão de responsabilidade aos ribeirinhos, ressalta-

se uma certa relação de dependência exclusiva destes para com os igarapés. Natural, então,

que se responsabilize mais “a população que depende dele [igarapé] para sobreviver”

(I.G.P.S., aluno de escola particular, 15 anos, morador há 15 anos do bairro do Japiim).

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116

Na esteira do discurso normatizado pelo Poder Público em veiculações midiáticas, os

dados obtidos sugerem que esses dois níveis de responsabilidade conduzem a um raciocínio

em que a responsabilidade social é substituída pela responsabilidade moral, apoiando-se na

possibilidade de que o ribeirinho, ao lançar lixo nos igarapés, teria consciência de seu ato e

encerraria em si mesmo as causas de suas atitudes. As causas externas não são trazidas à luz

da complexidade do real.

Comuns são as manobras perpetradas para escamotear o fato de que os igarapés de

Manaus funcionam como válvula de escape às administrações públicas. Na falta de uma

política de coleta e tratamento dos dejetos produzidos pela população, os igarapés são os seus

receptores finais. São lançados diretamente nos cursos d’água que cortam a cidade 97% dos

esgotos, ou seja, apenas 3% da população de Manaus (A CRÍTICA, 29.09.2002) são

atendidos pelos serviços de coleta e tratamento dos dejetos residenciais.

Alguns depoimentos dão idéia da intensidade com que os jovens absorveram o

discurso oficial de que os moradores dos barracos às margens são os algozes dos igarapés.

Nos dados obtidos, são recorrentes expressões como as seguintes, relativamente a quem cabe

a responsabilidade de cuidar dos igarapés: “a todos, mas principalmente aos moradores das

margens”; “à prefeitura, mas primeiramente à população que mora nos igarapés”; ou, ainda,

“o principal responsável é o morador das margens” (grifos nossos).

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117

Sem Resposta3,6%

Governo3,6%

Sociedade53,0%

Moradores39,8%

Gráfico 8 - Categorias perceptivas representativas da descrição sobre os grupos de atores sociais responsáveis pelos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

Longe de serem algozes, as populações urbanas são vítimas. As áreas urbanas

desprovidas de serviços essenciais à vida social e individual submetem as pessoas ao jogo do

mercado, onde o espaço vivido passa a consagrar as desigualdades e as injustiças,

constituindo-se no que Milton Santos chama de “espaços sem cidadãos” (Santos, 1996, p.21).

Em Manaus, assim como em outras cidades, a população vive sem condições de

realizar inteiramente suas potencialidades como sujeito ativo e dinâmico de uma comunidade.

Reduzidos a consumidores – e eventuais eleitores – no lugar de cidadãos conscientes das suas

prerrogativas inalienáveis, que se estendem do campo biológico aos da cultura, da política e

da moral, isto é, do patrimônio material ao imaterial (Santos, 1996).

3.8 EQUILÍBRIO AMBIENTAL X SAÚDE PÚBLICA

Como previa Berette (1975), Manaus estava destinada a assumir um papel de

primeiro plano no quadro geral do desenvolvimento econômico da Amazônia. Sua posição no

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118

centro de uma vastíssima bacia hidrográfica, exatamente entre a Amazônia Oriental e a

Ocidental, ponto de vital importância para a navegação fluvial, determinou sua condição de

porto interior, atingível por navios transoceânicos, que a tornou rapidamente centro de

exportação durante o Ciclo da Borracha e no período de incremento da indústria da juta.

Posteriormente, com implantação da Zona Franca de Manaus, transformou-se

também em centro de importação de produtos manufaturados para todas as necessidades

regionais e de atração turística, em razão dos fabulosos aspectos oferecidos pelo ambiente

circundante. O extraordinário crescimento ocorrido em Manaus provocou problemas

decorrentes da forte concentração urbana que a cidade experimentou. Os igarapés figuram

entre as principais vítimas deste processo.

Ainda há outros aspectos a considerar. Até o início da década de 80, menos da

metade dos habitantes do país (46%) viviam nas cidades. Em meados daquela década, as

vantagens tributárias oferecidas pela Constituição de 88 resultaram numa proliferação de

municípios em todo o país – na Amazônia este fenômeno alcançou proporções

extraordinárias: a partir de 88 foram criados 327 novos municípios. Associado a isso, o ritmo

de migração para a Amazônia Legal foi intenso. Estima-se que, ainda hoje, em cada dez

brasileiros dispostos a mudar-se para outro lugar, um escolhe a Amazônia como destino.

Cidades como Manaus, Belém e São Luiz do Maranhão adquiriram proporções

metropolitanas sem a infra-estrutura necessária.

Manaus configura-se o exemplo mais grave: alcançou 1,5 milhão de habitantes,

numa realidade em que 40% das casas não têm água encanada, 88% não têm esgoto e a coleta

de lixo atinge apenas 50% das casas. A falta de água encanada, a coleta de lixo deficitária e o

despejo irregular de esgoto causam impactos na qualidade de vida de milhões de pessoas e

têm relação direta com as doenças gastrointestinais que ocasionam cerca de 8,5 mil mortes de

crianças por ano no Brasil, conforme levantamento realizado pelo Banco Mundial. Repete-se

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119

em escala local a ausência de saneamento básico, ocupação desordenada do solo, deposição

de lixo e entulho, escoamento inadequado das águas da chuva entre outros.

O déficit habitacional empurra milhares de pessoas para as margens dos igarapés e

para áreas próximas das matas provocando um assustador aumento nos casos de malária,

dengue e leishmaniose. Quando se somam fatores ambientais – nomeadamente o

desmatamento em decorrência das invasões – a fatores climáticos, como verões atípicos com

muita chuva ou invernos com pouca chuva, estabelece-se um quadro de favorecimento ao

surgimento de verdadeiras epidemias.

A ocupação irregular do espaço urbano, que ocorre ao longo de anos na cidade de

Manaus, resultou, segundo dados da Secretaria de Estadual de Infra-estrutura, em cerca de

1.307 famílias em situação de risco, que precisam ser removidas das margens dos quatro

principais igarapés e de microrregiões da cidade.

Sob a égide da gravidade da poluição dos igarapés, o Governo do Estado está

recorrendo ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para tentar o financiamento

de um programa de “saneamento” dos principais igarapés de Manaus.

Os casos de malária registrados nos primeiros meses de 2003 indicam um aumento

de 431,90% em relação ao mesmo período do ano anterior, conforme dados da

Superintendência Estadual de Saúde. Na época de pouca chuva, praticamente não se dá a

renovação de água dos criadouros naturais do mosquito aedes egypt – lagos, poças e igarapés

– facilitando, desse modo, a acelerada eclosão dos ovos.

Os locais de maior incidência de casos de malária são os ramais, estradas e as

grandes áreas de invasão. Dados da SUSAM dão conta de que, no ano de 2002, ocorreram

oito grandes invasões na periferia da cidade, gerando desmatamentos e interferindo

negativamente no fluxo das águas dos igarapés situados nas proximidades. Após essas

invasões, o total de casos de malária passou de 250 para 3 mil. Há relatos de pessoas que

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120

estão com suspeita de malária pela vigésima terceira vez. As pessoas que moram na beira de

igarapés e próximo das matas são as mais atingidas pela malária.

3.8.1 Igarapés e riscos

Quando perguntados sobre os riscos que os igarapés podem representar, a ampla

maioria dos entrevistados associou os igarapés à contaminação e à possibilidade de contrair

doenças. Outros, em número expressivamente menor, citaram riscos relacionados à morte por

afogamento e acidentes. As enchentes e o desabamento de casas também foram citados como

riscos ligados aos igarapés. E em número menor houve os que citaram como risco a poluição,

genericamente, e a poluição visual. E os que reconheceram como risco a possibilidade dos

igarapés desaparecerem.

70,5

10,87,8

4,81,2

4,8

0

10

20

30

40

50

60

70

80

doenças sem resposta infortunio extinção dosigarapés

não poluição visual

Respostas Obtidas

Res

pond

ente

(%)

Gráfico 9 – Percepção dos riscos associados aos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

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121

Essas respostas podem ser analisadas mais precisamente se nos detivermos um pouco

sobre as modalidades de risco enunciadas, embora, à primeira vista, o conceito de risco pareça

destituído de qualquer relevância para a época presente em relação ao passado.

O desenvolvimento industrial global tem produzido acelerada agressão ao hábitat

planetário. A qualidade e a quantidade de água doce disponível para o consumo vem-se

depreciando assustadoramente. Assim, o conceito de risco, embora encerre uma aparência de

simplicidade, desvenda algumas das características mais fundamentais do mundo em que

vivemos agora.

De acordo com Giddens (2000, p.32), “a idéia de risco parece ter se estabelecido nos

séculos XVI e XVII, e foi originalmente cunhada por exploradores ocidentais ao partirem

para suas viagens pelo mundo”.

Originalmente utilizada para designar a navegação rumo a águas não cartografadas, a

palavra “risco” nasceu com forte orientação espacial, assimilando depois o tempo para ser

utilizada em transações bancárias e de investimentos, assim como em tantas outras situações

de incerteza. A palavra só passa a ser amplamente utilizada pelas sociedades que consideram

o futuro como um território a ser conquistado ou colonizado.

Deparamo-nos com algo realmente interessante neste ponto, ao analisarmos a

constatação de que “as culturas tradicionais não tinham um conceito de risco porque não

precisavam disso” (Idem, 2000, p.33, grifo nosso).

Tal assertiva justifica-se pelo fato de que risco não é a mesma coisa que infortúnio ou

perigo. Não se pode imaginar que os manauaras não tenham enfrentado, em todos os tempos,

sua razoável parcela de perigos em relação aos igarapés, e.g., ataque de animais ou morte por

afogamento. O risco que se liga a eventos ativamente avaliados em relação a possibilidades

futuras, tais como a incidência de doenças e de mortes advindas da péssima qualidade das

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águas dos igarapés, era um conceito estranho à cultura do amazonense porque ele não

precisava disso.

Os dados obtidos permitem inferir que o manauara de hoje deixou de preocupar-se,

em relação aos igarapés, com os riscos oriundos das fixidades da tradição ou da natureza para

inquietar-se com o risco produzido pelo processo de inserção do homem no ambiente. Em

outras palavras, o cerne de suas preocupações parece ter migrado daquilo que a natureza podia

fazer com o homem, para aquilo que o homem pode fazer com a natureza. Isso assinala a

transição da idéia de risco associado ao perigo ou infortúnio para a de risco fabricado pelo

impacto do crescente conhecimento humano sobre o mundo. A maioria dos danos ambientais,

como a poluição dos igarapés e suas conseqüências, está associada a esta última modalidade

de risco.

A história dessa transição operada no mundo da cultura do manauara confunde-se

com a história da constituição de Manaus como cidade.

3.9 AS INTERVENÇÕES PÚBLICAS NOS IGARAPÉS DE MANAUS

3.9.1 A técnica criando não-lugares

Os igarapés que cortam a cidade de Manaus constituem um bem natural e cultural da

sociedade local. Porque consubstanciam veículos de transmissão da identidade da gente local

e da história da cidade, merecem converter-se em objetos de preservação na condição de

elementos da paisagem cultural, nos termos do que defende Kohlsdorf (2001), uma vez que

representam meios pelos quais se contam fatos, processos e práticas reveladores de traços

identitários do homem e do mundo da cultura, que opera permanentemente por meio da

síntese do mundo material e do mundo espiritual.

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123

As recordações, às quais as paisagens sob proteção permitem subsistir, contribuem

para a construção – ou resgate – da história social, constituindo, por isso, um bem simbólico

que participa ativamente da formação da memória dos povos. Mas, nas duas últimas décadas,

esse elemento natural tão peculiar à região passou de área destinada ao lazer das famílias

manauaras a estreitos cursos de águas que recebem diariamente toneladas de lixo e esgoto.

São poucos os caminhos em Manaus que não se cruzam com algum igarapé. Essa

característica singular nos leva a pensar que todo morador da cidade poderia constituir-se

responsável pela preservação dos igarapés, morando em suas margens ou distante delas. No

entanto observa-se uma certa repulsa em relação a esses ícones da cidade, em parte explicada

pelo fato de que os igarapés que riscam o perímetro urbano tiveram seus perfis originais

drasticamente modificados, modificando-lhes também as relações com o homem, reduzidos

que foram a valas receptoras de resíduos domésticos e industriais. As gerações que tiveram a

oportunidade de ver os igarapés limpos, de desfrutar dos “banhos” dos finais de semana,

parecem lamentar mais intensamente a situação atual de alguns igarapés que foram pontos

tradicionais, como é o caso do Mindu, do Igarapé do Quarenta, da Ponte da Bolívia e do

Tarumã, entre outros. Diante do quadro atual dos igarapés, e considerando a relação cultural

(marcada por valor de uso recreativo) dos igarapés com o homem local, parece legítimo

concluir que as novas gerações de manauaras têm menores oportunidades para realizar

atividades ligadas à natureza, particularmente em relação aos cursos d’água do perímetro

urbano, dado o alto grau de agressão a que foi submetido o meio ambiente natural da cidade.

Na memória de quem tem por volta dos 40 anos de idade estão registradas as

lembranças do período em que os igarapés de Educandos, do Mindu, do Quarenta, de Manaus,

da Cachoeira Grande (São Jorge) e de São Raimundo significavam belos recortes da paisagem

da cidade e, mais importante, locais preferidos de uma população de apenas 200 mil

habitantes para realizar o seu lazer nos domingos de sol. Havia ainda quem procurasse os

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124

igarapés, numa Manaus sem rede de água e esgoto, simplesmente para lavar a roupa da

família.

Em menos de 30 anos, a realidade desses igarapés mudou drasticamente. Até hoje, as

bacias hidrográficas de Manaus não foram contempladas por nenhuma ação de política

ambiental, seja estadual, seja municipal, efetivamente voltada para a recuperação dos

igarapés. O que se vê historicamente é a banalização do termo: qualquer intervenção, por mais

superficial e pontual que seja, é vendida como medida salvadora das águas da cidade, a

despeito de não levar em conta a complexidade dessa tarefa, sua natureza interdisciplinar, os

resultados e as recomendações das pesquisas produzidas nessa área. Ademais, as iniciativas

estaduais não conhecem as municipais, evidenciando um choque de competências em matéria

ambiental que, entre outras coisas, tem inviabilizado um projeto público de longo prazo

visando de fato recuperar os igarapés.

Para materializar essa discussão, tomamos como referencial o “Programa SOS

Igarapés”, iniciado em meados de 1999, que foi concebido, de acordo com a municipalidade,

com base em princípios orientadores da gestão dos recursos hídricos, prevendo não apenas a

remoção do lixo e canais, mas, principalmente, a preservação das nascentes dos igarapés.

A execução do programa prevê três eixos de atuação: retirar o lixo do leito dos

igarapés, instituir a coleta sistemática de lixo de casa em casa, mesmo em época de cheia, com

o uso de canoas, e oferecer à população ribeirinha noções básicas de educação ambiental.

Como se vê, o principal foco dos trabalhos é o lixo depositado diretamente nos

igarapés. O programa desconsidera o lançamento ininterrupto de esgotos e efluentes e peca

pela visão segregacionista que aponta para a população das margens como a responsável pelas

toneladas de lixo retiradas dos leitos dos igarapés. A Prefeitura parte disso como uma

constatação verdadeira e dirige apenas aos ribeirinhos as ações de educação ambiental,

ignorando que a vultosa quantidade de lixo que vai parar nos igarapés não pode resultar

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apenas do lançamento direto no leito, nem é formada apenas de rejeitos sólidos, antes é o

reflexo da prática antiecológica de toda uma cidade e da falta de políticas públicas de

tratamento de dejetos residuais das residências.

Quanto ao lixo coletado, as informações divulgadas pela municipalidade são de

impressionar, revelando a dimensão da problemática que envolve a situação atual da malha

hidrográfica de Manaus. O site da Prefeitura registra que:

(...) nos três dias da limpeza preliminar do igarapé do Frade foram retiradas mais de 600 toneladas de lixo, o equivalente a 100 caçambas cheias. Em dois meses de atividades, o ‘Programa SOS Igarapés’ retirou 2.500 toneladas de lixo flutuante dos igarapés do Franco, de São Jorge [Cachoeira Grande], de São Raimundo, do Frade, da Paz, do Bariri, dos Educandos, do Mestre Chico, da Cachoeirinha, além de um trecho das margens do rio Negro (www.pmm.am.gov.br – Março/2003).

E, ainda, que “(...) logo nas duas primeiras semanas de trabalho, a operação retirou

apenas do igarapé de São Raimundo 365 toneladas de lixo, o equivalente a 70 caminhões-

caçamba”. O lixo acumulado no leito dos igarapés é formado por “garrafas plásticas, pedaços

de madeira, telas de ventilador, latas, pneus e até carcaças de eletrodomésticos, materiais que,

em sua grande maioria, podem levar até 500 anos para se decompor”.

Os jornais sistematicamente divulgam que toneladas de lixo são retiradas dos

principais igarapés de Manaus, mas, em curto lapso de tempo, voltam a publicar a mesma

notícia. Ou seja, a prática da mera retirada de montanhas de entulho do leito dos igarapés é,

por suas limitações, um fenômeno cíclico: praticamente o mesmo volume de lixo é retirado a

cada operação de limpeza.

Visando à modificação desse quadro, o Poder Público Municipal engendrou uma

campanha de conscientização ambiental – angariando algum apoio de entidades da sociedade

civil e de escolas da rede oficial – voltada para os moradores das margens dos igarapés, ao

mesmo tempo em que difundia pela mídia as “explicações” das condutas agressivas ao meio

“típicas” desses manauaras. Não é difícil notar que uma “explicação” que reduz causa

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complexa a um único fator não tem o alcance do real, na medida em que se limita ao

pressuposto de que todo o lixo que atravanca os caminhos de água que cortam a cidade

provém das populações das palafitas. Ainda assim, não faltam explicações, bastantes em si

mesmas, que apontam para uma certa “questão cultural” como causa única de um fenômeno

tão complexo.

Debruçando-se sobre a temática da complexidade do real, Edgar Morin (2002)

entende que o complexo do mundo está sendo fragmentado pela inteligência que separa em

pedaços e pulveriza os problemas, o que acaba atrofiando as possibilidades de compreensão e

de reflexão, tornando o homem incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário. A

conseqüência é que não conseguimos integrar nossos conhecimentos para condução de nossas

vidas e menos ainda para resolução das questões ambientais.

Recentemente, em uma matéria intitulada “Desprezo ao patrimônio público”,

publicada no jornal A Crítica (09 de agosto de 2003), o diretor do Departamento Municipal de

Limpeza Pública – DEMULP – afirmou que, apesar de a situação dos igarapés ainda

representar um grande problema para a Prefeitura Municipal, o “Programa SOS Igarapés”

registrou índices otimistas quanto à quantidade de lixo coletada das águas. “Logo que

começamos, a média diária era de 300 toneladas, hoje, fica em 60 toneladas/dia, o que

infelizmente ainda é muito”.

Ao todo, são aproximadamente 90km de igarapés que riscam toda a cidade, hoje

transformados em verdadeiros lixões e canais de escoamento de esgoto. Como explicar o

comportamento da população em relação aos igarapés? É possível repaginar tal conduta?

O estudo dos processos mentais relativos à percepção ambiental é fundamental para

compreender melhor as inter-relações do ser humano com o meio ambiente, seja individual ou

comunitariamente, em suas expectativas, julgamentos e condutas. O indivíduo – ou o grupo –

enxerga, interpreta e age em relação ao meio ambiente de acordo com interesses, necessidades

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e desejos, recebendo influências, sobretudo dos conhecimentos anteriormente adquiridos, dos

valores, das normas grupais, enfim, de um conjunto de elementos que compõe sua herança

cultural.

Nos processos de planejamento e educação ambiental os estudos de percepção são

fundamentais porque permitem conhecer as particularidades de cada relação

sociedade/indivíduo-meio ambiente, propiciando, assim, o desenvolvimento de programas que

realmente promovam a participação.

Do conhecimento de como as pessoas percebem e compreendem os diferentes

espaços, construídos ou naturais, é que são obtidos dados singulares sobre o modo de

desenvolver as atividades e se relacionar com a natureza. O papel das populações envolvidas é

ativo, possuindo, simultaneamente, o poder de construir e transformar novas paisagens.

Como aparece nos documentos da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio

Ambiente – CNUMAD –, o melhor modo de tratar das questões ambientais é com a

participação de todos os cidadãos. A eficiência dos planos das administrações públicas –

assim como a elaboração de legislações – fica comprometida por desconsiderar ou por não ter

conhecimento adequado da influência de múltiplos fatores psicológicos, econômicos e

ambientais que devem direcionar a tomada de decisões e as tentativas de controle da natureza.

3.9.2 A Percepção dos Não-Lugares

Na questão em que solicitamos aos jovens respondentes que descrevessem

fisicamente os igarapés de Manaus, os elementos expostos apontam para a percepção de um

lugar desagradável em 43,9% das respostas.

O segundo subconjunto mais representativo (23,4%), dentro dessa categoria, limitou-

se a uma descrição meramente espacial: “córrego”, “rio pequeno”, ”braço de rio”.

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128

Porém, merecem destaque as “descrições” que articulam um elemento físico-espacial

da paisagem (“rio”, “canal”, “buraco”) a uma característica incorporada aos igarapés pela

escalada de agressão ao meio ambiente (“sujeira”, “lixo”, “poluição”, “imundície”),

produzindo resultados tais como: “pequeno rio sujo”, “canal que só tem águas poluídas

cheias de lixo”, “buraco imundo onde ninguém deve pisar” (grifos nossos).

28,3

12,7

6,6

4,8

2,4

1,8

1,2

42,2

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45

topofobia

definição

topofilia

sem resposta

valor estetico e recreativo

modalidades de igarapés

tecnica

utilidade

Res

post

as O

btid

as

Respondentes (%)

Gráfico 10 – Categorias perceptivo-representativas da descrição física dos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

Observa-se, à mercê dos dados obtidos, que uma qualidade circunstancial, não-

natural, é tida como inerente à coisa, isto é, os igarapés da cidade passam a ser percebidos, em

sua realização espacial, indissociavelmente ligados aos danos que lhes sobrevieram como se

atributos fossem, em razão da desmedida intervenção humana no meio ambiente que, ao

modificar radicalmente o lugar, destituindo-lhe de seus significados, deu-lhe conceito novo.

Na cidade, a percepção dos indivíduos não apreende “igarapé”, mas “igarapé-poluído”.

Outra manifestação do mesmo fenômeno pode ser encontrada nas respostas, dentro

do mesmo subconjunto, que descrevem os igarapés da cidade pelas técnicas neles aplicadas.

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Invariavelmente, depois de uma intervenção técnica num igarapé, pouco ou quase nada resta

de seu conjunto original de signos que lhe dá a conformação de lugar, passando a constituir,

desse modo, um não-lugar, para empregar um termo usado por Lecione (1999). As “avenidas

de fundo de vale” e a “canalização de igarapés” estão entre as técnicas mais ocorrentes em

Manaus. Assim, algumas “descrições” deram como elementos típicos de igarapé “as laterais

de pedra, cimento e ferro” ou o definiram “como se fosse um ‘rip-rap’... sem mato”,

delineando um claro processo de naturalização da técnica. Os igarapés são apresentados da

mesma forma nos mapas mentais já analisados: o igarapé é registrado em confusão com o

nome da técnica utilizada pela ação de governo para transformá-lo.

Anthony Giddens contribui para o desvendamento desse processo quando explica:

Nossa sociedade vive após o fim da natureza. O fim da natureza não significa, obviamente, que o mundo físico ou os processos físicos deixam de existir. Significa que poucos aspectos do ambiente material que nos cerca deixaram de ser afetados de certo modo pela intervenção humana. Grande parte do que costumava ser natural não é mais completamente natural, embora nem sempre possamos saber ao certo onde termina uma coisa e começa outra (GIDDENS, 2000, p.37, grifo nosso).

Disso pode ter resultado a confusão manifestada pela grande maioria para delinear,

numa frase, o ambiente físico dos igarapés. Assim, predominou nas respostas a utilização de

termos que dão conta da situação em que se encontram atualmente os igarapés: “poluídos”,

“sujos”, “cheios de lixo” e “com mau-cheiro”. Em outras palavras, a descrição física dos

igarapés é integralizada por suas características topofóbicas na percepção dos indivíduos.

Impossível enganar os sentidos diante do nível de degradação dos igarapés de

Manaus. A observação pessoal, diária e direta, e a experiência com os igarapés são

irremediavelmente marcadas pelo mau-cheiro e pela visão do entulho acumulado no leito

desses cursos d’água. É a experiência direta com o meio definindo sentimentos e valores.

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Não se pode, diante desse quadro, exigir uma postura de proteção, respeito e afeto

em relação aos igarapés se a experiência diária com eles construiu cotidianamente

sentimentos de aversão e repugnância. O fenômeno perceptivo, nomeadamente no campo

ambiental, não pode ser desvinculado da vida cotidiana das pessoas, porque é o homem quem

percebe e vivencia as paisagens e os lugares, atribuindo-lhes significados e valores.

3.10 PRESERVAÇÃO

Para conhecer o conceito de preservação dos sujeitos e investigar a tendência dessa

atitude, perguntamos: você quer que seus filhos e netos conheçam os igarapés? As respostas a

essa pergunta evidenciaram uma forte atitude positiva, com a ampla maioria dos sujeitos

(56%) respondendo-a afirmativamente sem ressalvas.

No conjunto dos relatos, nota-se uma certa unanimidade com os respondentes

considerando ser extremamente importante que as próximas gerações conheçam os igarapés

limpos (19,2%), como bem ilustra o relato: “Quero que conheçam os igarapés bonitos”

(O.S.S., aluno de escola pública, 16 anos, morador há 16 anos do bairro de Petrópolis). A

ressalva que certo grupo fez foi em relação ao estágio atual de degradação dos igarapés, esses

eles não querem que seus netos conheçam, apenas os limpos.

Uma análise atenta dos relatos nos permite apreender importantes pistas acerca da

concepção de natureza predominante e da noção de preservação dos respondentes.

Observamos uma forte compreensão de que o homem e a natureza são distintos e independes

e que o meio natural está a serviço da sociedade. Para os respondentes não há uma

interdependência entre a vida humana e o meio natural. Talvez por isso tenha sido difícil para

um grande número dos respondentes justificar a necessidade de preservar os igarapés para as

futuras gerações. Os que tentaram justificar a necessidade de preservar os igarapés deixaram

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transparecer o caráter contemplativo da natureza ou no máximo o valor de uso recreativo e

mais raramente se ressaltou o valor afetivo e estético.

Avaliamos ser difícil defender algo que não se compreende plenamente e cuja

importância não se consegue precisar.

O grupo (12%) dos que afirmam que “não querem que seus filhos e netos conheçam

os igarapés” parece não considerar ou não acreditar na possibilidade de uma recuperação dos

cursos d’água dado o alto grau de degradação em que se encontram. A situação é encarada

como definitiva. Os que justificaram suas respostas negativas declararam que os igarapés

representam um perigo ou algo merecedor de vergonha, por isso, as futuras gerações não

devem conhecê-los. Os relatos a seguir são ilustrativos dessa posição: “eu não quero que meu

filho veja essa imundice” (L.V.N., 18 anos, morador do bairro de São Francisco); “... se as

crianças caírem na água podem morrer” (V.T.S., 19 anos morador do bairro de Dom Pedro).

Há um grupo minoritário (3,6%) que demonstra pessimismo, afirmando não

acreditar na possibilidade de que seus filhos e netos possam conhecer algum igarapé.

Sem Resposta5%

Não12%

Sim83%

Gráfico 11 - Percepção dos entrevistados sobre a preservação dos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

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3.11 TOPOFILIA

À luz dos dados, é permitida a conclusão de que os jovens entrevistados não mantêm,

em relação aos igarapés, uma relação de apreciação visual ou estética, estando inteiramente

afastada a possibilidade de fruição dos cursos d’água que riscam a cidade como meio de lazer

e entretenimento, uma vez que predomina na mente da maioria dos entrevistados a imagem de

um ambiente sujo, cheio de lixo e com forte mau cheiro.

Isso nos remete à idéia segundo a qual a apreciação da paisagem torna-se mais

pessoal e duradoura quando somada a lembranças de episódios humanos (TUAN, apud DEL

RIO, 1999). Sem memória, ou qualquer registro de um contado físico prazeroso com o

ambiente dos igarapés, alguns jovens duvidam que algum dia as águas já foram limpas, com

peixes, e representaram concorridos meios para atividades de lazer.

Ao que parece, os jovens não têm muito que apreciar nos igarapés, dadas as

condições em que se encontram. A respeito do que mais apreciam nos igarapés, um grupo dos

jovens entrevistados simplesmente respondeu: “nada” (19,9%). Em alguns casos, registrou-se

a ressalva de que a falta do que apreciar ocorria apenas em relação aos igarapés poluídos da

cidade. O que está em perfeita harmonia com as respostas já obtidas e que dão conta da

percepção dos jovens entrevistados dos igarapés

Outra parcela significativa dos respondentes considerou os igarapés limpos como

dignos de apreciação, ressaltando suas “águas limpas e geladas” como fator de construção de

uma relação prazerosa. Também foram fortemente apresentados como aspectos apreciados “as

corredeiras”, “o banho”, “a pesca” e a “bonita paisagem”. O igarapé limpo e conservado é

identificado como lugar e paisagem que inspiram os mais altos sentimentos topofílicos, com

ênfase ao valor estético, recreativo e ecológico (67,5%).

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Valor Estético, Recreativo e Ecológico

67,5%

Nada19,9%

Sem Resposta12 %

Topofobia0,6%

Gráfico 12 – Categorias perceptivas de valoração dos igarapés. Manaus, AM. Brasil. 2004.

A gravidade da situação dos igarapés em Manaus revela um verdadeiro

“hidrocídio”, emprestando termo utilizado por Oswaldo Bueno Amorim Filho, referindo-se

ao estado de degradação dos recursos hídricos em Minas Gerais (DEL RIO, 1999).

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CAPÍTULO IV 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cada dia, o Planeta torna-se um lugar inabitável para as pessoas. Ao longo das

últimas décadas, um conjunto de ações agressivas em relação ao ambiente provocou o

rompimento do equilíbrio de ecossistemas. Primeiramente, em dimensões locais;

posteriormente, alcançando escala planetária.

Movido pela insaciável necessidade de produzir, o sistema econômico avança sobre

os estoques de recursos energéticos, que estão sendo explorados até a exaustão, conduzindo a

um processo de entropia de ritmo vertiginoso que se apresenta na forma de efeito estufa,

rompimento da camada de ozônio, desertificação, desequilíbrios climáticos, extinção da

biodiversidade, poluição e contaminação da água, do ar e do solo.

As cidades são espaços que materializam o modelo econômico norteado pelo

desperdício, pela abundância e pelo consumismo, que beneficia apenas os economicamente

aptos ao desfrute, diminuindo as chances das futuras gerações. E como nenhum outro

ambiente, as cidades refletem as contradições, as distorções e as perversidades do sistema.

As populações citadinas experimentam diariamente o desconforto provocado por

um sistema que tem a cidade como espaço que está em primeira escala a serviço do capital

destinado à circulação de bens, mercadorias e mão-de-obra. As cidades transformam-se em

espaços humanamente desvalorizados, reduzidos à sua função.

Para uma cidade ganhar status de capital, metrópole regional ou megalópole precisa

possuir shoppings, aeroportos, viadutos, rodovias e outros equipamentos urbanos necessários

ao seu desenvolvimento. Itens como arborização, calçamento, saneamento básico, coleta e

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tratamento de esgotos, destinação adequada ao lixo produzido, acesso à água encanada e

preservação dos mananciais não são aspectos considerados tão relevantes.

É comum que manauaras demonstrem grande indignação quando se deparam com a

impressão, manifestada por estrangeiros e mesmo por brasileiros de outras regiões, de que

Manaus é um lugar onde jacarés e onças passeiam pelos quintais e em cujos arredores habitam

tribos indígenas. Ao contrário de dar interpretação pejorativa a essa percepção e sentir-se

ofendido, o amazonense poderia atribuir-lhe sentido de reconhecimento de uma forma de

existência harmônica com o meio ambiente, para orgulhar-se de ser povo da floresta.

Infelizmente, o legado indígena marcou apenas a nossa tez. A nossa alma foi

marcada pelos valores da cultura exógena, fundamentada, entre outras coisas, na idéia de s

uperioridade sobre a natureza que caracterizou e caracteriza a lógica de expansão da cidade de

Manaus, determinando a fulminante degradação das áreas florestais urbanas e o aterramento

dos igarapés em nome de uma concepção alienígena de progresso e bem estar.

Esses valores antiecológicos assimilados no processo ainda latente de colonização

tornaram a realidade manauara bem diferente da idealização de que aqui só tem índio. Manaus

é uma cidade encravada na floresta amazônica, mas que desconhece cotidianamente o seu

berço. O meio urbano não acolhe o manauara porque não o reconhece. A cidade, de

inspiração iluminista, parece comportar-se como célula que rejeita o que não identifica. É uma

cidade erguida contra os pobres e pelos conflitos gerados nesse poço de excludência e

desigualdade. É incessante a disputa por espaço para morar, caminhar e trabalhar, explicada,

em parte, pela velocidade e violência do processo de urbanização que ocorreu em Manaus,

que não permitiu uma adaptação gradativa da população às regras da vida urbana.

No discurso de agentes do governo, a conduta dos manauaras de não valorizar os

igarapés e outros patrimônios da cidade resume-se a uma questão cultural. A deposição de

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lixo nos, a depredação de patrimônios públicos, são aspectos aparentes de um problema que

envolve dimensões históricas, econômicas, sociais e inclusive de percepção do espaço.

Em um jornal de circulação local estava escrito como legenda de uma imagem que

mostrava o lixo flutuando nas águas: “População dos igarapés convive harmoniosamente com

o lixo depositado no leito dos mananciais”. Essa visão que coloca os moradores como

responsáveis tem sido aceita pela população manauara e reforçada pelos meios de

comunicação e por agentes públicos em discursos que responsabilizam essas populações pelas

toneladas de lixo que são retiradas dos igarapés que drenam a cidade.

Nossa pesquisa abril a oportunidade a uma parte da população, moradora ou não das

margens dos igarapés, de esclarecer qual o sentimento que tem em relação a esses igarapés.

Recolhemos um aspecto significativo e pouco investigado que é a percepção da população a

respeito de um dos problemas que tanto incomoda nossa cidade.

Nossas conclusões pretendem contribuir para elaboração de políticas ambientais e no

planejamento de programas de educação ambiental para nossa cidade e mesmo para nosso

Estado. Visto que a melhor maneira de evitar os danos ambientais é se antecipar a eles.

Esta pesquisa nos permitiu compreender a percepção de jovens manauaras em

relação aos igarapés e nos deu a oportunidade de observa também a percepção dos limites

espaciais e a interação com espaço que compreende o bairro.

Na análise dos mapas mentais concluímos que: no tocante à percepção dos limites

espaciais, a maioria dos respondentes estabelece como bordas do bairro onde mora apenas a

área compreendida por seus movimentos habituais. O bairro, portanto, restringe-se na

memória à espacialidade cotidiana fixada pelo indivíduo, na qual ele realiza sua existência

comunitária.

Foi possível também detectar que há uma baixa interação dos jovens entrevistados

com o espaço do bairro. Há, de modo geral, um desconhecimento acerca do meio onde

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habitam. A maioria dos mapas mentais não apresenta detalhes sobre o local onde moram os

respondentes. Os limites dos bairros também não são identificados, e os igarapés, mesmo

estando nas áreas de circulação diária, não são identificados.

Esses resultados nos fizeram pensar que talvez a artificialidade na condução desses

processos que determinam o nome das ruas e os limites dos bairros possa em parte explicar o

desconhecimento demonstrado pelos respondentes em relação aos limites do bairro. A

comunidade não é auscultada, não é uma prática dos órgãos públicos oportunizar a

participação dos moradores para realizar mudanças de qualquer natureza no espaço. Isso

associado à ausência de espaços destinados ao lazer, lugares com valor estético como parques,

praças, somado a inexistência de calçadas para uma circulação segura pelo bairro e a sujeira

das ruas criam sérias dificuldades para ampliar a interação dos moradores com o bairro.

As cidades carecem de uma boa imagem ambiental, de um ambiente característico e

legível que ofereça segurança e que reforce a profundidade e a intensidade potenciais da

experiência humana (LYNCH, 1997).

O espaço urbano se reproduz sem considerar as vontades, os desejos, as idéias

enfim, o que as pessoas sentem. A relação das pessoas é regida pelo sentimento de impotência

diante da cidade. O morador não se reconhece como elemento responsável pela produção do

espaço urbano, que é produzido em função de finalidades estranhas às necessidades dos

indivíduos e distantes de suas aspirações e utopias produzindo um espaço alienante, sem

identidade entre sujeito e obra (CARLOS, 1994:63).

Como fortalecer a identidade dos jovens com o bairro e com a cidade. Ou mesmo

como desenvolver uma consciência sobre a necessidade de preservação ambiental sem a

constituição de uma experiência ambiental.

A baixa interação dos jovens entrevistados com espaço do bairro também torna

difícil a compreensão do espaço urbano como meio ambiente, pois, apesar de próximo, é

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pouco vivenciado e compreendido. E conforme Tuan “espaços não-conhecidos são espaços

não-amados”. O espaço urbano é alheio, não pertence ao simples morador da cidade, pois não

há um cidadão maduro e ciente dos seus direitos.

Os espaços de diversão como cinemas, teatros, praças, parques, clubes estão todos

localizados distantes do bairro. Em Manaus, muitas dessas alternativas estão encasteladas em

shoppings e o acesso ao lazer, como bem de consumo é determinado de acordo com o papel

de cada indivíduo dentro do processo produtivo da sociedade. O acesso não está ligado a

proximidade ou não do espaço de lazer. Alguns de nossos shoppings fazem fronteira com

áreas de igarapés, ocupadas por famílias extremamente humildes e isto de forma nenhuma

facilita a possibilidade de freqüentá-lo.

As políticas públicas deveriam investir no planejamento de espaços de lazer antes

que todas as áreas, inclusive as margens de igarapés, fossem ocupadas. A área do Centro

Social Urbano do Parque dez que atrai a comunidade é um exemplo de sucesso e que talvez

um modelo que indica um caminho para evitar a destruição de ecossistemas importantes para

garantir mais saúde e bem estar a população. É necessário pensar que é possível aliar um

urbanismo de inspiração humanista a sólidas bases técnicas, na elaboração de propostas de

organização ambiental da cidade.

No entanto, a condução de um processo de construção de uma cidade ecológica,

mais humana tem como condição fundamental o envolvimento de cidadãos capazes de

conduzir o destino das cidades. Para isso, será necessário superar a herança de um estado que

alcançou o desenvolvimento econômico em detrimento da noção de direitos políticos e de

direitos individuais e que priorizou a ampliação do consumo enquanto o exercício da

cidadania era amputado (Santos, 1996).

A vida coletiva e a formação do caráter dos indivíduos são fortemente influenciadas

pelo consumo que age como verdadeiro ópio dos povos na sociedade atual, enfraquecendo a

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noção de individualidade que constitui um dos alicerces da cidadania e simultaneamente

fortalecendo um individualismo feroz. Em vista disso, nossas cidades configuram-se, em sua

maior parte, em espaços sem cidadãos. São áreas desprovidas de serviços essenciais à vida

social e do individual. A percepção do espaço, na sociedade atual, torna-se parcial e truncada.

Já que ao mesmo tempo em que é mundializado nos aparece como um espaço fragmentado.

Considerando a experiência dos entrevistados, foi possível concluir que: na cidade,

o igarapé não é compreendido como elemento natural que precisa ser preservado. Os jovens

acreditam que seus bairros seriam mais valorizados se os igarapés desaparecessem. Os

serviços ambientais prestados pelos atuais canais de drenagem desnaturalizados (igarapés)

não são percebidos. Mesmo morando numa cidade que no período das chuvas sofre com um

enorme volume de água que precisa ser escoada.

Não se compreende o termo “igarapé” genericamente. Na cidade, os igarapés são

elementos de topofobia. Isso nos revela uma contradição pois, quando os jovens afirmam não

apreciar nada nos igarapés da cidade eles na realidade estão ressaltando que igarapé bom é

igarapé limpo.

Mas apesar da escalada de destruição dos igarapés da cidade não destruiu nos

indivíduos da faixa etária caracterizadora do universo desta pesquisa a idéia de igarapé como

vetor de entretenimento e lazer.

O fato dos igarapés limpos aparecerem com forte valor recreativo parece indicar que

para esses jovens respondentes o banho de igarapé ainda constitui uma forma de

entretenimento, uma alternativa de lazer que pode ser buscada em sítios afastados da cidade.

As políticas públicas de lazer deveriam investir em áreas para práticas recreativas,

privilegiando a construção de piscinas naturais como mecanismo de fortalecer os laços

identitários e de sentimentos topofílicos. Essa alternativa ajudaria a tornar mais acessível a

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experiência deliciosa do banho de igarapé em piscinas naturais com águas limpas e correntes.

Em vez de construir clubes com piscinas com altos custos na manutenção com base em

produtos químicos.

Compreender que os jovens entrevistados percebem os igarapés da cidade como

esgotos, valas fétidas que não merecem ser preservadas e que enfeiam a cidade é fundamental

para alinhar o discurso de ambientalistas, educadores ambientais e agentes do governo na

abordagem aos indivíduos que são alvo das campanhas e programas ambientais. Pode tornar-

se extremamente improdutivo estabelecer um diálogo com a comunidade sem reconhecer a

percepção que ela tem acerca do objeto que será foco de uma ação que pretende sensibilizar e

estabelecer uma parceria com a população para preservação ambiental.

O fracasso de algumas iniciativas pode estar no fato dessas ações partirem da

premissa de que todos compreendem a importância ecológica dos igarapés, quando na

realidade, dado o grau de agressão que esses cursos d’água sofreram, na cabeça de alguns

indivíduos estes não podem nem ser chamados de igarapés. Agir assim é apostar num diálogo

esquizofrênico em que o ambientalista ou educador ambiental fala da importância ecológica

de igarapés enquanto os moradores enxergam uma vala cheia de lixo e lama.

É necessário reconhecer que há diferenças na percepção de quem tem um contato

direto, cotidiano e prolongado com determinada paisagem e os que tem um relacionamento

indireto e esporádico. Essa dualidade no experienciar uma paisagem diretamente vivida e não-

vivida deve considerada nos projetos ou programas de educação ambiental. Investigar a

percepção permite compreender as atitudes de um determinado grupo que envolve um

conjunto organizado de sentimentos e experiências, que influenciam a conduta individual e de

grupo.

As ações educativas elaboradas pelos órgãos públicos deveriam considerar o valor

recreativo que os jovens demonstram em relação aos igarapés não poluídos como ponto de

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partida e tentar esclarecer os serviços ambientais que os igarapés mesmos poluídos prestam ao

ambiente. Uma ação educativa deve traçar estratégias para conduzir para a superação da visão

de que os igarapés poluídos não servem para nada e que devem ser eliminados do ambiente. É

um exercício de convencimento, já que, a conservação de qualquer meio é sempre sinônimo

de respeito adequado ao patrimônio natural e pode ser considerada como a grande força

modeladora, por meio de ações, escolhas e condutas quanto ao uso desse meio ambiente.

Eliminar o igarapé, em nome de um pseudoprogresso, produz a extinção de uma

prática cultural: o “banho de igarapé”. Outro argumento importante é o esclarecimento acerca

da importância dos igarapés como patrimônio cultural e que quando eles são eliminados parte

do que nós somos também é destruído. Aquilo que nos diferencia e reforça nossa identidade

deve ser alvo de investimento.

Na categoria utilidade dos igarapés, mostrou-se interessante o confronto entre

duas concepções utilitaristas opostas: uma concepção de utilidade vinculada a um valor de uso

de natureza difusa, em que os beneficiários não podem ser individualizados. Outra que

atribuiu aos igarapés uma propriedade prático-utilitarista negativa, segundo a qual se revela

uma visão de que o útil é o bom para o indivíduo unitariamente. Os respondentes não

conseguiram ressaltar os serviços ambientais que os igarapés oferecem ao ambiente. Nem

mesmo relacioná-los a água como elemento essencial à vida. As campanhas de educação

poderiam esclarecer sobre os benefícios oferecidos a população, direta e indiretamente, com o

funcionamento desses ecossistemas aquáticos principalmente nas áreas urbanas.

As cidades não podem continuar como parasitas da biosfera como observa Odum

(1971) os ecossistemas naturais que estão dentro dos limites da cidade podem contribuir para

a saúde pública e aumentar a qualidade de vida dos cidadãos urbanos, melhorando a qualidade

do ar e reduzindo ruídos. As previsões são de que, até 2030, mais de 60% da população

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mundial estará vivendo nas cidades. Manaus já vive está realidade de um acelerado processo

de urbanização e nós não podemos desprezar nossos ecossistemas naturais como fontes para

obtenção de maior conforto na vida na cidade.

A respeito da proteção dos igarapés concluímos que: a principal estratégia para

cuidar dos igarapés resume-se a “não jogar lixo neles”. Vemos dois sérios problemas neste

aspecto. O primeiro, diz respeito ao fato de que a poluição dos igarapés é resultado do

lançamento sem qualquer tratamento de efluentes domésticos e industriais direto nos cursos

d’água que drenam a cidade. Portanto, não se pode falar em limpeza dos igarapés sem corrigir

a principal fonte de poluição, o inexistente sistema de tratamento esgotos. As intervenções

públicas conseguiram, até o momento, sanear os igarapés (na linguagem utilizado pelo poder

público) por meio da aplicação da técnica transformando os igarapés em canais de drenagem

urbanizados. Outro problema desta visão em que domina a compreensão segundo a qual a

proteção e/ou recuperação dos igarapés da cidade podem ser obtidas pela simples retirada do

lixo em suspensão. É que o lixo encontrado nos igarapés é facilmente associado ao fato de as

margens estarem ocupadas e as campanhas de limpeza divulgam a idéia de que a simples

retirada do lixo dos leitos dos igarapés é suficiente para protegê-los, apresentando para a

sociedade os moradores das margens como culpados pelo dano ambiental. As campanhas ou

projetos de educação ambiental estão sempre voltados para atingir, essa população ribeirinha

numa tentativa de conscientizá-los da necessidade de não poluir os igarapés.

Quanto à visão de proteção também observou-se que essa compreensão segundo a

qual a proteção e/ou recuperação dos igarapés da cidade podem ser obtidas pela simples

retirada do lixo neles depositado, coincide com a proposta central das recentes campanhas

veiculadas exaustivamente na mídia pelo Poder Público.

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Quanto à visão de responsabilidade em relação aos igarapés: revelou-se nas respostas

uma linha normatizada segundo a qual os responsáveis seriam as autoridades e, de modo

geral, toda a sociedade. No entanto, no âmbito do termo “toda a sociedade”, estabeleceu-se

um escalonamento da responsabilidade de cuidar, apontando para os moradores das margens

dos igarapés a principal parcela de obrigação.

Quanto ao risco que os igarapés representam: a ampla maioria dos entrevistados

associou os igarapés à contaminação e à possibilidade de contrair doenças. Em número

expressivamente menor, foram citados riscos relacionados à morte por afogamento e

acidentes; às enchentes e ao desabamento de casas; à poluição, genericamente, e à poluição

visual; e à possibilidade de os igarapés desaparecerem.

O conceito de risco passou por uma transição: da idéia de risco associado ao perigo ou

infortúnio para a de risco fabricado pelo impacto do crescente conhecimento humano sobre o

mundo. Ou seja, hoje o risco liga-se a eventos ativamente avaliados em relação a

possibilidades futuras, tais como a incidência de doenças e de mortes advindas da péssima

qualidade das águas dos igarapés.

Os igarapés da cidade passam a ser percebidos, em sua realização espacial,

indissociavelmente ligados aos danos que lhes sobrevieram, como se atributos fossem, em

razão da desmedida intervenção humana no meio ambiente que, ao modificar radicalmente o

lugar, destituindo-lhe de seus significados, deu-lhe conceito novo. Na cidade, a percepção dos

indivíduos não apreende “igarapé”, mas “igarapé-poluído”.

Os entrevistados descrevem os igarapés da cidade pelas técnicas neles aplicadas.

Invariavelmente, depois de uma intervenção técnica num igarapé, pouco ou quase nada resta

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de seu conjunto original de signos que lhe dá a conformação de lugar, passando a constituir,

desse modo, um não-lugar, delineando um claro processo de naturalização da técnica.

A respeito do conceito de preservação dos sujeitos: os respondentes

consideraram ser extremamente importante que as próximas gerações conheçam os

igarapés limpos.

Quanto à topofilia: o igarapé limpo e conservado é identificado como lugar e paisagem

que inspiram os mais altos sentimentos topofílicos, com ênfase aos valores estético, recreativo

e ecológico. O igarapé é tipificado como um dos principais transtornos à qualidade de vida na

comunidade. O igarapé “urbano” não é compreendido como um patrimônio cultural ou natural

que deva ser preservado. Ao contrário, a compreensão corrente aponta para a idéia de que,

sem a presença incômoda do igarapé, o bairro seria mais valorizado.

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ANEXOS

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ANEXO 1

UFAM

Universidade Federal do Amazonas Centro de Ciências do Ambiente

Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - PPG/CASA

Centro de Ciências do Ambiente

IDENTIFICAÇÃO

Escola:__________________________________________________________________ Nome:___________________________________________________________________ Idade:_________________________Série:_____________________________________ Mapa Mental

Desenhe um mapa do seu bairro. Desenhe-o como se fosse para um estranho, incluindo todas as características principais.

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ANEXO 2

UFAM

Universidade Federal do Amazonas Centro de Ciências do Ambiente

Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - PPG/CASA

Centro de Ciências do Ambiente

1. O Bairro 1.1 Qual o nome do bairro em que você mora? 1.2 Há quanto tempo você mora neste bairro? 1.3 Quais as coisas do seu bairro das quais você mais gosta? 1.4 Relacione as coisas do seu bairro das quais você não gosta? 1.5 Se você pudesse construir algo no seu bairro o que seria? 1.6 Se você pudesse fazer algo desaparecer do seu bairro, o que seria?

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UFAM

Universidade Federal do Amazonas Centro de Ciências do Ambiente

Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - PPG/CASA

Centro de Ciências do Ambiente

2. O Igarapé 2.1 O que primeiro lhe vem à mente quando você ouve a palavra “igarapé”?

2.2 Em termos gerais, como você descreveria fisicamente os igarapés?

2.3 Para que servem os igarapés? (Utilidade)

2.4 Como cuidar dos igarapés? (Proteção)

2.5 Quem deve cuidar dos igarapés? (Responsabilidade)

2.6 Você quer que seus filhos e netos conheçam os igarapés? (Preservação)

2.7 O que você mais gosta/aprecia nos igarapés?

2.8 Você associa algum risco aos igarapés? Qual? (Risco)

2.9 Como você gostaria que fossem os igarapés?

2.10 Como o igarapé interfere na paisagem do seu bairro?

2.11 O seu bairro seria melhor ou pior sem o igarapé? Por quê? (Valor)