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LICÕES SOBRE O CAPÍTULO VI (INÉDITO) DE MARX Cláudio Napoleoni Tradução de Carlos Nelson Coutinho DEPAR -16 ^ HISTÓRIA. MESTEADC - U F R. 5 - LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS ; Y São Paulo 1981 t-UJ

LICÕES SOBRE O CAPÍTULO VI (INÉDITO) DE MARX

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Page 1: LICÕES SOBRE O CAPÍTULO VI (INÉDITO) DE MARX

LICÕES SOBRE O CAPÍTULO VI (INÉDITO)

DE MARX

Cláudio Napoleoni

Tradução de Carlos Nelson Coutinho

DEPAR -16 ^ HISTÓRIA.MESTEADC - U F R. 5-

L IV R A R IA ED ITO R A C IÊN C IA S HUMANAS

; Y São Paulo

1981t-UJ

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Título original:LEZIONI SUL CAPITOLO SESTO INÉDITO Dl MARX

Copyright © 1972, Editore Boringhieri Società per azioni, Torino, Itália.

Capa de:RAUL MATEOS CASTELL

Direitos adquiridos para a língua portuguesa pelaLECH - LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA.Rua 7 de Abril, 264, Subsolo B - Sala 5 - São Paulo - SP - CEP 01044 Impresso no Brasil Printed in Brasil

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ÍNDICE

Advertência................................................................................................ 7Nota biográfica .............................................................................. 9lição 1 Introdução. A crítica da economia política...................... 13lição 2 Processo âe trabalho e processo de valorização.............. 26Lição 3 Digressão sobre o papel histórico do c a p ita l.................... 33lição 4 Trabalho útil e trabalho abstrato; trabalho socialmente

necessário; trabalho vivo e trabalho morto. As mistifi­cações da economia po lítica............................................... 43

lição 5 A compra-e-venda da força-de-trabalho. Capital e traba­lho assalariado........................................................................ 51

lição 6 Ainda sobre a troca entre capital e força-de-trabalho.Subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital 64

Lição 7 Mais-valia absoluta e mais-valia relativa . . ......................... 76Lição 8 As m áqu inas........................................................................... 86Lição 9 Trabalho produtivo e trabalho improdutivo .................... 96lição 10 Ainda sobre o trabalho produtivo e im produtivo............ 104lição i 1 A “produtividade” do capital. Ainda sobre o papel his­

tórico do capital.................................................................... 1125

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Lição 12 A formação da mais-valia..................................................... 120Lição 13 A exploração capitalista ..................................................... 129Lição 14 A taxa de lu c ro ................................................ .................... 138Lição 15 Valor-de-troca e preço de produção................................... 145lição 16 A história do problema da “ transformação” dosvalores-

de-troca em preços de produção.......................................... 155Lição 17 C onclusões............................................................................. 164

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ADVERTÊNCIA

As lições aqui publicadas foram ministradas na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Turim, nos meses de março, abril e maio de 1971. O texto gravado sofreu pouquíssimas reelaborações para esta publicação, e manteve por isso o caráter discursivo que é próprio de uma aula. Nem sequer foram eliminadas todas as repetições que são inevitáveis em exposições orais.

As citações foram extraídas das traduções italianas disponíveis1. Os grifos nelas existentes encontram-se todos nos textos originais.

Agradeço à Sra. Rita Rocco e à Srta. Bianca Baratto, que gravando e transcrevendo com grande cuidado as minhas lições tornaram possível esta publicação.

C.N.

i . ' 1 . Utilizei as edições brasileiras disponíveis, indicadas a seguir na “ Nota Bibliográfica” (Nota do Tradutor).

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NOTA BIBLIOGRÁFICA

As obras de Marx referidas nestas lições são citadas segundo as seguintes edições:

a) Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, em Opere Filoso- fiche Giovanili, tradução de G. Della Volpe (Editori Riuniti, Roma, 1959).

b) Trabalho Assalariado e Capital, ed. brasileira, sem indicação de tradutor, in Marx-Engels, Obras Escolhidas (Editorial vitória, Rio de Janeiro, 1956, vol. 1, pp. 59-92).

c) Lineamentos Fundamentais da Crítica da Economia Política, ed. italiana dos Grundrisse, trad. de E. Grillo (La Nuova Italia, Firenze, 1968-1970, 2 vols.).

d) Para a Crítica da Economia Política, ed. brasileira, trad. de J. A. Giannotti e E. Malagodi, in “Os Pensadores” (Editora Abril Cultural, São Paulo, 1974, vol. XXXV: “Marx” , pp. 107-263).

e) Teorias sobre a Mais-Valia, ed. italiana, vol. 1, trad. de G. Giorgeti (Ed. Riuniti, Roma, 1971); vol. 2, trad. de L. Perini (Ed. Riuniti, Roma, 1973).

f) O Capital, ed. brasileira, trad. de Reginaldo de Sant’Anna (Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968-1974).

g) O Capital. Livro I, capítulo VI (inédito), ed. brasileira, trad. de Eduardo Sucupira Filho (Ciências Humanas, São Paulo, 1978).

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É importante ter presente a sucessão temporal dos escritos de Marx (que nasceu em 1818 e morreu em 1883) para poder dar a cada um deles a colocação que lhe cabe no processo de formação da teoria marxiana do capital. Sobre isso, tenha-se presente o seguinte:

1) Os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 são fragmentos de um manuscrito mais amplo, que se perdeu, redigido por Marx em 1844 em Paris, como primeiro resultado dos estudos de economia que empreen­dera na e'poca. Foram publicados pela primeira vez em 1932.

2) O opúsculo Trabalho Assalariado e Capital foi escrito sobre a base de algumas conferências pronunciadas por Marx em 1847, na Associação dos Operários Alemães de Bruxelas. Publicado pela primeira vez em 1849.

3) Entre julho de 1857 e março de 1858, Marx redigiu um volu­moso manuscrito, que pode ser considerado como a primeira redação de O Capital. Permaneceu desconhecido, com toda probabilidade, do próprio Engels; foi publicado em Moscou, entre 1939 e 1941, e, dada a natureza desse período, não teve praticamente difusão no Ocidente, até ter conhe­cido uma nova edição em 1953, em Berlim. Na versão italiana, o título dessa obra é Lineamentos Fundamentais de Crítica da Economia Política (as palavras “lineamentos fundamentais” traduzem o termo alemão Grundrisse, com o qual esse escrito é freqüentemente citado também em italiano).

4) Fruto do trabalho desses mesmos anos é o livro Para a Crítica da Economia Política, publicado por Marx em 1859. Contém a exposição das categorias da mercadoria e do dinheiro, dois assuntos que serão retomados no Livro I de O Capital.

5) Entre agosto de 1861 e junho de 1863, Marx redigiu — conforme a informação prestada por Engels no Prefácio ao Livro II de O Capital — um manuscrito de 1.472 páginas, com o título geral de “Para a Crítica da Economia Política” , que deve ser considerado como o prosseguimento do livro de mesmo título publicado em 1859. Sempre de acordo com o testemunho de Engels, esse manuscrito contém: a) assuntos depois tratados no Livro I de O Capital (Engels diz que essa é a primeira redação do Livro I, o que leva precisamente a pensar que ele não conhecia os Grundrisse)', b) assuntos depois tratados no Livro III de O Capital (capital e lucro, taxa de lucro, capital comercial e monetário); c) uma história do pensamento econômico, com o título “Teorias sobre a Mais-Valia” , que Marx concebera como Livro IV de O Capital. De todo esse material, foi publicado apenas, por K. Kautsky, entre 1905 e 1910, o manuscrito relativo às Teorias sobre a Mais-Valia, que correspondem mais ou menos à metade do manuscrito completo. Na preparação para publicação, Kautsky introduziu modificações e alterações bastante graves no manus­

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crito; uma edição crítica, que restabeleceu o texto em sua íntegra, foi publicada na URSS em 19561.

6) Um outro manuscrito, dos anos 1864-1865, forneceu a Engels o material para o Livro III de O Capital, publicado por ele em 1894.

7) Logo após ter concluído o referido manuscrito, Marx preparou para impressão o Livro I de O Capital, que foi publicado em 1867.

8) Do matérial utilizado para a publicação do Livro I, Marx excluiu um caderno intitulado “Primeiro Livro. O Processo de Produção do Capital. Sexto Capítulo. Resultados do Processo de Produção Imediato” . Esse Capítulo VI (inédito) foi publicado na URSS, em 1933.

9) Outros manuscritos de Marx, redigidos em 1870 e 1878, foram utilizados por Engels pára a publicação do Livro II de O Capital, que saiu em 1885.

Para posteriores leituras sobre os assuntos tratados nestas lições, podem-se consultar as seguintes obras:

1. Uma exposição elementar da teoria econômica de Marx é a de Paul M. Sweezy, A Teoria do Desenvolvimento Capitalista (ed. brasileira, trad. de Waltensir Dutra, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1962). A edição italiana (Boringhieri, Turim, 1970) contém também, como apêndices, as contribuições mais importantes ao problema da “transformação” (J. Winternitz, R. L. Meek, M. Dobb, F. Seton).

2. Ainda sobre o problema da “transformação” , os escritos do primeiro autor que se ocupou dele — L. von Bortkiewicz — encontram- se agora em italiano, com o título La Teoria Economica di Marx (Einaudi, Turim, 1971), aos cuidados de L. Meldolesi, do qual recomenda-se a introdução: “A Contribuição de Bortkiewicz à Teoria do Valor, da Distri­buição e da Origem do Lucro” .

3. Uma boa introdução à leitura de Marx é Rosa Luxemburgo, Introdução à Economia Política (ed. brasileira, Martins Fontes, São Paulo, 1978).

4. Sobre a interpretação da teoria marxiana do valor, cf.: M. Dobb, Economia Política e Capitalismo (ed. brasileira, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1978); L. Colletti, Bernstein e il Marxismo delia Seconda Inter- nazionale, in Ideologia e Società (Laterza, Bári, 1969); L. Colletti, II Marxismo e Hegel (Laterza, Bári, 1969), parte 29, cap. 12; M. Bianchi, La Teoria dei Valore dai Classici a Marx (29 ed., Laterza, Bári, 1973).

1. A Editora Civilização Brasileira anuncia para breve uma edição integral das Teorias sobre a Mais-Valia em português, em tradução de Reginaldo de Sant’Anna e sobre a base da edição crítica (Nota do Tradutor).

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5. Um texto, escrito como comentário aos Grundrisse, mas que é— mais amplamente — muito útil para orientar-se no vastíssimo material constituído pelos escritos de Marx, é R. Rosdolsky, Genesi e Struttura dei “Capitale” di Marx (Laterza, Bári, 1971).

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Lição 1 INTRODUÇÃO. A CRÍTICA DA

ECONOMIA POLÍTICA

O presente curso será dedicado à leitura e comentário de algumas passagens relevantes do Capítulo VI (inédito) do Livro I de O Capital de Marx. Trata-se de um texto escrito por Marx por volta de 1865, e por ele não incluído no material que, em 1867, foi publicado como Livro I de O Capital. Esse Capítulo Inédito é de grande interesse porque, de maneira extremamente lúcida, contém uma espécie de resumo de quase todo o conteúdo teórico essencial do Livro I. Seu exame, por isso, permite penetrar mais profundamente na essência da argumentação de Marx, em comparação com o que aconteceria com outros textos de igual dimensão.

No curso da leitura, referir-me-ei de quando em quando também a outras passagens de Marx, extraídas principalmente dos Grundrisse (Linea­mentos Fundamentais) ou do Livro I de O Capital, de modo a comple­mentar oportunamente as coisas que irei dizendo como comentários ao Capítulo Inédito. Ademais, quando o exame desse texto estiver concluído, espero que ainda teremos tempo para dedicar algumas lições à exposição de certos problemas internos à teoria marxiana do valor, tais como elesse apresentam através do exame dos capítulos iniciais do Livro III deO Capital, aos quais também me referirei, lendo seus trechos principais.

Todavia, antes de iniciar a leitura do Capítulo VI, será oportunoque — ainda que de modo muito esquemático — eu exponha certos traços fundamentais do pensamento de Marx, apenas com a finalidade de

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introduzir algumas categorias, cujo conhecimento é pressuposto pelo texto que vamos ler. Na realidade, teremos de retornar detalhadamente a muitos desses conceitos por ocasião da leitura dos textos; e, precisamente nesse sentido, as coisas que direi nessa primeira lição têm caráter mera­mente introdutório.

O ponto do qual se deve partir é a verificação do significado que tem para Marx a “crítica da economia política” . Precisamente no Capítulo VI, na página 95, falando sobre os economistas burgueses, diz-se que eles,

“presos às representações capitalistas, [ .. . ] vêem, sem dúvida, como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se produz essa própria relação.”

Portanto, a crítica da economia política consiste para Marx em considerar a relação capitalista, o capital, não como um dado, mas como um problema. Essa colocação se encontra em Marx já nos Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, onde — na página 193 — se lê:

“Partimos dos pressupostos da economia política. Aceitamos a sua linguagem e as suas leis. Pressupomos assim a propriedade privada, a separação entre trabalho, capital, terra, e igualmente entre salário, lucro do capital e renda fundiária, assim como pressupomos a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor-de-troca, etc. Com a própria economia política, com suas próprias palavras, mostramos que o operário é degradado a mercadoria, à mais miserável mercadoria; que a miséria do operário está em relação inversa à potência e à grandeza de sua produção; que o resultado inevitável da concorrência é a acumu­lação do capital em poucas mãos e, portanto, uma restauração ainda mais espantosa do monopólio; e, finalmente, que desaparece a distinção entre capitalista e proprietário fundiário, assim como aquela entre camponês e operário fabril, com o que a inteira sociedade deve dilacerar-se nas duas classes dos possuidores e dos trabalhadores sem propriedade.

A economia política parte do fato da propriedade privada. Expressa o processo material da propriedade privada, o seu processo realizado na realidade, em fórmulas gerais, abstratas, que ela depois tenta impor como leis. Ela não compreende essas leis, ou seja, não mostra como resultam da existência da proprie­dade privada. A economia política não nos dá nenhum esclare­cimento sobre a razão da divisão entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando, por exemplo, determina a relação entre o salário e o lucro do capital, vale para ela — como razão última —

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o interesse do capitalista: ou seja, supõe o que deve explicar. Também a concorrência entra por toda parte: é explicada por meio de condições externas. De que modo tais condições externas, aparentemente acidentais, são apenas a expressão de um desenvol­vimento necessário, isso a economia política não nos diz. Vimos como a própria troca aparece-lhe como um fato acidental. As únicas engrenagens que a economia política põe em movimento são a cupidez e a guerra entre cúpidos, a concorrência”.

Em outras palavras: tudo o que a economia política pressupõe deve, ao contrário, ser explicado; a separação entre trabalho, capital e terra, as categorias do salário, do lucro e da renda, e, ademais, o valor-de-troca, a concorrência, o monopólio e assim por diante, são coisas que a economia política recolhe diretamente da realidade, colocando-se simplesmente o problema do seu funcionamento. A operação crítica de Marx consiste em investigar, antes de mais nada, a razão pela qual todas essas coisas existem, ou seja, qual é a característica essencial do processo histórico em ato, que constitui a raiz comum de todas essas categorias, e, portanto, o funda­mento daquele conjunto de relações que as constitui em sistema. Em suma, a pergunta não é: como é o capital?; mas sim: por que existe o capital?

A resposta a essa pergunta, por outro lado, forma-se em Marx a partir da reflexão sobre os resultados da economia política e, em particular, sobre.Smith e Ricardo. Portanto, convém proceder do seguinte modo: em primeiro lugar, expor como se apresentava a solução teórica da economia política no momento em que Marx a estuda; em segundo, examinar de que modo a solução que Marx encontra para os problemas que a economia política deixou em aberto é capaz de problematizar, ou seja, de historicizar. a relação capitalista.

A economia política clássica se apóia em duas proposições funda­mentais. A primeira é que a sociedade (e se trata naturalmente da sociedade capitalista, ainda que os clássicos a pensem eojno a sociedade tout court) se baseia na relação de troca, com a conseqüência ae que a explicação do valor-de-troca é o ato preliminar da explicação científica da própria sociedade. A segunda proposição é que os valores-de-troca são, de alguma maneira, vinculados com as quantidades de trabalho. Mas, na definição das quantidades de~ trabalho, das quais dependem os valores de troca, há uma diferença importante entre Smith e Ricardo. Verificar a natureza dessa diferença entre as duas teorias do valor é algo essencial, já que — como direi — a teoria do valor de Marx nasce precisamente da consideração do significado dessa diferença e coloca-se como a superação de duas formulações igualmente parciais.

Segundo Smith, o valor de uma mercadoria é a quantidade de trabalho que essa mercadoria pode adquirir. Essa teoria é conhecida

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com o nome de teoria do trabalho “comandado” , com uma tradução literal do verbo inglês command, que Smith emprega para indicar preci­samente o “comando” sobre o trabalho que o possuidor da mercadoria adquire quando, com essa mercadoria, compra trabalho. É claro que o trabalho comandado de Smith não é nada mais que o trabalho assala­riado: a aquisição de trabalho no mercado implica de fato, por um lado, um vendedor que, enquanto vendedor de trabalho, é precisamente o operário assalariado; e, por outro lado, um comprador que, enquanto comprador de trabalho, é o capitalista, para quem a venda da mercadoria tem sentido na medida em que o poder de compra assim obtido é reuti­lizado para a aquisição de trabalho. O grande mérito da teoria smithiana do trabalho comandado enquanto determinante do valor reside, precisa­mente, na referência que ela implica ao ato de troca que caracteriza a especificidade do capitalismo, ou seja, àquele ato que tem como objeto de compra-e-venda precisamente o trabalho.

Tendo-se presente que, em condições capitalistas, o valor de uma mercadoria compreende não apenas os salários, mas também o lucro (se, para simplificar, prescindimos da renda), vê-se então que — com o conceito de trabalho comandado - Smith conseguia mensurar em trabalho não apenas os salários, mas também o lucro: do trabalho global comandado por uma mercadoria, uma primeira parte, com efeito, corresponde aos salários contidos na própria mercadoria, enquanto uma outra parte corresponde ao lucro, também contido na mercadoria.

A objeção de Ricardo à teoria smithiana do valor pode ser formulada nos seguintes termos: o trabalho comandado é ele próprio um efeito da troca e, por isso, não pode ser tomado como explicação do valor-de-troca. Em outras palavras: se se pergunta “de que depende o trabalho coman­dado?” , não se consegue encontrar uma resposta no âmbito da teoria smithiana, precisamente porque o conceito de trabalho comandado insere- se no interior do fenômeno da troca, que tal conceito pretenderia explicar. É por isso que Ricardo contrapõe ao conceito de trabalho comandado o conceito de trabalho contido numa mercadoria; ou seja, contrapõe a um fato que está inteiramente na esfera da troca e da circulação um fato que é anterior a essa esfera, já que constitui uma característica do processo produtivo. Para Ricardo, portanto, a relação de troca entre duas merca­dorias coincide com a relação entre as quantidades de trabalho contidas nas próprias mercadorias. Deve-se observar que, quando se diz “trabalho contido numa mercadoria” , deve-se entender tanto o trabalho empregado diretamente na produção da própria mercadoria, quanto o trabalho contido nos meios de produção que são necessários para produzir essa mercadoria; ou seja, trata-se tanto do trabalho direto quanto do trabalho indireto contido nas mercadorias. Dessa feita, à pergunta “de que depende o trabalho contido? ” , pode-se responder fazendo referência as condições técnicas a que está submetida a produção de mercadorias em determinadas16

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condições históricas, isto é, fazendo referência ao grau de desenvolvi­mento alcançado pelas forças produtivas em determinadas condições de tempo e de espaço. Nesse sentido, a solução de Ricardo representa um passo à frente decisivo com relação à teoria de Smith. Mas, na teoria de Ricardo, há um ponto débil que a compromete gravemente. 0 ponto é este: já que nas condições capitalistas também o trabalho é uma merca­doria e, portanto, possui também um valor, será preciso determinar algo que seja o valor do trabalho; no quadro da teoria ricardiana, será preciso responder que o valor do trabalho é o trabalho contido no trabalho; mas, desse modo, desemboca-se num evidente círculo vicioso.

Nesse ponto, podemos tentar retomar os aspectos positivos e nega­tivos, tanto da posição de Smith quanto da de Ricardo. O aspecto positivo de Smith consiste no fato de que, com o conceito de trabalho comandado, ele se refere a um aspecto especificamente capitalista do mercado: o fato de que o trabalho comandado corresponda, por uma parte, aos salários e, por outra, ao lucro, é índice de uma situação especificamente capitalista, ou seja, de uma situação na qual — precisamente em virtude da presença do lucro - a quantidade de trabalho que se pode pôr em movimento, ou que se pode comandar, mediante uma mercadoria é maior do que a quantidade de trabalho que essa mercadoria exigiu para ser produzida Pode-se também dizer: se a aquisição, por parte do_ capitalista, de uma certa quantidade de trabalho permite a produção de uma mercadoria com a qual se pode depois obter uma maior quantidade de trabalho, isso significa que a troca entre capitalista e operário processa-se sob o signo de uma desigualdade de fundo; e é precisamente o fato de ter percebido essa desigualdade que faz da teoria smithiana uma representação singularmente eficaz da realidade capitalista. O aspecto negativo de Smith está no fato de que, por restar o trabalho comandado privado de expli­cação, a sua própria diferença em relação ao trabalho contido aparece como algo misterioso; e o lucro, cuja função Smith vê tão lucidamente, permanece todavia inexplicado quanto às suas origens. O mérito de Ricardo está no relacionamento, operado pela sua teoria, entre o valor e as condições de produção, mediante o conceito de trabalho contido. O aspecto negativo está no fato de que a impossibilidade de explicar — ou melhor, até mesmo de dar um sentido — ao “valor do trabalho” torna impossível, também nesse caso, explicar o lucro, já que é claro que esse último depende da cota-parte do valor global que resulta excedente com relação precisamente ao “valor do trabalho” .

O problema teórico que a economia política clássica deixava em aberto pode, então, se configurar nestes termos: encontrar o modo de ligar o valor às condições da produção, como em Ricardo, mas salvando o conceito smithiano de “troca desigual” ; desse modo, seriam conservados os dois aspectos positivos de Smith e Ricardo, ao mesmo tempo em que seriam eliminados os dois aspectos negativos.

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Essa operação teórica foi precisamente o que Marx conseguiu fazer: mas ela exigiu dele uma completa superação das categorias clássicas, a ponto de que a referida operação terminou por configurar-se, como veremos, não simplesmente como a resolução de um problema deixado em aberto, porém — mais precisamente — como a crítica radical da colo­cação geral em cujo âmbito aquele problema tinha podido tomar corpo.

O ponto de partida de Marx é precisamente a crítica do conceito de trabalho que está na base da categoria clássica do valor-de-troca. Segundo Marx (ainda nos Manuscritos, p. 196):

“A economia política oculta a alienação que está na essência do trabalho; e o faz porque não considera a relação imediata entre o operário (o trabalho) e a produção.”

Isso significa, em substância, que há — por parte da economia política — uma aceitação acrítica do trabalho nas condições em que ele se encontra historicamente; acrítica, no sentido de que o trabalho histori­camente determinado é imediatamente assumido como trabalho natural.

O ponto, então, é este: trata-se de pôr a nu o caráter mistificador da economia política, isto é, de esclarecer que o trabalho do qual ela fala, quando relaciona o valor ao trabalho, não é o trabalho enquanto tal, ou seja, o trabalho em suas determinações naturais, mas é o trabalho alienado, ou seja, o trabalho que, desenvolvendo-se numa situação histórica determinada, como a capitalista, foi transformado em algo diverso do que estaria implicado em suas determinações naturais.

Em que consiste, portanto, para Marx, essa alienação do trabalho? Em Marx, esse conceito tem uma história, que não dificilmente pode ser reconstruída, a qual — partindo dos Manuscritos de 1844 — chega até O Capital, passando pelos Grundrisse e por Para a Crítica. Não narrarei essa história, embora seja de grande interesse, por evidentes razões de tempo; limitar-me-ei a expor o conceito em sua forma mais madura, a que aparece em Para a Crítica e em O Capital.

Podemos começar com uma proposição, que presumo seja bastante conhecida, e que está no fundo da argumentação de Marx: o capital não é uma coisa, mas sim uma relação social. Já em 1847, falando à Associação dos Operários Alemães de Bruxelas (e o texto dessas conferências seria publicado dois anos depois com o título Trabalho Assalariado e Capital), Marx dizia (p. 79):

“Como então uma soma de mercadorias, de valores-de-troca, se transforma em capital?

Conservando-se e multiplicando-se, como força social inde­pendente, isto é, força de uma parte da sociedade, através de sua troca pela força-de-trabalho imediata, viva. A existência de

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uma classe que possui apenas sua capacidade de trabalho é uma condição preliminar necessária do capital.

É exclusivamente o domínio do trabalho acumulado, passado, materializado, sobre o trabalho imediato, vivo, que transforma o trabalho acumulado em capital.

O capital não consiste em que o trabalho acumulado sirva de meio ao trabalho vivo para uma nova produção. Consiste em que o trabalho vivo serve de meio ao trabalho acumulado para manter e aumentar o valor-de-troca desse último.”

Portanto, o capital pressupõe: 1) que o trabalho, a “condição subjetiva” da produção, esteja separado das condições objetivas da própria produção, ou seja, tanto da terra quanto do conjunto de meios de produção e de meios de subsistência que constituem o trabalho acumu­lado, o trabalho passado; e, portanto, que exista uma classe que nada possui além de sua simples capacidade laborativa, ou “força-de-trabalho” ;2) que essas condições objetivas da produção sejam possuídas por uma outra classe, a qual, precisamente por isso, pode comprar aquela força-de- trabalho, com a única finalidade de obter — mediante o processo produ­tivo que assim se torna possível — a conservação e o aumento do valor-de- troca em sua posse. Tão-somente nessas condições é que os meios de produção e de subsistência são capital. E torna-se claro, então, que o capital — trazido à existência por essas condições sociais — implica a inversão da relação natural entre trabalho vivo e trabalho acumulado: não se trata do fato de que “o trabalho acumulado serve ao trabalho vivo como meio para uma nova produção” , mas do fato de que “o trabalho vivo serve de meio ao trabalho acumulado para manter e aumentar o seu valor-de-troca” .

Mas de que modo, e por quê, o trabalho pode cumprir essa função de valorização? Para responder a essa pergunta, é preciso justamente verificar o que é exatamente o trabalho nas condições capitalistas.

Podemos partir da seguinte proposição, que se encontra em Para a Critica da Economia Política, nas pp. 143-144:

“O trabalho que é medido desta maneira, isto é, pelo tempo, aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho.”

Essa passagem pode facilmente ser ligada à anterior, extraída de Trabalho Assalariado e Capital.

Para Marx, o trabalho é a realização do homem, a sua “essência” . Por isso, se — como ocorre no caso do capital — o trabalho tem com o trabalho acumulado, com a coisa, uma relação invertida, já que é dominado

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por ela, é seu instrumento, então também a relação entre o homem e o seu trabalho é invertida: o homem, alienado de sua essência, não é mais o sujeito do qual o trabalho constitui o predicado essencial, mas, ao contrário, é o trabalho que foi elevado a substância independente; e os homens, em relação a ele, não são mais que simples veículos de realização, simples suportes materiais da sua explicitação. O trabalho, convertido assim numa hipóstase, é trabalho abstrato, ou seja, trabalho separado dos sujeitos, os quais, precisamente em conseqüência dessa separação, deixam de ser sujeitos e se tornam simples apêndices do que, se as coisas se processassem de outro modo, seria um atributo deles. O trabalho abstrato é evidentemente um trabalho privado de qualidades, precisa­mente porque a única fonte possível de tais qualidades seriam aquelas subjetividades que foram suprimidas; tem, por isso, uma simples dimensão quantitativa, cuja medida é o tempo.

O homem (ou seja, o operário) — na medida em que é reduzido a simples, embora necessária, base material para a realização de trabalho abstrato ou genérico, ou seja, na medida em que é reduzido a simples e indiferenciada capacidade laborativa — é força-de-trabalho.

Sobre essa base teórica, isto é, essencialmente sobre a definição do trabalho como trabalho abstrato e sobre a distinção entre trabalho e força-de-trabalho, Marx pôde chegar a conclusões decisivas para a recons­trução em sentido crítico da análise da economia capitalista. Em primeiro lugar, o trabalho abstrato não pode deixar de ter um produto adequado a si mesmo; o único produto possível do trabalho abstrato (e um produto deve existir, pois de outro modo nem mesmo se poderia falar de trabalho) é um produto igualmente genérico e abstrato, ou seja, precisamente o valor. Trabalho abstrato e valor são substancialmente a mesma coisa, vista uma vez como atividade e outra vez como resultado. A “riqueza” produzida no processo capitalista, portanto, é também ela uma riqueza genérica, uma riqueza que conta apenas por sua quantidade e não também por sua qualidade; uma riqueza, portanto, que nesse sentido é valor, e que tem — em relação aos elementos singulares que a compõem - a simples relação de um todo homogêneo com suas partes, ou seja, com os valores singulares, que não são mais do que porções desse valor global. Os valores, isto é, as objetivações de trabalho abstrato, recebem todo o seu sentido de sua recíproca substitutibilidade ou intercambialidade. De resto, a alienação da subjetividade que está na base do trabalho abstrato permite uma só espécie de sociedade, que é a sociedade na qual a relação entre os homens se resolve numa relação entre as coisas, isto é, se resolve no intercâmbio, na troca. Por isso, os valores são os produtos de uma sociedade mercantil, isto é, são necessariamente valores de mercadorias, e não podem deixar de ter a forma de valor-de-troca. O valor-de-troca, diz Marx, é a “forma fenoménica” do valor; e se trata, note-se bem, de uma forma fenoménica necessária.20

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E deve-se ter presente que tudo isso não quer dizer que a mercadoria não seja também um produto útil, um determinado valor-de-uso, capaz de satisfazer - direta ou indiretamente — carecimentos; quer dizer (e a coisa é clara, se se leva em conta a natureza do capital) que os dois aspectos da mercadoria, o que a torna um valor-de-uso e o que a torna um valor-de-troca, têm entre si a seguinte relação (como se lê no Capitulo VI, p. 21):

“O valor-de-uso do produto aparece apenas como suporte de seu valor-de-troca.”

Ora, sobre a base da distinção entre força-de-trabalho e trabalho, e, por isso, da definição rigorosa do valor e do valor-de-troca, torna-se possível resolver imediatamente o problema ricardiano: o que constitui objeto de troca entre o operário e o capitalista não é, como os clássicos pensavam, o trabalho, mas a força-de-trabalho.

A economia política não podia chegar à idéia de que a mercadoria vendida pelo operário e comprada pelo capitalista fosse a força-de-trabalho porque, obviamente (mas a coisa é óbvia só a posteriori, ou seja, depois de Marx), se se diz que o operário vende a si próprio, ainda que por um tempo determinado, vê-se também que o operário é a expropriação absoluta, é a “miséria absoluta: a miséria não como privação, mas como completa exclusão da riqueza objetiva” (Grundrisse, vol. I, p. 279). Desse modo, a economia política teria visto o que precisamente não podia ver, ou seja, que o capital é uma relação social, historicamente determinada, e não uma coisa, isto é, uma propriedade natural de todo processo produ­tivo. Referindo-se a Ricardo, diz Marx (tenha-se presente que neste texto, Teorias sobre a Mais-Valia, vol. II, p. 435, Marx designa como “capacidade de trabalho” o que depois chamaria de “força-de-trabalho”):

“Ele deveria ter falado não de trabalho, mas antes de capacidade de trabalho. Mas, com isso, o capital apareceria representado também como as condições de trabalho objetivas que se contra­põem, enquanto potência tornada autônoma, ao operário. E o capital apareceria imediatamente representado como relação so­cial determinada.”

A força-de-trabalho é a mercadoria-base da sociedade capitalista; e, como todas as outras mercadorias, tem um valor, que é o trabalho nela objetivado, ou seja, o trabalho objetivado nas mercadorias que permitem à força-de-trabalho subsistir e se reproduzir. O ponto fundamental que se deve ter presente é que o trabalho objetivado na força-de-trabalho, e que constitui seu valor, é algo inteiramente diverso do trabalho vivo que pode ser extraído daquela mesma força-de-trabalho; e todo o fundamento da produção capitalista reside no fato de que o capitalista pode extrair,

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de uma força-de-trabalho que tem um certo valor, mais trabalho do que o que está nela objetivado. Esse mais-trabalho (ou trabalho excedente) objetiva-se, portanto, numa mais-valia (ou valor excedente), que — na medida em que pertence ao capitalista — constitui o seu lucro.

Vemos então em que sentido as verdades de Smith e Ricardo podem ser conservadas à margem dos seus aspectos negativos. 0 valor é o trabalho contido e objetivado, como Ricardo pensava; mas, precisa­mente na base do trabalho contido, a origem do lucro deve ser atribuída ao caráter de desigualdade da troca capitalista, que Smith havia entrevisto; com efeito, se é verdade que o capitalista não rouba nada do operário, já que o salário corresponde precisamente ao valor do que o operário lhe vendeu, ou seja, a força-de-trabalho, é também verdade, por outro lado, que o que o capitalista extrai da força-de-trabalho, cuja disponibilidade adquiriu, é um trabalho maior do que o contido nessa força-de-trabalho. Ou seja: o que ele extrai é um valor maior do que o valor que pagou ao operário. A diferença smithiana entre trabalho comandado e trabalho contido é, em termos marxianos, a diferença entre o trabalho gerado pela força-de-trabalho e o trabalho contido na própria força-de-trabalho.

Em que medida a conquista desse ponto de vista superior coloca Marx em condições de entender e julgar os termos do problema deixado em aberto pela economia política é algo que pode ser visto no seguinte trecho das Teorias sobre a Mais-Valia (pp. 183-185), cuja leitura não apresenta dificuldades (contanto que se tenha presente a distinção entre trabalho e força-de-trabalho), e no qual se expõe em termos extremamente lúcidos a relação entre Smith e Ricardo, bem como os méritos e os demé­ritos de cada um deles. Depois de ter notado que o operário, com o salário que recebeu, apresenta-se no mercado como um comprador qualquer, visando transformar seu dinheiro em mercadorias, Marx prossegue:

“Todavia, já que ele — com o seu trabalho que se materializou no produto — não apenas acrescentou tanto tempo de trabalho quanto o que estava contido no dinheiro que recebeu, não só pagou um equivalente, mas forneceu gratuitamente mais-valia, que constitui precisamente a fonte do lucro, ele de fato (o movimento de mediação incluso na venda da capacidade de trabalho desaparece no resultado) forneceu um valor superior ao valor da soma de dinheiro que constitui seu salário. Em troca, ele comprou a quantidade de trabalho realizada no dinheiro que obteve como salário com um tempo de trabalho maior. Portanto, pode-se dizer que ele, ao mesmo tempo, compra indiretamente todas as mercadorias nas quais se resolve o dinheiro por ele adquirido (e isso não é senão a expressão independente de uma determinada quantidade de tempo de trabalho social) com um tempo de trabalho maior do que o que está nelas contido,

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embora ele as compre pelo mesmo preço que qualquer outro comprador ou possuidor da mercadoria em sua primeira transfor­mação. Ao contrário, o dinheiro com que o capitalista comprao trabalho contém uma quantidade de trabalho mais limitada, um tempo de trabalho menor, do que a quantidade de trabalho ou de tempo de trabalho do operário que está contido na merca­doria por ele produzida; além da quantidade de trabalho contida nessa soma de dinheiro, que constitui o salário, ele compra uma quantidade adicional de trabalho que não paga, um excedente sobre a quantidade de trabalho contida no dinheiro que ele desembolsou. E essa quantidade adicional de trabalho constitui precisamente a mais-valia criada pelo capital.

Mas, dado que o dinheiro com o qual o capitalista compra o trabalho (e esse é efetivamente o resultado, embora mediatizado pela troca não diretamente por trabalho, mas pela capacidade de trabalho) não é mais do que a forma transfigurada de todas as outras mercadorias, sua existência independente enquanto valor-de-troca, dado isso, deve-se também dizer que todas as mercadorias, em sua troca por trabalho vivo, compram mais trabalho do que o trabalho contido nelas. Esse excedente constitui precisamente a mais-valia.

É grande mérito de Adam Smith ter intuído, precisamente nos capítulos do Livro I (caps. 6, 7, 8) nos quais ele passa da troca simples das mercadorias e da sua lei do valor para a troca entre capital e trabalho assalariado, para o exame do lucro e da renda fundiária em geral, — em suma, para a origem da mais- valia, — é seu mérito ter intuído que, nesse ponto, ocorre uma ruptura, e (qualquer que seja a mediação através da qual ela se verifica, uma mediação que ele não compreende) que a lei é de fato abolida em seu resultado, que se troca mais trabalho contra menos trabalho (do ponto de vista do operário), menos trabalho contra mais trabalho (do ponto de vista do capitalista); e é grande mérito seu ter salientado (o que o induz a erro no que se refere à forma) que, com a acumulação do capital e com a propriedade fundiária — portanto, com a efetivação da independência das condições de trabalho em face do próprio trabalho — verifica-se aparentemente (e efetivamente no que se refere ao resultado) uma nova mudança, uma inversão da lei do valor em seu oposto. Assim como sua força teórica está em ter intuído e sublinhado essa contradição, do mesmo modo sua debilidade teórica está no fato de que isso o levou a engano no que se refere à lei geral, inclusive no que tange à troca simples de mercadorias; está em não ter compreendido como essa contradição surge do fato de que a própria capacidade de trabalho se torna mercadoria, e que

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— para essa mercadoria particular — o valor-de-uso, que nada tem a ver com seu valor-de-troca, consiste precisamente naenergia que cria o valor-de-troca. A superioridade de Ricardosobre Smith está em não se ter deixado enganar por essas contradições aparentes, mas reais quanto ao resultado. A sua inferioridade, com relação a Smith, está em não ter nem sequer intuído que aqui se coloca um problema; e, por isso, o desenvol­vimento especifico que a lei do valor sofre com a formação do capital não o surpreende e não o preocupa, nem mesmo por um instante” .

Portanto, é verdade que, com Marx, as questões deixadas sem solução pelo pensamento clássico são resolvidas. Mas é essencial terpresente que não se trata simplesmente disso, já que a resolução dessasquestões se dá — nem poderia ser de outro modo — num contexto teórico, ou seja, sobre a base de um conjunto de categorias, que implicam uma nítida superação da colocação clássica, já que todas elas são igual­mente conseqüência da proposição segundo a qual o trabalho é trabalho alienado, isto é, trabalho abstrato, e que, correspondentemente, a relação capitalista é uma relação historicamente determinada e não uma relação eterna.

Antes de iniciar a leitura do Capítulo VI, parece-me oportuno definir um conjunto de categorias que se ligam à categoria — geral — do valor.

Recordo, antes de mais nada, o ponto fundamental que destaquei há pouco: o produto do trabalho abstrato não pode deixar de ter as mesmas características de generalidade, precisamente de abstração, daquilo que o produz: por isso, esse produto é valor. Por outro lado (e também esse é um ponto sobre o qual já falei), o valor não pode ser senão valor de mercadorias, e, portanto, tem necessariamente a forma de valor-de- troca.

Toda mercadoria, portanto, na medida em que é essencialmente valor, tem um determinado valor-de-troca. E esse valor-de-troca tem três partes componentes, que resultam do que dissemos acerca da força-de- trabalho. Uma primeira parte do valor da mercadoria é constituída pelo valor da parte do capital que se destina à aquisição de meios de produção. Essa primeira parte do valor da mercadoria é chamada por Marx de “capital constante” , no sentido de que ele transmite ao produto um valor igual ao seu próprio valor. A segunda parte do valor da mercadoria é constituída pelo “capital variável” , ou seja, pela parte do capital desti­nada à aquisição de força-de-trabalho. Diz-se que é variável porque transmite ao produto não apenas seu próprio valor, mas também um valor adicional ou mais-valia, que se deve, como sabemos, ao trabalho excedente que pode ser gerado por aquela força-de-trabalho. Essa mais-24

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valia é precisamente a terceira parte componente do valor da mercadoria. De resto, veremos tais categorias empregadas no curso do Capítulo VI; e, à medida que surgir a oportunidade, daremos uma explicação mais detalhada das mesmas.

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Lição 2 PROCESSO DE TRABALHO E PMOCESSO

DE VALORIZAÇÃO

Sobre a parte inicial do Capítulo VI, a que vai da página 6 à 18, não me deterei, já que nela são tratados conceitos e questões que serão posteriormente retomados por Marx, em locais que nos permitirão exa­miná-los mais amplamente. Há, porém, um ponto que é oportuno sublinhar desde agora. Na página 10, diz-se:

“Assim como a mercadoria é a unidade imediata dos valores de uso e de troca, o processo de produção, que é processo de produção de mercadorias, é a unidade imediata dos processos de trabalho e de valorização.”

Já vimos, na lição anterior, que a mercadoria tem um duplo aspecto: por um lado, é um fragmento de natureza transformado pelo trabalho, e, enquanto tal, possui uma determinada utilidade, um certo valor-de-uso; por outro, é um valor (e, por isso, um valor-de-troca), ou seja, uma cota da riqueza abstrata, genérica, produzida pelo capital. Marx aqui precisa que, em correspondência com esses dois aspectos da mercadoria, o processo produtivo — do qual a própria mercadoria é resultado — tem também ele dois aspectos: por um lado, é processo de trabalho, ou seja, para usar as palavras de Marx numa passagem do LivroI de O Capital (vol. 1, p. 208),

“é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana.”

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Por outro lado, o processo produtivo é processo de valorização, ou seja, é um processo cuja finalidade não é a produção de objetos que satisfaçam necessidades, mas é produção de valores e, mais especifi­camente, é produção de mais-valia. Marx diz que há unidade imediata entre processo de trabalho e processo de valorização; e isso no sentido de que não se trata de dois processos diversos, mas de dois aspectos de um único processo, visto uma vez em sua determinação natural, e outra vez em sua determinação social; uma vez no que tem de genérico, ou comum ao processo de produção em geral, independentemente da forma de sociedade, e outra vez no que tem de específico, isto é, de histori­camente determinado.

Deve-se notar, por outro lado, que a argumentação de Marx sobre a relação entre processo de trabalho e processo de valorização não se esgota na afirmação de sua “unidade imediata” ; como veremos na próxima lição, há para Marx — entre os dois aspectos do processo produ­tivo capitalista — uma relação de meio e fim; e veremos também que essa relação é inevitável, já que é conseqüência da própria natureza do processo de valorização.

Mas, por enquanto, quero chamar a atenção para outro ponto. O fato de que, no processo produtivo capitalista, o processo de valorização seja imediatamente unido ao processo de trabalho leva a economia política, a teoria não crítica do capital, a supor que não possa existir outro processo de trabalho além do que se desenvolve sob o signo do capital; a supor que o capital, por isso, seja também eie uma “condição natural eterna da vida humana” . Com isso, o capital — em vez de ser visto como uma relação social de produção - é visto como uma coisa, ou seja, é identificado com os meios de produção. Nas páginas 12-13, depois de ter notado que o “substrato material” do capital tem necessaria­mente a forma de meios de produção, Marx observa como os econo­mistas (e a coisa vale também para os economistas “burgueses” de hoje) chegam

“à conclusão de que todos os meios de produção, potencial­mente (dinamei), e na medida em que funcionem como meios de produção, são realmente (actu) capital, portanto, [de que] o capital é elemento necessário ao processo de trabalho humano em geral, abstração feita de todas as suas formas históricas; [de que] o capital é algo eterno e condicionado pela natureza do trabalho humano.”

E logo após, na página 13, acrescenta:“Igualmente, chega-se à conclusão de que, como o processo de produção do capital é em geral processo de trabalho, assim o

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processo de trabalho, em todas as formas sociais, é necessaria­mente processo de trabalho do capital. O capital é visto, desse modo, como coisa, que no processo de produção desempenha certo papel próprio de uma coisa, adequado à sua condição de coisa. Trata-se da mesma lógica segundo a qual, se o dinheiro é ouro, infere-se que o ouro é dinheiro em si mesmo; de que o trabalho assalariado é trabalho e, portanto, todo o trabalho é forçosamente trabalho assalariado. Demonstra-se a identidade atendo-se ao que é idêntico em todos os processos de produção, prescindindo-se de suas diferenças especificas. A identidade é demonstrada deixando-se de lado a diferença.”

Repito: sobre a distinção e sobre as relações entre processo de trabalho e processo de valorização, o Capítulo VI voltará com novas especificações; e novamente será retomada a argumentação sobre as mistificações da economia burguesa. Também nós voltaremos ao assunto, no momento oportuno.

Vamos ler agora o parágrafo que tem início na página 18, com o título: “O processo de valorização do capital, processo de alienação do trabalho” 1. A primeira especificação que encontramos é a seguinte: a relação entre operários e meios de produção é diferente, conforme essa relação seja posta no interior do processo de trabalho ou no interior no processo de valorização. Lemos na página 18:

“Os meios de produção utilizados pelo operário no processo real de trabalho são, certamente, propriedade do capitalista, e na condição de capital se defrontam — tal como vimos antes — com o trabalho, que é a própria manifestação vital do operário. No processo de trabalho efetivo, o operário consome os meios de trabalho como veículo de sua atividade, e o objeto de trabalho como a matéria na qual seu trabalho se apresenta.”

Antes de mais nada, um esclarecimento sobre a terminologia que Marx emprega nesse trecho, e que ele mesmo explicou pouco antes, nas páginas que deixamos de ler. “Meio de trabalho” é o instrumento com o qual o trabalho transforma um material que é o “objeto de trabalho” : os meios de trabalho e os objetos de trabalho, em conjunto, constituem os “meios de produção” . Meio de trabalho, por exemplo, é uma máquina; objeto de trabalho, por exemplo, é a matéria-prima. Ora, Marx diz aqui que, no processo de produção capitalista enquanto processo de trabalho, enquanto processo natural, embora os meios de produção sejam o “subs­

1. A edição brasileira de que nos estamos valendo não contém os subtítulos a que Napoleoni se refere, tanto aqui quanto em seguida ( N o ta do Tradutor).

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trato material” do capital, sendo portanto separados do trabalhador e erguendo-se diante dele, embora o trabalho (que é todavia a explicitação da vida do operário) tenha de se realizar em face de coisas que são estranhas ao próprio trabalho, na medida em que são propriedade alheia, embora isso aconteça, repito, sob o aspecto da determinação natural do processo produtivo, é o operário quem utiliza esses meios, numa relação portanto que, malgrado o capital, mantém seu caráter natural. E Marx acrescenta:

“Do ponto de vista do processo de valorização, entretanto, as coisas se apresentam diferentemente” .

Vejamos por quê, continuando a ler na página 19:“[Aqui] não é o operário quem utiliza os meios de produção: são os meios de produção que utilizam o operário. Não é o trabalho vivo que se realiza no trabalho objetivo como em seu órgão objetivo; é o trabalho objetivo que se conserva e aumenta pela absorção do trabalho vivo, graças ao qual se converte em um valor que se valoriza, em capital, e como tal funciona. Os meios de produção aparecem unicamente como absorventes da maior quantidade possível de trabalho vivo. Este se apresenta apenas como meio de valorização de valores existentes e, por conseguinte, de sua capitalização.”

A relação, portanto, se inverte, em comparação com a condição “natural, eterna” : “não é o operário quem utiliza os meios de produção, mas são os meios de produção que utilizam o operário” . Com efeito, o trabalho enquanto trabalho abstrato — e, no processo de valorização, o trabalho é trabalho abstrato — tem apenas uma função a desempenhar: conservar e aumentar o valor do capital, produzindo um valor que contém o valor do capital e uma mais-valia. Mas, então, os meios de produção— enquanto portadores materiais do valor que deve ser conservado e ampliado — estão dados no princípio e no fim do processo de produção, o qual, precisamente por isso, é processo especificamente capitalista; e, dado que a conservação e o aumento do valor dos meios de produção exigem trabalho, ou seja, a explicitação da “substância valorizadora” , o próprio trabalho não é senão meio para a valorização; e, nesse sentido, é gasto pelos meios de produção, que “absorvem” ou “sugam” a quanti­dade dele necessária para tal valorização. Além disso,

“prescindindo-se do que foi assinalado antes, justamente por isso os meios de produção aparecem de novo e se defrontam com trabalho vivo na qualidade de modo de existência do capital, e, agora, como domínio do trabalho passado e morto sobre o trabalho vivo” .

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O que quer dizer “prescindindo-se do que foi assinalado antes”? Marx já havia dito que os meios de produção se erguem diante do ope­rário na medida em que são propriedade alheia; os meios para o trabalho, ou seja, para a explicitação, a realização, da vida do operário, não são do operário. Mas, aqui, essa separação entre o trabalho que produz e os meios de produção é captada com uma ulterior determinação: não se trata mais apenas do fato de que os meios de produção são apropriados por outro, mas trata-se também — e sobretudo — do fato de que o processo produtivo, enquanto processo historicamente determinado, isto e', enquanto processo capitalista, tem tal natureza que esses meios, como valores, não são mais meios porém fins, e o trabalho é que passa a ser meio para a sua valorização, para o incremento do seu valor inicial; de modo que eles se “erguem diante do trabalho” não apenas no sentido de que, quanto à propriedade, não estão em mãos do trabalhador mas de outros, como também (e “em grau eminente”) no sentido de que subordinaram a si o trabalho, pondo de cabeça para baixo uma relação natural. Trata-se, substancialmente, de uma ulterior determinação da alienação do trabalho: o trabalho é alienado, ou seja, tornou-se diverso de sua condição natural, não apenas porque foi eliminada a condição natural de unidade entre trabalhador e meio de produção, mas também porque se eliminou a condição natural segundo a qual o trabalho subor­dina a si o instrumento em vista de suas próprias finalidades.

Essa situação de alienação é implicitamente reafirmada duas linhas mais abaixo:

“Como esforço, como dispêndio de força vital, [o trabalho] é a atividade pessoal do operário. Mas, enquanto criador de valor, implicado no processo de sua objetivação, o próprio trabalho do operário é, tão logo ingressa no processo de produção, um modo de existência do valor do capital, a este incorporado. Essa força conservadora do valor e criadora de novo valor é, em conseqüência, a força do capital, e tal processo se apresenta como processo de autovalorização do capital e, muito mais, de pauperização do operário, o qual, criando um valor, cria-o ao mesmo tempo como um valor que lhe é alheio.”

A alienação, portanto, reside nisto: que o trabalho, que seria a realização da vida do homem, transforma-se em outra coisa quando é trabalho do operário, já que nesse caso é valorização do capital; a força do homem torna-se força da coisa e, portanto, também ela torna-se coisa.

Essa reificação, enquanto substância da alienação capitalista, é precisada nas páginas 20 e 21. O domínio que se exerce sobre o operário é domínio de uma coisa, já que o próprio capitalista não é mais do que “capital personificado” . Podemos ler na metade final da página 20:

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“As funções exercidas pelo capitalista não são mais do que as do próprio capital — do valor que se valoriza sugando trabalho vivo — exercidas com consciência e vontade. O capitalista só funciona na condição de capital personificado', é o capital enquanto pessoa; do mesmo modo, o operário funciona unica­mente como trabalho personificado."

E logo em seguida:“O domínio do capitalista sobre o operário é, por conseguinte, o da coisa sobre o produtor, o do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do produto sobre o produtor, já que, em realidade, as mercadorias, que se convertem em meios de dominação sobre os operários (mas apenas como meio de domínio do próprio capital), não são senão meros resultados do processo de produção, os seus produtos.”

Antes de mais nada, deve-se recordar que, na Lição 1, lemos um trecho de Para a Crítica da Economia Política, no qual se dizia: “0 trabalho [ . . . ] aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho”. Na passagem do Capitulo VI que acabamos de ler, quando se diz que “o operário funciona unicamente como trabalho personificado”, diz-se a mesma coisa, ou seja, que o trabalho não é mais um atributo do homem, mas que, é ohomem, enquanto operário, que não é- senão sua “personificação” ; o trabalho é abstraído do homem, e o homem — o operário — conta apenas na medida em que o personifica, isto é, em que fornece a condição subjetiva da sua explicitação. Aqui se acrescenta: quando o trabalho é separado do homem, quando conta apenas como trabalho genérico ou abstrato, o trabalho não pode deixar de ser assimilado à coisa, a qual, precisamente por força dessa assimilação, domina o homem na condição de capital; e esse produto que domina o produtor tem ele próprio uma personificação na figura do capitalista; desse último, precisamente enquanto é personificação de uma coisa, Marx dirá, na página 21, que “deitou raízes no processo de alienação” .

Mas, antes de vermos esse ponto, vamos ler ainda — na mesma página 21 — um comentário ao fato do produto que domina o produtor:

“Na produção material, no verdadeiro processo da vida social— pois o processo de produção é isso — dá-se exatamente a mesma relação que, no terreno ideológico, se apresenta na religião', a conversão do sujeito em objeto e vice-versa.”

Como se sabe, temos aqui um motivo constante do pensamento de Marx: assim como na religião os homens são dominados pelos seus

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produtos mentais, já que se consideram criaturas do que eles próprios criaram na imaginação, do mesmo modo os homens — na produção mercantil capitalista — são dominados pelos seus produtos materiais, as mercadorias, já que são dominados de fato por coisas que emanam do processo produtivo no qual o trabalho deles se explicita. Portanto, assim como na religião o objeto (a divindade) é posto como sujeito, enquanto os sujeitos que o produziram se pensam como seus objetos, do mesmo modo o objeto da produção capitalista (a mercadoria, o capital) é posto realmente como o sujeito ao qual os produtores são submetidos na condição de seus objetos.

Decerto, sobre esse ponto, surge o problema do sentido que se pode atribuir a uma condição tão “insensata” como a condição capitalista. A resposta de Marx a essa questão é a seguinte (p. 21):

“Considerada historicamente, essa conversão [do sujeito em objeto e vice-versa] surge como momento de transição necessário para impor, às expensas da maioria, a criação da riqueza enquanto tal, isto é, das brutais forças produtivas do trabalho social, as únicas que podem constituir a base material de uma sociedade humana livre. É necessário passar através dessa forma contradi­tória, do mesmo modo por que a princípio o homem deve comportar-se de forma religiosa com relação a suas faculdades intelectuais consideradas como poderes independentes. Trata-se do processo de alienação de seu próprio trabalho.”

Buscaremos, na próxima lição, comentar essas proposições.

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Lição 3 DIGRESSÃO SOBRE O

PAPEL HISTÓRICO DO CAPITAL

Esta lição é, de certo modo, um parêntese com relação ao desenvol­vimento do nosso curso. Valho-me nela do trecho citado no fim dalição anterior, para submeter à atenção de vocês uma série de textos deMarx, que se referem à função histórica do capitalismo e à sociedade pós-capitalista, da qual o capitalismo constitui — na opinião de Marx — a preparação.

Releio, antes de mais nada, o trecho lido na lição passada, extraído da página 21 do Capitulo VI:

“Considerada historicamente, essa conversão [do sujeito em objeto e vice-versa] surge como momento de transição necessário para impor, às expensas da maioria, a criação da riqueza enquanto tal, isto é, das brutais forças produtivas do trabalho social, asúnicas que podem constituir a base material de uma sociedadehumana livre. É necessário passar através dessa forma contradi­tória, do mesmo modo por que a princípio o homem deve comportar-se de forma religiosa com relação a suas faculdades intelectuais consideradas como poderes independentes. Trata-se do processo de alienação de seu próprio trabalho.”

Há três pontos nesse trecho que podem ser diferenciados: 1) o capital, que embora seja a “inversão de sujeito e objeto” e seja uma “forma contraditória” , é porém necessário ao desenvolvimento das forças

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produtivas e, por isso, à constituição da “base material” de uma nova sociedade; 2) o capital, nessa sua função, é um “momento de transição” de uma situação para outra; 3) a sociedade nova, da qual o capitalismo fornece a base material, é uma “sociedade livre” ; o capital, portanto, situa-se no fim de uma fase histórica que se desenvolveu sob o signo da exploração e da alienação.

Limitar-me-ei aqui à indicação de outros textos, que contribuem para ilustrar o pensamento de Marx sobre essas questões, escolhendo-os entre os muitos aos quais poderíamos nos referir.

1) Nos Grundrisse, vol. 1, pág. 317, lemos:“O grande papel histórico do capital é o de criar esse trabalho excedente, esse trabalho supérfluo do ponto de vista do simples valor-de-uso, da mera subsistência; e a sua função histórica se realiza quando, por um lado, os carecimentos chegaram a tal ponto de desenvolvimento que o trabalho excedente além do necessário torna-se ele próprio um carecimento geral, ou seja, decorre dos próprios carecimentos individuais; e quando, por outro lado, a laboriosidade geral, mediante a rigorosa disciplina do capital através da qual passaram sucessivas gerações, tornou-se um processo geral da nova geração. Finalmente, sua função histórica se realiza quando tal laboriosidade — mediante o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, que o capital, em sua ilimitada ânsia de enriquecimento e naquelas condições que somente ele pode realizar, impulsiona constantemente a ir adiante — amadurece a tal ponto que, por um lado, o processo e a conservação da riqueza geral exigem um tempo de trabalho inferior para a inteira sociedade, e, por outro, a sociedade trabalhadora enfrenta cientificamente o processo de sua progres­siva e cada vez mais rica reprodução; e, portanto, cessa o trabalho em que o homem faz o que pode deixar que as próprias coisas façam em seu lugar.”

Descrevem-se aqui dois processos concomitantes: por um lado, o capital, criando trabalho excedente (em O Capital, Livro 1, pp. 265-266, Marx dirá que “não foi o capital que inventou o trabalho excedente. [ . . . ] Todavia, é evidente que numa formação econômico-social em que predomine não o valor-de-troca mas o valor-de-uso do produto, o trabalho excedente1 fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de

1. Na edição brasileira que utilizamos, ao invés de “trabalho excedente” - como no original alemão (M ehrarbeit) - aparece aqui, e logo adiante, a expressão “mais-valia” (Nota do Tradutor).

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necessidades, não se originando da natureza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por trabalho excedente”); o capital, portanto, criando trabalho excedente e reconvertendo a mais-valia em capital adicional, desenvolve as forças produtivas até o ponto de reduzir substancialmente o tempo de trabalho que as gerações subseqüentes deverão dedicar à conservação do patrimônio no qual se incorpora o alto nível de produti­vidade, de modo que cresce o tempo à disposição da sociedade, dado que o trabalho voltado para conservar e desenvolver o legado recebido das gerações passadas pode ser cada vez mais transferido para as coisas (para os meios de produção aperfeiçoados); por outro lado, esse tempo à disposição tornou-se também ele um carecimento, já que — satisfeitos, mediante o trabalho confiado às “coisas” , os carecimentos de “mera subsistência” — nascem sobre essa base carecimentos novos, que o tempo disponível é chamado a satisfazer.

2) Nos Grundrisse, vol. 2, p. 182 (Marx acabou de falar da tendência do capital a ampliar o mercado além de qualquer limite):

“Manifesta-se aqui a tendência universal do capital, que o distingue de todos os outros estágios anteriores da produção. Embora limitado por sua própria natureza, o capital tende a um desenvolvimento universal das forças produtivas e torna-se assim a premissa de um novo modo de produção, que não se baseia sobre um desenvolvimento das forças produtivas voltado para a reprodução e, quando muito, para a ampliação de uma situação determinada, mas no qual o desenvolvimento livre, articulado, progressivo e universal das forças produtivas constitui a própria premissa da sociedade e, por isso, de sua reprodução; no qual a única premissa é superação do ponto de partida. Essa tendência— que é própria do capital, mas que representa ao mesmo tempo uma contradição com o capital enquanto forma de produção limitada, e, por isso, pressiona no sentido de sua dissolução — distingue o capital de todos os precedentes modos de produção e implica, ao mesmo tempo, que ele seja posto como simples ponto de transição,”

É de notar, aqui, que o futuro pós-capitalista é ainda “um modo de produção” , mas caracterizado por um desenvolvimento das forças produtivas “livre, articulado, progressivo e universal” . E é de notar, mais uma vez, a caracterização do modo de produção capitalista como “simples ponto de transição” .

3) Em O Capital, Livro 3, p. 297:“O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é a tarefa histórica do capitalismo e o legitima. Exercendo justa­

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mente essa função, cria ele as condições materiais de uma forma superior de produção, sem que esteja consciente disso.”

4) Em O Capital, Livro 3, p. 303:“O capital cada vez mais se patenteia como força social: tem o capitalista por agente e não se relaciona mais com o que pode criar o trabalho de cada indivíduo; mas patenteia-se como força social alienada, autônoma, que enfrenta a sociedade como coisa e como poder do capitalista por meio dessa coisa. A contradição entre a força social geral que o capital encarna e o poder privado dos diferentes capitalistas sobre essas condições sociais torna-se cada vez mais aguda e acarreta que se dissolva essa relação, e a dissolução implica que os meios de produção se tornem sociais, coletivos e gerais. Essa transformação está ligada ao desenvol­vimento das forças produtivas na produção capitalista e à maneira como se efetua esse desenvolvimento.”

Deve-se notar, aqui, em primeiro lugar, a tese segundo a qual a realização da tarefa histórica do desenvolvimento das forças produtivas é acompanhada, no capital, pela maturação dos obstáculos que porão fim ao modo de produção capitalista, como efeito de uma contradição de fundo, ou seja, a contradição entre o capital como “força social” e o caráter privado da apropriação capitalista (no “Prefácio” a Para a Crítica da Economia Política, p. 136, dizia-se: “As forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução deste antagonismo” , ou seja, da forma que assume na sociedade capitalista “o conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção” ; de modo que o desenvolvimento das forças produtivas é, a um só tempo, a base material para o nascimento da nova sociedade e a condição para a dissolução do modo de produção capitalista). Em segundo lugar, deve-se notar — e voltaremos a esse assunto — a definição das novas “condições de produção” como condições “sociais, comuns, gerais” .

Sobre a segunda questão, ou seja, sobre o capital como fase de transição, de passagem, de uma situação para outra, podemos ler dois trechos notáveis.

1) Nos Grundrisse, vol. 1, pp. 98-99:“As relações de dependência pessoal (no início, sobre uma base inteiramente natural) são as primeiras formas sociais nas quais a produtividade humana se desenvolve apenas num âmbito restrito e em pontos isolados. A independência pessoai fundada sobre a dependência material é a segunda forma importante na qual se constitui um sistema de intercâmbio social geral, urn

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sistema de relações universais, de carecimentos universais e de capacidades universais. A livre individualidade, fundada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e sobre a subordinação da sua produtividade coletiva, social, à condição de seu patri­mônio social, constitui o terceiro estágio. O segundo cria as condições do terceiro.”

Distinguem-se aqui três fases do desenvolvimento histórico da huma­nidade: a fase da dependência pessoal (as formas de exploração pré-capi- talista); a fase da independência pessoal, mas baseada sobre a dependência material (a exploração capitalista, na qual — num sentido que já escla­recemos — os indivíduos são juridicamente iguais, mas uma parte da sociedade é dominada pela mercadoria, ou seja, pelo capital, que se “personifica” na outra parte); a fase na qual os homens, livres, subordinam a si a produtividade social deles. Portanto, o capital: a) abole as relações de dependência pessoal nas quais, sendo a finalidade da produção o valor-de-uso dos exploradores, o crescimento das forças produtivas é necessariamente muito lento; b) constitui o domínio das “coisas” sobre o homem e, por isso, através da colocação da produção a serviço da riqueza abstrata, do aumento do valor, desenvolve as forças produtivas e substitui o particularismo das velhas sociedades pela universalidade das relações e dos carecimentos; c) é, por sua vez, substituído por uma condição que restitui aos homens, como patrimônio social deles, no qual cada um se reconhece, a produtividade da atividade e a universalidade dos careci­mentos e das capacidades.

2) Nos Grundrisse, vol. 2, pp. 149-150:“A forma mais extrema da alienação na qual, na relação entre capital e trabalho assalariado, apresenta-se a atividade produtiva diante de suas próprias condições e ao seu próprio produto, essa forma mais extrema é um necessário ponto de passagem; e, portanto, já contém em si — só que ainda em forma invertida, de cabeça para baixo — a dissolução de todos os pressupostos limitados da produção', ou melhor, ela cria e prodiiz os pressu­postos incondicionados da produção e, por conseguinte, de todas as condições materiais para o desenvolvimento total, universal, das forças do indivíduo.”

O início desse trecho, que na edição que utilizamos é traduzido literalmente (Grundrisse, ed. alemã, p. 414: “die äusserste Form der Entfremdumg, worin, im Verhältnis des Kapitals zur Lohnarbeit, die Arbeit, die produktive Tätigkeit zu ihren eignem Bedingungen un ihren eignem Produkt erscheint, ein notwendiger Durschgangspunkt ist”), deve ser lido do seguinte modo: “A alienação da relação na qual o trabalho, a atividade produtiva, se encontra diante de suas condições e do seu produto

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tem uma forma extrema, que é a que se refere à relação entre capital e trabalho assalariado: e essa forma extrema é um necessário ponto de passagem” . Chamo a atenção para esse trecho porque é um dos locais onde Marx (como já havia feito nos Manuscritos e na Ideologia Alemã) põe a alienação capitalista na perspectiva mais ampla da alienação que vigora nas épocas que, no trecho anteriormente citado, são' indicadas como sendo as duas primeiras fases do desenvolvimento histórico. Nas condições pré-capitalistas, dado que a atividade produtiva tem como meta o consumo do explorador (ou, genericamente, do “senhor”), o trabalho serve sempre aos outros (daí sua “alienação”), ou porque se trata do explorador ou porque se trata da mera animalidade do traba­lhador (do “servo”); nesse caso, portanto, a alienação consiste no fato de que a relação que o trabalhador estabelece com seu próprio trabalho, não é a relação com algo que seria o realizador da sua “essência” , mas é a relação com o simples meio da sua “existência” (para usar a terminologia dos Manuscritos de 1844). De qualquer modo, o que resta de natural nessa situação é que a relação entre o homem e o trabalho é a relação entre sujeito e atributo do sujeito, ainda que o primeiro tenha sido despojado de sua humanidade e o segundo desviado do seu fim. No capital, como vimos, não se trata apenas disso, já que aqui a relação é invertida, no sentido de que o papel do sujeito é assumido pelo trabalho, enquanto o de atributo cabe ao trabalhador. A conseqüência é que, ao passo que na situação pré-capitalista o processo produtivo ainda se liga à naturalidade do instrumento de trabalho e do carecimento, no capital — ao contrário -o processo produtivo liga-se essencialmente à riqueza como tal. E, deresto, é precisamente essa a razão pela qual, como se diz na segundaparte do trecho, o capital — sendo, ainda que de modo invertido, a dissolução dos limites ao crescimento do processo produtivo — cria os pressupostos para o desenvolvimento real do homem.

Sobre o terceiro ponto, isto é, precisamente sobre a natureza da situação pós-capitalista, além das referências já contidas nos trechos citados, pode-se ler estes outros textos:

1) Dos Grundrisse, vol. 1, pp. 116-118:“O trabalho do indivíduo, considerado no prórpio ato da pro­dução, é dinheiro com o qual ele compra imediatamente o produto, o objeto de sua atividade particular; mas se trata de dinheiro particular, que compra precisamente apenas este determinado produto. Para ser imediatamente dinheiro geral, ele deveria ser desde o início não um trabalho particular, mas um trabalho geral, ou seja, ser posto desde o início como umelemento da produção geral. Sob tal pressuposto, porém, nãoseria a troca a conferir-lhe o caráter geral, mas seria o seu caráter social pressuposto a determinar a participação nos produtos.

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0 caráter social da produção tornaria o produto, desde o início, um produto social, geral. A troca que se verifica originariamente na produção — a qual não seria uma troca de valores-de-troca, mas de atividades determinadas por carecimentos e finalidades sociais — incluiria, desde o início, a participação do indivíduo no mundo social dos produtos. Sobre a base dos valores-de-troca, o trabalho é posto como trabalho geral tão-somente por meio da troca. Sobre essa outra base, ele seria posto como tal antes da troca; ou seja, a troca dos produtos não seria em geral o médium que mediatizaría a participação do indivíduo na pro­dução geral. Naturalmente, uma mediação tem de existir. No primeiro caso, que decorre da produção autônoma dos indi­víduos (embora essas produções autônomas se determinem e se modifiquem post festum por meio de suas relações recíprocas), a mediação tem lugar através da troca de mercadorias, através do valor-de-troca, do dinheiro, três expressões de uma única e mesma relação. No segundo caso, o próprio pressuposto é mediatizado, ou seja, é pressuposta uma produção social, a socialidade como base da produção. O trabalho, do indivíduo é, desde o início, posto como trabalho social. Por isso, qualquer que seja a forma material particular do produto que ele cria ou ajuda a criar, o que ele comprou com seu trabalho não foi um produto particular e determinado, mas uma determinada cota da produção social. Por isso, ele não tem nem sequer de trocar um produto particular. O seu produto não é um valor-de-troca. O produto não tem de ser previamente convertido numa forma particular a fim de poder receber um caráter geral para o indivíduo. Em vez de uma divisão do trabalho, que se gera necessariamente na troca de valores-de-troca, ter-se-ia uma orga­nização do trabalho que tem como conseqüência a participação do indivíduo no consumo social. No primeiro caso, o caráter social da produção é posto apenas mediante a elevação dos produtos a valores-de-troca; e a troca desses valores-de-troca ocorre post festum. No segundo caso, o caráter social da pro­dução é pressuposto; e a participação no mundo dos produtos, no consumo, não é mediatizada pela troca de trabalhos ou de produtos de trabalho reciprocamente independentes. Ela é media­tizada pelas condições sociais da produção no interior das quais o indivíduo atua. Portanto, querer transformar o trabalho do indivíduo (ou seja, também o seu produto) imediatamente em dinheiro, em valor-de-troca realizado, significa determiná-lo ime-

I diatamente como trabalho geral, ou seja, significa negar precisa­mente as condições sob as quais ele deve ser transformado em dinheiro e em valores-de-troca, e sob as quais ele depende da troca privada. A exigência só pode ser satisfeita em condições

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nas quais ela não pode mais ser posta. O trabalho, sobre a base dos valores-de-troca, pressupõe precisamente que nem o trabalho do indivíduo nem o seu produto sejam imediatamente gerais; pressupõe que eles só obtenham essa forma através de uma mediação objetiva, através de um dinheiro diferente deles.”

Reproduzi por inteiro essa longa passagem porque me parece que, na determinação do modo pelo qual Marx vê a sociedade pós-capitalista, é muito importante ter presente este ponto (que lança luz sobre a interpretação do próprio capitalismo): a saber, que - como continua­mente se afirma nesse trecho que acabamos de citar — enquanto com o capital a sociedade é construída a posteriori com relação ao trabalho, exigindo portanto a mediação do produto (que, precisamente nesse sentido, é valor), na nova situação, ao contrário, o trabalho já é posto como imediatamente social e constitui diretamente a sociedade, sem o recurso necessário à mediação das coisas, sem a necessidade, portanto, de que os produtos sejam valores.

2) A mesma coisa se diz, em polêmica com a economia burguesa e sobre a base da distinção entre “objetivação” e “alienação” , nos Grundrisse, vol. 2, p. 576:

“Os economistas burgueses são tão prisioneiros dos esquemas de um determinado nível de desenvolvimento histórico da sociedade que a necessidade da objetivação das forças sociais do trabalho se lhes apresenta como indissociável da necessidade da alienação dessas mesmas forças em oposição ao trabalho vivo. Mas, com a supressão do caráter imediato do trabalho vivo como trabalho somente singular (ou apenas interiormente, ou apenas exterior­mente geral), com a atribuição à atividade dos indivíduos de um caráter imediatamente geral ou social, essa forma da alie­nação é cancelada dos momentos objetivos da produção; com isso, esses momentos são postos como propriedade, como corpo orgânico social no qual os indivíduos se reproduzem como indivíduos, mas como indivíduos sociais. As condições desse modo de reproduzir a própria vida, desse tipo de processo vital produtivo, foram postas pelo próprio processo histórico-econô- mico; tanto pelas condições objetivas quanto pelas condições subjetivas, que são apenas as duas formas distintas das mesmas condições.”

3) Para concluir, vou ler dois textos muito conhecidos, citados com bastante freqüência. O primeiro é extraído de O Capital, Livro 3 ,p. 942:

“De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exterior-

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mente impostas; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natu­reza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvol- vendo-se, o reino do imprescindível. É que aumentam as neces­sidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas para satisfazê-las. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem social, os produtores associados regulam racio­nalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que os domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas à natureza humana. Mas esse esforço situar-se-à sempre no reino da necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento é a redução da jornada de trabalho.”

Essa passagem é importante por causa da distinção, nela contida, entre uma fase na qual os produtores, mesmo controlando socialmente o processo da produção material e não mais sendo controlados por ele, permanecem ainda no interior de um “reino da necessidade” ; e uma fase de “liberdade” , posterior a essa e tendo-a como premissa, uma fase que é a única a garantir o “desenvolvimento das capacidades humanas” .Disso poderia ser fácil deduzir que Marx imaginasse o comunismo como uma evasão do trabalho. Todavia, os trechos anteriormente citados requerem, em minha opinião, uma interpretação diversa. Marx pensava na evasão de um trabalho particular, ou seja, do trabalho caracterizado: a) pelo condicionamento das necessidades de subsistência; b) pela não- socialidade, ou seja, por ser um trabalho de tal tipo que a sociedade é construída depois dele e por meio da mediação das coisas (dos valores).

4) Além disso, nos Grundrisse, vol. 2, pp. 277-279, pode-se ler o seguinte:

“Trabalharás com o suor do teu rosto! Essa foi a maldição que Adão ouviu de Jeová. E assim, como maldição, é que A. Smith considera o trabalho. O ‘repouso’ figura como estado adequado, que se identifica com a ‘liberdade’ e a ‘felicidade’. A idéia que o indivíduo, ‘em seu normal estado de saúde, força, atividade, habilidade e destreza’, tenha também necessidade de uma cota normal de trabalho, assim como de eliminar o repouso, parece nem sequer passar pela cabeça de A. Smith. Sem dúvida, a

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medida do trabalho apresenta-se como um dado externo, que se refere à meta a alcançar e aos obstáculos que, para alcançá-la, devem ser superados mediante o trabalho. Mas que essa neces­sidade de superar obstáculos seja em si uma manifestação de liberdade, — e que, além disso, as metas externas sejam enco­bertas pela aparência da pura necessidade natural interna, sendo postas como metas colocadas pelo próprio indivíduo, — isto é, que seja auto-realização, objetivação do sujeito, e, por isso, liberdade real, cuja ação é precisamente o trabalho: isso é algo que A. Smith imagina menos ainda. Sem dúvida, ele tem razão quando vê que nas formas históricas do trabalho, enquanto trabalho escravo, servil ou assalariado, o trabalho se apresenta sempre como algo repelente, sempre como trabalho coercitivo externo, diante do qual o não-trabalho se apresenta como ‘liber­dade’ e ‘felicidade’. Trata-se de duas coisas: desse trabalho antitético; e, ligado a ele, do trabalho que ainda não criou as condições, subjetivas e objetivas (ou mesmo que as perdeu, se pensarmos nas condições do pastoreio, etc.), para fazer do trabalho um trabalho atraente, uma auto-realização do indivíduo o que não significa absolutamente que se trate de um puro jogo, de uma pura diversão, como supõe a concepção ingênua e bastante frívola de Fourier. Um trabalho realmente livre (por exemplo, compor música) é, ao mesmo tempo, a coisa desgraça­damente mais séria deste mundo, o esforço mais intenso que possa haver. O trabalho consagrado à produção material só pode adquirir esse caráter: 1) se seu caráter social for posto; 2) se for de natureza científica, e, ao mesmo tempo, for trabalho universal, se for esforço do homem não como força natural intencionalmente treinada, mas sim como sujeito que não se apresenta no processo de produção sob forma puramente natural, primitiva, porém como atividade reguladora de todas as forças naturais.”

Deve-se notar aqui os termos, importantes, nos quais é retomado o conceito de trabalho como “condição natural eterna” da vida, subli- nhando-se o seu caráter de positividade (fora da alienação), em oposição à idéia smithiana (mas na verdade de toda a ciência econômica) do trabalho como puro custo. E deve-se notar, igualmente, como a possibi­lidade de um “trabalho livre” , nesse trecho, seja estendida também à “produção material” .

Afirmei, no início desta lição, que ela seria uma espécie de parên­tese no âmbito do curso. Na próxima aula, retomaremos a leitura do Capitulo VI.

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Lição 4 TRABALHO ÚTIL E TRABALHO ABSTRATO;

TRABALHO SOCIALMENTE NECESSÁRIO; TRABALHO VIVO E TRABALHO MORTO.

AS MISTIFICAÇÕES DA ECONOMIA POLÍTICA.

PS£2 Qá1 u,U JQ Hoje nos ocuparemos dos dois parágrafos intitulados “Unidade do(j processo de trabalho e do processo de valorização” , na página 22; e£; ^ “O processo de produção capitalista no espelho deformante da economiau: < política” , na página 26.F cc* cõ Vejamos então a primeira questão, lendo (p. 22) uma definição05 Êg muito nítida da relação que se dá entre os dois lados do processo produ- ^ tivo capitalista, isto é, o processo de trabalho e o processo de valorização,

cuja definição já vimos no início da segunda lição. Diz-se aqui, na primeira metade da página:

“Contudo, o processo de trabalho não é mais do que um meio do processo de valorização.”

VQ Essa mesma coisa é repetida, em termos quase idênticos, no primeiro• f y parágrafo da página 32:( _ “O produto do processo de produção capitalista não é simples-''V mente produto (valor-de-uso), nem simples mercadoria, isto é,

produto que tem um valor-de-troca; seu produto especifico é a mais-valia. Seu produto são mercadorias que possuem mais

[ valor-de-troca, isto é, que representam mais trabalho do que oa adiantado para sua produção sob forma de dinheiro ou de

V ú mercadorias.”Por isso, no processo capitalista assim definido, a relação se põe nos seguintes termos:

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“No processo capitalista de produção, o processo de trabalho só se manifesta como meio; o processo de valorização ou a pro­dução de mais-valia, como fim.”

Assim, nesse ponto, a relação entre esses dois aspectos é afirmada de modo muito mais claro. O processo de trabalho, isto é, o aspecto natural do processo de produção capitalista, não tem sentido em si mesmo, como haveria a tentação de supor, precisamente em conseqüência de sua própria naturalidade; mas, ao contrário, é meio para outra coisa, ou seja, para o processo de valorização.

Dessa definição, dessa concretização, decorrem alguns corolários que têm certo interesse. Antes de mais nada, na página 23, primeiro parágrafo, afirma-se:

“Do exposto,”ou seja, precisamente dessa relação de meio e fim existente entre os dois aspectos do processo de produção capitalista,

“se depreende que a expressão ‘trabalho objetivado', assim como a contradição entre o capital — como trabalho objetivado — e o trabalho vivo, pode dar lugar às mais errôneas interpretações.”

Vejamos, em primeiro lugar, ao que Marx pretende se referir nesse trecho. A idéia de que o conjunto das mercadorias que constituem o capital não é mais do que trabalho acumulado havia sido expressa, exatamente nesses termos, pela economia política clássica. Tanto Smith quanto Ricardo definiram o capital, no sentido do valor das mercadorias usadas como meios de produção, como sendo nada mais que trabalho objetivado, que trabalho incorporado em tais meios. Ora, o que Marx diz aqui, em substância, é o seguinte: que conceber o capital dessa maneira é certamente um passo adiante e já é um início importante da teoria científica, tendo em vista que a consideração do capital como trabalho objetivado é o primeiro passo necessário para poder chegar depois à redução de todas as partes que compõem o valor das mercadorias a trabalho; mais precisamente, considerar o capital como trabalho obje­tivado é o primeiro passo para reduzir a mais-valia a uma quantidade de trabalho, ou seja, a um mais-trabalho (ou trabalho excedente). Todavia,— e esse é o ponto que está aqui em discussão, — embora (diz Marx) esse seja um passo importante no caminho da elaboração científica da teoria econômica, não é um passo suficiente; e, se for considerado em si mesmo, sem as necessárias concretizações, poderão surgir equívocos, que, em sua opinião, são graves do ponto de vista da construção da ciência. Vejamos em que sentido estamos diante de equívocos, conti­nuando a leitura do trecho:

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“Indiquei [ . . . ] que a análise da mercadoria sobre a base do 'trabalho’ é, em todos os economistas anteriores, ambígua e incompleta. Não basta reduzi-la ao ‘trabalho’, mas ao trabalho sob a dupla forma em que se apresenta: por um lado, como trabalho concreto, no valor-de-uso das mercadorias-, e, por outro lado, calculado como trabalho socialmente necessário, no valor- de-troca

Ou seja, a primeira questão é esta: não basta dizer que a merca­doria é trabalho incorporado; e' preciso dizer que a mercadoria incorpora trabalho em dois sentidos, que correspondem exatamente aos dois aspectos da mercadoria, o valor-de-uso e o valor-de-troca, e, paralelamente, aos dois aspectos do processo de produção capitalista, o processo de trabalho e o processo de valorização. A mercadoria incorpora trabalho num primeiro sentido, que é o seguinte: a mercadoria enquanto valor-de-uso, ou seja, enquanto objeto dotado de propriedades úteis, e, portanto, enquanto produto do processo de trabalho, incorpora um trabalho que é qualificado sob certo aspecto, ou seja, é um trabalho útil, um trabalho completamente determinado quanto à sua qualidade. Por outro lado, essa mesma mercadoria, enquanto valor-de-troca, e, portanto, enquanto resultado específico do processo de valorização, incorpora trabalho num outro sentido. Ou seja: no sentido de que ela, enquanto valor, é o produto de um trabalho separado de suas determinações qualitativas concretas, um trabalho que é, como sabemos, trabalho genérico, ou comum, ou abstrato. Assim como, em outras palavras, — essa é a tese de Marx, — o processo de produção tem os dois aspectos do processo de trabalho e do processo de valorização, assim também — correspondentemente — o trabalho incorporado na mercadoria tem os dois aspectos de trabalho concreto e de trabalho abstrato.

“Do primeiro ponto de vista,”ou seja, quando se refere ao trabalho concreto,

“tudo depende de seu valor-de-uso particular, de seu caráter específico, o qual, justamente, imprime sua marca específica no valor-de-uso criado pelo trabalho e o converte em valor-de-uso concreto, diferente dos demais — em um artigo determinado.”

O trabalho do marceneiro, por exemplo, produz um bem especificado qualitativamente como seu produto, algo que, por isso, tem um valor-de- uso particular.

Chamo a atenção para a frase citada a seguir, que é um dos locais onde Marx define o trabalho abstrato. A frase é a continuação da que citamos antes:

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“Por outro lado, faz-se abstração de sua utilidade particular, de sua natureza e modo determinado de trabalho, quando é levado em conta como elemento formador de valor, e a mercadoria [é vista] como sua objetivação. Como tal, é trabalho indife­renciado, socialmente necessário, geral, trabalho inteiramente indiferente acerca de todo conteúdo particular, pelo que alcança, também, em sua expressão autônoma — no dinheiro, na merca­doria como preço — uma expressão comum a todas as merca­dorias, diferençável apenas pela quantidade.”

O que temos aqui, portanto, é que o trabalho formador (ou criador) de valor é trabalho geral, cuja indiferença “acerca de todo conteúdo particular” é a manifestação do fato de que a única razão pela qual o valor-de-troca assume esse ou aquele valor-de-uso, enquanto própria base material, é tão-somente a sua afirmação como valor-de-troca; ou, mais precisamente, como veremos melhor, sua expansão como capital.

Deve-se sublinhar, no trecho que acabamos de ler, que uma das qualidades atribuídas a esse trabalho geral ou abstrato é a de ser “social­mente necessário” . Essa determinação do trabalho socialmente necessário foi freqüentemente entendida num sentido estreitamente quantitativo, ou seja, como a quantidade de trabalho necessária para produzir uma mercadoria nas condições técnicas predominantes na sociedade e não nos capitais individuais que produzem tais mercadorias. Mas há um significado qualitativo do termo “socialmente” que, a meu ver, predomina em Marx com relação ao significado quantitativo. O que Marx pretende dizer é que a quantidade de trabalho necessária para produzir uma mercadoria se afirma no processo social, o qual, nesse caso, é processo concorrencial; isso significa, portanto, que essa quantidade não pode ser pressuposta em relação ao processo. O próprio estágio da técnica (que, certamente, é um elemento importante na determinação do trabalho objetivado nas mercadorias) é também ele um resultado desse processo social, o qual consiste essencialmente na distribuição do capital global entre as várias atividades, de acordo com as necessidades da reprodução do capital social e do grau de desenvolvimento que, em cada oportunidade, é alcançado pelas forças produtivas.

Portanto, para retomarmos a linha da argumentação, esse é um primeiro corolário da relação que Marx estabelece entre processo de trabalho e processo de valorização.

Um segundo corolário pode ser encontrado logo após, na página 24, terceiro parágrafo:

“O trabalho contido nos meios de produção é um quantum determinado de trabalho social geral, e, portanto, se apresenta como certa grandeza de valor ou soma de dinheiro: de fato, no

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preço desses meios de produção. O trabalho agregado é um quantum adicional determinado de trabalho social geral e se apresenta como grandeza de valor e soma de dinheiro adicionais.”

Ate' aqui, nada de novo. A frase que se segue, porém, clarifica um ponto que talvez seja importante ter presente:

“O trabalho já contido nos meios de produção é o mesmo que o imediatamente acrescentado.”

Ou seja: o trabalho contido nos meios de produção e o trabalho que se agrega a eles por ser explicitação viva da força-de-trabalho, o trabalho contido nos meios de produção e o trabalho dispendido pelo operáriono âmbito do processo de produção, esses dois trabalhos — diz Marx nafrase citada — são a mesma coisa.

“Só se distinguem pelo fato de o primeiro estar objetivado em valores-de-uso,”

que são os meios de produção determinados,“e o segundo [estar] implícito no processo dessa objetivação; um é o passado, outro é o presente; um está morto, o outro,vivo; um está objetivado no pretérito perfeito; o outro está seobjetivando no presente.”

Também esse é um ponto importante. Em que sentido, portanto, esses dois trabalhos são a mesma coisa? No sentido de que se trata sempre de partes, de cotas, do trabalho abstrato geral, genérico, indiferenciado, socialmente necessário, dessa substância comum que está em todas as mercadorias. Aliás, melhor dizendo: dessa substância comum, a que todas as mercadorias são redutíveis. É nesse sentido que são idênticos. A única diferença está no fato de que um deles é captado quando o processo de objetivação na mercadoria já ocorreu (tanto é verdade que ele se apresenta sob a forma sensível de certos valores-de-uso, ou seja, os meios de produção); o outro, ao contrário, é captado durante o processo de objetivação, já que é captado no momento em que está produzindo mercadorias, não é captado no momento em que já as produziu; portanto, um é trabalho passado, o outro é trabalho presente; um é trabalho morto, o outro é trabalho vivo. Também essas são determinações importantes, já que toda a essência da teoria marxiana do capital pode, no fundo, ser resumida na proposição de que o processo capitalista, enquanto é essencial­mente processo de valorização, é processo de domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do trabalho passado sobre o trabalho presente, do trabalho já objetivado sobre o trabalho que está apenas em processo de objetivação. Portanto, o processo capitalista é um processo de reificação,

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não apenas no sentido (que seria imediatamente evidente) de que o trabalho só conta enquanto produz uma coisa exterior a si mesmo (o valor), como também — mais especificamente — no sentido de que a parte do trabalho que já se converteu em coisa domina a outra parte do trabalho que ainda não se tornou uma coisa e, por isso, é ainda trabalho vivo. Por que isso? Porque todo o sentido do processo está no acréscimo de valor novo ao velho valor, ou seja, ao valor já incorporado nos meios de produção; e, portanto, esse trabalho vivo não tem outro sentido senão o de ser meio com o qual se aumenta o valor do capital, isto é, com o qual se aumenta o valor dos meios que foram antecipados no processo produtivo; não tem outro sentido, esse trabalho vivo, além do de ser meio para aumentar o valor correspondente ao trabalho morto.

É assim que, segundo Marx, as coisas se processam no que se refere à relação entre processo de trabalho e processo de valorização, na qual o primeiro é meio para o segundo; assim se processam as coisas no que se refere à relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato; assim se processam as coisas no que se refere ao sentido do “trabalho socialmente necessário” ; assim, finalmente, se processam as coisas no que se refere à distinção e à relação entre trabalho objetivado e trabalho vivo no âmbito do processo de valorização. Porém, o que Marx diz aqui é o seguinte: se as coisas se processam desse modo, isso não significa que a economia as reconheça do modo como são. Ao contrário: ela absoluta­mente não as reconhece do modo como são.

A economia política, em outras palavras, é um espelho deformante; e a origem dessa deformação está no fato de que a essencialidade do processo de trabalho enquanto base material para o processo de valori­zação, e, por isso, para o capital, é transformada em seu contrário, ou seja, na essencialidade do capital para o processo de trabalho; uma transformação que pode ocorrer, e efetivamente ocorre, tão-somente quando o capital é identificado com as “coisas” , com os valores-de-uso, que intervêm no processo de trabalho. Lemos na página 27:

“Pelo fato de o dinheiro — em sua transformação em capital — se converter em fatores do processo de trabalho — e adotar, necessariamente, a figura de material de trabalho e meios de trabalho — o material de trabalho e os meios de trabalho não se tornam, por natureza, capital, do mesmo modo que ouro e prata não se convertem por natureza em dinheiro, embora esse se apresente, entre outras coisas, como ouro e prata. Os próprios economistas modernos — que zombam do simplismo do sistema monetário, que à pergunta: que é dinheiro?, respondem: ouro e prata são dinheiro — não sp envergonham de responder à pergunta: que é o capital? [do seguinte modo:] O capital é o algodão. Não afirmam outra coisa quando declaram que o

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material e os meios de trabalho, os meios de produção e os produtos utilizados para a nova produção, — em suma, as condições objetivas do trabalho, — são por natureza capital, e o são na medida em que servem, graças às suas propriedades naturais, como valores-de-uso no processo de trabalho.”

E um tal modo de proceder, ou seja, como se diz na página 28,“esse absurdo — o de considerar que determinada relação social de produção representada em coisas é propriedade natural dessas mesmas coisas — salta à vista logo que abrimos o primeiro manual de economia que nos venha às mãos, e vemos já na primeira página que os elementos do processo de produção, reduzidos à sua forma mais geral, são a terra, o capital e o trabalho.”

Em nota, Marx se refere como exemplo aos Princípios de Economia Política, de J. S. Mill; mas o mesmo erro pode ser encontrado na maior parte dos livros que ainda hoje são utilizados nas escolas. Nem se trata de uma simples ingenuidade. Na realidade, como lemos na página 29,

“resulta ser esse um método cômodo para demonstrar a eterni­dade do modo capitalista de produção ou para fazer do capitalum elemento natural imperecível da produção humana.”

Vejamos como, logo em seguida, volta a ser descrito esse “método cômodo” :

“O trabalho é condição natural eterna da existência humana.”Digamos entre parênteses: é bom que vocês liguem essa proposição sobre o trabalho — que é muito freqüente em Marx — com o que é dito na passagem dos Grundrisse (vol. 2, pp. 277-279), que lemos no final da lição anterior, e na qual, contra A. Smith, afirma-se a possibilidade de que, superada a condição de alienação, o trabalho perca sua característica de mero custo e se apresente como positividade. Mas prossigamos naleitura do trecho do Capítulo VI:

“O processo de trabalho não é outra coisa senão o próprio trabalho, visto no momento de sua atividade criadora. Os mo­mentos gerais do processo de trabalho, por conseguinte, são independentes de todo desenvolvimento social determinado.”

Ou seja, esses elementos gerais — o fato de que tenha lugar um “inter­câmbio orgânico entre homem e natureza” — são sempre os mesmos, qualquer que seja o contexto histórico no qual estão inseridos. Prosse­guindo:

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“Os meios e materiais de trabalho, dos quais uma parte é já produto de trabalhos precedentes, desempenham seu papel em todo processo de trabalho, em qualquer época e sob quaisquer circunstâncias. Se, portanto, lhes aplico o nome de capital, na certeza de que semper aliquid haeret [sempre algo restará], terei demonstrado”

(isto é, a economia política terá “demonstrado”)“que a existência do capital é uma lei natural eterna da pro­dução humana e que o Kirgiz — que com uma faca roubada aos russos corta juncos para fazer o seu barco — é capitalista como o senhor Rotschild. Do mesmo modo, poderia demonstrar que gregos e romanos tomavam a comunhão porque bebiam vinho e comiam pão.”

Mas essa demonstração se volta, em última instância, contra quem a pratica, pois — se o capital é identificado com as coisas, isto é, com as condições objetivas da produção, e depois, sobre essa base, se afirma que o capital é eterno — pode-se então, com toda razão, responder que eternas serão precisamente aquelas coisas, mas não certamente os capitalistas. Vejamos, com efeito, como se expressava, em 1839, J. F. Bray (citado em nota por Marx, p. 30):

“Se cada capitalista e cada ricaço da Grã-Bretanha ficasse, de repente, morto como pedra, nem uma só partícula de riqueza ou de capital desapareceria com ele, nem a nação se empobre­ceria sequer no valor de um farthing. É o capital e não o capita­lista o essencial para as operações do produtor, e medeia entre os dois a mesma diferença que existe entre o carregamento real de um navio e o recibo da carga.”

Mas, para destacar e comentar o erro que identifica o capital com as coisas, Marx — nos Grundrisse (vol. 1, p. 289) e referindo-se ao próprio J. F. Bray - já havia dito:

“Os socialistas costumam dizer: precisamos do capital, não do capitalista. Mas então o capital figura como simples coisa, não como relação de produção que, refletida em si, é precisamente o capital. Posso facilmente separar o capital de um capitalista individual determinado e fazê-lo passar para as mãos de outro. Mas, se ele perde o capital, perde a sua qualidade de capitalista. Por isso, o capital pode muito bem ser separado do capitalista individual, mas não do capitalista, que enquanto tal se contrapõe ao operário.”

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Lição 5 A COMPRA-E-VENDA DA FORÇA-DE-TRABALHO.

CAPITAL E TRABALHO ASSALARIADO.

Comecemos pelo exame do parágrafo contido nas páginas 32-33, intitulado “Esfera da circulação e esfera da produção: o trabalho assala­riado como pressuposto necessário da produção capitalista” .

A tese geral abordada nesse parágrafo, tese a que já me referi na primeira lição, é a questão do duplo caráter da relação de troca que se verifica entre o capitalista e o operário. Dupla no sentido de que essa relação, se por um lado e' assimilável a qualquer outra relação de troca, processando-se portanto segundo a lei geral do valor e implicando a troca (entre esses dois sujeitos) de valores equivalentes, é por outro lado uma troca entre quantidades desiguais de trabalho, e, nesse sentido, diferencia­se de todos os outros atos de troca. Esse parágrafo é dedicado à ilustração desse elemento comum e dessa diferença específica que se verificam entre a troca da força-de-trabalho e a troca em geral. Para apreender bem essa duplicidade da troca salarial, é necessário fazer a distinção - que Marx faz no início do referido parágrafo - entre a parte da relação capitalista- operário que pertence à esfera da circulação, e a parte dessa mesma relação que pertence, ao contrário, à esfera da produção. Com efeito, o início do parágrafo (p. 32) diz o seguinte:

“Vimos que a transformação de dinheiro em capital decompõe-se em dois processos autônomos, que pertencem a esferas comple­tamente diferentes e existem separadamente um do outro. O primeiro processo pertence à esfera da circulação de mercadorias

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e, portanto, se efetua no mercado. Trata-se da compra-e-venda da capacidade de trabalho1. O segundo processo consiste no consumo da capacidade de trabalho adquirida ou no próprio processo de produção.’’'

Segue-se uma ilustração detalhada dessas duas fases do processo, ou melhor, desses dois processos. No que se refere ao primeiro, a ilustração começa logo após, na página 33, primeiro parágrafo, onde se diz:

“O primeiro processo, a compra-e-venda da capacidade de tra­balho, só nos mostra o capitalista e operário como comprador e vendedor de uma mercadoria.”

Portanto, sob esse aspecto, são dois agentes de troca, os quais, pelo menos até então, ou seja, até que não saiam da esfera da circulação, não se distinguem entre si, já que um vende e outro compra.

“O que distingue o operário de outros vendedores de mercadorias é a natureza especifica, o valor-de-uso específico da mercadoria vendida por ele.”

Portanto, entre o operário e os demais vendedores existe uma diferença simplesmente de mercadoria vendida, até o momento em que se permanece na esfera da circulação. Assim como o vendedor de trigo difere do vendedor de sapatos por venderem dois valores-de-uso diversos, do mesmo modo o operário difere de ambos por vender um valor-de-uso diverso, ou seja, a sua força-de-trabalho. Enquanto nos limitarmos a considerar a esfera da circulação, — é o que diz Marx, — o operário é um vendedor como qualquer outro e se distingue dos outros somente por razões físicas, mercadológicas. Com efeito, Marx aduz:

“Mas o valor-de-uso peculiar das mercadorias não modifica, em absoluto, a determinação formal econômica da transação” ;

ou seja, trata-se de uma troca como qualquer outra;“em nada modifica o fato de que o comprador representa dinheiro, e o vendedor, mercadoria.”

E é isso o que sempre ocorre em qualquer transação. Ora, essa proposição — assim como a que vem logo após — mostram como essa circunstância, pertencente à esfera da circulação, é um dos incentivos que a relação capitalista oferece à economia política para ocultar a

1. Não se deve esquecer que, com a expressão “capacidade de trabalho” , Marx indica aqui o que mais tarde chamaria de “força-de-trabalho” (Nota do Tradutor).

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natureza real do capital e da relação entre capital e trabalho, assimilando essa relação a um ato de troca em geral e, desse modo, retirando-lhe sua especificidade. Com efeito, diz Marx:

“Para demonstrar que a relação entre o capitalista e o operário é apenas uma relação entre possuidores de mercadorias, os quais trocam dinheiro e mercadorias com base em contrato livre, de mútuo benefício”

(precisamente como ocorre na troca em geral); para demonstrar tudo isso,“basta isolar o primeiro processo, atendo-se ao seu caráter formal,”

isto é, o referente à esfera da circulação.“Esse simples jogo de prestidigitação”

— ou seja, esse isolamento da esfera da circulação em face da esfera da produção —

“não chega ao nível da bruxaria, mas constitui o repositório da sabedoria à disposição da economia vulgar.”

Desse modo, uma vez verificado que tal compra-e-venda ocorreu, uma vez portanto, constatado que o capitalista está de posse da força- de-trabalho, não há mais nada a acrescentar; tudo o que se tinha de saber já se sabe. E então, detendo-se nesse ponto, é fácil assimilar essa relação de troca particular à relação de troca em geral. De modo que, nas linhas que se seguem, Marx formula esse outro ponto importante: que, embora para captar a diferença existente entre esse ato de troca e os atos de troca em geral, ou seja, para demonstrar que esse ato de troca é também, aliás é essencialmente, uma troca desigual, não uma troca de equivalentes, sendo portanto uma relação particular, ou seja, uma relação de exploração; embora, portanto, para demonstrar isso, deva-se chegar a descrever propriamente o que ocorre no âmbito do processo produtivo, consta- ta-se que — mesmo sem se chegar a tanto, diz Marx, mas apenas conside­rando com um mínimo de atenção a simples esfera da circulação — já pode surgir a suspeita de que existe algo diferente, e que estamos numa situação não perfeitamente assimilável à situação geral da troca.

Busquemos ver por quê. A sugestão de Marx é que essa suspeita pode derivar já da particularíssima natureza da mercadoria em questão. Continuemos a leitura na página 33:

“Como vimos, o capitalista deve transformar seu dinheiro não só em capacidade de trabalho, mas também em fatores objetivos do processo de trabalho, os meios de produção. Se, não obstante,

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considerarmos o capital integral, por um lado, isto é, o conjunto dos adquirentes de capacidade de trabalho, e, por outro, a totalidade dos vendedores de capacidade de trabalho, da totali­dade dos operários, veremos que o operário se vê obrigado a vender, em lugar de uma mercadoria [ qualquer]” .

(vemos aqui que já aparece a diferença: essa mercadoria, mesmo permane­cendo na esfera da circulação, aparece não como uma mercadoria qualquer)

“sua própria capacidade de trabalho como mercadoria. Isso se deve a que, por outro lado, [o operário] vê como propriedade alheia todos os meios de produção, todas as condições objetivas do trabalho, assim como todos os meios de subsistência; e isso porque toda a riqueza objetiva surge aos olhos do operário como propriedade dos possuidores de mercadorias. A premissa é que o operário trabalha como não proprietário, e as condições de seu trabalho se lhe antepõem como propriedade alheia.”

A argumentação, então, é a seguinte: se nós, ao invés de conside­rarmos um ato singular de troca relativa à força-de-trabalho, conside­rarmos essa troca de força-de-trabalho em sua generalidade, ou seja, como uma troca entre duas classes, considerando o conjunto dos capitalistas, por um lado, e, por outro, o conjunto dos operários, então começaremos a perceber que a mercadoria em questão é uma mercadoria particula­ríssima e descobrimos também as razões dessa particularidade. A merca­doria é particularíssima porque, ao invés de ser um objeto possuído pelo operário, é o próprio operário em sua determinação particular, ou seja, enquanto força-de-trabalho. Trata-se, portanto, da alienação da própria subjetividade do trabalhador, já que a força-de-trabalho é o que permite a explicitação do trabalho, que é a própria explicitação da vida do trabalhador. Portanto, podemos dizer uma primeira coisa: que não se trata aqui de uma mercadoria possuída pelo operário, mas se trata do próprio operário nessa determinação particular. Mas pode-se dizer ainda outra coisa: olhando os fatos desse modo, percebemos também quais são as razões por que essa relação se refere a uma mercadoria tão particular, tão peculiar; as razões são estas: que, dado ser o operário (como diz Marx) um não proprietário, ou seja, alguém que não possui nem os meios de produção nem os meios de subsistência necessários para viver e portanto para trabalhar, então nada lhe resta a vender senão precisamente sua própria subjetividade. Essa particularidade - e particu­laridade, note-se bem, ainda no nível da esfera da circulação, ou seja, sem abordar ainda diretamente o problema do que acontece no âmbito do processo produtivo, depois de efetivada a compra-e-venda da força- de-trabalho - essa particularidade, dizia, pode ser especificada ainda melhor se refletirmos no fato de que, em conseqüência dessa separação

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do operário tanto dos meios de produção quanto dos meios de subsis­tência que lhe são necessários para viver e trabalhar, verifica-se a circuns­tância fundamental indicada no fim da página 34:

“Não é o operário quem compra meios de subsistência e meios de produção, mas os meios de subsistência compram o operário para incorporá-lo aos meios de produção.”

Vamos nos deter um momento nessa frase, pois ela — que expressa o ponto essencial da teoria marxiana do capital — não pode certamente ser considerada como uma proposição de senso comum. Ela já é resultado de uma elaboração analítica bastante complexa; portanto, embora a tese devesse agora ser quase óbv¡a, depois das coisas que lemos, vale a pena que nos detenhamos nela ainda por um momento. Onde está a sua não obviedade? No fato de que se poderia ser levado a crer, encarando as coisas superficialmente, que o operário compra meios de subsistência; afinal, não é verdade que, quando gasta o seu dinheiro, o operário os compra? Então por que é que Marx diz que “não é o operário quem compra meios de subsistência”? E chega mesmo a dizer que ocorre o contrário? Ou seja: que são os meios de subsistência que o compram, o que é certamente uma afirmação muito distante do senso comum e da percepção imediata? Todavia, a coisa é evidente no seguinte sentido: os meios de subsistência fazem parte do capital e constituem o que chamamos de capital variável. Em outras palavras: a essência do processo, ou seja, a essência da relação entre capitalista e operário, só seria captada até o fundo se a relação fosse considerada do seguinte modo: o capitalista, já que é o possuidor direto dos meios de produção, é também o possuidor direto da outra parte do capital, constituída pelos meios de subsistência; e, de posse desses meios de subsistência, compra com eles a força-de- trabalho do operário. Nesse caso, são os meios de subsistência, através da mediação do capitalista, que compram o operário pela sua força-de- trabalho. Na prática, as coisas não aparecem assim, já que o capitalista antecipa, como salário, uma determinada soma ao operário, e, depois, o operário se arruma para comprar por sua conta os meios de subsistência no mercado. Mas esse é um modo prático de resolver a relação entre capitalista e operário, que oculta a verdadeira natureza desse processo. Na realidade, a soma de dinheiro antecipada como salário já é a repre­sentação de meios de subsistência, que estão realmente sob a posse dos capitalistas enquanto classe. Se se considera o processo no nível do sistema, o estoque de meios de subsistência presentes no sistema é propriedade da classe dos capitalistas, do mesmo modo como são sua propriedade os meios de produção. E esses meios de subsistência cons­tituem uma parte do capital da classe dos capitalistas, mediante a qual essa classe compra força-de-trabalho no mercado. É verdade que, na prática, a relação salarial é de tal natureza que o capitalista dá ao ope-

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rário uma soma de dinheiro, solicitando ao próprio operário que com­pre as mercadorias particulares que constituem sua subsistência; mas a presença dessa mediação do mercado esconde — mas certamente não destrói — a essência da relação, que é de outro tipo. Vemos aqui, portanto, uma outra peculiaridade dessa relação de troca. Como faz o capitalista para comprar a força-de-trabalho do operário? Quem lhe dá os meios para fazê-lo? Ele possui os meios porque possui capital; e possui especificamente a parte do capital que corresponde em valor ao valor dos meios de subsistência, ou seja, que é constituída, em última análise, por meios de subsistência. De fato, logo após a última citação, ainda na página 34, Marx diz:

“Os meios de subsistência são forma material particular de existência sob a qual o capital se contrapõe ao operário antes que esse os adquira mediante a venda de sua capacidade de trabalho.”

Portanto, a apropriação dos meios de subsistência pelo operário é um ato posterior, que confirma o fato de que, na realidade, esses meios— através da mediação do salário — já lhe foram antecipados pelo capi­talista que os possui, tal como possui todo o capital.

Ora, ficando claro que essa transação é uma transação particu­laríssima, tendo em vista a peculiaridade da mercadoria em questão (a própria subjetividade do trabalhador), já pode se começar a ver que, no âmbito da esfera da circulação, as coisas não podem ser redutíveis sem resíduos à configuração geral da troca; e, com efeito, que as coisas sejam precisamente assim é algo confirmado pela consideração, feita na página 36, de que esse ato de troca é a premissa necessária para o posterior processo de produção capitalista. Coisa que se pode dizer tão-somente desse ato particular de troca e de nenhum outro. Portanto, podemos ler logo no início da página 36:

“Por conseguinte, ainda que a compra-e-venda da capacidade de trabalho — que condiciona a transformação de uma parte do capital em capital variável — seja um processo anterior, separado e independente do processo imediato de produção, constitui, não obstante, o fundamento absoluto do processo capitalista de produção, e, igualmente, um momento desse processo produtivo, se o considerarmos como um todo e não no momento da produção imediata de mercadorias.”

Ou seja: se o processo capitalista é considerado na sua totalidade, vê-se que o processo de produção — no qual esse processo capitalista se realiza especificamente — é necessariamente precedido por esse singula- ríssimo momento da esfera da circulação, ou seja, o momento que

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determina necessariamente a passagem da esfera da circulação para o processo produtivo, já que o capitalista, através da aquisição da força- de-trabalho, compra precisamente a condição subjetiva do procêsso produ­tivo. Portanto, o ato de troca que tem por objeto a força-de-trabalho possui uma peculiaridade que o transforma em premissa imediata de uma outra coisa, que transcende a esfera da circulação, ou seja, a produção. Isso confirma uma tese que vimos exposta ao longo do parágrafo anterior, ou seja, a ilegitimidade de tratar o capital como se fosse uma coisa e não uma relação entre pessoas. O capital é tão pouco uma coisa, e é tão verdade que se trata de uma relação entre pessoas (isto é, entre classes, ou seja, uma relação social), que esse particular ato de troca, que configura precisamente uma relação entre duas classes sociais, é a premissa necessária da relação de produção capitalista. De fato, no meio da página 36, a tese é novamente repetida, quase monotamente, já que esse é um motivo constante de toda a argumentação de Marx:

“O capital não é nenhuma coisa, do mesmo modo que o dinheiro não o é. No capital, como no dinheiro, determinadas relações sociais de produção entre pessoas se apresentam como relações de coisas para com pessoas, bem como determinados relacio­namentos sociais surgem como propriedades sociais naturais das coisas. Sem trabalho assalariado, nenhuma produção de mais- valia existe, já que os indivíduos se relacionam como pessoas livres; sem produção de mais mais-valia, não existe produção capitalista, e, por conseguinte, nenhum capital e nenhum capi­talista!”

Os meios de produção não são capital a não ser que sejam trocados por trabalho assalariado; o trabalho não é trabalho assalariado a não ser que seja comprado pelo capital; portanto, capital e trabalho assalariado nascem numa só operação e são duas faces da mesma realidade.

“O dinheiro não pode transmudar-se em capital se não é inter- cambiável pela capacidade de trabalho, enquanto mercadoria vendida pelo próprio operário. Por outro lado, o trabalho só pode aparecer como trabalho assalariado quando suas próprias condições objetivas”

— isto é, os meios de produção e os meios de subsistência —“se lhe opõem como poderes autônomos, propriedade alheia, valor existente para si e preso a si mesmo; em suma: como capital.”

A coisa é novamente repetida, na passagem da página 36 para a pá­gina 37:

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“O trabalho assalariado é, pois, para a produção capitalista, uma forma socialmente necessária do trabalho, assim como o capital, o valor elevado a uma potência” ,

— ou seja, o valor que cresce sobre si mesmo —“é forma socialmente necessária às condições objetivas do tra­balho para que esse último seja trabalho assalariado.”

Portanto, o capital é essencial ao trabalho assalariado; o trabalho assala­riado é essencial ao capital. Ou seja: trata-se precisamente de dois momento de uma mesma realidade.

Prossegue Marx, na página 37:“Assim, o trabalho assalariado constitui condição necessária para a formação de capital e se mantém como premissa neces­sária e permanente da produção capitalista. Em conseqüência, ainda que o primeiro processo — a troca de dinheiro por capaci­dade de trabalho, ou a venda da capacidade de trabalho — não entre como tal no processo imediato de produção” ,

precisamente porque pertence inteiramente à esfera da circulação,“participa pelo contrário na produção da relação global.”

Ou seja: entra na produção da relação capitalista, sendo seu primeiro momento.

O segundo momento é o processo produtivo em sentido estrito, do qual se começa a falar logo após a última citação; até agora, portanto, Marx falou do processo de circulação, da analogia entre a troca de força-de-trabalho e a troca em geral, mas referiu-se já a uma primeira diferença que começa a surgir em face da troca em geral; agora ele passa a abordar o processo do qual aquela troca é o pressuposto neces­sário, ou seja, o processo produtivo. E então a diferença será captada em toda a sua amplitude. A primeira coisa que aqui se começa a dizer (aliás: a dizer novamente) do processo produtivo é que ele é, antes de mais nada, processo de trabalho. E trata-se de uma determinação que já conhecemos. Mas depois se acrescenta - e é isso que nos interessa - que o processo produtivo é processo de valorização. Lemos na passagem da página 38 para a 39:

“No processo de trabalho considerado em si mesmo, o operário emprega os meios de produção. No processo de trabalho que é, ao mesmo tempo, processo capitalista de produção, os meios de produção utilizam o operário, de tal sorte que o trabalho só aparece como um meio graças ao qual determinada grandeza de

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valor, ou seja, determinada massa de trabalho objetivado extrai trabalho vivo para conservar-se e multiplicar-se. O processo de trabalho aparece assim como processo de autovalorização, por intermédio do trabalho vivo, do trabalho objetivado.”

Aqui se começa a mostrar que a troca de força-de-trabalho por capital, se por um lado é uma troca como todas as outras, ou seja, uma troca de valores equivalentes, é porém, por outro lado, uma troca cuja peculia­ridade — que já podia ser entrevista no processo de circulação - mani­festa-se aqui em toda a sua verdadeira natureza, já que se descobre que, abaixo dessa troca de equivalentes, há uma troca desigual. Por que uma troca desigual? Porque, uma vez que a força-de-trabalho passou a posse do capitalista, surge dela mais trabalho do que o trabalho nela objetivado. Vamos relembrar, para maior clareza, qual é — segundo Marx — a essência desse processo. 0 capitalista compra a força-de-trabalho, cedendo ao operário o exato equivalente do valor dessa força-de-trabalho. Se o valor dessa força-de-trabalho é, por exemplo, de seis horas de trabalho, já que essas seis horas são o necessário para reconstituir os meios de subsistência, o capitalista dá aquela quantidade de dinheiro na qual está objetivado um valor de seis horas de trabalho. Nesse sentido, a troca é uma troca que respeita a lei geral do valor: é uma troca de equivalentes. As duas mercadorias trocadas, ou seja, o dinheiro do capitalista e a força-de- trabalho do operário, têm o mesmo valor, isto é, objetivam em si a mesma quantidade de trabalho. Apesar disso, apesar dessa paridade, dessa equi­valência, que tem lugar na esfera da circulação, a peculiaridade da mercadoria em questão é que, quando se chega ao processo produtivo, tem-se uma mudança dessa equivalência, porque na realidade o capitalista entra de posse não simplesmente da quantidade de trabalho objetivada na força-de-trabalho que comprou, mas de uma quantidade de trabalho maior, em conseqüência do fato ,de que o operário pode dar numa jornada de trabalho, digamos, não simplesmente aquelas seis horas, mas dez horas de trabalho, ou seja, quatro horas a mais do que as horas objetivadas em sua força-de-trabalho. Temos aqui, portanto, a não equi­valência. A troca, quando se completa no processo produtivo, revela ser uma troca entre entidades desiguais; aliás, pode-se dizer que aquela troca de equivalentes que se verifica no processo de circulação só tem sentido quando se transforma, no processo produtivo, numa troca desigual. Vejamos como a coisa é descrita, com muita precisão, na página 39:

“No próprio processo de troca, são trocados um quantum de trabalho objetivado no dinheiro como mercadoria por um quantum igual de trabalho objetivado na força-de-trabalho viva.”

Portanto, desse ponto de vista, a lei geral do valor é cumprida:

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“De acordo com a lei do valor que rege a troca de mercadorias, trocam-se equivalentes, quantidades iguais de trabalho objetivado, embora um quantum esteja objetivado em urna coisa”

— no dinheiro do capitalista —“e o outro em uma pessoa viva”

(na força-de-trabalho do operário).Já na página 40, prossegue Marx:

“Essa troca, entretanto, não faz mais do que servir de prólogo ao processo de produção, através do qual, de fato, se troca mais trabalho em forma viva do que o que se havia dispendido em forma objetivada.”

“Mais trabalho em forma viva” é o trabalho realizado pelo operário no processo produtivo; “do que o que se havia dispendido em forma objetivada” é a idêntica quantidade de trabalho que está contida tanto no dinheiro gasto pelo capitalista quanto na força-de-trabalho que o capitalista comprou. Portanto, aquela primeira quantidade de trabalho é maior do que essa segunda, e, por isso, no processo de produção, troca-se mais trabalho por menos trabalho. Consiste exatamente nisso o que Marx chama de exploração capitalista. Precisamente nisto: que a troca, que é de equivalentes no processo de circulação, torna-se uma troca de coisas desiguais no processo produtivo. Recorde-se que Marx sempre insistiu, com muito cuidado, sobre o fato de que a exploração capitalista não apenas não é uma violação da lei geral- do valor, mas é inclusive essa própria lei. A exploração capitalista não consiste no fato de que se pague ao operário menos do que lhe é devido; ao operário se paga exatamente o que lhe é devido, já que o operário vende uma mercadoria particular, a força-de-trabalho, que é comprada exatamente pelo seu valor. Só que é da peculiaridade dessa mercadoria que surge depois a relação de exploração, que deve ser buscada, portanto, não na esfera da circulação, mas na esfera da produção, já que a exploração— enquanto nos mantivermos na esfera da circulação — não pode ser vista, pela simples razão de que não existe. E então, como Marx disse poucas páginas antes, toda a sabedoria da economia política consiste em limitar as próprias considerações à esfera da circulação, com a conse­qüência de que não se sabe o que ocorre na esfera da produção, simples­mente porque evita-se falar dela. De fato, nessa mesma página 40, existem duas críticas dirigidas à economia política, mas particularmente a Ricardo, embora seu nome não apareça. Vamos ler esse trecho:

“O grande mérito da economia clássica, pois, é o de haver apresentado o processo inteiro de produção como um processo

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entre o trabalho objetivado e o trabalho vivo, e, portanto, haver representado o capital, por oposição ao trabalho vivo, apenas como trabalho objetivado, ou seja, como valor que se valoriza a si mesmo mediante o trabalho vivo.”

E até aqui a economia clássica está certa.“Sua falha, a esse respeito, consiste tão-somente no seguinte: primeiro, foram fos economistas clássicos] incapazes de de­monstrar como essa troca de mais trabalho vivo por menos trabalho objetivado corresponde à lei da troca de mercado­rias, à determinação do valor das mercadorias pelo tempo de trabalho.”

Ou seja: a economia política de Ricardo (mas por outro lado, como já sabemos, também a de Smith) encontra-se paralisada precisamente diante deste fato: como é possível que, no âmbito do processo capitalista, existam essas duas coisas? A troca de equivalentes e a troca de não equivalentes? Como é possível que a relação capitalista seja, por um lado, uma troca de equivalentes, como ocorre sempre nas trocas que se processam segundo a lei do valor, e, por outro lado, haja ao contrário um mais-valor ( ou mais-valia), que denuncia a existência de uma troca entre valores desiguais? A presença simultânea dessas duas coisas sempre foi considerada um absurdo pela economia política clássica, que se apegou ora a uma, ora a outra, e desse modo, em última análise, deixou que ambas escapassem. Como sabemos, pois já falamos disso na primeira lição, Ricardo se fixa no ponto em que se trata de uma troca de equiva­lentes, redutível portanto à lei geral da troca. Smith se fixa no ponto em que se trata de uma troca entre entidades desiguais, com a contra­posição entre trabalho contido e trabalho comandado. Portanto, esses dois economistas captam, cada um deles, um lado do dilema; e, não conseguindo vê-los como dois momentos de uma mesma realidade, — quenão se contradizem entre si, mas antes constituem, em seu conjunto, aessência da relação capitalista, — têm da relação capitalista, precisamente por isso, uma visão insuficiente, cuja conseqüência, em ambos, é exata­mente o fato de que a mais-valia não é explicada, não se sabendo qual a sua origem. O segundo aspecto da insuficiência da economia clássica é assim formulado:

“e, segundo, confundiram [os economistas clássicos] de imediato a troca de determinado quantum de trabalho objetivado pelacapacidade de trabalho, troca que se efetua no processo decirculação,"

— e é de recordar que, com a expressão “trabalho objetivado” , Marx se refere aqui ao trabalho contido no dinheiro cedido pelo capitalista ao

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operário, e portanto, em última análise, nos meios de subsistência desse último, —

“[confundiram isso] com a absorção, no processo de produção, do trabalho vivo pelo trabalho objetivado existente sob a figura de meios de produção. Confundiram o processo de troca entre capital variável e capacidade de trabalho com o processo de absorção do trabalho vivo pelo capital constante.”

Vamos nos deter por um momento nessa colocação. Antes de mais nada: a economia política havia visto bastante bem que o que se chama de “mercado de trabalho” dá lugar a esse tipo de troca: que uma certa quantidade de dinheiro em mãos do capitalista, que traz incorporada uma certa quantidade de trabalho, é trocada por força-de-trabalho; que, por isso, a parte do capital do capitalista que se chama capital variável e' trocada pela força-de-trabalho do operário. Esse ponto, portanto, foi visto. Por que, contudo, eles pararam aqui? Porque não viram que tudo isso era a premissa de uma outra realidade, que começaria no âmbito do processo de produção. O que é essa outra coisa que se dá no processo de produção? No processo de produção, dá-se que o capitalista não tem mais em mãos o capital variável em sua forma de dinheiro; tampouco tem o capital variável na forma de meios de subsistência; no lugar do capital variável, que o capitalista não possui mais porque o gastou, está a força-de-trabalho viva, a qual entra em contato, dessa feita, com o capital constante, ou seja, com os meios de produção. Portanto, enquanto na esfera da circulação a força-de-trabalho relaciona-se com o capital variável, porque é trocada pelo capital variável, no âmbito do processo de produção a força-de-trabalho, agora comprada, relaciona-se com o capital constante, ou seja, com os meios de produção. E é através da relação com o capital constante que surge o trabalho excedente (o mais- trabalho), porque é o capital constante que — absorvendo o trabalho vivo— absorve-o em quantidade maior do que a quantidade de trabalho contida na força-de-trabalho.

Ora, já que assim são as coisas, a distinção entre processo de produção e processo de circulação pode também se expressar — e é aqui efetivamente expressa — como a diferença existente entre a relação entre força-de-trabalho e capital variável, na circulação, e a relação entre força-de-trabalho e capital constante, no processo de produção. Portanto, podemos dizer: as duas partes do capital, com as quais a força-de-trabalho entra sucessivamente em contato, estabelecem esse contato com a força- de-trabalho uma vez na esfera da circulação e outra vez na esfera da produção. Ora, Marx diz: já que a economia política jamais distinguiu entre capital constante e capital variável, chegando mesmo (sobretudo graças ao incentivo dado por Smith) a reduzir todo o capital antecipado a salário, então o fato de não ver a parte do capital à qual é imputável, no62

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processo de produção, a absorção de trabalho vivo em quantidade superior ao trabalho objetivado na força-de-trabalho, faz com que não se veja tampouco o processo pelo qual é responsável o capital constante e que deve lhe ser imputado. Na medida em que a economia política não vê o capital constante, que ela reduz sempre a antecipações salariais, não vê tampouco o processo imputável ao capital constante, que é precisamente o processo de absorção do trabalho em quantidade sufi­ciente para determinar a formação de um trabalho excedente ao lado do trabalho necessário. Nas quatro linhas finais na página 40, encontra-se a confirmação de tudo isso:

“Essa apropriação”— ou seja, a apropriação do trabalho vivo alheio por parte do capitalista —

“é mediatizada pela troca que se efetua no mercado entre capital variável e capacidade de trabalho, mas não se leva a termo cabalmente senão no processo de produção.”

Portanto, a troca é necessária para que o capitalista se aproprie de força-de-trabalho; mas a apropriação de força-de-trabalho não é senão o meio para a apropriação de trabalho vivo, do trabalho vivo que pode emanar precisamente da força-de-trabalho; e, enquanto a apropriação de força-de-trabalho se faz através do capital variável, a apropriação de trabalho vivo se faz mediante o capital constante. Temos aqui, portanto, o caráter essencial dessa distinção, que não foi feita pela economia política.

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Lição 6AINDA SOBRE A TROCA ENTRE CAPITAL

E FORÇA-DE-TRABALHO. SUBSUNÇÃO FORMAL E SUBSUNÇÃO REAL

DO TRABALHO AO CAPITAL

Concretizamos, na lição passada, em que sentido se deve dizer que a troca entre capital e força-de-trabalho é uma troca entre equivalentes e em que outro sentido se deve dizer, ao contrário, que é uma troca entre não-equivalentes. Seguem-se agora, a partir da página 43, alguns parágrafos que são substancialmente a repetição, embora mais rica, de coisas que já lemos ou dissemos; por isso, creio que os elementos que permitirão a vocês lerem essas páginas sozinhos já foram colocados. Trata-se, em substância, do parágrafo intitulado “Continuidade do pro­cesso produtivo etc.” , nas páginas 43-44, que é interessante essencialmente porque em certo momento, ou seja, na página 44, Marx dá novamente uma caracterização da categoria de trabalho abstrato, mas em termos— repito — que já nos são conhecidos.

O parágrafo que começa na página 45 — intitulado “Ainda sobre as relações entre processo de circulação e processo de produção do capital” — é um parágrafo onde existem dois conceitos interessantes: em primeiro lugar, a distinção entre divisão social e divisão técnica do trabalho como característica típica do processo produtivo capitalista; em segundo, o conceito — que já vimos e expusemos mais de uma vez — segundo o qual a relação entre capital e trabalho é essencialmente uma personificação de coisas e uma reificação de pessoas. Trata-se de um ponto que já conhecemos. Por isso, penso que vocês podem ler sozinhos esse parágrafo. Em troca, poderemos examinar juntos o parágrafo que

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começa na página 47, e que tem como título “O processo de produção capitalista visto em seu conjunto”. Também aqui se diz uma coisa que, especialmente nas últimas aulas, vimos mais de uma vez, a saber, que o processo capitalista — considerado em seu conjunto — consta de dois processos articulados entre si, um dos quais pertence à esfera da circu­lação e o outro à esfera da produção. O primeiro processo, o que pertence à esfera da circulação, é o processo de compra-e-venda da força-de- trabalho, e é precisamente o processo em relação ao qual se pode dizer— como vimos — que ocorre uma troca de equivalentes, com pleno respeito pela lei do valor, já que o capital variável cedido pelo capitalista tem um valor exatamente igual ao valor da força-de-trabalho cedida pelo operário. Estamos na esfera da circulação, e a troca é uma troca entre equivalentes, com pleno respeito pela lei do valor. Por isso, pode-se dizer que ainda não entramos no coração e na peculiaridade do processo capitalista. Essa entrada se dá com a segunda fase do processo, que pertence à esfera da produção e que é, como se diz no início da página 49,

“o processo real em que se consome a capacidade de trabalho” ,ou seja, o processo através do qual — da força-de-trabalho adquirida— se liberta um trabalho vivo em quantidade maior do que o trabalho contido na própria força-de-trabalho, a qual foi paga pelo seu valor mediante o dispêndio de capital variável; isto quer dizer que reside aqui a peculiaridade do processo capitalista, já que é aqui que o trabalho se transforma em elemento fundamental do processo de valorização, precisa­mente porque a força-de-trabalho é capaz de liberar mais trabalho do que o nela contido e, portanto, é capaz de fornecer não apenas um trabalho necessário, que reconstitui o valor da força-de-trabalho, mas também um trabalho excedente, um mais-trabalho, que se materializa em um produto excedente, ou mais-produto, o qual, precisamente em virtude dessa absorção de mais-trabalho, é uma mais-valia (ou mais-valor), isto é, a matriz do lucro do capitalista. E também esse é um processo que examinamos, juntos mais uma vez. Porém, vale a pena ler a conclusão que Marx coloca no final desse exame, já que — de modo bastante sintético e incisivo, além de mnemonicamente útil — resume a essência desse complexo processo capitalista. Trata-se do início da página 50, onde Marx diz o seguinte:

“Se se consideram ambos os momentos, primeiro, o intercâmbiode força-de-trabalho por capital variável” ,

ou seja, se consideramos o que ocorre na esfera da circulação,“segundo, o processo real de produção (no qual o trabalhovivo se incorpora como agente ao capital)” ,

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isto é, se consideramos o processo produtivo, a esfera da produção,“o processo em seu conjunto”

- o processo capitalista -“apresenta-se como um processo em que: 1) se troca menos trabalho objetivado por mais trabalho vivo, porquanto o que o capitalista recebe realmente (realiter) pelo salário é o trabalho vivo.”

0 que quer dizer isso? Repito: um menor trabalho objetivado é trocado por um maior trabalho vivo. Isso significa que o trabalho, que se objetiva no capital variável e que reaparece idêntico na força-de-trabalho, é trocado por um trabalho maior do que o trabalho vivo que provém dessa força-de-trabalho. Portanto, os termos são os seguintes: primeiro termo: capital variável, ou seja, uma certa soma de valor que se apresenta sob ò aspecto de dinheiro, isto é, uma certa quantidade de trabalho; segundo termo: a força-de-trabalho, que esse capital variável adquire o que tem, segundo a lei geral do valor, o mesmo valor do capital variável pelo qual é trocada; terceiro termo: o trabalho vivo, que provém dessa força de trabalho e que é maior do que a quantidade comum de trabalho que está contida tanto no capital variável quanto na força-de-trabalho; disso resulta a troca do menor pelo maior; e é por isso que o processo contém em si a origem da mais-valia. Vejam também o que Marx acrescenta aqui: essa troca ocorre

“porquanto o que o capitalista recebe realmente (realiter) pelo salário é o trabalho vivo.”

Que quer dizer esse realiter? Quer dizer que, embora o que o capitalista receba imediatamente, em troca do salário, seja a força-de-trabalho; embora o capitalista ceda um certo valor para possuir um valor idêntico, o que recebe porém na realidade, o que recebe realiter, não é simples­mente essa força-de-trabalho, mas é o valor-de-uso dessa força-de-trabalho; e o valor-de-uso dessa força-de-trabalho é o trabalho vivo que essa força- de-trabalho pode fornecer e que é maior do que o trabalho objetivado nela. Portanto, dizemos: o que o capitalista recebe imediatamente é uma certa coisa, mas na realidade é uma outra: ou seja, recebe na realidade o trabalho vivo, e não simplesmente o trabalho objetivado nessa merca­doria que compra; em outras palavras, é como se se dissesse — e, de resto, o próprio Marx o diz mais de uma vez — que essa mercadoria que é comprada, ou seja, a força-de-trabalho, é uma mercadoria peculiaríssima, porque nenhuma outra tem essa qualidade extraordinária: a de que seu valor-de-uso é precisamente o trabalho, ou seja, a substância valorizadora, e um trabalho maior do que o trabalho nela contido. Portanto, é essa a

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primeira conclusão, considerando o processo em seu conjunto. Depois, resulta uma segunda. Com efeito,

“2) as formas objetivas sob as quais o capital aparece direta­mente no processo de trabalho, os meios de produção (uma vez mais, trabalho objetivado), são meios para a extorsão e absorção desse trabalho vivo.”

Também esse é um conceito que encontramos mais de uma vez. Ou seja: quando se trata de um processo de produção capitalista e não de um processo de produção genérico, não é o operário quem utiliza os meios de produção, mas são os meios de produção que o utilizam. Em que sentido? No sentido de que o trabalho do operário só tem significado na medida em que dá lugar a um aumento do valor incorporado nesses meios de produção. Portanto, o trabalho do operário é meio para a valorização do capital inicial; nesse sentido, enquanto é meio para isso, são os meios de produção que utilizam esse trabalho e não o trabalho que utiliza os meios de produção; isto é, pode-se dizer que a relação está invertida em face do modo como se apresentaria normalmente em um processo produtivo natural ou genérico. Portanto, repito, não se trata de nada de novo com relação ao que já lemos em outras ocasiões; mas essa passagem, de modo muito mais incisivo, e portanto também mnemoni- camente útil, resume a substância da questão.

A partir do parágrafo seguinte, “Subsunção formal do trabalho ao capital” 1, começa um outro assunto, que deveremos enfrentar agora, um assunto diverso do anterior, mas estreitamente ligado a ele. Vou tentar expor de maneira muito esquemática a questão em pauta; e, depois, lendo juntos, veremos esse esquema ganhar substância com considerações e argumentações ulteriores. Trata-se de uma passagem que se tornou das mais conhecidas desse Capitulo VI, porque em nenhum outro local Marx tratou desse assunto com a mesma amplitude: referimo-nos à distinção entre dois modos de subsunção (ou subordinação) do trabalho ao capital, ou seja, de uma subsunção formal e de uma subsunção real do trabalho ao capital. Essa distinção entre subsunção formal e subsunção real encontra-se também no Livro 1 de O Capital, onde porém - em vez de se dizer subsunção formal e subsunção real ao capital — diz-se mais freqüentemente “produção de mais-valia absoluta” e “produção de mais- valia relativa” . No capítulo 14 do Livro 1 de O Capital, Marx observa que a distinção entre subsunção (ou subordinação) formal e real é a mesma coisa que a distinção entre mais-valia absoluta e mais-valia rela-

1. Nesse caso, também a edição brasileira traz o subtítulo: cf. p. 51 (Nota do Tradutor).

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tiva. Devemos tentar ver o que significa essa distinção, que se expressa em um desses dois modos.

Antes de mais nada, a subsunção formal — como observa Marx no início da página 51 - é entendida em dois sentidos: em sentido genérico e em sentido específico. Em sentido genérico, Marx entende por subsunção formal ao capital tão-somente o fato de que o trabalho está inserido num processo produtivo cujo sentido é a produção de mais-valia; e, portanto, o trabalho está inserido num processo em que são os meios de produção que usam o trabalho e não vice-versa, num processo cujo significado reside exclusivamente no aumento de valor do capital inicial; subsunção formal do trabalho ao capital, num primeiro sentido genérico, não significa portanto mais do que isso. Mas, depois, essa mesma determinação— subsunção formal — é entendida também, por Marx, num sentido não mais genérico porém específico, ou seja, para indicar a situação na qual, embora o trabalho esteja inserido num processo capitalista de produção, dotado das características a que acabamos de aludir, o processo de trabalho — do ponto de vista técnico — mantém ainda as formas em que se processava antes que a relação capitalista interviesse. Em outras palavras, estamos naquela situação, não apenas lógica mas também crono­logicamente inicial, na qual o capital se assenhoreou do processo produ­tivo, do processo de trabalho, mas assenhoreou-se apenas formalmente, no sentido de que o conteúdo particular do processo de trabalho continuou a ser o antigo; o processo produtivo, do ponto de vista do processo de trabalho, desenvolveu-se sob formas técnicas que o capital ainda não conseguia influenciar e tornar homogêneas a si mesmo. Trata-se de uma fase historicamente bastante longa, como dirá Marx, essa da simples subsunção formal entendida em sentido específico. Ao contrário, a subsunção real do trabalho ao capital é a situação na qual não se trata apenas do fato de que o trabalho se encontra inserido num processo produtivo cujo sentido reside na produção de mais-valia; mas se trata também do fato de que o próprio processo de trabalho — enquanto processo técnico de relação entre o trabalho e os meios de produção — foi transformado pelo capital a ponto de torná-lo homogêneo à relação formal já existente entre trabalho e capital; isto é, a técnica produtiva não é mais a antiga, é uma técnica nova, especificamente capitalista, na qual a subsunção do trabalho ao meio de produção não é mais apenas uma subsunção que pode ser captada no terreno econômico, mas é uma subsunção que se capta também no terreno material; ou seja, o trabalho é subsumido ao instrumento, no sentido material da palavra. É essa a época da técnica capitalista em sentido propriamente dito, que tem sua culminação na máquina; de fato, o uso da máquina é a realização plena da subsunção real do trabalho ao capital.

Agora será bom ler os textos, e ver como Marx especifica essas coisas; no momento oportuno, examinaremos em que sentido a subsunção68

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formal, entendida em sentido específico, equivale à produção de mais- valia absoluta, e em que sentido a subsunção real equivale, ao contrário, à produção de mais-valia relativa; isso é algo que explicaremos quando Marx falar dessas categorias particulares; então pararemos para ver do que se trata. Retomemos a leitura, no início da página 51:

“O processo de trabalho converte-se em instrumento do processo de valorização,”

(observem que se fala aqui de uma característica geral da produção capitalista, para a qual o processo de trabalho é efetivamente e sempre um meio para a processo de valorização),

“do processo de autovalorização do capital — da fabricação de mais-valia. O processo de trabalho é subsumido ao capital (é seu próprio processo), e o capitalista se enquadra nele como seu dirigente, condutor; para este, é ao mesmo tempo, de imediato, um processo de exploração do trabalho alheio. É a isso a que denomino subsunção formal do trabalho ao capital.”

— temos aqui, portanto, a subsunção formal em sentido genérico.“É a forma geral de todo processo capitalista de produção.”

(E isso porque, em qualquer processo de produção capitalista, tem-se o fato de que o processo de trabalho é meio para o processo de valorização).

“Mas é ao mesmo tempo uma forma particular, ao lado do modo de produção especificamente capitalista em sua forma desenvolvida”

onde vigora a subsunção real e não formal,“já que a última inclui a primeira, mas a primeira não inclui necessariamente a segunda.”

Ou seja: a subsunção real é também e sempre subsunção formal (enten­dendo-se essa em sentido genérico), mas a recíproca não é verdadeira; a subsunção formal pode também não implicar a subsunção real. Vejamos agora o significado não mais genérico, porém específico, da subsunção formal.

“O processo de produção converteu-se em processo do próprio capital; é um processo que se desenvolve com os fatores do processo de trabalho, e no qual o dinheiro do capitalista se transforma; é um processo que se efetua sob a direção deste, com o fim de fazer de dinheiro mais dinheiro.”

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Ou seja: é um processo capitalista. Começamos agora com exemplos históricos:

“Quando o camponês, antes independente e que produzia para si mesmo, se torna diarista e trabalha para um agricultor”

(agricultor e' aqui o capitalista);“quando a estrutura hierárquica característica do modo de produção corporativo-medieval desaparece ante a simples opo­sição de um capitalista que faz trabalhar para si os artesões convertidos em assalariados”

(mas, poderíamos aduzir, que mantêm ainda a sua característica técnica de artesãos);

“quando o escravista de outrora emprega seus ex-escravos como assalariados, etc.”

(mas, acrescentamos, que continuam a fazer um trabalho não disseme­lhante do que faziam os escravos);

“[quando tudo isso ocorre], temos então que processos de produção determinados socialmente de outro modo se trans­formam no processo de produção do capital.”

Portanto, o processo de produção do capital incorpora processos produ­tivos que tiveram uma vida social diversa da vida do capital e que mantêm a herança dessa diversidade, na medida em que se processam tecnicamente ainda como o faziam antes, em que não foram ainda transformados pelo capital.

“Com isso, entram em cena modificações analisadas anterior­mente. O camponês, antes independente, cai — como fator do processo de produção — na dependência do capitalista que o dirige, e sua ocupação depende de um contrato que ele, como possuidor de mercadoria (como possuidor de força-de-trabalho), firmou previamente com o capitalista, na qualidade de possuidor de dinheiro.”

(Ou seja, temos o contrato salarial.)“O escravo deixa de ser instrumento de produção pertencente a seu empregador.”

Com efeito, a pessoa do operário não pertence mais ao capitalista: pertence-lhe tão-somente a força-de-trabalho do operário.

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“A relação entre mestre e oficial desaparece. O mestre, cuja relação anterior com o oficial era a de um conhecedor do oficio, se lhe defronta agora apenas como possuidor de capital, assim como o outro se contrapõe a ele simplesmente como vendedor de trabalho.”

“Anteriormente ao processo de produção, todos eles se defrontavam como possuidores de mercadorias”

(“anteriormente ao processo de produção” quer dizer: no processo de circulação: agora eles, ao contrário do que ocorria antes que o capital tivesse englobado essas formas, enfrentam-se todos do mesmo modo como possuidores de mercadorias, força-de-trabalho por capital)

“e mantinham entre si unicamente uma relação monetária”— de troca;

“dentro do processo de produção se defrontam como agentes personificados dos fatores que intervêm nesse processo: o capi­talista, como ‘capital’; o produtor direto, como ‘trabalho’.”

E, pouco depois, já na página 52:“Em que pese tudo isso, com tal troca (change) não se efetuou, a priori, mudança essencial no modo real do processo do tra­balho, do processo real de produção.”

Tecnicamente, o processo de trabalho conservou-se o mesmo. O camponês não é mais camponês independente, mas camponês assalariado; porém faz as mesmas coisas que fazia antes. O artesão da oficina medieval não é mais o aprendiz (ou oficial): é um assalariado que se encontra diante não mais do mestre da corporação, mas do capitalista; porém faz ainda as mesmas coisas que fazia antes como artesão.

“Pelo contrário, faz parte da natureza da questão o fato de que a subsunção do processo de trabalho ao capital se opere à base de um processo de trabalho preexistente, anterior a essa sub­sunção ao capital, e que se configurou à base de diferentes processos de produção anteriores e de outras condições de produção; o capital”

— e essa é a questão —“se subsume a determinado processo de trabalho existente”

(ou seja, que é existente para ele, capital); o capital ainda não o trans­forma, mas

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“se subsume a determinado processo de trabalho existente, como, por exemplo, o trabalho artesanal ou o tipo de agricultura correspondente à pequena economia camponesa autônoma,”

que permanecem, portanto, como eram antes.“Se nesses processos de trabalho tradicionais, que ficaram sob a direção do capital, se operam modificações, essas só podem ser conseqüências paulatinas da subsunção de determinados processos de trabalho tradicionais ao capital.”

Quais são esses processos que podem ocorrer sem que o velho processo de trabalho se transforme em outra coisa, homogênea ao capital? Eles são elencados, exemplificados, por Marx.

“Que o trabalho se faça mais intensivo ou que se prolongue a duração do processo de trabalho; que o trabalho se torne mais contínuo, e, sob as vistas interessadas do capitalista, mais orde­nado, etc., não altera em nada o caráter do processo real de trabalho, do modo real de trabalho."

Ou seja: algumas modificações provocadas pela presença do capitalista têm efetivamente lugar, mas não são modificações substanciais. O traba­lhador trabalha mais, trabalha mais intensamente, trabalha de modo mais ordenado, mais contínuo; mas era artesão, e continuou artesão; era camponês, e continuou camponês. É essa a situação, portanto, no que diz respeito à subsunção formal em sentido particular ou específico. Agora, Marx passa a descrever a subsunção real:

“Isso constitui um grande contraste com o modo de produção especificamente capitalista (trabalho em grande escala, etc.), que, como indicamos”

(o “como indicamos” refere-se ao texto de O Capital e, portanto, não se vincula necessariamente ao conteúdo desse pequeno volume que contém o Capitulo Inédito),

“se desenvolve no curso da produção capitalista e revoluciona não só as relações entre os diversos agentes da produção, mas, simultaneamente, a índole desse trabalho e a modalidade real do processo de trabalho total. É por oposição a essa última que chamamos a subsunção até aqui considerada do processo de trabalho (de uma modalidade de trabalho já desenvolvida antes que surgisse a relação capitalista) ao capital de subsunção formal do trabalho ao capital

Portanto, poder-se-ia dizer que, em substância, com a subsunção formal72

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do trabalho ao capital, temos um capitalismo ainda incompletamente realizado, no qual foram colocadas algumas premissas fundamentais para sua realização: ou seja, o trabalho foi separado dos meios de produção, foi incluído dentro de um processo de trabalho que é tão-somente meio para um processo de valorização. Portanto, o capital já domina inteira­mente a forma, mas ainda não é completamente a matéria; ou seja, esse processo de trabalho não se tornou ainda homogêneo ao capital. Em outras palavras (e essa seria a fórmula mais exata): o capital subsumiu a si o trabalho enquanto determinação econômica, mas ainda não o subsumiu a si enquanto determinação material, ou seja, enquanto conjunto de meios de produção. Quando se chega à subsunção real, o capital subsumiu a si o trabalho também materialmente, isto é, também o capital considerado em sua base material subsumiu o trabalho, enquanto antes o capital havia subsumido o trabalho apenas em sua determinação econômica, não ainda em sua determinação material. Essa é a distinção entre as duas fases. Com efeito, para esclarecer mais ainda essa diferença, pode-se tomar em consideração o elemento de continuidade que existe entre essas duas formas, a fim de que não nos limitemos — o que seria errado — a examinar simplesmente uma sua diametral contraposição; há uma passagem, no próprio terreno do processo de trabalho, entre a simples subsunção formal e a subsunção real. São as modificações que Marx já começou a indicar, e que se verificam no processo de trabalho mesmo no interior da simples subsunção formal; agora, na parte final do parágrafo, Marx as resume sob uma determinação única, que se refere à escala do processo produtivo. Vejam o que ele diz na página 53:

“O que disntingue, desde o início, o processo de trabalho sub­sumido ainda apenas formalmente ao capital — e em relação a que se vai distinguindo cada vez mais, ainda que siga tendo por base a velha modalidade tradicional —”

ou seja, o que caracteriza o processo de trabalho ainda antigo, mas já subsumido formalmente ao capital,

“é a escala em que se efetua; ou seja, por um lado, a amplitude dos meios de produção adiantados; e, por outro, a quantidade de operários dirigidos pelo mesmo patrão (employer).”

Em suma: o processo de trabalho permanece tecnicamente o mesmo, mas intervém quando menos a seguinte modificação: a sua escala— atenção para este ponto! — não apenas é maior do que a que ocorria antes da intervenção do capital, mas, sobretudo, deixa de ser uma escala dada para ser uma escala que aumenta continuamente. Por que isso? Porque antes, quando o capital não havia ainda intervindo nem mesmo formalmente, a finalidade não era a produção de mais-valia, razão pela qual a produção se dava dentro de limites circunscritos; agora, ao

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contrário, sendo a meta a mais-valia, e dado que a mais-valia não tem outra determinação possível além de sua quantidade, o processo de trabalho se encontra, por assim dizer, comprimido no interior da forma da simples subsunção formal: é ainda o modo antigo, mas aumenta-se sua escala e tenta-se aumentá-la além de qualquer limite, a fim de que possa realmente servir à meta específica da produção capitalista, que é o aumento indefinido da mais-valia. Mas é precisamente essa compressão que, em dado ponto, determina a passagem da subsunção formal à subsunção real, pois em dado ponto torna-se impossível ampliar ulterior­mente o processo de trabalho se ele se conserva dentro das formas antigas; se se quer ampliar o processo de produção além de qualquer limite, não se pode mais manter o caráter artesanal e camponês do trabalho; é preciso que o trabalho seja colocado, inclusive materialmente, no interior de uma lei diversa; e tão-somente se o trabalho é posto também tecnicamente no interior de uma lei diversa é que começa a se tornar possível esse aumento contínuo da quantidade de mais-valia, que significa aumento contínuo da escala do processo de trabalho. Então se rompe esse último obstáculo material que ainda subsistia para a realização plena da produção capitalista. O que ocorre então? Ocorre a transformação descrita sob o nome de subsunção real, que é apresentada por Marx, em seus elementos essenciais, na página 55. Nela se diz:

“No capítulo III”(Marx refere-se a O Capital, Livro 1, cap. 10),

“havíamos exposto detalhadamente como, com a produção da mais-valia relativa”

(vamos por enquanto deixar de lado essa “mais-valia relativa” , que ainda não sabemos bem o que quer dizer; depois o veremos),

“[ . . . ] modifica-se toda a figura real do modo de produção, e surge (inclusive do ponto de vista tecnológico) um modo de produção especificamente capitalista, sobre cuja base e com o qual se desenvolvem ao mesmo tempo as relações de produção— correspondentes ao processo de produção capitalista - entre os diversos agentes da produção, e em particular entre os capitalistas e os assalariados.”

“[Aumentam] as forças produtivas sociais do trabalho, ou as forças produtivas do trabalho diretamente social, socializado (coletivizado), por força da cooperação, [da] divisão do trabalho na fábrica, [da] aplicação da maquinaria,”

realizando-se assim plenamente a subsunção real. Esse é um ponto sobre o qual, nas próximas lições, deter-nos-emos com certa atenção, já que74

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um dos pontos mais interessantes de O Capital é precisamente a descrição dos princípios sobre os quais se baseia a adequação da forma técnica a forma econômica no âmbito do capital.

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Lição 7 MAIS-VALI A ABSOLUTA

E MAIS-VALIA RELATIVA

Antes de retomarmos a leitura, talvez seja oportuno um esclare­cimento sobre a questão do vínculo, por um lado, entre a subsunção formal do trabalho ao capital e a formação de mais-valia absoluta, e, por outro, entre a subsunção real do trabalho ao capital e a formação de mais-valia relativa. Dado que os termos “mais-valia absoluta” e “mais-valia relativa” não são explicados no Capítulo VI, mas sim em O Capital, torna-se necessário — para torná-los compreensíveis — um mínimo de explicação da minha parte. Vejamos então o que significam mais-valia absoluta e mais-valia relativa, e em que sentido se vinculam aos outros dois termos: subsunção formal e subsunção real. Devemos retomar a argumentação a partir de algumas conclusões às quais chegamos no final da primeira lição. Como vocês se recordam, de acordo com essa teoria, o valor de uma mercadoria se divide em três partes componentes, de cuja soma resulta o valor total. Essas partes componentes são o valor do capital constante, o valor do capital variável e a mais-valia. Cada uma dessas três partes tem por trás de si uma certa quantidade de trabalho: a primeira parte, ou seja, o capital constante, tem por trás de si o trabalho objetivado nos meios de produção; o valor do capital variável tem por trás de si o trabalho objetivado nos meios de subsistência, que são pagos ao trabalhador na forma do salário; e, finalmente, a mais-valia tem por trás de si o mais-trabalho (ou trabalho excedente), ou seja, o trabalho que o operário efetua além do que é necessário para reconstituir sua própria subsistência. Desses três elementos componentes, Marx deduz76

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algumas relações significativas, uma das quais nos interessa agora em particular: a relação entre a mais-valia e o capital variável, que coincide— pelo que dissemos — com a relação entre trabalho excedente e trabalho necessário, que Marx chama não só de taxa de mais-valia, mas também de taxa de exploração. Ela representa, de fato, a intensidade com que ocorre a exploração da força-de-trabalho pelo capitalista. A proposição geral de onde devemos partir para esclarecer tanto o conceito de mais-valia absoluta quanto o de mais-valia relativa é que, para o capi­talista, a situação é evidentemente tanto mais favorável quanto maior for a relação de exploração, a taxa de exploração: quanto maior for a mais-valia com relação ao capital variável, tanto mais favorável será a situação para o capitalista, já que tanto maior será - com relação ao trabalho global — o trabalho não pago, o trabalho excedente, preci­samente o que forma a mais-valia, da qual o capitalista se apropria. Ora, segundo a terminologia de Marx, tal como é exposta no Livro 1 de O Capital, tanto a formação da mais-valia absoluta quanto a formação da mais-valia relativa são dois modos (não excludentes um do .outro, mas de qualquer modo distinguíveis) para aumentar a taxa de mais-valia e, por conseguinte, para tornar a situação o mais possível favorável ao capitalista.

Comecemos examinando o primeiro modo: a formação da mais-valia absoluta. A formação da mais-valia absoluta é um processo que parte do pressuposto de que a formação da mais-valia ocorre no âmbito de uma condição técnica dada para o conjunto do sistema econômico. O que quer dizer condição técnica dada para o conjunto do sistema econômico? Quer dizer que, dado que é preciso fornecer ao operário determinados meios de subsistência, a quantidade de trabalho necessária para produzir esses meios de subsistência resulta univocamente determinada por essa situação tecnológica que se tomou como um dado. Se ao operário é fornecida uma determinada cesta de meios de subsistência, a quantidade de trabalho necessária para produzir esses meios é univocamente deter­minada pela condição técnica que se supõe dada-para o inteiro sistema econômico. É oportuno esclarecer melhor essa noção,- que só aparente­mente é simples. Quando se diz que a quantidade de trabalho necessária para produzir os meios de subsistência resulta univocamente determinada pela condição técnica que se supõe dada, a primeira coisa que poderia vir à mente é que, na realidade, a situação técnica — que importa para o caso que examinamos — é a situação técnica das indústrias, das atividades que produzem os meios de subsistência. Estamos falando da quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência; portanto, poder-se-ia aparentemente dizer que a quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência é determinada pelas condições técnicas predo­minantes nos setores que produzem tais meios de subsistência; ao mesmo tempo, poder-se-ia aparentemente dizer que a condição técnica dos

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demais setores, por mais importante que seja sob outros aspectos, não o é em face dessa questão concreta. Na realidade, se pensarmos bem sobre isso, veremos que as coisas não se apresentam absolutamente assim; e, salvo casos excepcionais que podemos aqui deixar de lado, ocorre na verdade que, a fim de determinar a quantidade de trabalho necessária à produção dos meios de subsistência, é relevante a situação técnica dominante não apenas nos setores que produzem meios de subsistência, mas em todos os setores da economia. A razão não é difícil de descobrir. O setores que produzem os meios de subsistência o fazem mediante o emprego de um certo número de horas de trabalho. Essas horas de trabalho têm uma dupla proveniência. Por um lado, são horas de trabalho ativamente dispendidas nos setores que produzem meios de subsistência, mas, por outro lado, são as horas de trabalho contidas nos meios de produção que são empregados pelos setores que produzem os meios de subsistência. Assim, por exemplo, se tomamos o trigo como representativo dos meios de subsistência, poderemos dizer que a quantidade de trabalho contida em um quintal de trigo não é apenas o trabalho efetuado na produção de trigo, mas também o trabalho contido na parte do arado que serve para produzir um quintal de trigo. E o arado foi produzido por um setor que produz meios de produção, não por um setor que produz meios de subsistência; de modo que, se — num setor que produz meios de produção — a quantidade de trabalho se alterasse em conseqüência de uma mudança tecnológica, isso teria influência também sobre a quantidade de trabalho contida no trigo, ou seja, nos meios de subsistência. Por isso, para voltar à nossa questão: se afirmamos supor como dada a quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência, com isso supomos implicitamente como dada a situação tecnológica do sistema econômico em seu conjunto. Esclarecido esse ponto, portanto, admitamos o seguinte pressuposto: a condição tecnológica do sistema econômico em seu conjunto é dada, e, por isso, é dada a quantidade de trabalho que constitui o valor do capital variável investido no conjunto do sistema econômico.

Nessa situação, se o capital variável tem um valor dado em conse­qüência daquele pressuposto, que meio existe para aumentar a taxa de mais-valia? Já que a taxa de mais-valia é a relação entre a mais-valia e o capital variável, e já que admitimos o pressuposto de que o capital variável é dado, não resta outro caminho além do aumento da mais-valia, do aumento absoluto do numerador dessa fração. Ora, como se faz para aumentar a mais-valia em sua grandeza absoluta? Evidentemente, alon­gando a jornada de trabalho, ou seja, extraindo do operário o máximo de trabalho possível durante uma jornada laborativa. Ou seja: se, em conseqüência de todas as hipóteses estabelecidas, são necessárias, por exemplo, seis horas para reconstituir o valor dos meios de subsistência, e esse é um dado que não pode ser modificado, já que a técnica é pressuposta

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para o conjunto do sistema econômico, então se se quer aumentar a taxa de mais-valia não resta outra via que a de aumentar o trabalho, o trabalho excedente, que vai além dessas seis horas; portanto, por exemplo, prolongar a jornada de trabalho de dez para doze horas; nesse caso, a taxa de mais-valia passaria da relação 4:6 à relação 6:6 e, por conseguinte, aumentaria. Ora, esse processo de aumentar a taxa de mais-valia mediante o prolongamento da jornada de trabalho, numa situação tecnologicamente dada para o conjunto do sistema econômico, é o processo que Marx chama de processo de formação da mais-valia absoluta.

Vejamos, em troca, em que consiste o processo de formação da mais-valia relativa. Pode-se facilmente deduzi-lo do que dissemos até aqui, através da simples modificação das hipóteses. Basta supor que a situação tecnológica do sistema econômico, em vez de ser um dado, seja uma circunstância suscetível de modificação, no sentido naturalmente normal, ou seja, do “progresso” , de um progresso que se expressa, de um ou de outro modo, numa diminuição da quantidade de trabalho contida nas mercadorias; e, nesse sentido, resolve-se portanto numa diminuição do valor das mercadorias. Por isso, se ocorre esse progresso, pelo qual a quantidade de trabalho contida nas mercadorias diminui, então - para uma mesma quantidade de valores-de-uso fornecidos ao trabalhador sob a forma de salário, ou seja, para uma igual quantidade de mercadorias dadas ao trabalhador sob a forma de salário — o valor do capital variável diminui, porque naquela quantidade de mercadorias está objetivada uma quantidade de trabalho menor do que antes. Em conseqüência do que dissemos antes, não é preciso que a diminuição da quantidade de trabalho, isto é, o progresso técnico, tenha lugar num setor que produz meios de subsistência; pode muito bem ter lugar num setor que produz meios de produção, já que — tendo em vista as razões que expusemos antes — esse fato repercutirá também na quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência, e, por isso, dará igualmente lugar a uma diminuição do valor do capital variável. Nesse caso, mesmo que a jornada de trabalho se mantenha idêntica, teremos um aumento da taxa de mais-valia. Por exemplo: se a jornada de trabalho permanece de 10 horas, mas não são mais necessárias 6 horas e sim apenas 5 para reconstituir o valor do capital variável, a taxa de mais-valia aumenta da relação 4:6 para a relação 5:5. Então, dizemos: o processo que acabamos de descrever, mediante o qual — através de uma modificação tecnológica — tem lugar uma diminuição do valor do capital variável, e, por isso, por esse caminho, um aumento da taxa de mais-valia, esse processo é chamado por Marx de formação da mais-valia relativa.

Agora veremos em que sentido a formação da mais-valia absoluta se liga ao que Marx chama de subsunção formal do trabalho ao capital e em que sentido, ao contrário, a formação da mais-valia relativa se liga ao que Marx chama de subsunção real do trabalho ao capital. Recordo que

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a subsunção formal do trabalho ao capital, segundo a definição dada por Marx, consiste no fato de que o capital subsume a si o trabalho, deixando-o porém nas mesmas determinações técnicas que ele tinha antes que o capital interviesse no sentido de dominar o processo produ­tivo; por isso, ocorre certamente — já que é essa a lei geral do capital - a subordinação do processo de trabalho ao processo de valorização, porque se isso não ocorresse não estaríamos no âmbito da relação capitalista; mas esse fato ainda não chegou a atingir, a modificar os modos técnicos nos quais se processa o trabalho, os quais são ainda de tipo artesanal (ou camponês, quando a coisa tem lugar na agricultura); de modo que a atividade produtiva processa-se segundo formas que se realizaram histori­camente não sob o domínio do capital, mas sob o domínio de outras formações histórico-sociais. Ora, nesse caso, já que a tecnologia ainda não foi atingida pelo capital e, por isso, é aquilo que é, e o capital não a modifica, o capital não tem outro modo de extrair maior mais-valia do trabalho operário além do modo que se dá através do prolongamento da jornada de trabalho. Com efeito, a única modificáção que o processo de trabalho sofre, quando ocorre a simples subsunção formal do trabalho ao capital, está no fato de que ele — conservando-se qualitativamente idêntico — torna-se porém mais longo, dura mais, e, por isso, gera trabalho excedente (que, nesse caso, torna-se mais-valia) maior do que ocorreria em outras circunstâncias. Portanto, submissão simplesmente formal e formação da mais-valia absoluta são a mesma coisa.

Naturalmente, enquanto a subsunção formal do trabalho ao capital implica um aumento da taxa de mais-valia apenas através da formação da mais-valia absoluta, a recíproca' não é verdadeira: a formação da mais-valia absoluta pode muito bem ocorrer numa situação capitalis- ticamente desenvolvida, na qual já tenha ocorrido uma subsunção real do trabalho ao capital (com a conseqüente influência do capital sobre a tecnologia); pode muito bem ocorrer um aumento da jornada de trabalho, e, por esse caminho, uma formação de mais-valia absoluta. Isso é evidente. Todavia, deve-se observar — pelo menos é o que pensa Marx — que esse caso, no fim das contas-, é excepcional, já que a história da jornada de trabalho é uma história, em geral, irreversível; ou seja, a jornada de trabalho tende a diminuir, na história do capitalismo, e só excepcio­nalmente tende a aumentar novamente. Por essa razão, quando o capi­talismo formou-se e difundiu-se de modo estável, e portanto influenciou a tecnologia, o modo principal, fundamental de aumento da taxa de mais-valia se dá através da formação de mais-valia relativa e não de mais-valia absoluta, coisa que pode ocorrer agora precisamente porque o capital subsumiu a si o processo de trabalho não apenas formalmente, mas o subsumiu também materialmente, isto é, conseguiu modificar, qualificar o próprio processo tecnológico no qual o processo de trabalho tem lugar. Então, nesse caso, se verifica o processo do qual falamos,

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ou seja, a tecnologia se altera, as quantidades de trabalho contidas nas mercadorias diminuem, diminuem os valores das mercadorias, e isso de algum modo, direta ou indiretamente, implica uma diminuição do valor do capital variável, e por isso, através desse caminho, tem-se um aumento da taxa de mais-valia. É por isso que a formação da mais-valia relativa, liga-se à subsunção real do trabalho ao capital.

Nas páginas que lemos mais recentemente, vimos Marx desenvolver a distinção entre subsunção formal e subsunção real. Isso, digamos, até a página 56. No meio dessa página, Marx — que já havia terminado de se ocupar da subsunção real — retoma o tema da subsunção formal, trata dele durante algumas páginas, e em certo momento volta novamente ao tema da subsunção real, no início da página 66, e leva adiante a questão durante outras tantas páginas. Não gostaria de me deter nesse novo parágrafo relativo à subsunção formal, não porque ele não seja interessante (aliás, é bastante: pode-se mesmo dizer que se trata de uma das partes mais interessantes, mais belas desse livrinho); porém não me detenho, porque não me parece que existam nele questõe*s graves ou de difícil interpretação, depois do que já dissemos. São notáveis essas páginas, porque Marx dá uma série de exemplos históricos sobre a subsun­ção formal do trabalho ao capital, alguns dos quais muito interessantes. Há, por exemplo, uma parte notável na qual se estabelece a diferença entre o artesão e o operário do sistema capitalista, por um lado, e a diferença respectiva — que é a mesma coisa colocada em outro plano entre o mestre da corporação artesã da cidade medieval e o capitalista, por outro lado; e há também uma referência aos modos através dos quais pode ocorrer a passagem, num certo plano, do artesão ao operário, e, num outro plano, do mestre artesão ao capitalista. Essa é uma parte bastante interessante. Como é também interessante, nessas mesmas páginas, a descrição dos elementos diferenciais - bastante evidentes, mas que em nenhuma outra parte Marx desenvolve como o faz aqui que existem entre o escravo e operário assalariado. Também essas são páginas interessantes. Mas são páginas que deixo para a leitura individual de vocês.

Ao contrário, gostaria agora que víssemos conjuntamente o texto que começa na página 66, onde se retoma o tema da subsunção real. Comecemos lendo o início do parágrafo:

“A característica geral da subsunção formal”— aqui, portanto, o termo subsunção formal é empregado no seu signi­ficado genérico, sobre o qual já falamos —

“continua sendo a direta subordinação do processo de trabalho— qualquer que seja, tecnologicamente falando, a forma em quese efetue - ao capital".

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Esse é um fato geral, porque se trata da definição do capital: a subor­dinação do processo de trabalho ao processo de valorização; subordinação que existe, quer se trate de subsunção formal ou de subsunção real.

“Nessa base, entretanto” ,— e aqui vem a diferença específica -

“se ergue um modo de produção tecnologicamente específico1, que metamorfoseia a natureza real do processo de trabalho e suas condições reais: o modo capitalista de produção. Somente quando este entra em cena, se dá a subsunção real do trabalho ao capital ”

Portanto, essa subsunção real implica, como de resto já dissemos, que o próprio processo de trabalho, em seus aspectos técnicos, tenha sido modificado pelo capital. De que modo? Essa é a pergunta que surge nesse ponto. O que significa exatamente fazer um processo de trabalho tornar-se homogêneo ao capital também do ponto de vista técnico? Marx diz, no quarto parágrafo da página 66.

“A subsunção real do trabalho ao capital se desenvolve em todas as formas que produzem mais-valia relativa, diferentemente da absoluta.”

Há pouco explicamos o sentido dessa expressão. Depois, Marx insiste:“Com a subsunção real do trabalho ao capital, dá-se uma revo­lução total (que prossegue e se repete continuamente) no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho e na relação entre o capitalista e o operário” .

Portanto, um revolucionamento contínuo do modo de trabalho, do próprio processo técnico, e, por isso - como é inevitável -- também da relação existente entre capitalistas e operários. Em que consiste exatamente esse revolucionamento, é algo que veremos mais detalha­damente na próxima lição, lendo alguns trechos decisivos dos Linea­mentos Fundamentais de Critica da Economia Política (ou Grundrisse). Mas também aqui se dizem coisas importantes. Continuemos a ler na página 66:

“Na subsunção real do trabalho ao capital, fazem sua aparição no processo de trabalho todas as modificações (changes) que

1. Há aqui uma lacuna na edição brasileira; nois o que Marx diz, efetiva­m ente, é: “um modo de produção tecnologicamente (e não só tecnologicam ente) específico” , como se pode ver no original (Nota do Tradutor).

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analisáramos anteriormente. Desenvolvem-se as forças produ­tivas sociais do trabalho, e, por força do trabalho em grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção imediata. Por um lado, o modo capitalista de produção, que agora se estrutura como um modo de produção ‘sui generis’, dá origem a uma figura modificada da produção material.”

(Dá origem a uma figura modificada não só no processo econômico, mas também na produção material.)

“Por outro lado, essa modificação da figura material constitui a base para o desenvolvimento da relação capitalista”

— a relação capitalista já se estabeleceu desde o tempo da subsunção formal, mas seu desenvolvimento requer a subsunção real -

“cuja figura adequada corresponde, em conseqüência, a determi­nado grau de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho.”

Ou seja: o processo de trabalho assume uma figura adequada à relação econômica em que está inserido, à relação econômico-social em que está inserido, ou seja, à relação capitalista. Na página 67, diz-se:

“Simultaneamente, a produção capitalista tende a conquistar todos os ramos industriais dos que até então não se apoderara, e nos quais ainda [se dá] apenas a subsunção formal. Tão logo se apodera da agricultura, da indústria de mineração, da manu­fatura das principais matérias têxteis, etc., invade os outros setores onde unicamente [se encontram] artesões formalmente independentes ou ainda independentes [de fato]. Na análise da maquinaria, havíamos assinalado como a introdução desta em um ramo provoca o mesmo fenômeno em outros ramos, e ao mesmo tempo em outros setores do mesmo ramo.”

Aqui, a diferença entre setor e ramo é a seguinte: ramo quer dizer, por exemplo, indústria têxtil; setor quer dizer lã, algodão, etc.; ramo quer dizer metalurgia; um seu setor é a siderurgia. Portanto, ramo é mais amplo, setor é mais restrito.

“[Por exemplo:] a fiação mecânica leva à mecanização da tece­lagem; a fiação mecanizada na indústria algodoeira [leva] à fiação mecanizada da lã, do linho, da seda, etc. O emprego intensivo da maquinaria nas minas de carvão, nas manufaturas de algodão, etc., tornou necessária a introdução do modo de produção em grande escala na construção das próprias máquinas” .

Em outras palavras: o emprego da máquina é também a difusão da máquina, já que o emprego da máquina num ponto permite, por um

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lado, e consente, por outro, o emprego da máquina em outro ponto, tendo em vista que entre os vários setores existem relações de comple- mentariedade técnica, as quais não permitem que um certo setor se desenvolva rapidissimamente, enquanto outros setores se mantêm atra­sados, porque — caso contrário — essas relações de completariedade técnica, que de resto se expressam em última análise numa troca de produtos de setor a setor, não poderiam ocorrer. Haveria uma carência contínua de produtos necessários a certos setores, carência que bloquearia o desenvolvimento também nos setores nos quais a máquina já foi introdu­zida; por isso, a máquina tem essa característica peculiar: a generalidade; ou seja, é impossível que um setor seja mecanizado e um outro não: no fim das contas, todos os serão. E isso explica a proposição, que lemos na página anterior, na qual se diz que o desenvolvimento do modo de produção capitalista é ligado à subsunção real do trabalho ao capital. Não basta a subsunção formal. Esse é o ponto sobre o qual é sempre preciso conservar a atenção. Vocês se recordam que um dos modos — mas o principal — através do qual Marx estabelece a diferença entre a produção capitalista e outros modos de produção é o seguinte: que, enquanto outros modos de produção são essencialmente orientados para o consumo de alguém, o modo de produção capitalista é produção de riqueza abstrata, ou seja, de riqueza destinada essencialmente a reconverter-se em riqueza adicional; com a conseqüência de que, enquanto no primeiro caso o valor-do-uso tem uma relevância decisiva, — precisa­mente porque o processo tem como meta o consumo — no segundo caso, já que a produção é orientada para uma riqueza que se reconverte em riqueza, o valor-de-uso se torna irrelevante, não no sentido de que desapareça, pois isso naturalmente não é possível, mas no sentido de que o valor-de-uso se torna - como já dissemos tantas vezes - um simples suporte material para a riqueza enquanto tal. Riqueza enquanto tal, cuja expressão formal é o valor, que tem no valor-de-troca sua represen­tação ou expressão fenoménica necessária. É esse, portanto, como já sabemos, o modo pelo qual Marx estabelece a diferença entre o capita­lismo e os outros modos de produção. O que aqui se diz é que esse fato, ou seja, a orientação da produção para a ampliação da produção, a orien­tação da riqueza para a própria riqueza, - que é a essência do capital, da produção capitalista, — esse fato ocorre de modo pleno precisamente com a subsunção real e não com a subsunção formal. Por que isso? Porque, se vocês pensarem bem, verão que a tecnologia é ligada aos valores-de-uso. O fato de que exista esta técnica e não aquela implica a produção de certos bens qualitativamente determinados e não de outros. Portanto, enquanto a subsunção é formal, e por isso o capital não domina a tecno­logia, é a tecnologia que domina o capital. E a tecnologia que obriga o capital a produzir certas coisas e não outras, já que a tecnologia é a tecnologia dada. Portanto, nesse caso, não pode ocorrer o fato — que é característico do capital — de que se produzam precisamente as coisas84

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que permitem acelerar-se ao máximo o processo de formação do capital. Em outras palavras, a plenitude da produção capitalista só tem lugar quando o capital determina a tecnologia, ou seja, quando o capital orienta a tecnologia para os valores-de-uso que, em cada oportunidade concreta, fornecem o melhor suporte material para a expansão do valor-dé-troca.

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Lição 8 AS MÁQUINAS

Os trechos que vamos ler, extraídos dos Lineamentos Fundamentais (iGrundrisse), vol. 2, — e deve-se ter presente que os Grundrisse são 8-9 anos anteriores ao Capitulo VI Inédito , — esses trechos são essencial­mente dedicados por Marx à ilustração do modo pelo qual a introdução das máquinas modifica o processo produtivo num sentido homogêneo ao capital, ou seja, no sentido de que a máquina, também tecnicamente, torna o processo produtivo submetido ao capital, a ponto de determinar a passagem da simples subsunção formal à subsunção real. Na página 389 dos Grundrisse, podemos ler:

“Enquanto o meio de trabalho permanece, no sentido próprio da palavra, meio de trabalho, tal como - histórica, imediata­mente — foi englobado pelo capital em seu processo de valori­zação, ele sofre apenas uma mudança formal pelo fato de que agora não se apresenta mais pelo seu lado material como meio de trabalho, mas, ao mesmo tempo, como um modo particular de existência do capital, determinado pelo seu processo global, como capital fixo".

Aqui se repete uma coisa que já vimos escrita no Capitulo VI mais de uma vez, ou seja, que — imediatamente — o meio de trabalho é assu­mido pelo capital tal como se encontra historicamente, e, portanto, como momento de um processo técnico que o capital não determinou86

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por sua própria conta, mas que é resultado de um processo histórico pré-capitalista. Depois, porém, se diz ainda:

“Mas, uma vez assumido no processo produtivo do capital, o meio de trabalho percorre diversas metamorfoses, a última das quais é a máquina, ou, melhor dizendo, um sistema auto­mático de máquinas, movimentado por um autômato, força motriz que move a si mesma; esse autômato é constituído de numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios operários são determinados como órgãos conscientes desse autômato” .

Comecemos por esta proposição: “os operários são determinados como órgãos conscientes desse autômato” . Em outras palavras: o operário — começa-se a dizer aqui — aparece não mais como quem utiliza deter­minados meios de produção e os orienta para determinados fins, mas o operário torna-se órgão de uma coisa que se move fora dele, de um sistema automático, movido por um autômato, ou seja, por uma força motriz que certamente não é, nem poderia ser, a força física do operário. O meio de produção tornou-se um sistema de máquinas, movido por uma força motriz, que não é a força motriz humana, e com relação à qual os homens — os operários — são simples órgãos, certamente cons­cientes (porque é isso que funda a diferença entre um órgão puramente mecânico e o particularíssimo órgão que é o homem), mas nada mais que órgãos. Essa é a primeira determinação, ainda aproximativa, feita por Marx; veremos agora, à medida que avançarmos, como essa noção será exposta em termos cada vez mais precisos.

“Na máquina, e ainda mais no maquinário como sistema auto­mático, o meio de trabalho é transformado, do ponto de vista de seu valor-de-uso, ou seja, de sua existência material, numa existência adequada ao capital fixo e ao capital em geral; e a forma na qual ele foi assumido como meio de trabalho imediato no processo de produção do capital”

— portanto, a forma que ele tinha na tecnologia anterior ao advento do capital —

“é superada numa forma posta pelo próprio capital e a ele corres­pondente.”

Portanto, o capital não se contenta mais com a estrutura técnica que encontra, mas a transforma em algo homogêneo a si. Em que consiste exatamente essa homogeneização da forma técnica ao capital?

“A máquina não se apresenta, sob nenhum aspecto, como meio de trabalho para o operário individual. Sua diferença especí­

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fica não é absolutamente, como no meio de trabalho, a de media­tizar a atividade do operário diante do objeto; mas, ao contrário, essa atividade agora é posta de modo que ela mediatiza apenas o trabalho da máquina, a ação da máquina sobre a matéria- prima — que ela vigia essa ação e evita suas interrupções.”

Em certo sentido, esse é o trecho fundamental, o que orienta o restante; portanto, vamos nos deter um momento para buscar compreender o que significa. A questão colocada por Marx é a seguinte: em todas as tecnologias que precederam o capitalismo, em todas as tecnologias nas quais o capital ainda não interviera como elemento determinante, a relação entre o trabalho e o instrumento de trabalho se apresentava da seguinte forma: o instrumento de trabalho era o termo de mediação entre o traba­lho e a natureza, ou seja, o trabalho agia sobre a natureza por meio do instrumento de trabalho. Temos, portanto, um termo inicial ou ativo, que é o trabalho; um termo final ou passivo, que é a natureza; e um termo intermediário, que é precisamente o instrumento. Essa é a caracte­rística generalísima de todo processo produtivo considerado pelo ângulo do processo de trabalho.

Como as máquinas, essa relação se apresenta de certo modo inver­tida, já que o instrumento não está mais em posição intermediária e, portanto, não desempenha mais uma função de mediação. É precisamente essa função de mediação que é despejada sobre o operário. Ou seja: a máquina, ou um sistema automático de máquinas, é o ponto de partida, o lado ativo do processo e da relação. Esse sistema de máquinas atua sobre o objeto, isto é, sobre a natureza, e a relação das máquinas com a natureza é mediatizada pelo operário. Desse modo, o operário — que antes estava em posição inicial ou ativa - agora se encontra em posição intermediária e, por isso, instrumental, a ponto de que a denominação de instrumento de trabalho aplicada à máquina resulta evidentemente imprópria, porque o que ocorre é o inverso: foi o trabalho do operário que se transformou em instrumento desse “instrumento” . Em outras palavras: a própria essência da tecnologia capitalista reside no fato de que é invertida a relação entre o trabalho e o instrumento; enquanto, inicialmente, o instrumento é precisamente instrumento em sentido próprio, agora é exatamente o contrário; é o trabalho que se torna instrumento e, portanto, o termo de mediação com o qual o sistema das máquinas — que agora não está mais na posição de instrumento — entra em contato com a coisa, com o objeto trabalhado, com o processo. Nesse sentido, por conseguinte, o capital intervém para gerar uma modificação. Então, poderíamos dizer o seguinte: que, assim como formalmente o capital é um processo geral de reificação, no sentido de que o processo produtivo, quando dominado pelo capital, é um processo produtivo não mais vinculado ou tendo como meta a subjeti­vidade do homem, ou seja, seus carecimentos, mas tendo o próprio fim

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em si mesmo, razão por que o processo se esgota na coisa (que é precisa­mente a valorização do valor já existente), assim também essa reificação, que formalmente já está incluída no conceito e na realidade do capital, torna-se efetiva e realizada na própria tecnologia produtiva, no sentido de que, também essa tecnologia, perde-se o elemento de subjetividade, a partir do momento em que o trabalho não é mais o elemento inicial da relação técnica com a natureza para a ativação do processo produtivo, mas é ele mesmo posto em posição instrumental e, desse modo, torna-se uma coisa; torna-se uma coisa enquanto é subordinado a uma coisa, ao sistema de máquinas, que se põe agora em situação inicial e não em situação intermediária. Vejamos como esse fato, essa profunda transfor­mação do processo produtivo, é ulteriormente ilustrado (sempre na página 390):

“Desse modo, diferentemente do instrumento, que é animado (como um órgão) pela própria habilidade e atividade do ope­rário, e cuja manipulação depende por isso de sua virtuosidade” ,

ou seja, a máquina age de modo diverso do instrumento que o operário anima com sua própria habilidade e atividade, quase como se fosse um órgão seu. O que é o instrumento na tecnologia pré-capitalista? É um prolongamento dos órgãos que o operário já possui naturalmente em seu próprio corpo. E desse modo, assim como o trabalhador anima os próprios órgãos enquanto trabalha, também anima esse prolongamento material dos próprios órgãos que é constituído pelos instrumentos produ­tivos. Isso antes; agora, ao contrário,

“a máquina, que possui habilidade e força em lugar do operário, é ela mesma o virtuose, que possui uma alma própria nas leis mecânicas que operam nela; e, tal como o operário consome meios alimentares, assim ela consome carvão, óleo, etc., para manter-se continuamente em movimento. A atividade do ope­rário, reduzida a uma simples abstração de atividade, é deter­minada e regulada, em todas suas componentes, pelo movimento da máquina, e não vice-versa.”

Aqui, vale a pena buscar entender plenamente, em todo seu alcance, esse termo “abstração” , que novamente — como em tantos outros locais — Marx utiliza nesse contexto. Na produção capitalista, o trabalho humano é trabalho abstrato já na primeira fase, a da subsunção formal do trabalho ao capital, porque — também naquele estágio - a abstração do trabalho consiste nisto: que a separação do trabalhador das condições objetivas da produção provoca a separação do trabalhador do próprio trabalho, com a conseqüência de que o trabalho se destina essencialmente à produ­ção de valor e não à produção de bens dotados de utilidade. Por conse­guinte, inclusive apenas por causa disso, o trabalho é abstrato: tanto

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é verdade que é produtor de riqueza abstrata. O trabalho conta como dispêndio genérico da energia laborativa humana, não conta pelas quali­dades que possui e que encontram expressão nos valores-de-uso dos objetos, naqueles valores-de-uso que, precisamente, não têm mais impor­tância. Porém, esse processo de abstração do trabalho, que certamente faz parte das conotações essenciais do capital e, por isso, já está contido na subsunção formal do trabalho ao capital, recebe aqui um ulterior desenvolvimento, no sentido de que não se trata mais simplesmente do fato de que o trabalho humano não conta pelas qualidades que o tornam capaz de produzir valores-de-uso, mas se trata do fato de que essas qualidades perderam-se inteiramente, inclusive do ponto de vista material, precisamente porque o trabalho não é o ponto de início de um processo técnico, mas é apenas inserido num lugar intermediário desse processo, e recebe, por assim dizer, — no caso de ter qualificações e especificidades, — recebe essas qualificações e essas especificidades não de si mesmo, mas precisamente da máquina. Talvez se pudesse dar desse processo que Marx descreve uma imagem, que como todas as imagens deve ser acolhida como um mínimo de prudência, a fim de que ela não seja superposta à representação exata e conceituai da coisa, mas que pode ajudar; a imagem é a seguinte: quase parece que Marx pretenda falar aqui de um duplo movimento de abstração, realizado pelo capital em face do trabalho. Um primeiro processo de abstração, mediante o qual o trabalho é destacado de toda sua naturalidade possível, e, nesse sentido, é reduzido realmente a contar como mera explicitação de energia laborativa humana genérica. E, uma vez que esse primeiro movimento de abstração se realizou e, portanto, que o trabalho se destacou de sua naturalidade possível, então — e precisamente por isso — pode-se exercer sobre ele um segundo movimento de abstração, isto é, de separação, de afastamento, da subjetividade, um movimento mediante o qual é uma coisa exterior ao operário, a máquina, que imprime sobre o trabalho do operário as qualificações que não são mais provenientes da subjeti­vidade do operário e do trabalho, mas são provenientes das exigências, da estrutura, da natureza dessa coisa que é a máquina, que se põe agora no início do processo produtivo. Por conseguinte, estaríamos diante de uma espécie de segunda fase de afastamento da naturalidade; não mais simplesmente a genericidade do trabalho, mas a sua especificação readqui­rida, porém de um modo absolutamente estranho a qualquer naturalidade possível, já que é uma especificação feita inteiramente em função de uma coisa, do instrumento, o qual, tendo-se elevado ao nível da má­quina, está no início do processo técnico e não mais num seu ponto intermediário.

Posteriormente, segue-se um ponto muito importante, no qual se esclarece a questão fundamental da relação entre a ciência e o processo produtivo, tal como essa ocorre na situação capitalista:

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“A ciencia, que obriga os membros inanimados das máquinas — graças à sua construção — a agirem conforme a sua finalidade, como um autômato, não existe na consciência do operário, mas atua, através da máquina, como um poder estranho sobre ele, como poder da própria máquina. A apropriação do trabalho vivo pelo trabalho objetivado, — da força ou atividade valori- zadora pelo valor existente em si mesmo, — que está no próprio conceito de capital, é posta, na produção baseada em máquinas, como caráter do próprio processo de produção, inclusive doponto de vista dos seus elementos materiais e do seu movimentomaterial.”

Temos aqui duas coisas importantes: antes de mais nada, a questão da ciência, que será retomada mais tarde. Ou seja: a máquina (ou, melhor dizendo, o sistema das máquinas), que agora substituiu o trabalho no início do processo produtivo inclusive sob o ângulo técnico, essa máquina, precisamente, situa-se nessa posição não mais intermediária, porém inicial, em conseqüência do fato de que é a expressão, a materialização, a manifestação da ciência, ou seja, de um ato de conhecimento. Essa ciência, porém, como diz Marx, não está “na consciência do operário” . O que quer dizer isso? A coisa, ao que me parece, se torna clara se nova­mente recorrermos à comparação com a situação pré-capitalista. Na situação pré-capitalista, como de resto lemos há pouco, o trabalhador utiliza o instrumento, utiliza-o como um próprio órgão e, por isso, utiliza-o como sempre o homem utiliza as coisas, ou seja, de modo racional, mediante o uso, de algum modo e em alguma medida, da própria inteligência e, conseqüentemente, do próprio conhecimento; em particular, do conhecimento da natureza desse instrumento, de suas possibilidades, e do objeto sobre o qual tal instrumento é utilizado. Por isso, quando o trabalhador se encontra em posição inicial e não em posição interme­diária com relação ao processo tecnológico, a sua ação — a ação que o leva a utilizar o instrumento enquanto instrumento - é uma ação queparte de uma consciência, de uma ciência, que o sujeito possui acercado processo produtivo e de suas características. Aqui, o processo voltou a se inverter. É claro que há um conhecimento das leis da natureza, o qual governa o processo tecnológico, nem poderia ser de outro modo. E essa ciência, que está sempre no início do processo técnico, continua obviamente a situar-se no início também agora; mas, dado que dessa feita o início não é o sujeito que produz, mas a máquina, essa ciência é colocada na máquina e está assim fora da consciência do operário, precisamente porque esse não está mais em posição inicial, mas em posição intermediária.

Desse modo, a separação entre o operário e o instrumento, a inversão da relação natural entre trabalhador e instrumento de trabalho, implica

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também a separação entre trabalhador e conhecimento, entre trabalhador e ciência. É esse, portanto, o primeiro ponto importante contido nesse trecho. Num segundo ponto, repete-se uma coisa que agora já conhe­cemos, porque a vimos expressa mais de uma vez durante a leitura do Capitulo VI, ou seja: faz parte da essência do capital, ou, como se diz aqui, está incluído no “próprio conceito de capital” , o fato de que agora o processo de trabalho é instrumento do processo de valorização; ou seja, a essência do processo reside no fato de que o trabalho objetivado, o trabalho contido nos meios de produção, subordina a si o trabalho vivo, já que o trabalho vivo não tem outro sentido além de ser fator de valori­zação do trabalho objetivado. Isso, portanto, ocorre em geral; mas agora as coisas não se dão mais simplesmente assim; agora aconteceu também uma outra coisa. Agora essa subordinação não se dá apenas na forma; não se trata mais simplesmente do fato de que um processo de trabalho ainda dotado de características naturais foi posto a serviço de um processo de valorização. Trata-se de outra coisa: trata-se do fato de que o próprio processo de trabalho perdeu suas características naturais e adquiriu as características técnicas em conseqüência das quais a subordinação do processo de trabalho ao processo de valorização tornou-se subordinação material do trabalho ao que é chamado de capital técnico, isto é, ao instrumento de trabalho. Assim, também aqui temos um movimento de agregação; enquanto antes se tratava simplesmente de orientar um processo técnico, ainda natural, para as finalidades do capital, agora há uma transformação do próprio processo técnico; tanto isso é verdade que esse processo perdeu a sua naturalidade e o trabalho tornou-se, também ele, um instrumento e não o ponto inicial do processo. Nesse sentido, o capital assimilou toda a realidade econômica; o que ainda lhe escapava na subsunção formal, ou seja, a relação natural trabalho-instru- mento-natureza, até isso — mediante a inversão dos dois primeiros termos — foi subordinado ao capital. Se vocês descerem algumas linhas, poderão ler o seguinte:

“A transformação do processo de trabalho em simples momento do processo de valorização do capital”

— o que faz parte do próprio conceito de capital e, portanto, acontece sempre, ou seja, em todas as fases da vida histórica do capital —

“é colocada também pelo lado material, através da transfor­mação do meio de trabalho em máquinas e do trabalho vivo em simples acessório animado dessas máquinas, em instrumento da ação delas.”

E esse ponto é esclarecido mais ainda nas duas páginas sucessivas:Passemos agora ao segundo parágrafo da página 393, onde se diz:

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“O pleno desenvolvimento do capital, portanto, tem lugar - ou, em outras palavras, o capital chega a pôr a forma de pro­dução que lhe é adequada — quando o meio de trabalho não só é determinado formalmente como capital fixo, mas é suprimido em sua forma imediata, e o capital fixo se apresenta diante do trabalho, no interior do processo de produção, como máquina”

(“é suprimido em sua forma imediata” quer dizer: e' suprimido como meio, é suprimido como instrumento);

“e o inteiro processo de produção não se apresenta como subsu­mido à habilidade imediata do operário”

- atenção para esse ponto! —“mas se apresenta como emprego tecnológico da ciência. Por­tanto, dar à produção caráter científico é a tendência do capital; e o trabalho imediato é reduzido a um simples momento desse processo.”

Repete-se aqui uma coisa que já vimos; de qualquer modo, vamos nos deter nela ainda por um momento, porque — se vocês pensarem bem - verão que se expressa aqui toda a quase incrível gravidade do processo produtivo dominado pelo capital. No fundo, o que Marx disse acima é o seguinte: que, enquanto naturalmente o trabalho humano - precisa­mente porque é trabalho do homem — é de imediato um trabalho racional, isto é, um trabalho no qual se encontra expresso o conhecimento que o homem tem do mundo e da possibilidade de uma ação sobre ele, o processo tornou-se aqui, ao contrário, de tal natureza que esses dois momentos, o trabalho e o conhecimento, são separados, não estão mais juntos; e, então, o trabalho se tornou uma mera ação mecânica e a ciência se colocou fora da subjetividade de quem trabalha; foi pensada em outro local e, no processo de trabalho, encontra-se presente não em quem trabalha, mas dentro de uma coisa, pois é isso que é a máquina; essa será a característica central do processo de produção enquanto ele for determinado pelo capital. Vêm aqui à mente muitas e muitas coisas, mesmo se restarmos no âmbito dos escritos de Marx; e a primeira coisa que vem à mente é a extraordinária intuição da natureza desse processo, que Marx teve ainda jovem, em 1844, nos Manuscritos, quando, intuindo a natureza do processo capitalista, falava da condição operária como de uma condição de separação entre essência e existência; poder-se-ia dizer que temos aqui o desenvolvimento, a confirmação, a concretização, a exposição detalhada desse fato; aqui, a existência — e, para Marx, a exis­tência não pode estar presente a não ser como trabalho, como atividade — está verdadeiramente separada da essência. Ou seja, de quê? Da raciona­lidade, do conhecimento, da consciência, poderíamos dizer; mais precisa-

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mente, do conhecimento do mundo dentro do qual se trabalha, já que esse conhecimento — repito — não está mais em quem trabalha, mas fora dele; e, em face de quem trabalha, encontra-se incorporado numa coisa, na máquina, a qual — justamente porque tem em si, incorporada a ela, a ciência — pode dominar o operário.

Temos assim, novamente, uma relação invertida: enquanto, natural­mente, o conhecimento e a atividade consciente estão no sujeito traba­lhador e a atividade mecânica no instrumento utilizado, aqui ocorre o contrário: o conhecimento — e, portanto, utilizando uma linguagem um pouco metafórica, mas não inteiramente, a atividade consciente — está na máquina, quando menos porque ela é a representação de um momento de consciência que se verificou quando foi pensada a ciência que se encontra incorporada na máquina; e, ao contrário, a atividade mecânica está em quem trabalha, que é reduzido a isso. Em sentido próprio, estrito, específico, nada genérico ou alusivo, é isso que pode ser chamado de alienação operária. Depois, Marx prossegue:

“Dar à produção caráter científico é a tendência do capital.”Vemos assim algo bastante celebrado em todas as formulações apologé­ticas. O que fez o capitalismo? Ora, precisamente isto: desenvolveu a ciência. Não só a ciência como conhecimento abstrato da natureza, mas a ciência em seu prolongamento, a tecnologia, que nos permitiu conquistar o mundo. O que é verdade, em certo sentido; mas trata-se justamente de uma ciência que agora nada mais tem a ver com o trabalho, que está separado dele, uma ciência que torna a generalidade dos homens privados de ciência, subordinando-os à coisa na qual a própria ciência se acha incorporada.

Nesse ponto, intervém certamente um problema de enorme rele­vância prática e teórica. Se a máquina é o que vimos, isso quer dizer que a máquina, enquanto tal, é ligada à alienação do trabalho, e que um processo de trabalho que tenha lugar fora de alienação tem de se verificar sem máquinas? Penso que todos sabem que a resposta de Marx a essa pergunta é muito clara: uma coisa é a máquina, outra é o uso capi­talista da máquina; a máquina que se contrapõe ao operário e submete-o a si não é, para Marx, a máquina em geral, mas sim a máquina que é colocada no interior do processo de produção capitalista. Essa questão é tratada amplamente no capítulo 13 do Livro 1 de O Capital (vocês podem ver, em particular, o Livro 1, pp. 423 e ss.). Aqui me limitarei a ler um trecho da página 394 do texto de que estamos nos ocupando (os Grundrisse):

“Mas, se o capital só chega a receber sua figura adequada comovalor-de-uso, no interior do processo de produção, nas máquinase em outras formas de existência material do capital fixo, como

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as ferrovias (sobre as quais voltaremos em seguida), isso não significa absolutamente que esse valor-de-uso — as máquinas em si mesmas — seja capital, ou que a sua existência como má­quina se identifique com a sua existência como capital; assimcomo o ouro não deixaria de ter o seu valor-de-uso quandodeixasse de ser dinheiro, também as máquinas não perderiam o seu valor-de-uso quando cessassem de ser capital. O fato de que as máquinas sejam a forma mais adequada do valor-de-uso do capittal fixo não implica, de modo algum, que a subsunção à relação social do capital seja a relação de produção última e mais adequada ao emprego das máquinas.”

Assim, a tese geral que freqüentemente vimos reaparecer em Marx, de que o fato de o capital ter por base material o meio de produção nãoimplica que o meio de produção seja sempre e em geral capital, essatese geral, portanto, é aplicada em particular ao específico meio de produção que é a máquina. Todavia, deve-se admitir que aqui surge um problema adicional: se, com a máquina, realiza-se até o fim o processo da subsunção real do trabalho ao capital, precisamente no sentido (como vimos) de que tal subsunção se manifesta no terreno material do processo de trabalho, então é claro que o próprio corpo do instrumento, sua própria estrutura material, tem a marca dessa subordinação do trabalho; portanto, uma máquina não utilizada de modo capitalista deveria ser uma máquina diversa da que é utilizada de modo capitalista. Em outras palavras: as máquinas, tais como as conhecemos, são o fruto de uma tecnologia (e talvez também de uma ciência) que foi toda pensada sobre a base do pressuposto do trabalho alienado. Numa situação diversa, a mudança deveria envolver o próprio processo de conhecimento e de realização tecnológica, do qual a máquina é o resultado.

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Lição 9 TRABALHO PRODUTIVO

E TRABALHO IMPRODUTIVO

Retomemos a leitura do Capitulo VI, na página 70, onde encon­tramos o título “Trabalho Produtivo e Trabalho Improdutivo” . Como veremos, esse assunto não introduz substancialmente nenhum conceito novo com relação aos que examinamos até aqui; mas é muito útil para esclarecer uma série de questões relativas à teoria do capital, que de outro modo poderiam não ficar inteiramente claras. Antes de mais nada, é necessária uma brevíssima premissa: esses dois termos, “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo” , não são originários de Marx; ele os toma da economia política clássica, a qual, por sua vez, os havia tomado da fisiocracia. Portanto, esses dois conceitos têm uma história já bastante longa quando Marx escreve. Muito esquematicamente, a questão é a seguinte: Adam Smith define o trabalho produtivo como sendo o trabalho que, ao produzir, além de reconstituir sua própria subsistência, produz também algo mais, que é apropriado — na situação dada, na situação capitalista que, aliás, constitui para A. Smith uma situação natural — por outra classe. Esse conceito se reencontra na definição bastante explícita de Malthus, que chama de trabalho produtivo o trabalho que, além de produzir o próprio salário, produz também um lucro para o patrão. Malthus foi muito claro na definição de trabalho produtivo. Toda a economia política clássica estava substancialmente de acordo com tal definição; portanto, a definição se acha nos mesmos termos tanto em Adam Smith quanto em Ricardo, para não falar em Malthus, de modo que não houve controvérsias entre eles no que se refere a esse

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conceito. Todavia, já então essa definição de trabalho produtivo tinha um certo sabor polemico em face de outras posições, minoritárias na época, que tinham sido formuladas mais na França que na Inglaterra, posições que contrapunham a esse conceito clássico de trabalho produtivo um outro conceito, o qual, do ponto de vista do bom senso, parece ter decisivas razões de superioridade com relação à definição usada pela economia política inglesa.

Segundo essa outra definição (que, insisto, era minoritária na época), trabalho produtivo é o trabalho que, ao produzir, gera algo útil, produz um valor-de-uso; seria improdutivo, ao contrário, o trabalho que produz coisas inúteis. Naturalmente, deve-se notar que também a -economia política clássica, como é óbvio, supõe a existência de um trabalho impro­dutivo. O que é trabalho improdutivo para a economia clássica? Trabalho improdutivo é o trabalho que não produz um lucro. Por exemplo: o trabalho de um servidor; o trabalho de um servidor não produz lucro, já que produz um serviço que é imediatamente consumido por quem pagou esse trabalho. Se se quiser, a questão pode ser expressa nos seguintes termos, aliás freqüentemente usados naquela época: trabalho produtivo é o trabalho pago pelo capital; trabalho improdutivo é o trabalho pago com o gasto da renda. Smith empregou, a esse respeito, uma imagem extremamente eficiente quando disse: um homem rico fica ainda mais rico se compra trabalho produtivo, mas se empobrece se compra trabalho improdutivo; com efeito, um homem rico — segundo a terminologia de Smith, — se comprar trabalho produtivo, compra trabalho de quem lhe dará um lucro e, portanto, lhe enriquecerá; ao contrário, se comprar trabalho improdutivo, dissipará os próprios recursos; irá se cercar — para usar sempre a imagem de Smith — de servidores e puxa-sacos, irá se cercar de parasitas; esse é o trabalho improdutivo, que ele pode comprar; portanto, por este caminho, como é claro, irá empobrecer. Segundo a outra colocação, ao contrário, a diferença entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo não é essa; é, pelo menos aparente­mente, muito mais simples, muito mais elementar: ou seja, é produtivo o trabalho que produz coisas úteis, improdutivo o que produz coisas inúteis. Por outro lado, pode-se observar que, sendo o trabalho que produz coisas inúteis obviamente uma exceção, já que normalmente — se produz — produz algo útil, essa definição termina por considerar todo trabalho como trabalho produtivo; e, no interior do trabalho que efetivamente produz, não tem lugar a distinção entre produtivo e improdutivo. Segundo essa acepção, não importa que o trabalho seja executado por um operário ou por um servidor, já que ambos produzem, de algum modo, coisas úteis. Essa era mais ou menos a situação. Repito, para que se tenha bem presente o quadro de então: a posição dos economistas clássicos ingleses era uma posição majoritária, enquanto a outra era uma posição minori­tária. Hoje, porém, as posições se inverteram, pois se tornou majoritária

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a posição que afirma que trabalho produtivo é trabalho que produz coisas úteis, enquanto — pelo menos nas universidades — tornou-se minoritária a outra posição, de derivação clássica, e sobretudo marxista, que afirma ser trabalho produtivo o trabalho que produz um lucro.

Vejamos agora como Marx enfrenta essa questão. Qual é o principio sobre o qual Marx baseia sua retomada da posição smithiana e ricardiana e — é preciso dizer neste caso — também malthusiana? O argumento de Marx é um argumento de certo modo definitivo. Ou seja: de que esta­mos discutindo? Não estamos discutindo sobre o trabalho em geral; estamos discutindo sobre o trabalho que se dá no interior de uma forma­ção histórico-social determinada. Estamos discutindo sobre o trabalho que se acha numa situação capitalista, não do trabalho humano em geral; e, por isso, quando definimos esse trabalho como produtivo, devemos defini-lo em função do âmbito no qual esse trabalho se encontra inserido na realidade; esse trabalho é subordinado ao capital — aqui não importa se através da subsunção formal ou real — e, portanto, conta somente enquanto opera em função do capital. Mas, em função do capital, qual é o trabalho produtivo? Evidentemente, o que produz capital. E que significa produzir capital? Produzir capital significa: valorizar valores existentes. Mas valorizar valores existentes significa, precisamente, produ­zir uma mais-valia, ou, se se quer, — fazendo referência à apropriação dessa mais-valia, — trata-se de um trabalho que produz lucro. Desse modo, a definição clássica tem essa verdade: tem toda a verdade, que lhe vem de conceber o trabalho produtivo como o trabalho que desempenha, exata e rigorosamente, a função que é chamado a desempenhar quando se encontra numa situação histórica determinada, tal como a capitalista. Por isso, têm razão os clássicos contra os outros. Vejamos como Marx se expressa no Capítulo VI, página 70, terceiro parágrafo:

“Como o fim imediato e [o] produto por excelência da produção capitalista é a mais-valia, temos que só é produtivo aquele tra­balho — e só é trabalhador produtivo aquele que emprega a força-de-trabalho” —

ou seja, o operário“que diretamente produza mais-valia-, portanto, só o trabalho que seja consumido diretamente no processo de produção com vistas à valorização do capital” .

Ou seja, em outras palavras: o trabalho produtivo é, evidentemente, o trabalho que produz. Mas o que é que o trabalho produz quando se encontra em situação capitalista? Produz o produto específico dessa situação. Qual é esse produto específico? É a mais-valia. Portanto, trabalho que não produz mais-valia é trabalho não produtivo, no sentido de que não produz, ou seja, não produz nada que seja relevante na situação98

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historicamente dada. Qual é o único produto relevante nessa situação histórica dada? Não certamente as coisas úteis enquanto úteis. A única coisa relevante na situação dada é a mais-valia. Pode-se assim argumentar, quase na linha do bom senso: O que é o trabalho produtivo? É o trabalho que produz. O que quer dizer trabalho que produz? Trabalho que gera um produto. Mas o que é o produto, na situação histórica dada? É a mais-valia. Nada mais. Portanto, trabalho produtivo é trabalho que produz mais-valia. Há um trabalho que produz coisas úteis? Certamente; mas as coisas úteis não contam enquanto tais nessa situação, pois a situação capitalista é precisamente a situação na qual o valor-de-uso é um simples suporte material do valor-de-troca, e não tem sentido em si mesmo, só tem sentido mediatamente. Portanto, dizer que é produtivo um trabalho que produz coisas úteis é tão absurdo quanto dizer que é produtivo um trabalho que não produz nada, já que o valor-de-uso, considerado em si, não é nada na situação capitalista. Se, em troca, o valor-de-uso é suporte real de uma mais-valia, então efetivamente o trabalho produz. Mas, nesse caso, o critério da produtividade não é o valor-de-uso, é a mais-valia. É por isso que a definição clássica é a certa, enquanto a outra é um flatus voeis. Prestem atenção ao modo como a questão é reafirmada na proposição que vem em seguida, e reafirmada por contraposição:

“Do simples ponto de vista do processo de trabalho em geral”(ou seja, não ainda do processo de trabalho considerado como meio para o processo de valorização, mas do ponto de vista do processo de trabalho como tal),

“apresentava-se-nos como produtivo o trabalho que se realiza em um produto”

(o que aqui quer dizer: num valor-de-uso);“mais concretamente, em mercadoria. Do ponto de vista do processo capitalista de produção, acrescenta-se a determinação mais precisa: de que é produtivo o trabalho que valoriza direta­mente o capital, o que produz mais-valia, ou seja, que se realiza — sem equivalente para o operário, para seu executante — em mais-valia (surplusvalue), representada por um produto exce­dente (surplusproduce)*, ou seja, um incremento excedente de mercadorias para o monopolizador dos meios de trabalho (monoppliser dos means o f labour), para o capitalista.”

1. Na edição brasileira, está “sobreproduto” . Prefixo “produto excedente” , - a tradução literal seria “mais-produto” (M ehrprodukt), correspondente a “mais-valia” (Mehrwert) e “mais-trabalho” (M ehrarbeit), — porque é a tradução já consagrada entre nós; cf., por exem plo, a edição brasileira de O Capital, citada (Nota do Tradutor).

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Ou seja. é como se Marx dissesse: certo, do ponto de vista do processo de trabalho considerado em si, é produtivo o trabalho que gera umvalor- de-uso; mas aqui não se trata do processo do trabalho em geral: trata-se do processo de trabalho que se desenvolve em função do processo de valorização; e é quando o processo de valorização teve lugar que podemos decidir se o trabalho produziu efetivamente ou não. Se há mais-valia, diremos que há produto;se não há mais-valia, diremos que não há produto, ou seja, que o trabalho não foi produtivo. Vamos voltar a ler o trecho em questão (na passagem da página 70 para a 71):

“O processo de trabalho capitalista não anula as determinações gerais do processo de trabalho. Produz produtos e mercadorias. O trabalho continua sendo produtivo na medida em que se objetiva em mercadorias como unidade de valor-de-uso e de valor-de-troca. Mas, o processo de trabalho é apenas um meio para o processo de valorização do capital. É produtivo, pois, o trabalho que se representa em mercadorias; mas, se conside­rarmos a mercadoria individual, o é aquele que, em uma parte alíquota dessa, representa trabalho não pago, ou, se levarmos em conta o produto total, é produtivo o trabalho que, em uma parte alíquota do volume total de mercadorias, representa sim­plesmente trabalho não pago”

(isto é, precisamente um trabalho excedente, portanto uma mais-valia ou valor excedente),

“ou seja, produto que nada custa ao capitalista.”Podemos ver: o trabalho produtivo é produtivo quando, em relação à própria quantidade, há uma parte dessa quantidade que é trabalho não pago, ou seja, trabalho que não custa nada. Somente então é que o traba­lho verdadeiramente produziu. Depois, na página 71, valendo-se de uma proposição que se pode aplicar muito bem também à situação teórica atual, Marx diz:

“Somente a estreiteza mental burguesa, que toma a forma capita­lista de produção pela forma absoluta, e, em conseqüência, pela única forma natural de produção, pode confundir a questão do que seja trabalho produtivo e trabalhador produtivo do ponto de vista do capital com a questão do que seja trabalho produtivo em geral, contentando-se assim com a resposta tauto­lógica de que é produtivo todo trabalho que produz, todo o que redunda em um produto ou em um valor-de-uso qualquer; resumindo: em um resultado.”

É essa precisamente a noção de produtividade que habitualmente é apre­sentada pela economia burguesa, ou seja, por aquela economia para a100

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qual - não existindo uma especificidade da produção capitalista, já que essa produção é a produção em geral - não existe tampouco a possibili­dade de captar a especificidade da produtividade do trabalho nessa situação. Assim como o produto específico da situação capitalista é a mais-valia, do mesmo modo a produtividade em sentido capitalista específico é produção de mais-valia.

Há uma série de conseqüências que pode ser extraída dessa concre­tização do conceito de produtividade. A primeira delas, extraída porMarx, tem uma certa relevância. Aqui, nas páginas 71-72, retira-se essaprimeira conclusão:

“Primeiro: como, com o desenvolvimento da subsunção real do trabalho ao capital ou do modo de produção especificamente capitalista, não é o operário individual, mas uma crescente capa­cidade de trabalho socialmente combinada que se converte noagente (.Funktionär) real do processo de trabalho total, e como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a máquina produtiva total participam de maneira muito dife­rente no processo imediato de formação de mercadorias, ou melhor, de produtos — este trabalha mais com as mãos, aquele trabalha mais com a cabeça, um como diretor (manager), enge­nheiro (engineer), técnico, etc., outro como capataz (overloo- cfcer), um outro como operário manual direto, ou inclusive como simples ajudante —, temos que mais e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no conceito imediato de trabalhadores produtivos, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral a seu processo de valorização e produção. Se se considera o trabalhador coletivo, de que a oficina consiste, sua atividade combinada se realiza materialmente (materialiter) e de maneira direta num produto total que, ao mesmo tempo, é um volume total de mercadorias', absolutamente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador - simples elo desse trabalhador coletivo — esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto” .

Para compreender esse trecho, comecemos pela seguinte reflexão: a definição de trabalho produtivo como o trabalho que produz mais-valia é uma definição ela mesma geral em relação ao capital, ou seja, põe em evidência uma conotação própria do trabalho em situação capitalista, independentemente do fato de que a relação entre trabalho e capital seja ainda uma relação de subsunção formal ou já uma relação de subsun­ção real. Em outras palavras: assim como a subsunção do processo de trabalho ao processo de valorização é uma característica geral do capital, tanto na época da subsunção formal quanto na da subsunção real, do mesmo modo o conceito de produtividade — que depende da subsunção

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do processo de trabalho ao processo de valorização — é uma conotação geral do trabalho em situação capitalista, independentemente do fato de que se esteja em situação simplesmente de subsunção formal ou de subsunção real. Tanto em um caso como no outro, trabalho produtivo é trabalho que produz mais-valia.

Isso posto, vejamos o que é dito no trecho que acabamos de ler: quando se chega à subsunção real, isto é, quando o capital subsumiu a si a tecnologia, e, por isso, opera fora de qualquer vínculo externo e tem agora apenas um número maior de vínculos internos, então o próprio processo de produtividade do trabalho, de produtividade capita­lista do trabalho, resulta influenciado por esse fato. De que modo, exata­mente, se dá essa influência? Enquanto o trabalho é apenas formalmente subsumido ao capital, podemos falar já de sua produtividade em sentido capitalista, como trabalho produtivo de mais-valia; todavia, é sempre possível uma confusão a esse respeito, já que o trabalhador singular, na situação suposta, produz algo útil, tal como fazia antes de ter o capital se assenhoreado do processo de trabalho, e, portanto, pode sempre surgir a impressão de que sua produtividade consista nessa produção de coisas úteis. Quando chegamos à subsunção real, também a base real dessa ilusão se desfaz, já que com a subsunção real do trabalho ao capital — os trabalhadores singulares já não produzem mais nada útil, pois sua própria produtividade material, ou seja, a possibilidade para eles de confeccionarem um produto, depende do fato de estarem inseridos numa espécie de trabalhador coletivo, constituído precisamente pela fábrica. Em outras palavras: é verdade que se continua a chegar a algo útil; mas essa coisa útil é o efeito de um conjunto de trabalhos combinados, cada um dos quais, fora dessa combinação, é incapaz de produzir também coisas úteis. E dado que, por outro lado, aquela combinação não se deve ao trabalho enquanto tal, mas sim ao capital, já que é o capital que combina os trabalhadores, então a própria produtividade do trabalho resulta também materialmente subordinada ao capital; em suma, dado que a própria possibilidade de chegar a coisas úteis depende dessa feita do capital e não mais do trabalho, disso decorre que, com a subsunção real do trabalho ao capital, a tese segundo a qual a produtividade do trabalho consiste em produzir coisas úteis toma-se imediatamente impossível, já que a própria possibilidade de chegar a coisas úteis depende não mais diretamente do trabalho, mas de uma situação tecno­lógica — a combinação de vários trabalhos — que é o efeito específico do capital.

A tese em questão é sempre errada, já que o processo de trabalho subordina-se ao processo de valorização e, portanto, o que realmente se produz é sempre a mais-valia; mas, quando se chega à subsunção real, então a própria produção de coisas úteis depende de uma técnica que é inconcebível fora da relação capitalista, e, por conseguinte, a própria102

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base da ilusão de que a produtividade esteja ligada à utilidade desaparece; e tão-somente se se fecha os olhos diante dessa realidade é que se pode continuar a afirmar que é produtivo o trabalho que produz coisas úteis.

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Lição 10 AINDA SOBRE

TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO

No que se refere à definição da diferença entre trabalho produtivo e improdutivo, vou ler agora algumas passagens de um outro texto de Marx, onde esse assunto é tratado longamente e de modo mais detalhado que no Capitulo VI; refiro-me às Teorias sobre a Mais-Valia. Portanto, nessa obra, — que, como imagino, vocês sabem ser formada pela parte de O Capital onde está coletada uma espécie de história do pensamento econômico, — Marx, falando de Adam Smith, faz uma longa e detalhada exposição dessa questão. Comecemos com a definição que se encontra na página 269:

“Trabalho produtivo, no sentido da produção capitalista” ,— temos aqui uma concretização importante, precisamente porque, como vocês estão lembrados, se está falando não da produtividade em geral, mas da produtividade do ponto de vista capitalista, —

“é o trabalho assalariado que, no intercâmbio com a parte variável do capital, não só reproduz essa parte do capital (ou seja, o valor da própria capacidade de trabalho), mas - além disso — produz mais-valia para o capitalista” .

Reencontramos a definição já nossa conhecida; produtividade é entendida aqui no sentido da produção de mais-valia. Ora, para se conservar104

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coerente com essa definição, como Marx o faz, é preciso substancialmente duas coisas: antes de mais nada, não excluir do âmbito do trabalho produtivo nenhuma atividade, contanto que dela se possa dizer que, direta ou indiretamente, produz uma mais-valia; ou seja, não excluir do âmbito do trabalho produtivo nenhuma categoria que de algum modo seja essencial ao processo que leva à produção de mais-valia; por outro lado, ao contrário, significa excluir rigorosamente do âmbito do trabalho produtivo todo tipo de atividade que não se relacione com processos produtivos voltados para a produção de mais-valia. Veremos como Marx aplica com rigor esse critério, praticando precisamente aquela inclusão e essa exclusão. Comecemos pela inclusão, lendo na metade da página 275:

“Pertencem naturalmente à categoria de trabalhadores produtivos todos os que colaboram, de um modo ou de outro, para a produ­ção da mercadoria, desde o trabalhador manual propriamente dito até o diretor, o engenheiro (enquanto forem distintos do capitalista). E, desse modo,”

— diz Marx aprobativamente, -“inclusive o último relatório oficial inglês sobre as fábricas calcula ‘expressamente’ na categoria dos assalariados ocupados todas as pessoas empregadas na fábrica e nos escritórios anexos” .

Portanto, pode-se ver que todos os que, a qualquer título, intervêm num processo produtivo que tenha como meta a criação de mais-valia, todos eles — independentemente do fato de se tratar de um simples ope­rário manual ou de um diretor — são considerados por Marx como trabalhadores produtivos; e Marx aprova o procedimento de um relatório oficial do governo inglês, que inclui na categoria dos assalariados todas essas espécies de trabalhadores. Isso, portanto, no que se refere à inclusão. Ao contrário, no que se refere à exclusão, lerei duas passagens que tratam dessa questão, ambas bastante interessantes. Uma primeira passagem, não diferente de outras que se encontram também no Capítulo VI, faz uma espécie de classificação dos trabalhadores improdutivos; e esses trabalhadores improdutivos (ou seja, trabalhadores que não produzem mais-valia porque não estão inseridos numa relação capitalista) são distin­guidos em duas categorias, conforme sejam suscetíveis de se tornar produtivos, no caso em que o processo produtivo de que participam viesse a ser incluído numa relação capitalista, ou conforme sejam inevita­velmente improdutivos, por participarem num processo produtivo que de nenhum modo poderia ser incluído numa relação capitalista. À primeira categoria pertence uma série de produtores de mercadorias, que produzem tais mercadorias de modo não capitalista; todavia, se poderia pensar sem dificuldade que essa produção de mercadorias se inclua numa relação capitalista, caso em que tais trabalhadores, de improdutivos, tornar-se-iam

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produtivos. Portartto, são improdutivos, por assim dizer, de fato, mas não em princípio. Ao contrário, existem outros que Marx julga improdu­tivos em princípio, pois o que fazem não poderia ser feito no intericír de uma relação capitalista; os exemplos que dá são: os domésticos, os padres, os funcionários públicos, os soldados. Há sempre uma margem de indeterminação nessas classificações; mas, para julgar sobre uma certa atitude típica de Marx, esse elenco é significativo. Porém, ainda mais significativa é essa outra passagem, que se torna de particular atualidade, entre outras coisas, por vir exposta num contexto específico, ou seja, num ponto em que Marx diz: essa distinção entre trabalho produtivo e improdutivo — introduzida por Adam Smith, aceita por todos os outros clássicos, por Ricardo, Malthus, etc. precisamente por ser um espelho fiel da realidade capitalista, sofreu uma série de objeções por parte de vários personagens, entre os quais, em primeiro lugar, os próprios trabalha­dores improdutivos, ou pelo menos os chamados estratos altos dos trabalhadores improdutivos, os quais dificilmente podiam suportar que se colocasse em evidência, com aquela distinção, o fato de que, no âmbito da economia capitalista (que, além do mais, eles consideram como a economia em geral), a função por eles exercida havia decaído da posição de grande importância econômica e relevância social que desfrutara no passado. Na página 298, diz Marx:

“À grande massa dos chamados trabalhadores ‘superiores’ - como os funcionários estatais, os militares, os artistas, os médicos, os padres, os magistrados, os advogados, etc., —”

ou seja, o que chamaríamos hoje de profissões livres, ou de profissionais liberais, como por vezes se diz com outra intenção,

“alguns dos quais não só não são produtivos, porém são substan­cialmente destrutivos, mas que sabem como se apropriar de uma imensa parte da riqueza ‘material’, um pouco vendendo suas mercadorias ‘imateriais’, um pouco as impondo pela força, a esses não causava nenhum prazer serem relegados, do ponto de vista econômico, à mesma classe dos bufões e dos domés­ticos, e aparecerem — diante dos produtores propriamente ditos — como consumidores, como parasitas. Tratava-se de uma singular profanação precisamente daquelas funções que, até agora, eram circundadas de uma auréola e haviam desfrutado de uma vene­ração supersticiosa. A economia política, em seu período clássico, exatamente como a própria burguesia no primeiro período de seu processo de afirmação, assume uma atitude severa e crítica em face da máquina estatal, etc. Posteriormente”

(esse “posteriormente” é, substancialmente, a fase em que nos encon­tramos),

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“ela compreende e aprende com a experiência que a necessidade da combinação social, herdada do passado, de todas essas classes”

(que se tornam socialmente aliadas da burguesia e, por isso, são tratadas de modo diverso pela economia política — essa é a tese)

“a necessidade da combinação social, herdada do passado, de todas essas classes, em parte completamente improdutivas, deriva de sua própria organização.”

Em suma, há uma fase (a fase nascente da burguesia) na qual essas classes, outrora importantíssimas, são realmente convertidas em algo supérfluo; a sua improdutividade se manifesta claramente nos fatos, e, como tal, é tratada pela própria ciência da economia política. Chega um momento, uma fase sucessiva, na qual essas classes não são mais socialmente supérfluas, mas se tornam essenciais à própria organização da sociedade burguesa; e, então, a economia política — em sua versão vulgar, como diria Marx — muda de atitude e renuncia até mesmo à distin­ção entre trabalho produtivo e improdutivo, a fim de não considerar essas classes como improdutivas, limitando-se a dizer — como, de resto, já dissera em época pré-burguesa — que a produtividade coincide com a utilidade, que o trabalho produtivo é o trabalho útil em geral, é o trabalho que faz alguma coisa, e, portanto, deixa de lado toda especifi-. cidade capitalista na definição de trabalho produtivo, e precisamente por isso pode incluir no conceito de produtividade realidades não capita­listas, como é o caso dessas que estamos analisando. Portanto, parece-me que as coisas — pelo menos no que se refere a Marx — são bastante claras.

Em substância, o critério é bastante nítido para que seja possível evitar cometer erros. Em resumo, o critério é este: o trabalho produtivo é trocado por capital; o trabalho improdutivo é trocado por renda. Portan­to, o trabalho produtivo — precisamente enquanto é trocado por capital — reproduz o valor desse capital pelo qual é trocado e algo mais; o trabalho improdutivo não reproduz sequer o valor pelo qual foi trocado, não reproduz sequer a parte da renda com a qual foi comprado. Todavia, embora possa parecer, tendo-se chegado a esse ponto, que a questão do conceito de trabalho produtivo já esteja de certo modo esgotada, na verdade não o está. Não o está para o próprio Marx; pois, após ter defi­nido o trabalho produtivo do modo aludido acima, nasce para Marx um problema, um problema muito característico, já que assinala a dife­rença entre Marx e os clássicos sobre a questão da produtividade. Quando se fala de trabalho produtivo e de trabalho improdutivo, a qualificação da produtividade é predicada precisamente daquela realidade que é o trabalho; o trabalho é o sujeito do qual se diz que é ou não produtivo. Todavia, há uma circunstância - que Marx considera de certa impor­tância — constituída pelo fato de que a linguagem comum, a linguagem

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imediata, a linguagem não culta, não a linguagem dos economistas, precisa­mente a linguagem comum, atribui freqüentemente o adjetivo “produtivo” não ao trabalho, mas ao capital; e fala assim de capital produtivo. Ora, segundo Marx, isso não acontece por acaso; e não se pode nem mesmo dizer, de modo simples e imediato, que a atribuição do adjetivo “produ­tivo” ao capital seja conseqüência de uma mistificação, seja conseqüência de um modo ainda primitivo e ingênuo, e portanto substancialmente errôneo, de considerar as coisas; na realidade, a atribuição do adjetivo “produtivo” ao capital tem razões, segundo Marx, muito importantes, cujo exame esclarece a natureza do capital, assim como a natureza da relação entre capital e trabalho, melhor do que poderia acontecer exami­nando outras questões. Ora, precisamente aqui, no Capitulo VI, temos uma das passagens onde Marx enfrenta essa questão e busca dar conta do sentido que tem a expressão “capital produtivo” , a qual — malgrado o que se seria levado a pensar — tem um sentido não vulgar, mas simum sentido teoricamente rico de conseqüências, um sentido que temuma relevância teórica precisa.

Vejamos como Marx enfrenta essa questão, que não é uma questão fácil; é, ao contrário, uma questão cheia de sutilezas, e, por isso, deve ser examinada com certa atenção. Peguem o Capítulo VI e abram na página 83. (Gostaria de observar que o trecho que começa na página 83, com o título “Mistificação do Capital etc.” , e que vai até à página 90, é um trecho que — salvo diferenças não essenciais — reencontra-se tal e qual nas Teorias sobre a Mais-Valia, páginas 585 e seguintes). Lemos na página 83 do Capítulo VI:

“Como o trabalho vivo — no processo de produção — está já incorporado ao capital, todas as forças produtivas sociais do trabalho apresentam-se como forças produtivas do capital, como propriedades que lhe são inerentes, da mesma forma que, nocaso do dinheiro, o caráter geral do trabalho, na medida em queeste cria valor, aparecia como propriedade de uma coisa.”

Há aqui uma primeira afirmação de Marx, que poderíamos interpretar - e depois veremos se essa interpretação será confirmada ou não no que é dito depois — do seguinte modo: a produtividade é certamente, em sentido originário, uma qualidade do trabalho; mas essa produtividade do trabalho, na situação social determinada que é a situação capitalista, apresenta-se como produtividade do capital, quase como se - fora de sua relação com o capital — o trabalho não pudesse de modo algum rea­lizar essa sua produtividade. Em suma, o que Marx diz é isto: que, embora se possa e se deva dizer que produtivo é o trabalho, o trabalho na verdade só é produtivo na medida em que tem uma relação essencial com o capital; só nessa relação com o capital é que o trabalho é produtivo; fora dessa relação, o trabalho não é produtivo; pelo menos não o é no sentido e

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com o grau de produtividade que possui quando é inserido num contexto capitalista. Essa parece ser a interpretação a ser dada imediatamente. Agora vejamos se as explicações sucessivas de Marx confirmam ou não essa interpretação.

“Tanto mais que neste caso: 1) precisamente o trabalho, enquan­to exteriorização da força de trabalho, enquanto esforço”

(enquanto função da força-de-trabalho — isso quer dizer, enquanto força- de-trabalho realizada, enquanto valor-de-uso da força-de-trabalho),

“pertence ao operário individual (é com ele que o operário realmente paga ao capitalista o que este lhe dá), ainda que obje­tivado no produto e pertencente ao capitalista; pelo contrário, a combinação social, na qual as diversas forças-de-trabalho funcio­nam tão-somente como órgãos particulares da capacidade de trabalho que constitui a oficina coletiva, não pertence a estas [forças-de-trabalho], mas se lhes contrapõe como ordenamento (arrangement) capitalista, é-lhes imposta".

Vejamos o que isso quer dizer; há, antes de mais nada, um sentido inteira­mente óbvio, no qual a exteriorização da capacidade de trabalho é um atributo do operário singular. O que é essa exteriorização? É a sua força- de-trabalho em função. Já que a força-de-trabalho é o conjunto das qualidades pessoais que tornam o operário apto para o trabalho, compreen- de-se que a exteriorização da força-de-trabalho, ou seja, o trabalho, seja um fato que pertence antes de mais nada ao operário individual. Isso é óbvio. Mas isso por um lado; por outro, todavia, ocorre que essas forças- de-trabalho, no processo produtivo concreto, encontram-se combinadas entre si; e essa combinação não é de modo algum indiferente com relação à produtividade do trabalho; ou seja, essa combinação, como sempre acontece em tais casos, é mais que a soma das partes; é algo sem o qual essas forças-de-trabalho individuais não teriam a capacidade produtiva que têm enquanto partes daquela combinação. Porém, por outro lado, - e essa é a questão, — tal combinação, que dá lugar àquela força coletiva que constitui a fábrica total, não apenas não é fruto, não é efeito, não é conseqüência das forças-de-trabalho individuais consideradas isolada­mente, mas, ao contrário, “se lhes contrapõe como ordenamento capita­lista, é-lhes imposta” . Essa combinação não decorre da mera presença lado a lado das forças-de-trabalho individuais; essa combinação é algo diverso delas; é exterior a elas; é até mesmo imposta a elas; apresenta-se inclusive como o ordenamento do capital; a força-de-trabalho coletiva não é a soma, ou o conjunto, ou o agregado das forças-de-trabalho individuais; é outra coisa; inclusive algo exterior a cada uma delas tomada isoladamente. Na verdade, o que é? É o capital. Esse é um primeiro ponto.

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“2) essas forças produtivas sociais do trabalho, ou forças produ­tivas do trabalho social, não se desenvolvem historicamente senão com o modo de produção especificamente capitalista, e, portanto, aparecem como algo imanente à relação do capital e dele inseparável” .

Temos aqui a confirmação do que se disse antes. Ou seja: antes do capital, isso ainda não acontecia; isto é, quando várias forças-de-tra- balho se uniam, o que resultava era um agregado dessas forças, um conjunto delas; agora, ao contrário, há uma força produtiva do trabalho que não é mais a soma do trabalho dos indivíduos, mas é algo do qual o trabalho dos indivíduos não é mais que momento particular, atributo particular. Como vocês se recordam, ao examinarmos na primeira lição o conceito de trabalho abstrato em Marx, lemos também uma frase — não de O Capital, mas de Para a Crítica da Economia Política — na qual se dizia precisamente isto: o operário é um atributo do trabalho, não é mais o trabalho que é um atributo do operário; é o contrário: é o operário que é um atributo do trabalho; no texto que acabamos de ler, esse fato é reafirmado: e o é exatamente na medida em que esse trabalho, do qual o operário é um atributo, não é mais seu trabalho pessoal, mas é um trabalho geral, coletivo, social, cuja realidade social foi posta por um fato externo ao trabalhador, precisamente pelo capital, o qual, aliás, se coloca diante do trabalho — como Marx diz aqui — como uma força estranha. Essa é uma especificidade do modo capitalista de produção.

“3) as condições objetivas do trabalho, com o desenvolvimento do modo capitalista de produção, assumem uma forma modifi­cada em conseqüência das dimensões em que, e da economia com que, são utilizadas (abstraindo-se por completo da forma da maquinaria, etc.). Tornam-se mais desenvolvidas como meios de produção concentrados, representantes de riqueza social, e o que realmente esgota a totalidade — graças à amplitude e ao resultado das condições de produção do trabalho combinado socialmente” .

Não é que se diga aqui algo substancialmente novo com relação ao que se disse nos itens 1 e 2. Mas qual é o ponto sobre o qual se insiste? Insiste-se nisto: que essa combinação de forças-de-trabalho individuais — que não é simplesmente um conjunto ou um agregado das forças-de- trabalho individuais, mas algo mais que a soma delas — essa combinação encontra correspondência material no fato de que as condições objetivas do trabalho, ou seja, os meios de produção, não são mais meios de produção individuais, isto é, não podem mais ser utilizados por operários individuais, mas devem ser utilizados tão-somente pelo operário coletivo que constitui a fábrica, a oficina, de modo que essa combinação de forças-de-trabalho, essa coisa que transcende as forças-de-trabalho110

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singulares que entram na combinação, torna-se materialmente visível sob a forma de condições objetivas da produção, que em sua corposidade e fisicidade adquiriram o caráter de condições sociais da produção, e não simplesmente de condições individuais; tanto é verdade que não poderiam mais ser combinadas com trabalhadores independentes, mas só podem ser combinadas com trabalhadores coletivos, ou seja, com aquela combi­nação de forças-de-trabalho que constitui precisamente a fábrica. Esse ponto 3), portanto, tem uma espécie de corolário ou integração em toda a página 84, mas em particular no que se afirma no primeiro parágrafo da página 85. Também o que se diz aqui já foi visto por nós quando falamos da subsunção real do trabalho ao capital:

“A ciência, como o produto intelectual em geral do desen­volvimento social, apresenta-se, do mesmo modo, como dire­tamente incorporada ao capital (sua aplicação como ciência, separada do saber e da potencialidade dos operários considerados individualmente, no processo material de produção); e o desen­volvimento geral da sociedade - porquanto é usufruído pelo capital em oposição ao trabalho e opera como força produtiva do capital contrapondo-se ao trabalho — apresenta-se como desenvolvimento do capital-, e isso porque, para a grande maioria, esse desenvolvimento corre paralelo com o esvaziamento da força-de-trabalho.”

Aqui importa observar sobretudo o seguinte: o caráter social, assu­mido materialmente pelas próprias condições objetivas de produção, atinge sua culminação quando essas condições objetivas incorporam a si uma ciência que, como vimos em outro local, está separada da consciência do operário, razão pela qual essas condições objetivas — enquanto suporte material do trabalho coletivo — recebem seu caráter de estranheza e de contraposição com relação ao trabalho do fato de serem o efeito de um conhecimento da natureza que está fora do trabalho; de modo que, nesse caso, a proposição geral segundo a qual a relação com o capital é essencial à realização da produtividade do trabalho recebe um sentido e um conteúdo particulares, pelo fato de que a capacidade realizadora da produtividade do trabalho, que está no capital, é confirmada pela presença no próprio capital de uma coisa que não está no trabalho (e que ademais é essencial àquela produtividade), ou seja, a ciência. Por­tanto, são essas as circunstâncias de fato que Marx examina, e sobre cuja base é possível dizer o que se disse na frase inicial do texto que lemos, ou seja, que as forças produtivas sociais do trabalho se apresentam como forças produtivas do capital.

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Lição 11 A “ PRODUTIVIDADE” DO CAPITAL. AINDA SOBRE O PAPEL HISTÓRICO

DO CAPITAL

Para precisar ainda mais as coisas ditas na lição anterior, vou ler uma passagem da página 575 do volume 2 dos Grundrisse, sob o título: “Alienação das condições do trabalho com o desenvolvimento do capital. (Inversão). A inversão está na base do modo capitalista de produção, não apenas de sua distribuição” .

“O fato de que, com o desenvolvimento das capacidades produ­tivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho aumentem com relação ao trabalho vivo [ . . . ] , esse fato assume, do ponto de vista do capital, o seguinte aspecto: que não é um dos mo­mentos da atividade- social — ou seja, o trabalho objetivado — que se torna um corpo cada vez mais poderoso que o outro momento, o do trabalho vivo, mas sim que são as condições objetivas do trabalho que assumem, em face do trabalho vivo, uma autonomia cada vez mais colossal e que se manifesta através de sua própria extensão.”

O que Marx diz aqui é o seguinte: independentementè do fato de ser capitalista ou não, a produção sempre se desenvolve com a presença simultânea de um trabalho vivo e de um trabalho objetivado, ou seja, de um trabalho que é correntemente desempenhado no processo de produção e de um trabalho que, ao contrário, encontra-se objetivado nos meios de produção, que são frutos de processos produtivos ocorridos112

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anteriormente. Esse fato não é uma peculiaridade da produção capitalista; se se quer, pode-se dizer que, na produção capitalista, do ponto de vista do processo técnico de produção, há um extraordinário desenvolvimento do trabalho objetivado com relação ao trabalho vivo; porém, pondo-se de lado esse aspecto quantitativo da relação entre esses dois momentos do trabalho global, permanece o fato de que a presença simultânea do trabalho vivo e do trabalho objetivado é um traço característico geral de toda espécie de produção. Ou seja, o homem sempre trabalha utilizando instrumentos; e faz parte do próprio caráter racional do seu trabalho o fato de que a produção não seja uma produção imediata, mas sim uma produção mediata; a relação entre o homem e a natureza é mediatizada por um instrumento produzido, que não se encontra já pronto e acabado na natureza.

Portanto, desse ponto de vista, o capital não inova nada, a não ser - repito — sob o aspecto quantitativo, já que a importância do trabalho objetivado em relação ao trabalho vivo é muito maior no capitalismo que nas formações precedentes. Desse modo, — e essa é a questão, — o capital introduz, na opinião de Marx, uma qualificação, que o torna inconfundível com qualquer situação anterior. Poder-se-ia dizer • que o capital se aproveita da divisão (de resto necessária) do trabalho global em trabalho objetivado e trabalho vivo para configurar, entre essas duas partes do trabalho global, uma relação inteiramente peculiar, que jamais existira antes do próprio capital. Qual é essa relação peculiar? Precisa­mente o fato de que não é mais o trabalho vivo que utiliza o trabalho objetivado para obter um certo produto, mas sim o contrário: é o trabalho objetivado que utiliza o trabalho vivo para obter um produto particula­ríssimo, o único produto que pode ser obtido quando essa inversão da relação teve lugar, isto é, um produto que se qualifica não tanto por sua utilidade quanto por seu valor-de-troca. Da situação (digamos assim) normal, ou seja, da situação na qual seria o trabalho vivo a empregar o trabalho objetivado, Marx diz o seguinte: que o trabalho objetivado se tornaria “um corpo cada vez mais poderoso que o outro momento” , ou seja, que o trabalho vivo. Em outras palavras: nesse caso, o trabalho objetivado — os instrumentos nos quais o trabalho se objetivou — seriam uma espécie de prolongamento, de ampliação, de desenvolvimento do próprio corpo do homem. É como se o corpo do homem, ao invés de permanecer (como o corpo dos animais) circunscrito no interior de uma determinada forma orgânica, se expandisse desmesuradamente, já que o instrumento — ou seja, o trabalho que se objetivou nele — é uma espécie de órgão complexo do homem, capaz de desenvolvimento contínuo. Um órgão artificial, criado pela razão e não presente na natureza. Essa seria a condição normal: o desenvolvimento do corpo do homem e, portanto, o aumento — através dessa via — das capacidades de domínio sobre a natureza que o homem possui. Um domínio sobre a natureza,

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por isso, que não é estático, mas suscetível de desenvolvimento infinito. O capital é o contrário disso. Não é o trabalho objetivado a se tornar corpo do trabalho vivo; é o trabalho vivo que se tom a corpo do trabalho objetivado, e tanto mais quando esse corpo inanimado, esse corpo constituído pelo trabalho objetivado, incorpora a si mesmo o conheci­mento, a ciência. Então a subordinaçpo do trabalho vivo ao trabalho morto torna-se total, como acontece precisamente na fase das máquinas. Marx prossegue:

“O acento cai”- no caso da produção capitalista —

“não sobre o fato de que o imenso poder objetivo, que o próprio trabalho social contrapôs a si como um dos seus momentos, se tenha objetivado, mas sobre o fato de que ele se tenha alie­nado , que pertença não ao operário, mas às condições de produ­ção personificadas, isto é, ao capital.”

O objeto da frase é aqui o seguinte: o poder objetivo que o trabalho social adquire em conseqüência do fato de ser um trabalho que se explicita mediante o instrumento, mediante o trabalho objetivado. Ora, não se trata — como diz Marx — simplesmente do fato de que existe um trabalho passado incorporado num instrumento utilizado no presente; não se trata apenas disso, pois isso ocorre em todos os casos, seja ou não capita­lista a produção; trata-se, sim, do fato de que essa objetivação, embora seja uma característica natural da atividade produtiva do homem, torna-se a base de uma alienação; alienação no sentido literal, no sentido de que as coisas que deveriam ser corpo do homem, e, portanto, pertencerem a ele de modo intrínseco, estão ao contrário separadas dele e são coisa diversa dele; e tanto isso é verdade que elas o dominam, além de apare­cerem como aquilo em função do que o próprio trabalho vivo funciona e se exerce. Toda a polêmica de Marx contra o modo vulgar de ver as coisas, isto é, tanto contra a economia vulgar quanto contra o senso comum influenciado por pontos de vista burgueses, a polêmica de Marx contra tudo isso pode ser resumida na seguinte proposição: que todas essas posições confundem uma objetivação com uma alienação; pensam que, na situação de fato, não exista nada mais do que um momento da história geral da objetivação do trabalho, quando na verdade não existe só isso na situação real, mas existe uma objetivação que serve de base a uma alienação, no sentido que expusemos acima. A frase que vem depois tem também uma certa importância, já que serve de confir­mação a coisas que afirmamos na lição passada, ou, mais precisamente, ao seguinte fato (sobre o qual jamais insistirei bastante, porque penso que se trate de um traço extremamente característico da teoria marxiana do capital): que quando Marx diz, por exemplo, que as forças produtivas

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do trabalho se apresentam ou aparecem como forças produtivas do capital, ele não se refere a uma mera aparência, mas sim a uma realidade. Essa transferência da força produtiva do trabalho para o capital não é uma aparência, é uma realidade. Isso é dito com todas as letras na frase que vou ler agora:

“Até o momento em que, no nível do capital e do trabalho assalariado”

(ou seja, enquanto existir uma situação capitalista),“a criação desse corpo objetivo da atividade”

(ou seja, do trabalho objetivado nos instrumentos)“ocorrer em antítese à força-de-trabalho imediata”

(enquanto isso ocorrer, atenção para o que vem a seguir),“essa distorção e inversão são efetivas, não são uma mera opi­nião, ou seja, não existem apenas na representação de operários e capitalistas.”

Ou seja: quando a produtividade é atribuída ao capital, não se trata de um modo particular de representar as coisas por quem não se libertou da escravidão da alienação (seja o operário ou capitalista); portanto, não se trata de uma realidade que resida simplesmente na cabeça dos que consideram as coisas sem ter superado a situação de alienação em que todos se encontram. Não se trata simplesmente disso, pois essa transposição é uma transposição real; o trabalho realmente cedeu ao capital sua força produtiva.

Chegando a esse ponto, penso que temos todos os elementos para estabelecer qual seja, para Marx, a relação entre a proposição segundo a qual o capital é produtivo e a proposição de que o trabalho é produtivo. O fato de que no capital, ou seja, no conjunto dos meios de produção enquanto são monopolizados por uma parte da sociedade, e portanto contrapostos ao trabalho, encontre-se a “combinação social” das forças produtivas, tal fato significa que, sob o ângulo da produção da riqueza, ou seja, dos valores-de-uso, a peculiaridade da produção capitalista está precisamente em colocar a capacidade produtiva fora do trabalho. Por outro lado, a riqueza produzida em tais condições, ou seja, a riqueza em cuja produção o trabalho intervém apenas em posição de “subordi­nação” à coisa, é uma riqueza que reproduz em si mesma aquela subor­dinação: e, com efeito, os valores-de-uso — enquanto produzidos em condições capitalistas — não são mais do que suportes materiais do valor-de-troca: a riqueza concreta não é senão meio para a riqueza abs­trata. Mas, com relação a essa última, que é o produto real do processo

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capitalista, não pode deixar de se restabelecer a relação normal entre produtividade e trabalho, ainda que isso só possa ocorrer na forma de abstração: é o trabalho, enquanto trabalho abstrato, que produz o valor. A subsunção do trabalho ao capital está na origem de ambos os lados da produção capitalista: da produtividade material, por parte do capital, e da produtividade em valor, por parte do trabalho.

O fato de que a produtividade tenha esses dois lados, distintos e contrapostos, não é senão a manifestação do caráter invertido das rela­ções entre homens e coisas, um caráter que caracteriza o capitalismo. Sobre essa inversão, Marx diz, logo após os trechos que lemos há pouco:

“Mas, evidentemente, esse processo de inversão”(ou seja, esse processo pelo qual as coisas se personificam e as pessoas se reificam ou coisificam),

“é uma necessidade meramente histórica, é uma necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas tão-somente no quadro de um determinado ponto de partida histórico, ou de uma determinada base histórica; portanto, não é de modo algum uma necessidade absoluta da produção; trata-se, antes, de uma necessidade transitória, e o resultado e a finalidade (imanente) desse processo é suprimir tanto essa base como essa forma do processo” .

Temos aqui um trecho muito importante. Tentarei agora decom­pô-lo em suas várias partes. Antes de mais nada, vejamos a primeira parte dessa proposição: “esse processo de inversão é uma necessidade meramente histórica” . Isso é de fácil compreensão, pois está substancialmente incluído em tudo o que dissemos até agora. A inversão, ou seja, a transferência da força produtiva do trabalho para a coisa, é precisamente uma inversão, e, como tal, não pode deixar de ser atribuída a uma fase do movimento da história. Portanto, como diz Marx, “não é de modo algum uma neces­sidade absoluta da produção” , isto é, uma circunstância que pertença ao conceito e à realidade da produção enquanto tal, mas algo que pertence apenas à produção em uma de suas determinações históricas particulares.

Esse é o primeiro ponto. Por outro lado, Marx prossegue apresentando uma importante concretização, a meu ver, já que rica de notáveis impli­cações; é quando diz que essa inversão “é uma necessidade para o desenvol­vimento das forças produtivas tão-somente no quadro de um determinado ponto de partida histórico, ou de uma determinada base histórica” . O que significa isso? Em minha opinião, Marx diz aqui algo mais do que simplesmente o fato de que essa inversão é necessária apenas historica­mente e não como característica absoluta da produção. Aqui se diz que é necessária historicamente em conseqüência da existência de um determi­nado ponto de partida histórico, do fato de que o processo começa a116

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partir de uma determinada base histórica. Que ponto de partida histórico é esse? Essa proposição pode ser entendida de dois modos, não perfeita­mente coincidentes, de maneira que a escolha de um ou de outro tem implicações muito amplas.

Limito-me agora, simplesmente, a dizer quais são esses dois modos; não vou além disso, porque a discussão em torno da escolha implica problemas muito amplos, que não podem ser enfrentados neste local. Portanto, trata-se de uma necessidade a partir “de uma determinada base histórica” . Uma primeira interpretação — que se poderia dizer imediata, a que talvez se apresente ao intérprete como a mais natural — é esta: a base histórica é a redução do trabalho a trabalho assalariado; se o trabalho é trabalho assalariado, então é que já foi separado do corpo objetivo constituído pelo conjunto dos instrumentos; esse corpo objetivo, portanto, já se constituiu como capital, e disso decorrem todas as demais coisas. Qual é, por conseguinte, a base histórica a partir da qual se desen­volve essa situação? A base histórica, o ponto de partida histórico é a redução do trabalho a trabalho assalariado. Essa é uma interpretação possível e, em certo sentido, até mesmo óbvia. A outra interpretação, que não contradiz essa primeira, mas a amplia um pouco, numa direção cuja legitimidade foi freqüentemente contestada na literatura marxista, vale a pena ser exposta aqui, quando menos para que possa servir como elemento de reflexão. Trata-se, em outras palavras, de recuar mais essa base histórica, dizendo que a própria redução do trabalho a trabalho assalariado exige explicação; a própria redução do trabalho a trabalho assalariado faz parte daquela situação cujo ponto de partida estamos procurando. Então, qual poderia ser essa precedente base histórica? Esta: no momento em que o trabalho foi reduzido a trabalho assalariado, o trabalho já era trabalho alienado através da exploração ocorrida em toda a história até aquele momento. Ou seja: o trabalho já fora privado de suas características naturais. O trabalho, tal como se apresentava naquele momento, já era resultado de um processo histórico no qual, ainda que em formas não capitalistas, a alienação do trabalho de si mesmo já era um fato amplamente estabelecido. Sobre a relação entre alienação pré- capitalista e alienação capitalista, envio ao que disse na terceira lição. Aqui me limito a observar que, sobre a base dessa interpretação, o incre­mento das forças produtivas ou o incremento sistemático das forças produtivas, que até então não ocorrera, só podia ocorrer mediante a redução do trabalho à sua forma assalariada. Então, a base histórica do modo capitalista de produção em seu conjunto é a condição à qual historicamente o trabalho foi desde sempre reduzido, ou seja, desde que existe processo histórico.

Essa segunda espécie de interpretação — digamos, essa tese, que consiste em atribuir a Marx uma tal posição — pressupõe um certo modo de interpretar os locais de origem, em Marx, do conceito de alienação,

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e, em particular, as obras juvenis, sobretudo os Manuscritos de 1844 e certas passagens da Ideologia Alemã. Além do mais, na terceira lição, como vocês talvez se recordem, tínhamos lido uma passagem dos Grun- drisse que confirmava essa interpretação. Deixo essa questão em aberto porque é impossível tratar dela agora. Ao contrário, o que há de seguro, ou seja, de não controverso, nessa passagem, é o fato de que a inversão entre o trabalho vivo e o corpo (ou melhor, o que deveria ser o corpo mas não o é ) é uma determinação histórica e não uma determinação absoluta.

Mas não há só isso na passagem que lemos. Há uma terceira coisa igualmente muito importante. Depois de ter dito que “não é de modo algum uma necessidade absoluta da produção; trata-se, antes, de uma necessidade transitória” , Marx acrescenta: “e o resultado e a finalidade (imanente) desse processo é suprimir tanto essa base quanto essa forma do processo” . Ou seja (e isso Marx diz aqui): o capitalismo não pode ser compreendido até o fundo se não se vê sua duplicidade; a duplicidade que o faz ser, por um lado, aquela inversão de que falamos, aquela alie­nação a que nos referimos, o fato de tomar o trabalho um corpo do seu corpo, corpo que deveria ser a extensão do seu corpo; mas, por outro lado, — e, nesse sentido, o capitalismo é dúplice e não unitário, não é uma unidade indiferenciada, mas uma unidade complexa, — o capitalismo é o que permite a supressão dessa inversão. Aliás, Marx chega mesmo a dizer que “o resultado e a finalidade desse processo” — ou seja, do processo capitalista — “é suprimir tanto essa base quanto essa forma do processo” . De que modo? Evidentemente, esse é um problema que deve ser inteiramente examinado. Vamos por enquanto nos ater ao texto e nos contentar em ter descoberto que é essa a opinião de Marx. Um outro ponto. Qualquer que seja o modo pelo qual se chegará à supressão dessa inversão, coloca-se uma questão: quando essa supressão ocorrer, o que acontecerá, o que será posto no lugar dessa inversão? Vocês se recordam que, na terceira lição, lemos alguns textos importantes sobre esse tópico. Voltamos aqui a encontrar um texto referente ao problema, sempre na página 576, que passo a ler:

“Com a supressão do caráter imediato do trabalho vivo enquanto trabalho apenas singular-, com a atribuição à atividade dos indi­víduos de um caráter imediatamente geral ou social, essa forma da alienação é cancelada dos momentos objetivos da produção. Com isso, eles são postos como propriedade, como corpo orgâ­nico social no qual os indivíduos se reproduzem como indivíduos, mas como indivíduos sociais.”

O que quer dizer esse grupo de proposições? Lembrem-se do que dissemos na lição anterior. Ao trabalho do homem, pertence a caracte­rística da socialidade. Mas o que ocorre com ‘o capital? Que a socialidade

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é inteiramente tranferida para a coisa. Lembrem-se: uma coisa é a força- de-trabalho antes de entrar na capital; outra é essa força após tal ingresso. Antes do capital, é uma força-de-trabalho meramente individual e, como tal, improdutiva. Quando entra, torna-se uma força-de-trabalho social e, como tal, produtiva. Mas a passagem da improdutividade à produtivi­dade é assinalada pelo ingresso no capital, ou seja, pelo ingresso na coisa. Poderíamos dizer que a aquisição da produtividade, ou seja, da socialidade, é mediatizada pela coisa. O que diz Marx aqui? Diz que, quando essa inversão for suprimida, então a aquisição ou realização da socialidade — como aqui se diz — será imediata. Vejam: “a atribuição à atividade dos indivíduos de um caráter imediatamente social” , ou seja, não através da mediação da coisa. Então a socialidade é recuperada como um traço essencial do trabalho e não mais transferida para a coisa. Tudo o que faz com que o trabalho seja social passa a pertencer ao próprio trabalho e não está mais situado em algo que é alheio ao trabalho. O que isso significa em termos positivos é um problema aberto, já que quando Marx afirma esse princípio (na passagem que lemos e também em outras) o faz em termos negativos, ou seja, como contraposição à atual situação. De qualquer modo, o princípio é este: é a restauração da característica da socialidade no interior do trabalho operante, de modo que ele a mani­feste imediatamente e sem a mediação das coisas, ou seja, sem o capital.

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Lição 12 A FORMAÇÃO DA MAIS-VALIA

Considero concluída a leitura das partes do Capítulo VI que pretendia pôr em evidência. Retomo agora, como havia anunciado no início do curso, algumas questões da teoria marxiana do valor. Essas questões surgem em relação com a categoria da taxa de lucro e com a formação da taxa geral (ou média) de lucro.

Para começar, porém, teremos de ir um pouco longe, retomando e desenvolvendo coisas já ditas. O ponto de partida pode ser constituído pela contraposição, efetuada por.Marx, entre os dois modos com que se apresentam a circulação e a troca. Esses dois modos são apenas a repre­sentação esquemática da diferença existente entre a troca simples e a troca capitalista, ou seja, entre a troca que tem como meta a aquisição de valores-de-uso e a troca que tem como finalidade o acréscimo do valor-de-troca. Marx (como se pode ver nos capítulos 3 e 4 do livro 1 de O Capital) representa essas duas espécies de troca, respectivamente, com as fórmulas M-D-M, mercadoria-dinheiro-mercadoria, e D-M-D’, dinheiro-mercadoria-dinheiro. Em que sentido a primeira fórmula é a representação da circulação simples? No sentido de que, na circulação simples, na troca simples, a finalidade do processo é a mercadoria, e o dinheiro se coloca simplesmente como termo de mediação da troca; ou seja, quem executa a troca se apresenta no mercado com uma merca­doria, que ele produziu, e, através da aquisição de dinheiro mediante a venda da mesma, trasmuta sua mercadoria primitiva numa outra merca­doria que serve para satisfazer seus carecimentos. Por isso, o processo120

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começa e termina com a mercadoria: começa com a mercadoria possuída por quem troca, termina com a mercadoria que ele adquiriu por meio da troca. 0 dinheiro é simplesmente o termo médio dessa transformação de uma mercadoria na outra. Ao lado dessa circulação, a troca simples, existe um outro tipo de circulação, que se caracteriza pelo fato do dinheiro, em vez de ser um termo médio que relaciona a mercadoria inicial com a mercadoria final, é o início e o fim do processo, enquanto é a mercadoria que se põe, dessa feita, como termo médio.

Essa segunda fórmula se refere evidentemente à circulação capita­lista. O primeiro termo da mesma, D, é capital em sua forma monetária (ou “capital-dinheiro”). O segundo termo, M, é o capital que passou da forma monetária à forma de um conjunto de meios de produção e de força-de-trabalho (“capital produtivo”). O terceiro termo, D’, é o capital valorizado, ou seja, é o conjunto de mercadorias produzidas, no qual se encontra objetivado mais valor do que se encontra em M (“capital- mercadoria”). Por outro lado, esse capital-mercadoria, enquanto se realiza no mercado e é novamente transformado em dinheiro (precisamente em D’), volta a ser capital-dinheiro, ou seja, o início de um novo ciclo da circulação capitalista. A terminologia usada aqui — “capital-dinheiro” , “capital produtivo” , “capital-mercadoria” — se encontra no capítulo 1 do Livro 2 de O Capital.

Uma outra coisa que Marx põe em evidência é o seguinte: que, enquanto na primeira fórmula todo o sentido está na mudança de quali­dade, que se dá na passagem da primeira mercadoria para a segunda, pois o que interessa a quem troca é precisamente passar de uma merca­doria determinada para outra mercadoria qualitativamente diversa, na segunda fórmula — ao contrário — todo o sentido reside na mudança não mais da qualidade, porém sim da quantidade, que se obtém com a passagem do primeiro dinheiro ao segundo. Por que de quantidade e não de qualidade? Evidentemente porque o dinheiro não pode mudar de qualidade; é sempre dinheiro, razão por que, se muda, só pode mudar em quantidade. Portanto, na realidade, esse dinheiro — que se encontra como termo final na fórmula — é uma quantidade diversa (mais precisa­mente: uma quantidade maior) do que o dinheiro que se encontra no início.

yejamos agora de que modo essas coisas se ligam aos problemas do valor, dos quais falamos até agora. Todo o problema, diz Marx, rela­tivo ao exame, à interpretação do capitalismo e do capital reside em explicar como pode ocorrer, não de modo ocasional mas sistemático, a transformação de uma soma de dinheiro numa soma maior, tendo-se presente — e esse é o ponto que deve ficar bem claro — que essa transfor­mação não pode consistir (como seria a tendência normal a pensar, diante de um fato desse gênero) em que se venda mais caro uma coisa comprada

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por um preço mais baixo. Por que a explicação não pode ser essa? Por dois motivos: porque, se fosse assim, deveríamos admitir o absurdo de que, no mercado, uma certa mercadoria pudesse ter dois preços: um preço mais baixo, quando o capitalista a compra, e um preço mais alto, quando o capitalista a vende; o que é absurdo, porque uma mercadoria qualitativamente idêntica, no mercado, não pode ter senão sempre o mesmo preço. A segunda razão do absurdo dessa explicação está no fato de que, mesmo se algue'm conseguisse vender a mesma mercadoria por preço mais alto do que o preço pelo qual a comprou, é evidente que — ao lado do ganho desta pessoa — existiria a perda de uma outra; e, nesse caso, os ganhos e as perdas se compensariam, de modo que, ao nível do sistema, não poderia jamais surgir um incremento do valor inicial do capital, que é precisamente o que se trata de explicar.

Tudo isso significa que a explicação não pode ser encontrada, se se resta no âmbito do processo de circulação. A explicação do aumento deve ser buscada em alguma circunstância que tenha lugar no interior do processo de produção. Ou seja, em outras palavras, o segredo da pas­sagem de D a D’, o segredo do incremento que transforma o dinheiro em capital, deve ser buscado — de acordo com Marx — naquele termo médio M que aparece na fórmula. Esse M deve representar algo que permite a explicação desse aumento de valor que o capital experimenta no processo de circulação. A explicação não é difícil, uma vez que o valor das mercadorias seja relacionado com o trabalho objetivado nas próprias mercadorias. A explicação, em substância, já é conhecida de vocês. Vou repeti-la agora para fechar a argumentação. De que se, trata em substância? Trata-se do fato de que as mercadorias que são simbo­lizadas por M são, na realidade, um grupo, um conjunto de mercadorias, entre as quais há uma mercadoria inteiramente peculiar, que é a força- de-trabalho. Essa força-de-trabalho, que é uma mercadoria no sentido de ser uma coisa comprada e vendida, possui algumas características que, por um lado, são características genéricas, comuns a ela e a todas as demais mercadorias, e, por outro, são características especiais, ou seja, que pertencem a ela e apenas a ela. Quais são as características que a força-de-trabalho tem em comum com as demais mercadorias, e quais são, ao contrário, as características especiais, que lhe são peculiares e que não se encontram em nenhuma outra mercadoria? As características genéricas são duas, ou seja: 1) o fato' de que, como todas as outras mercadorias, também ela possui um valor; 2) o fato de que, como o valor de todas as outras mercadorias, também o seu valor é trabalho objetivado nela. A única observação que deve ser feita, nesse nível, é que, na determinação do trabalho objetivado na força-de-trabalho, é preciso concretizar com exatidão o que isso significa, pois se dá o caso de que a força-de-trabalho, ao contrário de outras mercadorias, não está no termo de um processo de produção específico; a força-de-trabalho

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não sai de um processo produtivo no mesmo sentido que um par de sapatos ou um quintal de ferro sai de um processo produtivo; enquanto existe um processo produtivo que produz sapatos e um processo produtivo que produz ferro, não existe — em sentido próprio — um processo produtivo que produza força-de-trabalho. Apesar disso, a lei geral do valor pode igualmente ser aplicada nesse caso porque, como todas as demais mercadorias, também a força-de-trabalho tem um custo determi­nado; ou seja, também a força-de-trabalho é de tal natureza que existe um conjunto de outras mercadorias, cujo consumo constitui o custo de produção dessa mercadoria particular. Quais são as mercadorias que constituem, em sentido físico, o custo da força-de-trabalho? São os meios de subsistência que essa força-de-trabalho deve consumir para conservar-se e se manter. Assim como é necessário o couro para produzir o sapato, do mesmo modo é preciso o pão para produzir a força-de-trabalho. E não há nada de estranho nesse fato; se alguém se escandalizasse com o modo pelo qual é tratada a força-de-trabalho, Marx responderia — mas, de resto, já Ricardo teria implicitamente respondido no mesmo sentido, — que precisamente nisso consiste a redução da subjetividade do trabalhador, pela ação do capital, à força-de-trabalho, a redução da pessoa do trabalhador a uma coisa. E, precisamente porque ocorre esse processo de reificação, precisamente por isso podemos falar de custo da força-de-trabalho, no mesmo sentido em que falamos de custo de um quintal de ferro ou de um par de sapatos; então, após essa propo­sição, diremos que o trabalho objetivado na força-de-trabalho é o trabalho objetivado nos meios de subsistência necessários para conservar e repro­duzir a própria força-de-trabalho, de modo que quem adquire a força- de-trabalho do operário (nesse caso, o capitalista), e a adquire por um tempo determinado (digamos: por um dia), ou seja, quem adquire a disponibilidade da força-de-trabalho por um tempo determinado, deve pagar um valor, que é determinado pela quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência que são consumidos durante aquele mesmo período, ou seja, durante a jornada de trabalho. Portanto, a proposição exata é a seguinte: o valor da força-de-trabalho disponível por um dia é a quantidade de trabalho objetivada nos meios de subsistência consu­midos naquele dia. Desse modo, é no fato de possuir um valor redutível a trabalho objetivado que reside a característica que essa mercadoria (a força-de-trabalho) tem em comum com as demais mercadorias.

Todavia, — e essa é a questão, - tal mercadoria possui também uma característica que lhe é peculiar, que não se encontra em outras mercadorias. Trata-se de uma propriedade fundamental da força-de- trabalho; fundamental porque, na construção teórica de Marx, essa propriedade da força-de-trabalho joga precisamente um papel essencial na explicação do processo capitalista. Qual é essa propriedade? Embora se trate de uma propriedade particular, ela pode ser descoberta com

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exatidão se fizermos uma comparação com as outras mercadorias. Toda mercadoria — que é sempre fisicamente determinada de modo concreto — é utilizada pelo comprador quando se torna sua posse; ou seja, o compra­dor desfruta do valor-de-uso que adquiriu ao pagar o valor daquela mercadoria. Quem compra um par de sapatos consumirá esse par de sapatos. A mesma coisa acontece com a força-de-trabalho; o comprador da força-de-trabalho, ou seja, o capitalista, pode usá-la na medida em que a comprou, no mesmo sentido que alguém que comprou os sapatos pode usá-los; o único problema — e aqui está o núcleo da questão — é saber o que quer dizer exatamente “usar a força-de-trabalho” . Se se quer, as coisas podem ser postas nos seguintes termos: em que consiste exatamente o valor-de-uso da força-de-trabalho? Ou seja: o valor-de-uso pelo qual o capitalista pagou um valor-de-troca? A resposta é: o valor- de-uso da força-de-trabalho é o próprio trabalho. É o trabalho que pode ser efetuado pelo operário precisamente enquanto o operário é força- de-trabalho; de modo que o capitalista, que comprou a disponibilidade por um dia da força-de-trabalho, a utilizará, durante aquele dia, da única maneira pela qual é ela utilizável, ou seja, extraindo dela o trabalho que pode ser efetuado durante um dia. Assim como o valor-de-uso de um par de sapatos é calçá-lo e caminhar com ele, ou seja, é a função parti­cular que têm os sapatos, assim também existe uma função particular da força-de-trabalho, que consiste na prestação de trabalho, no trabalho em ato. Mas esse trabalho, esse trabalho vivo que brota da força-de- trabalho, não é uma coisa qualquer, já que — e essa é uma questão de que já falamos no início destas lições — o trabalho é substância do valor, é a substância valorizadora, é a coisa que, quando é realizada, dá lugar a produtos que são valores. Mas, com essa premissa, a explicação da mais-valia, da diferença entre D’ e D, torna-se imediata. O problema é que não existe nenhuma relação — atenção para isto! — entre a quanti­dade de trabalho objetivado na força-de-trabalho e a quantidade de trabalho que pode ser extraída dessa força-de-trabalho; trata-se de duas quantidades de trabalho que nada têm a ver uma com a outra; esse é o ponto essencial da explicação marxiana do lucro. Ou seja: se eu digo que os meios de subsistência consumidos pelo operário num dia contêm quatro horas de trabalho, porque são necessárias quatro horas para produzi-los, isso não significa que o operário, cuja força-de-trabalho foi comprada e posta para funcionar por um dia, possa dar quatro horas de trabalho. Se a jornada de trabalho é de oito horas, serão extraídas oito horas de trabalho vivo daquela força-de-trabalho. Então, o que acontece? Acontece que o capitalista, comprador da força-de-trabalho, pagou o valor correspondente a quatro horas e tem em mãos um valor correspondente a oito horas. A diferença entre essas duas quantidades de trabalho — o que Marx chama de trabalho excedente - é a origem do valor excedente, da mais-valia, que se apresenta como incremento do valor do capital. É essa, precisamente, a explicação da mais-valia dada124

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por Marx. A mais-valia, como qualquer outro valor, é trabalho. E que trabalho? A diferença entre o trabalho prestado e o trabalho contido na força-de-trabalho.

Por outro lado, deve-se acrescentar que o conjunto de mercadorias simbolizado por M na fórmula D-M-D’ não compreende apenas a força- de-trabalho, mas também outras coisas; ou seja, para usar a terminologia que já vimos ao 1er o Capítulo VI, há aqui não apenas a compra da condição subjetiva da produção, mas também a compra das próprias condições objetivas da produção, ou seja, os meios de produção. De que modo os meios de produção operam nesse processo? Esses meios de produção possuem naturalmente um valor e, por isso, a aquisição dos mesmos implica que uma parte do capital é empregada na compra desses meios. De modo que o capital inicial global se subdivide em duas partes, uma das quais compra os meios de produção por seu valor e outra compra a força-de-trabalho também pelo seu valor. Essas duas partes do capital, como já sabemos, são indicadas por Marx com as expressões “ capital constante” e “capital variável” . Essas palavras são usadas aqui num sentido especial, que já esclarecemos, mas sobre o qual insistiremos para evitar possíveis equívocos. 0 que Marx quer dizer quando fala em “capital constante” e “capital variável” ? Quer dizer o seguinte: o capital constante é o valor dos meios de produção; por que é chamado de capital constante? Não certamente porque o valor dos meios de produção não se altere ao longo do tempo; aliás, em função do tempo, o valor dessa parte do capital se altera como qualquer outra grandeza econômica; portanto, não é esse o sentido da palavra “constante” ; não é essa a razão (pois seria uma razão errada) que faz o capital constante se chamar capital constante. Chama-se “constante” , ao contrário, por esta outra razão: porque esses meios de produção transferem para o produto apenas o seu valor-, ou seja, o valor dos meios de produção reaparece sem modificação no valor do produto; e é precisamente porque reaparece sem modificação no valor do produto que Marx o chama de “constante” ; podemos dizer que é um valor que não se modifica sob o ângulo da constituição do valor do produto. Ao contrário, o valor da força-de-trabalho é chamado de “capital variável” pelo motivo oposto. Por que é variável? Porque a força-de-trabalho transmite ao produto final não simplesmente seu próprio valor, mas transmite seu próprio valor mais o valor devido ao trabalho excedente, ou seja, a mais-valia. Isto quer dizer que a força-de-trabalho é portadora de uma quantidade de trabalho maior do que a que ela mesma contém; por isso, o valor do capital variável se modifica sob o ângulo da constituição do valor do produto.

Vocês podem encontrar as definições em O Capital, Livro 1, páginas 234-235. A definição de Marx é a seguinte:

“A parte do capital, portanto, que se converte em meios deprodução, isto é, em matéria-prima, materiais acessórios e meios

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de trabalho, não muda a magnitude do seu valor no processo de produção. Chamo-a, por isso, parte constante do capital, ou, simplesmente, capital constante.

“A parte do capital convertida em força-de-trabalho, ao contrário, muda de valor no processo de produção. Reproduz o próprio equivalente e, além disso, proporciona um excedente, a mais-valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte do capital transforma-se continuamente de magnitude constante em magnitude variável. Por isso, chamo-a parte variável do capital, ou simplesmente, capital variável.”

Sendo assim, do que é constituído o valor global de uma mercadoria segundo essa teoria do valor de Marx? O valor global de uma mercadoria é constituído de três partes: o valor do capital constante, o valor do capital variável e a mais-valia. Indicando com c o capital constante, com v o capital variável, com m a mais-valia, com M o valor do produto, temos:

c + v + m = MVejam que essas três partes do valor são todas elas quantidades

de trabalho: c é a quantidade de trabalho objetivada nos meios de produção; v é a quantidade de trabalho objetivada dos meios de subsis­tência; m é a quantidade de trabalho fornecida a mais pelo trabalhador, ou seja, o trabalho excedente: v, ou seja, a quantidade de trabalho objeti­vada nos meios de subsistência, coincide com uma parte do trabalho que o operário executa durante o período de trabalho; m coincide com a outra parte do período laborativo; finalmente, M é a quantidade de trabalho globalmente objetivada no produto.

A distinção entre capital constante e capital variável é fundamental para compreender a natureza do capital. Bem menos importante do que ela, porque se desenvolve não no terreno dos princípios da economia, mas tão-somente no simples terreno contábil, é uma outra distinção, ou seja, a que existe entre capital “circulante” e capital “fixo” . Teremos também de falar dessa segunda distinção, pois ela está implícita em algumas das questões de que deveremos tratar.

Os meios de produção, cujo valor é o capital constante, são de várias es écies: edifícios, máquinas, fontes de energia, matérias-primas. Trata-se, portanto, de coisas bem diversas do ponto de vista do valor- de-uso. Uma primeira diferença, que imediatamente salta à vista, é a seguinte: uma máquina dura muitos anos, enquanto a matéria-prima, ao contrário, desaparece inteiramente em um produto. O edifício, por seu turno, tem uma duração longuíssima; por certo não desaparece no produto. Para se ter um critério objetivo de julgamento sobre essa durabilidade, raciocina-se do seguinte modo: a mercadoria produzida126

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pelo capital de que estamos falando é uma mercadoria produzida durante um certo período, que deve ser considerado como pré-fixado de uma vez por todas; portanto, quando se diz “valor” , pretende-se dizer: valor do que foi produzido num dado período de tempo. Convencionalmente, diz-se um ano, mas trata-se de um ano inteiramente convencional, que pode não ter nada a ver com o ano solar. Em nossa fórmula do valor, M é portanto o valor da produção anual numa certa atividade, num certo processo. No início do ano, o capitalista que controla esse processo compra os edifícios, as máquinas, as matérias-primas, tudo o que lhe é necessário para levar adiante sua produção. Ora, um certo capital se chama capital fixo se sua duração é maior que um ano; um edifício e uma máqui­na são evidentemente capital fixo; ao contrário, chama-se capital circu­lante o capital cuja duração é igual ou menor que um ano; por exemplo, as matérias-primas são adquiridas através da constituição, no início do ano, de um estoque, ou seja, de uma certa quantidade de matéria-prima que servirá para alimentar o processo produtivo por um período não maior que um ano; quando o estoque acaba, o capitalista o reconstitui, compran­do-o de novo. A magnitude do estoque com relação à produção depende do período que essa produção deverá durar (que se chama período de rotação); portanto, se no início do ano o capitalista quer comprar um estoque para um ano, comprará uma certa quantidade de matéria-prima, que renovará no início do ano seguinte; mas poderia comprar um estoque, por exemplo, para um mês, caso em que deverá renová-lo doze vezes; por ano; se comprar um estoque para seis meses, renova-o duas ve­zes; se compra um estoque para uma semana, deve renová-lo 52 ve­zes, etc.

Para os salários, é a mesma coisa. Os salários — de acordo com a colocação que Marx sempre adota e que é a típica da economia clássica — são pagos antecipadamente; e, dado que são pagos por períodos não superiores a um ano, o valor deles - ou seja, o capital variável - faz parte do capital circulante. Temos, assim, que o capital fixo é consti­tuído por uma parte do capital constante (máquinas, edifícios), enquanto o capital circulante é a soma da outra parte do capital constante (matérias- primas) e do capital variável (salários).

Devemos agora estabelecer que relação existe entre o capital com o qual se inicia o processo produtivo e o valor que esse capital transfere para o produto anual. Aqui, a distinção entre capital fixo e capital circu­lante torna-se evidentemente importante. O capital fixo transfere para o produto anual um valor igual à relação entre o valor desse capital fixo e a sua duração em anos. Por exemplo, um capital fixo de valor 1.000 que dure 10 anos transfere para o produto anual um valor igual a 1.000/10 = 100. O capital circulante transfere para o produto anual um valor igual ao produto do próprio valor multiplicado pelo número dos períodos de rotação contidos em um ano. Por exemplo, se as anteci­

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pações salariais forem feitas para uma semana, o valor transferido para o produto anual é igual ao valor desse capital multiplicado por 52.

Uma hipótese simplificadora muito cômoda, que adotaremos com freqüência e que é freqüentemente adotada por Marx, consiste em supor que tanto o capital constante quanto o capital variável sejam capital circulante antecipado para um ano. Nesse caso, o valor do capital e o custo anual do produto coincidem.

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Lição 13 A EXPLORAÇÃO CAPITALISTA

Podemos retomar os comentários à fórmula de Marx a que havíamos chegado na lição passada: o valor da mercadoria é a soma desses três termos: capital constante, capital variável e mais-valia. Repito o que disse no fim da lição passada, a saber, que — por motivos de simplicidade expositiva — nós também faremos uso da hipótese de que se valeu freqüen­temente Marx no curso do livro 1 de O Capital, isto é, a de que tanto o capital constante quanto o variável são capital circulante antecipado por um ano; trata-se, portanto, de capital circulante, cujo período de antecipação coincide com o período ao qual se faz referência quando se determina a quantidade produzida; indiquemos com M o valor anual da mercadoria produzida; c e v são o capital constante e o capital variável, ambos na forma de capital circulante antecipado por um ano; m é a mais-valia que se forma durante o ano:

M = c + v + mEntão, tanto M quanto m têm a natureza de fluxos ao longo do tempo: M é o valor da mercadoria que se constitui durante o ano; m é a mais-valia que se forma durante o ano; c e v têm uma dupla natureza, tanto de estoque quanto de fluxo; são estoques iniciais, já que se trata de capital antecipado no início do ano; porém, uma vez que a antecipação é anual, o custo anual imputável a essas duas espécies de capital coincide numerica­mente com o próprio capital; portanto, c e v são também fluxos anuais. É essa — segundo Marx e sobre a base dessas hipóteses simplificadoras —

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a constituição do valor da mercadoria. Como vocês se recordam, havíamos esclarecido, na lição passada, a razão por que o capital constante se chama constante e por que o capital variável se chama variável. Repito breve­mente essas duas razões: o capital constante se chama constante porque transfere para a mercadoria um valor idêntico ao seu próprio valor, nem mais nem menos; já o capital variável se chama variável porque transfere para a mercadoria, além de seu próprio valor, também um valor agregado, que é precisamente a mais-valia simbolizada por m.

Disso resulta uma primeira conseqüência: que, sob essa aparência neutra da soma de três elementos, já existem diferenciações que devem ser examinadas. A primeira, a mais importante de todas, é a seguinte: segundo tal colocação, o terceiro termo, a mais-valia, é gerado pelo segundo, mas não pelo primeiro; ou seja, a mais-valia, o valor agregado que a mercadoria possui com relação ao valor do capital antecipado, é um valor agregado que é criado pela força-de-trabalho, cujo valor consti­tui o capital variável. Portanto, a relação entre m e v é diferente da relação entre m e c; entre v e m h á uma relação de causa e efeito; é v que causa m ; ao contrário — pelo menos até esse momento e enquanto não tivermos introduzido uma outra categoria, isto é, a taxa de lucro — temos de dizer que a relação que existe entre c e m é simplesmente uma relação de justa­posição: são dois elementos componentes de uma mesma totalidade. Mas não existe outra relação, por ora, além dessa. Em virtude disso, como creio já ter dito na aula passada, há uma primeira grandeza que tem sentido definir no interior dessa fórmula (e que efetivamente Marx define), que é a taxa de mais-valia, que se pode indicar com m¡v\ é a relação entre a mais-valia e o capital variável. Repito brevissimamente a argumentaçío que leva Marx a essa conclusão: se o operário fornece globalmente oito horas de trabalho numa jornada, se nos meios de subsistência que ele recebe como salário diário estão contidas quatro horas de trabalho, temos então que, das oito horas de trabalho que ele fornece, as quatro primeiras servem para reconstituir o valor da própria subsistência, ou seja, do capital variável que ele recebe em pagamento, enquanto o resto é trabalho excedente, ou seja, trabalho não pago. Nesse caso, a taxa de mais-valia é quatro sobre quatro, isto é, 100%.

Essa taxa de mais-valia, depois de tudo o que dissemos, não é para Marx um simples número, já que põe em relação duas grandes grandezas entre as quais intercorre um vínculo de causa e efeito; põe em relação recíproca duas grandezas intimamente vinculadas; é uma fração que, além de seu óbvio aspecto aritmético, tem também um aspecto substancial, no sentido de que o numerador é gerado pelo denominador; por isso, quando se põem em relação essas duas grandezas, tem-se um índice do grau de exploração; quanto maior for essa relação, maior é o trabalho não pago, o trabalho excedente, com relação ao trabalho pago.

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Antes de prosseguir, vamos fazer uma antecipação, que aliás é feita pelo próprio Marx na passagem do Livro 1 em que fala da taxa de mais-valia. Diz Marx: se se prescinde do modo pelo qual a mais-valia é distribuída entre as classes proprietárias — portanto, se se prescinde da sua distribuição em lucro, renda fundiária e juro, e se se imagina que toda ela se resolva em lucro, que é hipótese com a qual se trabalha sempre no Livro 1, deixando de lado essas outras cotas apropriadas pelas classes proprietárias — então, dessa mais-valia que se resolve em lucro, diz Marx: habitualmente, na prática contábil, na ideologia dos capitalistas, na colocação dos- economistas vulgares, esse lucro é referido ao capital global, não apenas a v, mas a c + v, dando assim lugar a uma figura ou categoria particular, que se chama taxa de lucro. Aliás, em sentido próprio, a mais-valia torna-se lucro apenas no âmbito dessa referência ao capital global, ou seja, apenas enquanto é um dos termos que consti­tuem a taxa de lucro. Ora, não é que a taxa de lucro não seja uma coisa importante; veremos em que sentido o é para o próprio Marx, já que o fato mesmo de que o lucro seja contabilmente referido ao capital global empresta um certo andamento e um certo tipo de funcionamento ao capitalismo; portanto, é preciso levar esse fato em conta; todavia, deve restar claro — e é isso que Marx diz — que, quando a mais-valia é referida ao capital global, encobre-se assim a sua origem, já que surge a aparência de que é o capital global que produz esse lucro, de que capital variável e capital constante são análogos desse ponto de vista, estando numa mesma posição em relação ao lucro (o que implicaria, entre outras coisas, a falta de sentido de distinguir entre capital constante e capital variável, passando-se a ver o capital como um todo homogêneo); ao contrário, se o lucro é referido apenas ao capital variável, põe-se então em evi­dência — revela-se — sua origem; por isso, a taxa de mais-valia tem um significado muito diverso do da taxa de lucro, porque é certamente, como a taxa de lucro, uma relação numérica, mas uma relação numérica que constitui a expressão de uma relação substancial, de geração, de causa e efeito; disso resulta a importância que essa categoria tem para Marx.

Uma circunstância que deve ser observada é a seguinte: que a explo­ração capitalista — tal como é revelada e mesmo mensurada pela taxa de mais-valia — possui, segundo Marx, uma relação de continuidade e ao mesmo tempo de descontinuidade, de ruptura, com a exploração que tem lugar nas sociedades e economias pré-capitalistas. Em determinado sentido, a exploração capitalista é como a exploração pré-capitalista; em outro sentido, é muitíssimo diferente da exploração pré-capitalista. Para introduzir essa questão, vamos ler um trecho de Marx, bastante interessante; esse trecho se encontra em O Capital, Livro 1, página 265, no parágrafo intitulado “A avidez por trabalho excedente” :

“Não foi o capital que inventou o trabalho excedente.”

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Aqui se começa imediatamente por estabelecer uma relação com o que aconteceu antes.

“Toda vez que uma parte da sociedade possui o monopólio dos meios de produção, tem o trabalhador, livre ou não, de acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria manu­tenção um tempo de trabalho excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos meios de produ­ção. Pouco importa que esse proprietário seja o nobre ateniense, o teócrata etrusco, o cidadão romano, o barão normando, o senhor de escravos americanos, o boiardo da Valáquia, o moderno senhor de terras ou o capitalista. Todavia, é evidente que numa formação econômico-social em que predomine não o valor- de-troca mas o valor-de-uso do produto”

(como sempre ocorreu antes do capitalismo),“o trabalho excedente1 fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de necessidades, não se originando da natu­reza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por trabalho excedente.”

Repito: no pré-capitalismo, “o trabalho excedente fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de necessidades, não se originando da natureza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada por trabalho excedente” . Nessa breve passagem, está contida sinteticamente a ilustração tanto do elemento de continuidade quanto do elemento de descontinuidade entre a exploração capitalista e a pré-capitalista. Qual é o elemento de continuidade? O elemento de continuidade consiste nisto: que, também no capitalismo, o trabalho global se divide em suas duas partes, em trabalho necessário e trabalho excedente, como sempre ocorreu. O apropriador do produto desse trabalho excedente, do produto excedente, foi muito diferente de acordo com as várias formas que a exploração assumiu ao longo da história. Todavia, o tipo de apropriação era sempre o mesmo. E, na realidade, o que era? Era a apropriação do produto correspondente ao trabalho excedente, ou seja, o produto exce­dente. Esse elemento é um elemento idêntico, que se encontra tanto na Grécia Antiga quanto no capitalismo, como vocês puderam ler na frase que citei. Com isso, dá-se um conteúdo determinado àquela propo­sição, já enunciada por Marx no Manifesto de 1848, segundo a qual a história foi até hoje a história de lutas de classe, e foi história da relação entre classes dominantes e classes dominadas, entre exploradores e explo­

1. Como já observamos antes, a edição brasileira traz aqui “mais-valia” e não - como é o certo - “trabalho excedente” (Nota do Tradutor).

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rados; isso é dito no Manifesto de 1848; aqui, em 0 Capital, formula-se mais precisamente o problema e diz-se que essa espécie de constante histórica não é mais do que a divisão do trabalho global em trabalho necessário e trabalho excedente, com a apropriação do produto exce­dente — ou seja, do produto que corresponde ao trabalho excedente — pela classe dominante ou exploradora; nesse sentido, precisamente, é verdadeira a proposição inicial, ou seja, “não foi o capital que inventou o trabalho excedente” ; o trabalho excedente sempre existiu, desde que existe exploração. Esse é o lado da questão que se refere à continuidade.

Mas é evidente que tão ou mais importante é a descontinuidade, ou seja, a especificidade da exploração capitalista; e vejam bem que se trata de uma especificidade particularíssima, no seguinte sentido: que, se é verdade que todas as formas de exploração possuem suas características específicas que as distinguem das demais, a especificidade da exploração capitalista, para Marx, reside no seguinte: que a exploração capitalista se contrapõe a todas as outras em bloco; isto é, em outras palavras, todas as outras constituem, em seu conjunto, uma categoria particular, que poderia ser chamada de “exploração pré-capitalista” ; diante dessa cate­goria, está a outra categoria, “a exploração capitalista” . Em que consiste a diferença? A diferença consiste em dois elementos, intimamente ligados entre si, .mas que convém examinar separadamente por comodidade de exposição.

Em primeiro lugar, a diferença entre a exploração capitalista e a exploração pré-capitalista consiste no fato — ainda superficial, se se quer, mas do qual já se pode começar a esclarecer a questão — de que, enquanto a exploração pré-capitalista é uma exploração evidente, clara, imediatamente perceptível, a exploração capitalista, ao contrário, não é nada clara, nem imediatamente perceptível, mas deve ser descoberta mediante uma análise, até mesmo mediante uma ciência particular, que é precisamente a economia política; não a economia política “clássica” , nem muito menos a “vulgar” , mas a economia política “crítica” . E por que a exploração capitalista é assim tão pouco evidente? Porque, enquanto a exploração pré-capitalista é direta, no sentido de que o trabalho exce­dente se configura sempre em formas visíveis, dando lugar a uma parte do produto que é sempre materialmente separada da parte do produto que o trabalhador conserva consigo para se manter vivo, no caso do capitalismo, ao contrário, a exploração é indireta, é mediatizada, e media­tizada precisamente pela troca; é mediatizada pelo valor. Em suma: se se toma o valor da mercadoria, a parte que constitui o valor do capital variável e a parte que constitui a mais-valia são dois valores; e só uma análise é capaz de nos dizer que um corresponde a um trabalho necessário, enquanto o outro corresponde a um trabalho excedente; a relação de exploração, portanto, oculta-se por trás da relação de troca; e tanto é verdade que as coisas se dão assim que esse fato tem um importan­

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tíssimo reflexo jurídico, no sentido de que — enquanto no pré-capitalismo o explorador e o explorado não participavam de um direito comum, já que o explorador era juridicamente um privilegiado segundo o próprio direito — no caso da exploração capitalista, ao contrário, o operário e o burguês estão postos no interior de um direito comum; é verdade que, de fato , um é explorador e o outro é explorado, mas do ponto de vista do direito ambos são iguais. Em O Capital, Marx retoma um seu velho filão de pensamento, que começa com a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e com A Questão Judaica, e reafirmado nos Manuscritos de 1844 para desembocar depois precisamente em O Capital, onde se diz que é a exploração que está na origem da desigual­dade substancial que se encontra por trás da igualdade jurídica; porém, o fato de que a relação de exploração seja mediatizada por uma relação de troca, ou seja, o fato de que essa relação se verifique entre dois sujeitos de troca (o operário e o burguês), assim como o fato de que esses dois sujeitos, além de serem dois sujeitos de troca quaisquer no terreno eco­nômico, são também juridicamente iguais, isto é, estão ambos situados no quadro de um direito comum: tudo isso oculta a exploração capitalista, faz com que ela não seja evidente, enquanto a exploração pré-capitalista era algo evidente. Só a análise é que consegue descobrir que, na realidade, as coisas continuam a se processar como antes, ou seja, do ponto de vista da relação essencial entre as duas classes, na medida em que — repito — uma vive do trabalho necessário e a outra do trabalho excedente.

É esse, portanto, o primeiro elemento de diferença: o caráter indireto ou mediato da relação de exploração. Mas, desse elemento, decorre uma segunda diferença, que, entre outras, é a que Marx tem em mente no texto que estamos analisando: precisamente porque a explo­ração, no sistema capitalista, está no interior de uma relação de troca, o produto excedente — que existe tanto no capitalismo como antes - tem porém uma veste particular, uma forma particular, tem a forma de um valor; o produto excedente é um valor excedente, uma mais-valia; essa é uma característica específica da exploração capitalista; o produto excedente é uma mais-valia apenas no capitalismo, pois somente no capitalismo é que o valor-de-troca tem relevância e extensão sistemática, abarcando em si todo o processo produtivo e o condicionando; portanto, o que é apropriado pelo explorador é um valor; não é um valor-de-uso; desse modo, entre outras coisas, não serve essencialmente para o seu consumo; só serve para o seu consumo subordinadamente. Mas, se o produto excedente apropriado como mais-valia não serve essencialmente ao consumo do explorador, então para que serve? Já o sabemos; já lemos a resposta muitíssimas vezes, como vocês se lembram, no Capítulo VI: a mais-valia serve para a ampliação sistemática do próprio valor; é por isso que Marx pode dizer na frase que lemos: enquanto antes “o trabalho excedente fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de

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necessidades” (ou seja, pelas necessidades da classe exploradora, as quais, como corretamente diria Adam Smith, são condicionadas pelo fato de que o estômago tem um certo tamanho e não pode se ampliar indefini­damente), razão pela qual a produção de produto excedente e a prestação de trabalho excedente não podem ser jamais tendencialmente ilimitadas porque estão nos limites desse círculo determinado de necessidades, que são as necessidades de consumo da classe exploradora, no capitalismo, ao contrário, isso desaparece, porque o produto excedente é uma mais-valia e não serve ao consumo, mas sim ao incremento do próprio valor; portanto, pode ter uma dimensão qualquer e tende a ampliá-la cada vez mais, a torná-la cada vez maior; é por isso que o capital tem cobiça de mais-valia, de trabalho excedente, o que jamais aconteceu antes.

Acerca dessa tendência ilimitada ao aumento do capital, através da transformação da mais-valia em capital, poderíamos ler muitas passa­gens; já lemos algumas, mas vou ler agora uma outra, muito bela, contida no primeiro volume dos Grundrisse, na página 330:

“O capital, representando a forma geral da riqueza (ou seja, o dinheiro)” —

O dinheiro é a riqueza enquanto tal, a riqueza separada, até mesmo mate­rialmente, dos valores-de-uso; a riqueza capitalista é sempre separada dos valores-de-uso, os quais são indiferentes em relação a ela; mas o dinheiro é também materialmente separado dos valores-de-uso, e, portanto, é a riqueza em geral tornada concretamente sensível.

“O capital, representando a forma geral da riqueza (ou seja, o dinheiro), é impulso ilimitado e desmesurado a ultrapassar os seus obstáculos. Todo limite é e. deve ser para ele um obstá­culo. Caso contrário, ele deixaria de ser capital, ou seja, dinheiro que produz a si mesmo. Tão logo deixasse de sentir um determi­nado limite como obstáculo, passando a senti-lo como limite tolerável, decairia da condição de valor-de-troca para a de valor- de-uso, da condição de forma geral da riqueza, para a de conteúdo substancial determinado pela própria riqueza.”

E, na verdade, se o crescimento desse dinheiro, que se tornou capital, estancasse em certo ponto, e o capital pudesse aceitar esse estancamente e parar num determinado ponto de sua evolução, o que aconteceria? Aconteceria que os valores-de-uso, nos quais o capital se encontra incorpo­rado, naquele momento, tomar-se-iam imediatamente relevantes, precisa­mente porque não seriam superados por outros valores-de-uso, que o capital assumiria continuamente como suporte de sua ulterior expansão; em tal caso, o valor-de-uso não seria mais subordinado ao valor-de-troca - como o é no capital — e, por assim dizer, faria valer os seus próprios

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direitos; mas, então, o capital não mais seria capital, já que a relação entre valor-de-uso e valor-de-troca se inverteria em comparação com aquela que é característica do capital. Depois, Marx concretiza — e esse é um ponto importante:

“0 capital enquanto tal cria uma mais-valia ilimitada”(é certo que, em cada oportunidade concreta, a mais-valia não pode ser infinita; é sempre finita em cada oportunidade),

“já que não pode criar subitamente um ilimitado; mas ele [ocapital] é o movimento que tende perenemente a criar maiscapital” .

Esse movimento, que passa de toda determinação singular a uma outra determinação sucessiva no que se refere à magnitude da mais-valia — esse movimento é o capital. Temos aqui, portanto, o segundo elemento de diferenciação entre a exploração capitalista e a pré-capitalista. Se se quisesse, poder-se-ia dizer sinteticamente: a exploração pré-capitalista é estática, a capitalista é evidentemente dinâmica. Embora se trate de duas palavras extraordinariamente equívocas, podem ser empregadas para facilitar a memorização.

Vamos ainda colocar uma outra premissa antes de abordar, na próxima lição, a questão da taxa de lucro. Dos elementos que aparecem na fórmula do valor da mercadoria, Marx deduz uma outra grandeza ou categoria, muito peculiar a seu raciocínio; essa grandeza ou categoria se chama “composição orgânica do capital” . É geralmente indicada com a letra q, e é a relação entre o capital constante e o capital variável. Por que essa categoria? Por que Marx a define? Antes de mais nada, há um interesse imediato nessa relação, bastante óbvia, a ponto de ser ela usada inclusive em colocações inteiramente exteriores ao quadro do marxismo, em contextos diversos, ainda que numa forma um pouco diferente: se se imagina por um momento que a taxa de salário seja dada (de modo que as variações do capital variável coincidam com as variações do emprego), então a composição orgânica do capital indica quanto capital constante — ou seja, quanto valor em meios de produção — é posto em movimento por cada operário singular; esse índice, que é freqüentemente utilizado nas argumentações econômicas correntes, sob o nome de “intensidade de capital” , é um índice extraordinariamente eficiente (como diria Marx) do grau alcançado pelas forças produtivas; é um índice da estrutura tecnológica do processo produtivo; e, grosso modo, pode-se dizer que, quanto maior é o desenvolvimento das forças produtivas, tanto mais alta é a composição orgânica do capital, ou, na hipótese empregada, a intensidade de capital. Pode-se dizer isso de imediato; e, no fim das contas, já é algo suficientemente relevante para justificar a atenção que Marx dedica a essa relação; mas pode-se dizer algo mais.136

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Com efeito, se vocês refletirem por um momento na significação desses símbolos, poderão observar o seguinte: uma vez que a mercadoria, cujo valor M foi produzido, se encontra concluída, completa, ela sai do processo produtivo; então, todo o trabalho que a produziu, subdi­vidido em suas três componentes, é trabalho objetivado no interior dessa mercadoria; porém, enquanto o processo produtivo está em curso, o capital constante corresponde a um trabalho que se objetivou antes desse processo produtivo, ao passo que tanto v quanto m representam o trabalho que se está objetivando na mercadoria; é uma objetivação em processo, uma objetivação em curso; por isso, se considerarmos o capital global, ou seja, c + v, e o considerarmos no uso que dele se faz no processo de que falamos, então podemos dizer que c representa o trabalho obje­tivado, enquanto v representa (pelo menos no âmbito do capital) o trabalho vivo. Por isso, a composição orgânica do capital é a relação entre a parte do capital que é trabalho objetivado ou morto e a parte do capital que é trabalho vivo. Ora, vocês se recordam — pois essa é uma definição que lemos mais de uma vez no Capítulo VI — que, na opinião de Marx, um dos aspectos mais caracterizantes do capital é a dominância, a prevalência, a preponderância do trabalho morto sobre o trabalho vivo, a inclusão do trabalho vivo no interior do trabalho morto, o fato de que o trabalho vivo se explicita em função do trabalho objetivado nos meios de produção e não vice-versa; ou ainda: não é o trabalho vivo que utiliza o trabalho morto, mas é o trabalho morto que utiliza o trabalho vivo. Marx disse isso inúmeras vezes. Ora, na opinião dele, precisamente porque existe essa relação entre trabalho objetivado e trabalho vivo no interior do capital, precisamente porque faz parte da própria natureza do capital que o trabalho morto adquira preponderância cada vez maior, precisa­mente por isso, esse fato — quando é considerado em seu aspecto quantita­tivo — se reflete no aumento da composição orgânica do capital, que expressa assim uma característica intrínseca à vida do capital.

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Lição 14 A TAXA DE LUCRO

A primeira questão teórica que iremos enfrentar agora é a relativa ao significado da taxa de lucro. Essa questão se resume inteiramente, em substância, na seguinte pergunta: por que o lucro é referido ao capital global e não apenas à parte variável do mesmo? Em outras palavras: já que o lucro, enquanto mais-valia, tem sua origem no trabalho excedente, já que o capital variável, portanto, enquanto gerador de trabalho vivo, é a única parte do capital que dá origem ao lucro, por que então o próprio lucro é referido ao capital global, dando assim lugar à categoria da taxa de lucro? Pode-se ainda dizer que o problema consiste em determinar a diferença de significado entre a taxa de mais-valia e a taxa de lucro. Já vimos qual seja o significado da taxa de mais-valia: como vocês se recordam, a relação entre a mais-valia e o capital variável põe imediata­mente em evidência a origem da mais-valia; não é por acaso, como se sabe, que Marx a chama também de taxa de exploração. Trata-se então de saber qual é o significado, para Marx, da relação entre mais-valia e capital global, ou seja, daquela relação em cujo âmbito a mais-valia assume especificamente a forma do lucro.

Comecemos lendo o início do capítulo 2 do Livro 3 de O Capital (pp. 44-45):

“A fórmula geral do capital é D-M-D’: lança-se uma soma de valor na circulação, para retirar dela soma maior. O processo que gera essa soma maior é a produção capitalista; o processo que a realiza em dinheiro é a circulação do capital. O capitalista não produz a mercadoria por amor a ela, pelo valor-de-uso que en­cerra, nem para consumi-la pessoalmente. O produto que o

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interessa efetivamente não é o produto concretamente consi­derado, mas o valor excedente do produto acima do valor do capital consumido para produzi-lo. O capitalista adianta todo o capital, sem se preocupar com os papéis que seus compo­nentes desempenham na produção da mais-valia. Adianta igual­mente esses componentes, não só para reproduzir o capital adiantado, mas também para produzir, acima dele, um valor excedente. Só pode converter em valor maior o valor do capital variável que adianta, trocando-o por trabalho vivo, explorando o trabalho vivo. Mas só pode explorar o trabalho adiantando ao mesmo tempo as condições requeridas para se efetivar esse trabalho: meios e objeto de trabalho, maquinaria e matérias- primas, isto é, transformando em condições de produção soma de valor em seu poder. E só é capitalista, podendo empreender o processo de exploração do trabalho, por ser o dono das condi­ções de trabalho e encontrar o trabalhador que possui apenas a força-de-trabalho.”

O ponto essencial, posto em evidência nesse texto, é que para explorar o trabalho, ou seja, para extrair da força-de-trabalho não apenas o “trabalho necessário” , mas também um “trabalho excedente” , o capi­talista deve não apenas antecipar o capital variável, ou seja, a parte do capital com a qual compra precisamente a força-de-trabalho, mas deve antecipar também o capital constante, ou seja, a parte do capital que fornece as condições objetivas para a excecução do trabalho. Essas duas espécies de antecipação são ambas tão essenciais que o capitalista não distingue entre elas e, portanto, executa o seu investimento “sem se preocupar com os papéis diversos que seus componentes desempenham na produção de mais-valia” ; ou seja, sem se preocupar com o fato de que, enquanto a parte constitutiva variável se traduz naquela mercadoria singularíssima que é a força-de-trabalho, que põe em ação a substância valorizadora, a parte constitutiva constante, ao contrário, traduz-se em mercadorias que são simples condição material para a explicitação daquela substância.

Vejamos como essa posição de indiferença (poder-se-ia mesmo dizer: de confusão por parte do capitalista) é posteriormente concretizada:

“Para o capitalista, tanto faz considerar que adianta capital constante para tirar lucro do variável, ou que adianta o variável para valorizar o constante; que dispende dinheiro em salário para valorizar máquinas e matérias-primas, ou que adianta dinhei­ro em maquinaria e matérias-primas para explorar trabalho.”

O exame da realidade objetiva, portanto, permite, por um lado, precisar quão distante da realidade está a atitude do capitalista, e, por

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outro, descobrir qual é a origem real desse erro e da ilusão que dele decorre. Vejamos como esses dois elementos são colocados por Marx, com grande clareza, em continuação à passagem que acabamos de ler (sempre na página 45):

“Embora unicamente a parte variável do capital gere mais-valia, só a gera se forem adiantadas as outras partes, as condições de produção requeridas pelo trabalho. Não podendo o capi­talista explorar o trabalho sem adiantar capital constante, e não podendo valorizar esse sem adiantar o variável, parece- lhe que ambos são iguais. Reforça seu ponto de vista a circuns­tância de a proporção real de seu ganho ser determinada não pela relação deste com o capital variável, mas com o capital todo; não pela taxa de mais-valia, mas pela taxa de lucro, que, conforme veremos, pode permanecer a mesma e, apesar disso, corresponder a taxas de mais-valia diferentes.”

Mas, embora a complementariedade entre capital constante e capital variável forneça a base objetiva para a relação entre mais-valia e capi­tal total, ou seja, para a transformação da mais-valia em lucro, resta o fato de que tal relação implica uma mistificação. Está escrito na página 48:

“A mistificação da relação do capital decorre de todas as partes dele aparecerem igualmente como fonte do valor excedente (lucro).”

A mistificação, portanto, consiste no fato de essa relação do lucro com o capital global fazer pensar que seja o capital em seu conjunto a produzir a mais-valia, e não apenas a parte variável do capital, ou seja, o trabalho que é posto em função mediante essa parte variável; mas, a propósito dessa mistificação, o trecho seguinte oferece um comentário e uma posterior ilustração:

“A maneira como, por intermédio da taxa de lucro, a mais-valia se transforma em lucro decorre de já se terem invertido as posi­ções de sujeito e objeto no processo de produção.”

Vejamos o que isso quer dizer.“Já vimos que, neste [no processo de produção], todas as forças produtivas subjetivas do trabalho assumem a aparência de forças produtivas do capital.”

Vocês se recordam que já vimos essa questão exposta no Capítulo VI.“De um lado, personifica-se no capitalista o valor, o trabalho pretérito que domina trabalho vivo; do outro, ao contrário, aparece o trabalhador como força-de-trabalho considerada como

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simples objeto, mercadoria. Dessa relação transtornada surge necessariamente, já na simples relação de produção, a corres­pondente concepção invertida, uma percepção transposta que se desenvolve com as transformações e modificações do processo de circulação propriamente dito.”

O que é dito aqui, em substância? Diz-se o seguinte: na medida em que o trabalho vivo está incluído no processo de produção sob a forma da força-de-trabalho, o trabalho vivo, por isso mesmo, torna-se objetivamente uma parte do capital, precisamente a parte que se chama variável. Precisamente porque intervém essa inversão entre sujeito e objeto, pela qual o que é sujeito da produção (o trabalho) transmuta-se em objeto que é parte do capital; precisamente porque essa inversão já ocorre no interior do próprio processo de produção (precisamente porque esse é o fato básico), torna-se depois possível para o capitalista individual, e para o sistema em geral, colocar o capital como um bloco único, no interior do qual não se pode fazer nenhuma distinção; um bloco único que se toma o termo de referência para a mais-valia. Portanto, a mais-valia se destaca, por assim dizer, de sua fonte real, precisamente porque o trabalho, na forma de força-de-trabalho, é reificado, e, como tal, englobado pelo capital, assimilado por esse, negado em sua especifi­cidade. E o capital pode, após essa operação, apresentar-se como um todo unitário, que se torna o único termo de referência possível para a mais-valia, a qual, no âmbito dessa relação, torna-se lucro. O que se diz aqui é uma espécie de corretivo - se assim quisermos - para um possível equívoco, que podia decorrer das frases anteriores; elas poderiam dar a impressão de que a referência da mais-valia ao capital total, feita pelo capitalista, seria uma operação que se passaria apenas no interior da subjetividade do próprio capitalista, quando na verdade o capitalista realiza essa operação porque, objetivamente, o trabalho foi reduzido a uma parte do capital. Ainda sobre essa questão, podemos ler nas páginas 50-51:

“Relacionar quantitativamente o excedente do preço de venda sobre o preço de custo com o valor de todo o capital adian­tado é importante e natural, pois permite obter-se a proporção em que se valoriza a totalidade do capital, ou seja, o grau de valorização.”

Em outras palavras: qual .é a finalidade da produção capitalista? Nada mais que o desenvolvimento sistemático do capital. Mas há um modo de medir esse desenvolvimento? Há: é o grau de valorização do capital em seu conjunto. Portanto, a taxa de lucro tem esse sentido “importante” e “natural” : ele mede a velocidade de crescimento do capital. Se digo que o capital tem uma taxa de lucro de 15 por cento, digo que esse capital cresce a essa velocidade; digo que, a cada ano,

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aumenta 15 por cento. Por que, então, é “importante” a taxa de lucro? Porque é a representação da própria finalidade da produção capitalista, já que fornece a medida em que tal finalidade teve êxito. Tudo isso,por outro lado, não deve fazer esquecer que a determinação da origemdo lucro implica que, na análise, se vá além dele, que se descubra o algo do qual o lucro é a “forma transfigurada” . Com efeito, novamente Marx afirma na página 51:

“A taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais- valia, embora mais-valia e lucro sejam de fato idênticos e quanti­tativamente iguais; entretanto, o lucro é a forma transfigurada da mais-valia”

(é aquilo em que a mais-valia se transforma quando é referida ao capital total),

“desta dissimulando e apagando a origem e o segredo da exis­tência. A mais-valia aparece sob a forma de lucro, e é mistera análise para dissociá-la dessa forma.”

Decerto, imediatamente, o que se apresenta não é a taxa de mais-valia, porém a taxa de lucro, tal como se encontra escriturada nos livros contábeis do capitalista; necessita-se, portanto, de uma análise para descobrir que, sob a taxa de lucro, oculta-se precisamente a taxa de mais-valia.

O ponto fundamental a ter presente é o seguinte: que ambos os momentos são essenciais, tanto o momento da mistificação quanto o momento da objetividade. Por um lado, a taxa de lucro implica uma mistificação, já que se refere o valor ao capital total e, com isso, perde-se o conhecimento da origem do lucro, que é o trabalho não pago. Mas essa mistificação tem uma base objetiva, não é uma mera ilusão, já que a taxa de lucro é uma coisa - como Marx diz — “importante” e “natural” , pois sem a taxa de lucro não se teria o grau de valorização do capital, a medida da velocidade com a qual o próprio capital se desenvolve; portanto, a taxa de lucro é um elemento constitutivo fundamental da realidade capitalista. E o fato de que se coloque como elemento funda­mental da realidade uma categoria que, entre outras coisas, esconde a origem real do próprio lucro, tal fato se deve a que a realidade capi­talista é em si mesma uma realidade contraditória: por um lado, o trabalho, enquanto é produção de valor e de mais-valia, está na origem do lucro, que, portanto, só pode ser reconhecido em sua essência quando é relacio­nado ao que resulta do trabalho, isto é, ao capital variável; por outro lado, o trabalho está incluído no capital, o qual, desse modo, enquanto capital total, é o único ponto de referência para a avaliação da magni­tude relativa do lucro; e, assim como o primeiro lado dessa contradição expressa a origem dos fenômenos inerentes ao capital e, por isso, refere142

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o capital ao outro que o coloca em existência (o trabalho), do mesmo modo o segundo lado expressa uma norma, uma lei de desenvolvimento, que é implícita ao capital que se tornou totalidade. Se se perde um ou outro desses lados, a análise resta incompleta. Ou se torna uma análise “vulgar” , como é o caso da economia “burguesa” que se mantém presa à superfície, isto é, ao lucro e à taxa de lucro, não indo até a mais-valia e a taxa de mais-valia; ou, quando leva em conta apenas a mais-valia e a taxa de mais-valia, e não também o lucro e a taxa de lucro, não consegue representar o capital em sua lei interna de desenvolvimento.

Devemos agora estabelecer com exatidão que relação quantitativa existe entre a taxa de lucro, por um lado, e, por outro, a taxa de mais-valia. Essa fórmula expressa a taxa de lucro como função da taxa de mais- valia e da composição orgânica do capital. A hipótese simplificadora sobre a qual a fórmula se baseia é, mais uma vez, a de que tanto o capital constante quanto o capital variável são capital circulante antecipado por um ano. Sendo assim, a expressão que fornece a taxa de lucro (tl) é simplesmente:

t l = - M -c + v

Façamos agora estas simples operações algébricas: vamos dividir tanto o numerador quanto o denominador por v e obteremos sucessivamente:

m_v__ _ tm _ _ taxa de mais-valia^

c__l_ j q + 1 comp. org. do capital + 1v

A taxa de lucro resulta assim expressa como função da taxa de mais-valia e da composição orgânica do capital; e vê-se imediatamente, através dessa expressão, que a taxa de lucro é tanto maior quanto maior é a taxa de mais-valia, e é tanto menor quanto maior é a composição orgânica do capital.

A partir dessa fórmula, pode-se imediatamente ver o problema que, nesse ponto, aparece para Marx, e que deveremos abordar nas próximas lições. Vocês se lembram que Marx adota sempre a hipótese, justificada pela realidade capitalista, de que a taxa de mais-valia é igual em todas as atividades, já que se pressupõe que sejam iguais por toda parte a extensão da jornada de trabalho e a taxa de salário. Portanto, qualquer que seja o capital em discussão, esse tm tem sempre o mesmo valor. Por outro lado, a composição orgânica do capital — diz Marx — é geral­mente diferente de setor para setor; existem setores que empregam

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muitíssimo capital constante com relação ao variável, outros que empre­gam pouco. Pensem bem: uma central hidrelétrica, por exemplo, tem um enorme capital constante e um pequeníssimo capital variável; uma fábrica têxtil, ao contrário, tem muito menos capital constante com relação ao variável. Isso quer dizer que, se tm é igual em todas as ativi­dades, enquanto q é geralmente desigual entre as várias atividades, então a taxa de lucro será diversa nas diferentes atividades. Mas isso é impos­sível, porque a concorrência tem, como aspecto fundamental, a capacidade de nivelar as taxas de lucro. Então, surge aqui um problema. Na próxima lição, veremos qual seja esse problema.

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Lição 15 VALOR-DE-TROCA E PREÇO DE PRODUÇÃO

Vocês se recordam que, na aula passada, chegamos à conclusão de que se nós, seguindo o tratamento de Marx, admitirmos conjunta­mente as duas hipóteses seguintes, a saber, que a taxa de mais-valia é igual em todos os ramos e que a composição orgânica do capital é geral­mente diversa de capital a capital, teremos que a taxa de lucro dos vários capitais resulta desigual. Ou seja: resulta uma situação que não pode ser considerada como uma situàçâo de equilíbrio, já que, em condições de equilíbrio, a concorrência distribui os capitais entre as várias ativi­dades, de modo a que as taxas de lucro sejam iguais em todas as partes. Temos aqui, portanto, uma dificuldade. O primeiro modo de descrever essa dificuldade pode ser exposto assim: a natureza da produção capitalista é de tal ordem que, aparentemente, deverão se verificar ao mesmo tempo três coisas impossíveis, ou seja, a igualdade das taxas de mais-valia, a desigualdade das composições orgânicas de capital e a igualdade das taxas de lucro; essas três coisas não podem se dar simultaneamente; mas como, por outro lado, todas as três parecem ser necessárias, então nos encontramos evidentemente em face de uma dificuldade.

Essa dificuldade é resolvida naturalmente, em certo sentido, pela realidade do mercado. A realidade a resolve no sentido de determinar um equilíbrio concorrencial, ou seja, no sentido de fazer com que as taxas de lucro sejam iguais em toda parte. Mas quais são as condições

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nas quais isso pode ser feito? Atenção para esse ponto, pois é o ponto crucial. Quando dizemos que, se as taxas de mais-valia são iguais e as composições orgânicas são desiguais, as taxas de lucro são desiguais, estamos dizendo o seguinte: suponhamos que a troca entre as merca­dorias ocorra segundo os valores. Se então a concorrência é um processo que leva ao nivelamento das taxas de lucro, isso significa que esse nivela­mento é obtido na condição de tomar as relações de troca diferentes dos valores. Vejamos como Marx descreve essa dificuldade, em O Capital, Livro 3, página 173:

“Mostramos portanto: em diferentes ramos industriais reinam taxas de lucro desiguais que correspondem à diversa composição orgânica dos capitais e, dentro dos limites referidos, aos dife­rentes tempos de rotação.”

Essa segunda circunstância, relativa aos tempos de rotação, pode aqui ser deixada de lado, pois — como já o fizemos — podemos supor que os períodos de rotação sejam todos iguais a um ano; a questão, portanto, é que temos taxas de lucro diferentes de acordo com a diversa compo­sição orgânica dos capitais, subentendendo (aqui Marx não o diz, mas o subentende sempre) que as taxas de mais-valia são iguais em todos os ramos.

“E, por isso, também para igual taxa de mais-valia”(ou melhor, precisamente no caso de taxas iguais de mais-valia),

“só para capitais de igual composição orgânica”(decerto, se os capitais tivessem todos a mesma composição orgânica, então não existiria a dificuldade; mas a têm diferente e, por isso, surge a dificuldade)

“E, por isso, também para igual taxa de mais-valia, só para capi­tais de igual composição orgânica — admitidos tempos de rotação iguais —, é válida a lei segundo a qual os lucros se comportam de acordo com as magnitudes dos capitais.”

(Em suma, trata-se da lei da igualdade da taxa de lucro, a qual, como se viu, só tem validade “para capitais de igual composição orgânica” .)

“A validade do exposto depende da base em que se fundamentou até agora nosso estudo: a de que as mercadorias são vendidas pelo valor. Por outro lado, não há a menor dúvida de que, na realidade, excluídas diferenças não essenciais, fortuitas e que se compensam, não existe diversidade nas taxas médias de lucro relativas aos diferentes ramos industriais”

(ou seja: não podem ser diferentes as taxas de lucro),146

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“nem poderia existir, sem pôr abaixo todo o sistema de produção capitalista. Parece portanto que a teoria do valor é neste ponto incompatível com o movimento real, com os fenômenos positivos da produção e que por isso se deve renunciar a compreendê-los.”

Qual é o dilema diante do qual Marx se encontra? Até aquele momento, ele representara e descrevera o movimento real, ou seja, a natureza e as leis da economia capitalista, através da lei do valor; agora, ele descobre que esse movimento real, tal como se expressa na realidade da concorrência, é inconciliável com a lei do valor. Mas, se é inconciliável com a lei do valor (que, ademais, continua a ser para Marx o fundamento da produção capitalista), então isso significa que o movimento real é incompreensível, ou seja, não se regula por nenhuma lei. Esse é o problema diante do qual Marx se encontra. Ora, os capítulos que se seguem àquele do qual lemos uma passagem, ou seja, os capítulos nono e décimo, contêm a resposta de Marx a essa questão. O que se deve fazer para pôr de acordo a lei do valor com o movimento real? Que fazer para evitar que o movi­mento real resulte incompreensível, dada essa sua — pelo menos apa­rente — divergência com a lei fundamental da produção capitalista? Qual é a solução de Marx?

A idéia fundamental implícita na solução marxiana deve ser expressa nos seguintes termos. Como vocês se recordam, quando formula a teoria do valor, Marx dá uma definição particular do valor-de-troca “enquanto distinto do valor como tal” ; e Marx diz: “o valor-de-troca é a forma fenoménica do valor” . Ora, a solução que Marx propõe para o problema que estamos examinando é um desenvolvimento ulterior dessa linha. Ou seja: assim como o valor-de-troca é a forma fenoménica do valor, do mesmo modo os preços pelos quais as mercadorias são efetivamente trocadas em condições de equilíbrio concorrencial, ou seja, os preços que realizam o nivelamento das taxas de lucro, não são mais do que uma “forma transfigurada” dos valores-de-troca; isto é, assim como o valor-de-troca seria incompreensível sem o valor (já que não passa do modo pelo qual o valor se manifesta), do mesmo modo o preço seria incompreensível sem o valor-de-troca, já que esse preço não é mais do que uma transformação do próprio valor-de-troca, e, portanto, não poderia sequer ser concebido se não tivéssemos como ponto de partida o que deve ser transformado. É por isso, entre outras coisas, que esse problema da dedução dos preços a partir dos valores é conhecido, na literatura marxista, precisamente como “problema da transformação” ; o termo é do próprio Marx. Trata-se, portanto, de determinar em que consiste o procedimento mediante o qual os preços são deduzidos dos valores. E, para tal fim, servir-nos-emos de um exemplo numérico; naturalmente, a questão poderia muito bem ser tratada em termos gerais; porém, com o exemplo numérico, a questão é mais simples; e, por outro lado, o que se diz a respeito desse exemplo é — como vocês perceberão — imediata-

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mente generalizável. Ou seja: nada do que é dito liga-se à particularidade do exemplo numérico escolhido. Tomemos, portanto, em consideração dois capitais, que geram dois processos produtivos, que produzem duas mercadorias particulares; vamos estudar a composição em valor das mercadorias assim produzidas, bem como a composição das várias partes do capital, de um e de outro capital, advertindo que todas as grandezas que serão determinadas desse modo serão determinadas em termos de valor, ou seja, serão mensuradas pelas quantidades de trabalho que estão contidas em cada uma dessas grandezas.

Utilizemos os seguintes símbolos: c é o capital constante, v é o capital variável, m é a mais-valia, M é o valor do produto, tm é a taxa de mais-valia (ou seja, m/v), q é a composição orgânica do capital (ou seja, c/v), fl é a taxa de lucro, rm é a relação entre o valor da primeira mercadoria e o valor da segunda mercadoria. O exemplo é o seguinte:

c V m M tm <7 tl rmI 8 2 2 12 100% 4 20% 4II 1 1 1 3 100% 1 50% 1

Como vocês podem ver, a taxa de mais-valia é a mesma nos dois capitais, enquanto é diferente a composição orgânica; disso resulta que, se os dois produtos forem trocados segundo a relação entre os valores (isto é, 4:1), a taxa de lucro será de 20% para o capital I e de 50% para o capital II. Portanto, não temos uma situação de equilíbrio. Para empregar as palavras de Marx, que lemos há pouco:

“ [. . .] não há a menor dúvida de que, na realidade, excluídas diferenças não essenciais, fortuitas e que se compensam, não existe diversidade nas taxas médias de lucro relativas aos dife­rentes ramos industriais, nem poderia existir, sem pôr abaixo todo o sistema de produção capitalista.”

Já que a situação não é de equilíbrio, ocorrerá um processo concor­rencial, que — partindo dessa hipotética situação inicial — tenderá a produzir o equilíbrio, ou seja, uma situação na qual a taxa de lucro seja igual em toda parte. E o que será essa taxa de lucro igual para todos? Esse é o ponto essencial da questão. O raciocínio de Marx pode ser esquematizado do seguinte modo: a taxa de lucro que se realizará como taxa geral, e, por isso, como taxa presente em todos os setores, será uma taxa de lucro média, ou seja, não será nem uma nem outra das duas taxas iniciais, mas uma média entre as duas. Que tipo de média? Será — como é evidente — uma média aritmética ponderada, ou seja, ponderada com148

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a magnitude dos capitais em questão; do ponto de vista do cálculo, pode-se chegar a essa média de um modo muito simples. Basta fazer o seguinte raciocínio: há um lucro geral do sistema que coincide com a mais-valia do sistema; ele é igual a 2 + 1, isto é, 3; existe um capital do sistema, que é igual à soma de todo o capital, onde quer que esteja investido; portanto, é 10 + 2, ou seja, 12. Portanto, a taxa média de lucro é a relação entre o lucro do sistema e o capital do sistema, ou seja, 25% (3 sobre 12); essa é a taxa média de lucro. Essa taxa média de lucro, portanto, não é uma média abstrata, já que a concorrência a realiza em todos os capitais. E qual é o resultado desse processo concorrencial? O primeiro capital é 10; se a taxa de lucro é de 25%, o lucro realizado pela concorrência é de 25% sobre 10, ou seja, 2,5. O segundo capital é 2; o lucro é portanto 25% de 2, ou seja, 0,5. Quais serão, então, os preços pelos quais as mercadorias irão ser vendidas? Eles serão obtidos somando-se aos capitais — que, em nosso exemplo, correspondem também ao custo das mercadorias — o lucro calculado segundo a taxa geral; portanto, 8 + 2 + 2,5 = 12,5; e 1 + 1 + 0,5 = 2,5. A situação pode ser resumida na seguinte tabela, onde L indica o lucro calculado segundo a taxa geral,P o preço de produção e rp a relação entre os preços:

c V L P PI 8 2 2,5 12,5 5II 1 1 0,5 2,5 1

Pode-se ver que os preços são diversos dos valores: os valores estão entre si como 4 para 1, enquanto os preços estão como 5 para 1. Em outras palavras, a relação de troca entre as mercadorias, em condições de equi­líbrio, é diversa da relação entre as quantidades de trabalho objetivadas nas próprias mercadorias.

E esse, portanto, o processo de “transformação” , tal como é exe­cutado por Marx. Nesse procedimento tão simples, há um ponto funda­mental: temos, por um lado, um sistema de valores, e, por outro, um sistema de preços; entre o sistema de valores e o sistema de preços, há uma ligação; essa ligação é fornecida pelo termo médio, que se encontra tanto no sistema dos valores quanto no sistema dos preços; esse termo médio é a taxa de lucro. Essa última é calculada em termos de valor, já que 25% é, em nosso exemplo, a relação entre a mais-valia e o valor do capital (entenda-se: mais-valia e capital do sistema em seu conjunto); mas ela reaparece idêntica no sistema de preços; e é precisamente por isso que o sistema de preços é extraído do sistema de valores, já que os preços são deduzidos dos valores, aplicando-se aos capitais uma taxa

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de lucro determinada operando sobre os valores. Precisamente aqui está a essência do raciocínio de Marx.

Cabe a pergunta: poderíamos determinar os preços das mercadorias se não conhecêssemos os valores? A resposta de Marx e': não. De fato, como faz Marx para determinar os preços? Aplica aos capitais singulares uma taxa média de lucro. Mas essa taxa média de lucro, como poderíamos conhecê-la se não conhecêssemos os valores sobre cuja base essa taxa de lucro é calculada? Como teríamos podido saber, em nosso exemplo, que a taxa média de lucro é de 25%, se não tivéssemos tido, como ponto de partida, o valor das mercadorias? Eis, portanto, a conclusão de Marx: os preços seriam incognoscíveis sem os valores. Vejamos como Marx se expressa, na página 179:

“Os preços que obtemos, acrescentando a média das diferentes taxas de lucro dos diferentes ramos aos preços de custo dos diferentes ramos, são os preços de produção.”

Essas taxas de lucro, das quais a taxa geral de lucro é a média,“devem ser inferidas [ .. .] do valor da mercadoria. Sem essa inferência, esvazia-se de sentido e conteúdo a noção de taxa geral de lucro e, por conseguinte, a de preço de produção da mercadoria” .

Portanto: a taxa geral de lucro e, em conseqüência os preços de produção, são conceitos esvaziados de sentido e conteúdo sem os valores, já que — sem os valores — não teríamos nenhum modo de determinar a taxa geral de lucro e, portanto, os preços de produção. Uma impor­tante conseqüência do raciocínio de Marx é a seguinte. Voltando a nosso exemplo, vocês podem ver que a mais-valia global é 2 + 1 e o lucro global é 2,5 + 0,5, ou seja, são ambos iguais a 3. A mais-valia do sistema e o lucro do sistema têm a mesma grandeza. A diferença está no seguinte: no que se refere à origem, a mais-valia global 3 se distribui entre os dois capitais na proporção de 2 para 1; ao contrário, no que se refere à desti- nação, a mesma mais-valia se distribui entre os capitais na proporção de 2,5 para 0,5; mas é a mesma mais-valia que se distribui de outro modo. Qual é, então, a natureza do processo de concorrência, de acordo com esse esquema? É muito simples: a concorrência redistribui entre os capitais uma mais-valia que nasceu de determinada maneira. Como nasceu a mais- valia? Nasceu assim: 2 de um capital e 1 de outro capital; esses dois troncos de mais-valia, 2 e 1, formam uma espécie de pool igual a 3; esse pool, a concorrência o redistribui entre os capitais numa outra proporção, de modo a nivelar as taxas de lucro. Portanto, repito: quanto à origem, a mais-valia é 2 e 1; quanto à destinação é, ao contrário, 2,5 e 0,5. Mas, então, compreende-se por que o preço é uma forma transfigurada do valor-de-troca: na realidade, os preços resultam dessa redistribuição entre150

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os capitais de uma mais-valia, que outra coisa não é senão trabalho exce­dente, de acordo com a teoria do valor-de-trabalho.

Vejamos como Marx se expressa sobre isso, lendo O Capital, livro 3, página 179:

“Em virtude da diversa composição orgânica dos capitais inves­tidos em diferentes ramos de produção; em virtude de capitais de igual magnitude mobilizarem quantidades muito diferentes de trabalho, de conformidade com a diversa percentagem que o capital variável representa num capital global de grandeza dada, apropriam-se esses capitais de quantidades muito diversas de trabalho excedente, ou seja, produzem quantidades muito diferentes de mais-valia. Por isso, originariamente diferem muito as taxas de lucro reinantes nos diferentes ramos de produção. As taxas diferentes de lucros, por força da concorrência, igua­lam-se numa taxa geral de lucro, que é a média de todas elas.”

E na página 180:“Os capitalistas dos diferentes ramos, ao venderem as merca­dorias, recobram os valores de capital consumidos para produzi- las; mas a mais-valia (ou lucro) que colhem não é gerada no próprio ramo com a respectiva produção de mercadorias, e sim a que cabe a cada parte alíquota do capital global, numa repar­tição uniforme da mais-valia (ou lucro) global produzida, em dado espaço de tempo, pelo capital global da sociedade em todos os ramos.”

O problema, nesse ponto, pareceria resolvido se não interviesse uma dificuldade, que o próprio Marx indicou com grande precisão, embora — como veremos — não a tenha considerado decisiva. A natureza dessa dificuldade pode ser vista com exatidão retomando o nosso exemplo e raciocinando do seguinte modo: os valores das duas mercadorias do exemplo, ou seja, 12 e 3, foram transformados, mediante o procedimento que indicamos, respectivamente nos dois preços 12,5 e 2,5; mas — e essa é a objeção que Marx mesmo se faz — também o capital constante e o capital variável são compostos de mercadorias que têm determinados valores; também esses valores deveriam ser transformados em preços de produção; ou seja, a passagem dos valores aos preços não pode se efetuar aplicando-se uma taxa geral de lucro a capitais determinados em termos de valor, já que também esses capitais deveriam ser determinados em termos de preços. Em outras palavras: o procedimento de transformação que vimos antes é parcial, porque — se se aplica aos produtos — não se aplica aos elementos que constituem o capital; ou seja, das mercadorias presentes no sistema, só uma parte é incluída no processo de transfor­mação, ou seja, a parte constituída pelos produtos, ao passo que a parte

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constituída pelos meios de produção e pelos meios de subsistência nao é englobada no processo de transformação.

E essa questão é ainda mais grave do que parece, bastando, para comprová-lo, que vocês reflitam um momento sobre a seguinte questão. No sistema econômico em seu conjunto, as mercadorias que constituem o capital social, tanto sob a forma de meios de produção quanto sob a de meios de subsistência, são as mesmas mercadorias que emergem do processo de produção na condição de produtos. O que significa que, no procedimento de transformação que vimos acima, uma mesma merca­doria é calculada de duas maneiras diferentes: é calculada como preço se sai do processo produtivo, mas é calculada como valor se nele ingressa. Quando, por exemplo, o fertilizante sai da fábrica química, é calculado em termos de preço; mas, quando entra na agricultura, é calculado em termos de valor. Portanto, chega-se ao absurdo de que uma mesma merca­doria tem duas relações de troca, uma das quais coincide com o preço, quando a mercadoria é produto, enquanto outra coincide com o valor, quando a mercadoria é meio de produção. O que, evidentemente, não tem sentido. Por isso, não podemos dizer que esse procedimento nos dê a condi­ção de equilíbrio. Se asituação em que as taxas de lucro são diversas não é uma situação de equilíbrio, tampouco pode ser concebida como tal uma situação na qual uma mesma mercadoria tem duas diferentes relações de troca.

Vejamos como Marx indica essa dificuldade. Ele escreve na página 187 (devemos recordar que, com a expressão “preço de custo”, Marx entende a soma do capital constante e do capital variável, enquanto, com a expressão “preço de produção” , indica o preço):

“E virtude do exposto, modificou-se a determinação do preço de custo das mercadorias.”

Ou seja: daquele preço de custo que, de acordo com o procedimento seguido, permaneceu inalterado na passagem do sistema dos valores para o sistema dos preços, quando na verdade — como se começa a dizer aqui — também ele deveria sofrer uma modificação.

“No início, admitimos que o preço de custo de uma merca­doria era igual ao valor das mercadorias consumidas para pro- duzi-la. Mas, para o comprador”

(ou seja, para quem compra os meios de produção),“o preço de produção de uma mercadoria é o preço de custo, podendo por isso entrar na formação do preço de outra merca­doria como preço as custo.”

Isso quer dizer: o preço de produção de uma mercadoria é o que importa para quem compra essa mercadoria como meio de produção, já que quem152

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compra o meio de produção não o compra por seu valor, mas pelo seu preço de produção e, portanto, não o pode calcular depois como um valor.

“Uma vez que o preço de produção da mercadoria pode des­viar-se do valor, também o preço de custo de uma mercadoria, no qual se inclui esse preço de produção de outra mercadoria, está acima ou abaixo da parte do valor global formada pelo valor dos correspondentes meios de produção consumidos.”

Ou seja: os meios de produção, se calculados (como se deve fazer) em termos de preços, não coincidem com os mesmos se calculados em termos de valor.

“Em virtude dessa significação modificada do preço de custo, é necessário lembrar que é sempre possível um erro quando num ramo particular da produção se iguala o preço de custo da mercadoria ao valor dos meios de produção consumidos para produzi-la.”

Portanto, Marx observa com grande clareza a necessidade de incluir os valores das mercadorias que compõem o capital no processo de transfor­mação. Por outro lado, conclui:

“Em nossa pesquisa atual, é desnecessário insistir nesse ponto.”E a questão é deixada nesse nível. Naturalmente, nessa última

proposição, está implícita a sugestão de seguir adiante. O acolhimento dessa sugestão e o desenvolvimento da investigação sobre a sua base constituem o que hoje se apresenta como a complicada história daquela parte da literatura econômica, marxista e não marxista, que se ocupa precisamente do problema da transformação. Veremos, nas próximas lições, quais são os pontos essenciais dessa história. Por ora, gostaria de concluir com a seguinte observação. Se digo que os meios de produção não podem ser considerados em termos de valor, mas devem ser consi­derados também em termos de preços, então há uma coisa que certamente não se pode mais fazer: ou seja, não se pode mais calcular a taxa de lucro do modo pelo qual a calculamos; não se pode mais calcular a taxa de lucro como relação entre o valor do produto excedente e o valor do capital, precisamente porque são esses valores que devem ser transfor­mados em outra coisa. Se tenho de transformá-los em outra coisa, não posso assumi-los como elementos determinantes da taxa de lucro. Se se quer, pode-se formular a questão em outros termos, embora equi­valentes: no processo de transformação de Marx, a sucessão lógica das categorias empregadas é a seguinte: valor, taxa de lucro, preço. Ou seja: o valor é o ponto de partida, é o dado desse processo; a taxa de lucro é determinada uma vez que os valores sejam conhecidos; uma vez conhe-

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cida a taxa de lucro, ela é aplicada ao capital, calculado em termos de valor; e, desse modo, obtém-se o preço. Mas é precisamente essa operação que não pode mais ser feita: em primeiro lugar, porque não se pode calcu­lar a taxa de lucro em termos de valor, dado que o capital já está ele mesmo se transformando de valor em preço; e, em segundo, independen­temente do modo como seja calculada a taxa de lucro, ela não pode ser aplicada a um capital determinado em termos de valor. Então, aquela sucessão lógica resulta evidentemente destroçada.

A conclusão é a seguinte: não se pode mais determinar a taxa de lucro antes de haver determinado os preços, já que a taxa de lucro é uma relação entre grandezas determináveis como preços; portanto, é impossível pressupor a taxa de lucro como algo anterior ao sistema de preços. Vejam bem: tampouco é possível fazer o contrário, ou seja, calcular primeiro os preços e depois — uma vez conhecidos os preços — calcular a taxa de lucro. Como seria possível determinar os preços sem a taxa de lucro, uma vez que os preços incluem a taxa de lucro? Não é possível nem supor a taxa de lucro como anterior aos preços, nem supor os preços como anteriores à taxa de lucro. Então, que caminho resta? Somente um: determiná-los simultaneamente. Ou seja, é preciso formular um procedimento no qual um único conjunto de condições — e veremos quais — determina simultaneamente, ou seja, através de um sistema de equações, o sistema dos preços e a taxa de lucro. Resta ainda uma última coisa a dizer aqui. A fim de que esse procedimento, com o qual se determinam simultaneamente os preços e a taxa de lucro, tenha ainda algo a ver com o problema de Marx, exige-se uma condição, ou seja, que os dados de onde se parte para determinar simultaneamente os preços e a taxa de lucro sejam ainda os valores das mercadorias. É esse o problema da transformação, como foi interpretado até agora. Ele se expressa assim: formular um sistema de equações de tal natureza que, tendo como dados os valores das mercadorias e refletindo em sua estrutura as condições do regime concorrencial, determine simultaneamente a taxa de lucro e os preços.

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Lição 16A HISTÓRIA DO PROBLEMA DA

“TRANSFORMAÇÃO” DOS VALORES-DE-TROCA EM PREÇOS DE

PRODUÇÃO

Recomecemos da constatação de que, após ter executado um certo tipo de “transformação” dos valores em preços de produção. Marx julgou insuficiente ó procedimento que ele mesmo seguiu. Como vocês se recor­dam, a insuficiência do procedimento consistia no fato de que o processo de transformação era incompleto, já que eram submetidos à transfor­mação os valores dos produtos, mas não também os valores das merca­dorias que constituem o capital, tanto o constante quanto o variável. A sugestão, contida implicitamente nessa observação de Marx, é que o processo de transformação deve ser completado, ou seja, estendido dos valores dos produtos aos valores das mercadorias que formam o capital. Vocês também se recordam do problema que surge nesse ponto. O proce­dimento seguido por Marx consiste em calcular a taxa de lucro em termos de valor; depois, em aplicar essa taxa de lucro aos capitais singulares, determinados também em termos de valor, e chegar assim aos preços de produção. Desse modo, a taxa de lucro é calculada antes de se terem determinado os preços; aliás, é a via através da qual se chega a calcular os preços. Porém, se o próprio capital sobre o qual o lucro deve ser calculado não pode ser determinado em termos de valor, mas tem de ser determinado em termos de preço, então é impossível calcular a taxa de lucro antes de se ter calculado os preços. Esse é o ponto ao qual havíamos chegado; trata-se agora de ver de que modo se possa resolver esse problema. Sempre por razões de simplicidade, convém proceder

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novamente mediante o exemplo numérico que vimos na lição anterior, e que agora reproduzo para facilitar a exposição:

Sistema dos valoresc V m M rm

I 8 2 2 12 4II 1 1 1 3 1

Taxa de lucro

Sistema dos preçosc V L P P

I 8 2 2,5 12,5 5II 1 1 0,5 2,5 1

Repito que o princípio sobre o qual se baseia esse procedimento da transformação é o seguinte: parte-se dos valores; desses valores, deduz-se a taxa de lucro; dessa taxa de lucro, aplicada aos capitais calcu­lados sempre em termos de valor, deduz-se os preços de produção. Se esse método se conservasse de pé, poderíamos dizer — como Marx diz — que efetivamente os preços são determinados pelos valores. A tese segundo a qual os preços são determinados pelos valores resulta claramente confir­mada por esse procedimento, já que ele se apóia inteiramente no fato de que os preços são determinados em função da taxa de lucro, a qual por sua vez é determinada em função dos valores; portanto, tem sentido dizer que os preços dependem dos valores, e que, como diz Marx, se não conhecêssemos os valores, não poderíamos jamais calcular os preços, pois não poderíamos calcular jamais a taxa geral de lucro que é essencial para calcular os preços.

Ora, qual é a crítica que o próprio Marx faz a esse procedimento? A crítica — como vocês se recordam — é esta: enquanto os dois valores dos produtos acabados, 12 e 3, foram transformados respectivamente nos preços 12,5 e 2,5, as mercadorias que constituem o capital, ao contrário, foram ainda calculadas segundo seus valores. E isso é absurdo.O processo de transformação deve englobar os preços de todas as merca­dorias, qualquer que seja sua posição no processo produtivo. Então,156

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repito: isso significa que não se pode mais calcular a taxa de lucro anteci­padamente, isto é, antes dos preços; toma-se assim necessário um proce­dimento que determine a taxa de lucro e os preços simultaneamente. Esse problema — como já disse — tem uma longa historia atrás de si; e são muitos os autores que dele se ocuparam. Mas não seguirei essa historia passo a passo, pois seria demasiado longo; ao contrário, tentarei simplesmente mostrar, num esquema unitário, qual é o núcleo dessa história.

Continuemos, por enquanto, a trabalhar com nosso exemplo, em vez de usar um caso geral; depois, tentaremos generalizar. Deveremos, portanto, estabelecer um sistema de equações de tal ordem que, sendo nele conhecidos apenas os valores, ou seja, as quantidades de trabalho, esse sistema determine ao mesmo tempo os preços e a taxa de lucro.

Para simplificar, façamos a seguinte hipótese (que depois abando­naremos): suponhamos que as duas mercadorias produzidas pelo capital de nosso exemplo sejam, respectivamente, capital constante e capital variável. Em outros termos: suponhamos que o capital constante seja constituído por uma única mercadoria, a produzida pelo primeiro capital (digamos: ferro); e que o capital variável seja constituído por uma outra única mercadoria (digamos: o trigo), que é produzida pelo segundo capital; de modo que temos aqui dois capitais e duas mercadorias para representar todo o sistema econômico. Portanto, voltando ao exemplo, temos uma produção em valor igual a 12 de ferro; e, para produzi-la, emprega-se0 valor 8 de ferro e 2 de trigo. Depois, temos uma produção em valor igual a 3 de trigo; e, para produzi-la, emprega-se o valor 1 de ferro e1 de trigo.

Indiquemos agora com x a relação entre o preço do ferro e o valor do ferro, e com y a relação entre o preço do trigo e o valor do trigo; de modo que, se Pi e Mt são respectivamente o preço e o valor do ferro, e P2 e M2 respectivamente o preço e o valor do trigo, temos:

Por isso, o capital investido na produção de ferro, calculado em termos de preços, é 8x + 2y , e a produção do ferro, sempre em termos de preços, é \2 x \ o capital investido na produção de trigo é x + y , e a produção do trigo é 3y . Se indicamos com tl a taxa de lucro, teremos esse sistema:

Pi_M2 ’

P2

ou:Pi = MjX, P2 = M2y.

(8x 4- 2y) (1 + tl) = 12x ( x + y) (1 + tl) = 3y

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São duas equações com três incógnitas: tl, x e y . Trata-se, por outro lado, de um sistema homogêneo em x e y , que só pode dar a relação entre essas duas incógnitas e não também o nível absoluto delas. Assu­mindo então y como unidade de medida e pondo portanto y = 1, o sistema permite determinar x e tl. A solução é :

x = 1,37 y = 1tl = 26,5%

Recordando como foram definidos x e y , pode-se deduzir dessa solução os dois preços, que serão: P t = 12 • 1,37 = 16,44; P2 = 3 • 1 = 3. Apli­cando x e y a todos os outros elementos da tabela dos valores, obtém-se:

Sistema dos preçosc V TL P rp

I 10,96 2 3,48 16,44 5,46II 1,37 1 0,63 3 1

Nessa tabela, ao contrário do que acontecia na anterior tabela de preços, a transformação englobou todos os valores e não apenas os valores dos produtos. Quais as diferenças que resultam da comparação entre a transformação correta dessa tabela e a transformação incompleta da tabela anterior? Enquanto com o primeiro método de transformação os preços se situavam numa relação de 5 para 1, agora estão numa relação de 5,46 para 1. Portanto, já obtivemos um resultado diverso do que teríamos obtido com o procedimento de Marx. Mas a coisa mais impor­tante é que obtivemos uma taxa de lucro de 26,5 por cento e não de 25, como se obtinha com o procedimento de Marx. Ora, trata-se de um resultado que deve ser meditado, já que aqueles 25% que eram obtidos mediante o procedimento do Livro 3 de O Capital eram uma taxa de lucro inteiramente peculiar: esses 25% eram a relação entre o trabalho excedente do sistema e o trabalho objetivado no capital do sistema; esses 25%, desse modo, eram uma relação entre duas quantidades de trabalho. Ou seja: essa taxa de lucro, precisamente porque havia sido determinada em termos de valor, era uma relação entre quantidades de trabalho. E, na medida em que a taxa de lucro se identifica com a relação entre aquelas duas quantidades de trabalho, ou seja, entre a mais-valia do sistema e o trabalho contido no capital do próprio sistema, pode-se dizer que a taxa de lucro é o que é em conseqüência direta da teoria do valor-trabalho. Nesse caso, se os preços não coincidem com158

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o valor, pouco importa, pois o que importa é que a taxa de lucro conser­vou bem mais que a simples marca de sua origem: conservou todas as características da sua origem, ou seja, uma relação entre quantidades de trabalho. E, se a taxa de lucro é uma relação entre quantidades de trabalho, então podemos dizer — como Marx dizia — que o desvio dos preços em relação ao valor é realmente o efeito de uma redistribuição, entre os vários capitais, de um lucro, o qual, quanto à sua origem, continua porém a ser a mais-valia do sistema.

Esse é o ponto importante. Mesmo que os preços divirjam dos valores, podemos dizer com Marx — neste caso — que essa divergência deve-se ao fato de que o lucro, sempre idêntico à mais-valia, isto é, ao trabalho excedente, do sistema, distribui-se entre os vários capitais, como conseqüência da concorrência, em proporções diversas daquelas com as quais, em sua origem se distribuía entre os vários capitais. Mas se, para a taxa de lucro, obtemos um valor que nada tem a ver com a relação entre aquelas duas quantidades de trabalho, então parece que essa linha, que esse raciocínio, na realidade, não tem mais validade. Em outras pala­vras, a pergunta que pode ser colocada é a seguinte: se a taxa de lucro não é mais a relação entre aquelas duas quantidades de trabalho, então que sentido pode ter a afirmação de que os preços são determinadospelos valores, que é a tese central do Livro 3 de O Capital? Essa é aquestão. Repito: se a taxa de lucro não é determinada em termos de valores, isto é, de trabalhos incorporados, então que significado podemos continuar a dar à proposição segundo a qual os preços são determinados pelos valores? Antes, os preços eram determinados pelos valores, já que a taxa de lucro servia de mediação entre valores e preços; tanto é verdade que ela aparecia idêntica em ambos os esquemas: em nosso exemplo, tanto no esquema do valor quanto no esquema dos preços, a taxa delucro seria sempre de 25%. Mas, quando essa ligação se quebra, já quea taxa de lucro não pode mais ser determinada em termos de valor e seu nível numérico é diverso da relação entre aquelas quantidades de trabalho, então que sentido podemos ainda atribuir à proposição de que os valores determinam os preços? Esse é o problema. Por outro lado, poderíamos dizer: o ponto de partida continua sempre a ser constituído por valores, e, nesse sentido, os valores desempenham um papel preciso na determi­nação da taxa de lucro.

Mas, para vermos melhor esse ponto, devemos seguir adiante na exposição da história do problema da transformação. O método de transformação a que aludimos não tem o defeito do apresentado no Livro 3 de O Capital, já que nele tudo é incluído no processo de transfor­mação; ou seja, não apenas os produtos acabados, mas também as mercadorias que compõem o capital. Portanto, poder-se-id dizer que o problema foi resolvido. Pelo menos, é o que parece. Todavia, exami­nando com atenção esse sistema, o que resulta é que, na realidade, a

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solução para a dificuldade indicada pelo próprio Marx é, com esse sistema, uma solução apenas aparente. Também esse é um ponto delicado, que devemos examinar agora. Por que a solução é apenas aparente? Como vocês se lembram, nós supusemos que o capital constante e o capital variável eram constituídos de uma única mercadoria, ou seja, respecti­vamente, de ferro e de trigo. Mas é evidente que temos aqui uma simplificação inteiramente irrealista: na realidade, as coisas não se passam assim de modo algum; tanto o capital constante quanto o capital variável são constituídos por mercadorias diversas. Se se leva em conta esse fato, o que quer dizer, por exemplo, esse número 81? Este número indica, numa unidade qualquer de medida, a quantidade de trabalho contida no conjunto das mercadorias que constituem o capital constante. E mais: o que é o número 1 que está na rubrica do capital variável no segundo capital? Em uma unidade qualquer de medida, é. a quantidade de trabalho contida nos meios de subsistência, que são pagos como salário aos trabalhadores que trabalham no setor que produz meios de subsistência. E o que quer dizer este 3? Este 3 é a quantidade de trabalho globalmente contida nos meios de subsistência produzidos. Em outros termos: todos esses coeficientes que aparecem nas equações representam, na verdade, agregados de mercadorias; não são mercadorias singulares, mas agregados, conjuntos de mercadorias. Mas, então, se eu escrevo — como escrevi aqui — 8x para indicar a transformação do cálculo em valor para o cálculo em preços daquele agregado de mercadorias que constitui o capital constante investido no primeiro setor, o que é que eu suponho na realidade? Suponho que as mercadorias que constituem esse capital constante são ainda trocadas entre si de acordo com os valores e não segundo os preços, já que aplico um coeficiente único de transfor­mação de valores em preços ao inteiro agregado, o que significa que - no interior desse agregado — dou por suposto que as relações de troca entre as mercadorias são correspondentes às relações entre os valores. Em outras palavras: para tornar a coisa mais evidente, vamos supor que sejam duas as mercadorias contidas neste 8; que, na realidade, este 8 seja constituído por 5 do valor de certa mercadoria e por 3 do valor de uma outra. Para passar aos preços, multiplico tanto o 5 quanto o 3 por x; tanto isso é verdade que multipliquei por x a sua soma, isto é, 8. Ora, a relação entre preços, isto é, 5x/3x é igual à relação entre valores, ou seja, 5/3; portanto, continuo a supor que, no interior do agregado, as relações de troca entre as mercadorias processam-se segundo os valores e não segundo os preços. Desse modo, malgrado o passo adiante que certamente dei em relação ao método do livro 3, apliquei de fato

1. O autor refere-se, evidentemente, a números contidos nas tabelas apresen­tadas em páginas anteriores, às quais o leitor deve recorrer para seguir aqui sua argumentação (Nota do Tradutor).

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um método de transformação ainda incompleto, já que resta um resíduo, no sentido de que se continua a supor que, no interior de cada um dos agregados que aparecem no sistema, as relações de troca entre as merca­dorias são relações entre valores. Todavia, como vocês podem facilmente imaginar, essa diferença certamente não é decisiva, porque pode ser resol­vida com segurança. Qual é o modo de resolver essa diferença? Basta reescrever nosso sistema, mas de tal modo que os coeficientes das equações refiram-se sempre não a agregados, mas apenas a mercadorias singulares.

Agora, convém evidentemente abandonar o exemplo numérico e tratar a questão em termos gerais.

Indiquemos com Ty o valor da mercadoria i empregada na produção da mercadoria /. Valor significa quantidade de trabalho: portanto, esse símbolo indica a quantidade de trabalho que está contida naquela quanti­dade das mercadorias i que serve para produzir aquela quantidade da mercadoria j que é produzida pelo sistema. Essa mercadoria — aqui não é mais necessário distinguir — pode ser um meio de produção, assim como pode ser um meio de consumo; isso é inteiramente indiferente; pode fazer parte do capital constante ou do capital variável. Depois, indiquemos com Tj o valor da mercadoria / produzida no sistema. Então, a que sistema de equações chegamos? É muito simples: se indicamos com p i , p2 . . . . p n os coeficientes de transformação dos valores em preços, e, como de hábito, com tl a taxa de lucro, teremos:

(L 11P 1 + L 21P2 + . . . . + Ln lPn) (1 + tl) = L 1 P 1

(L 12P 1 + t 22p2 + ----- + L n2Pn) (1 + tl) = L2p2

(LinPi + L2np2 + . . . . + Lnnpn) (1 + tl) — Lnp n

É claro que a incógnita genérica pi não é mais do que o preço daquela quantidade de mercadorias i que uma unidade de trabalho contém objetivada. Por isso, esses p podem sem problemas ser chamados de preços. Repito: trata-se dos preços unitários de cada mercadoria, contanto que — como unidade de medida da mercadoria — seja tomada aquela quantidade de trabalho que é contida em uma unidade de trabalho (por exemplo: uma hora de trabalho).

Temos, portanto, um sistema de n equações com n + 1 incógnitas, que são os n preços e a taxa de lucro; porém, esse é um sistema homo­gêneo nos pp, e, portanto, determina apenas a relação entre esses e não os termos absolutos. Trata-se de estabelecer uma unidade de medida. Pode-se pôr, por exemplo, p t = 1; perde-se assim uma incógnita e chega-se a um sistema de n equações com n incógnitas, ou seja, n — 1 preços e a taxa de lucro. Resolvido esse sistema, encontram-se os preços e a taxa

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de lucro. Em função de quê? Dos coeficientes das equações, que são os valores. Desse modo, a dificuldade a que nos referimos é superada. De fato, não se pode dizer que, no interior de cada uma das quantidades tomadas como dadas, tenham lugar relações de troca iguais às relações entre as quantidades de trabalho contidas, já que cada uma dessas quantidades refere-se agora a uma mercadoria singular, e, portanto, exis­tem tantos preços quantas sejam as mercadorias presentes no sistema. A transformação dos valores em preços, desse modo, é realmente completa.

Podemos, então, afirmar ter resolvido satisfatoriamente o problema marxiano da transformação? É verdade — e já observamos isso — que a taxa de lucro não é mais igual à relação entre a quantidade de trabalho contida no produto excedente, ou trabalho excedente, e a quantidade de trabalho contida no capital; mas parece que se possa dizer que cabe aos valores, de qualquer modo, um papel decisivo, a partir do momento em que tanto a taxa de lucro quanto o sistema de preços de produção são determinados precisamente a partir dos valores, que são efetivamente as únicas grandezas dadas em nosso sistema de equações. Mas a questão, infelizmente, não é tão simples; e precisamente o fato de termos colocado o problema da transformação em termos desagregados, ou seja, assumindo como valores dados não os valores de grupos de mercadorias, mas os valores das mercadorias singulares, permite-nos ver exatamente onde se aninha a última dificuldade dessa complexa questão.

Tomemos qualquer um dos coeficientes de nosso sistema de equações: por exemplo, Ln l . O que representa? Representa a quantidade de trabalho contida na quantidade da enésima mercadoria que serve para produzir uma certa quantidade da primeira mercadoria (precisa­mente aquela quantidade da primeira mercadoria na qual está contida a quantidade de trabalho L i) . Ora, prestem atenção para isto: a quanti­dade de trabalho contida numa certa quantidade de uma certa mercadoria pode muito bem ser considerada como um modo para medir essa quanti­dade física da mercadoria. Se me pergunto que quantidade de trigo foi produzida no sistema, posso responder dizendo: tantos quintais, o que significa que assumi o quintal como unidade de medida da quantidade de trigo. Mas, se sei quanto trabalho está contido num quintal de trigo, posso também responder que a quantidade de trigo produzida foi tantas horas de trabalho. Em outras palavras: a quantidade unitária de cada mercadoria pode ser definida como aquela quantidade da mercadoria que contém uma hora de trabalho.

E não só isso. Se olharmos bem, descobriremos que, no sistema de equações que antes escrevemos, as quantidades de trabalho que aparecem como coeficientes não desempenham nenhuma outra função além, precisamente, da de simples meios de mensurar as quantidades das mercadorias. Tanto isso é verdade que, no lugar daquelas quanti­162

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dades de trabalho, podemos colocar as correspondentes quantidades físicas de mercadorias; e, desse modo, podemos determinar a taxa de lucro e o sistema dos preços, independentemente das quantidades de trabalho contidas nas mercadorias.

Em 1960, como talvez vocês saibam, apareceu um livro de um economista italiano, Piero Sraffa, cujo título é Produção de Merca­dorias por meio de Mercadorias, que está no centro dos principais debates de teoria econômica dos últimos anos e no qual se faz precisa­mente essa operação: a taxa de lucro e o sistema de preços de produção são determinados a partir simplesmente de uma determinada configuração produtiva, ou seja, a partir de quantidades físicas de mercadorias, de quantidades físicas de produtos e meios de produção, sem nenhuma referência às quantidades de trabalho objetivadas nas próprias merca­dorias. O esquema com o qual se realiza essa determinação é análogo ao sistema de equações a que chegamos, com a diferença de que os coefi­cientes das equações não são quantidades de trabalho, mas precisamente quantidades físicas. Mencionei os resultados a que chegou Sraffa para confirmar a possibilidade de se fazer a determinação dos preços e da taxa de lucro independentemente da teoria do valor. Por isso, é justo assumir o que diz Sraffa como sendo o ponto terminal da história do problema da transformação.

Mas, então, torna-se claro em que sentido esse ponto terminal coloca um imenso problema. De fato, ocorre que — se o problema da transformação é abordado através do desenvolvimento rigoroso da linha sugerida por Marx — esse problema, por assim dizer, se autodestrói: pois o ponto ao qual se chega já não é uma transformação dos valores em preços, mas uma determinação dos preços independentemente dos valores.

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Lição 17 CONCLUSÕES

Gostaria de tentar fazer uma espécie de recapitulação do que foi dito durante este curso; e não tanto para trazer à memória coisas já ditas, mas antes para avaliar melhor a conclusão a que chegamos na lição passada, ao tratar do problema da “transformação” , conclusão que parece pôr em dúvida algumas das considerações e dos comentários que havia feito ao examinar a teoria marxiana do valor. Em substância, qual é a questão que deve ser discutida? A questão é a seguinte: se é verdade o que se afirma no livro 1 de O Capital, ou seja, que as mercadorias são equivalentes por causa da presença nelas de uma substância comum, o trabalho abstrato; se é verdade, em outras palavras, que as mercadorias são equivalentes porque podem se reduzir sem resíduos ao trabalho abs­trato nelas objetivado, então é inevitável a conclusão de que os valores- de-troca, precisamente enquanto “expressão necessária” e “forma fenoménica” dos valores, ou seja, dos trabalhos objetivados, não podem ser outra coisa que não as relações entre as quantidades de trabalho às quais as mercadorias são redutíveis.

Por outro lado, Marx sabe que as efetivas relações de troca não são iguais às relações entre as quantidades de trabalho. Busca então colocar ao mesmo tempo duas coisas, que aparentemente não podem de modo algum estar juntas; e busca fazê-lo mediante a proposição, que é a proposição básica do Livro 3 de O Capital, segundo a qual os preços certamente são diferentes dos valores, mas não podem ser determinados de outro modo se não a partir dos valores. Essa proposição, que se torna

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inevitável em vista de todas as premissas até agora elencadas, e que preci­samente por isso é a proposição básica do Livro 3 de O Capital, é especi­ficada por Marx no seguinte sentido: de que a derivação dos preços a partir dos valores (ou, se preferirem, a transformação dos valores em preços) tem um termo médio, que é a taxa de lucro, uma grandeza dotada de uma característica peculiar no sistema de Marx: ela é a mesma tanto no sistema dos valores quanto no sistema de preços, e, por isso, pode constituir o termo médio entre esses dois sistemas. Portanto, e repito o que já disse na lição passada, a sucessão lógica, tal como é apresentada por Marx no Livro 3 de O Capital, é a seguinte: 1) os valores; 2) a taxa de lucro; 3) os preços. A proposição segundo a qual os preços só podem ser determinados pelos valores é especificada no sentido de que os preços só podem ser determinados se se conhece a taxa geral de lucro, e, por sua vez, a taxa geral de lucro só pode ser determinada se se conhecem os valores. Por isso, graças a esse termo intermediário — ou seja, a taxa de lucro enquanto relação entre valores —, ganha conteúdo específico a proposição segundo a qual não há outro modo de determinar os preços a não ser o de assumir os valores como ponto de partida. É por isso que, segundo Marx, os preços são a parte visível da realidade, enquanto os valores são a parte invisível; mas isso não é senão a manifestação do fato de que os preços estão na superfície da realidade capitalista, enquanto os valores, ao contrário, fazem parte da sua essência; e é próprio de uma superfície só poder ser explicada plenamente quando se recorre à essência. Por isso é que, fora do conhecimento dos valores, os preços — para Marx — não podem ser determinados e, mais geralmente, perdem inclusive qualquer significado.

Por outro lado, vimos que houve uma certa história do problema da “transformação” , história que parece de certo modo inevitável, pois nasceu de uma sugestão formulada pelo próprio Marx e desenvolveu-se depois com grande rigor formal; e vimos que essa história teve uma culmi­nação peculiar, talvez inesperada, que coloca um grande problema no interior do marxismo, já que essa culminação é que os preços, .assim como a taxa de lucro ligada ao sistema dos preços, podem ser determi­nados independentemente dos valores, oü seja, simplesmente pondo como pressuposto dos próprios preços de uma determinada “configuração produtiva” , isto é, um certo conjunto de mercadorias que se relacionam entre si como produtos e meios de produção. Então, se as coisas se passassem efetivamente assim, teríamos de concluir que a ligação suposta por Marx entre valores e preços não existe na realidade; que não há absolu­tamente necessidade de conhecer os valores para conhecer os preços. Por conseguinte, pode nascer a dúvida de que toda a teoria do valor de Marx perdeu significação, já que não serve para explicar a realidade; por mais que essa realidade seja chamada de superficial, é certo que se trata de uma realidade; e, se essa realidade da concorrência pode ser

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explicada por si mesma, sem necessidade de se recorrer aos valores, então o sentido da teoria do valor torna-se, quando menos, um problema. Ora, o que pretendo fazer agora não é certamente resolver esse problema, mas simplesmente mostrar que atitudes podem ser tomadas diante dele, ou melhor, elencar as posições que foram efetivamente assumidas por marxistas e não marxistas (em geral, por quem se ocupou da questão) diante desse problema.

Porém, antes de indicar quais são essas posições possíveis e quais são, por conseguinte, as linhas de investigação que cada uma delas implica, parece-me oportuno — precisamente para que a definição dessas linhas resulte mais clara — fazer uma tentativa, nesta lição, de restabelecer, em seus princípios fundamentais (ainda que um pouco esquematicamente, já que não temos muito tempo à disposição), o conteúdo que é próprio à teoria do valor, ou seja, àquela teoria do valor que, depois do resultado a que chegou o problema da “transformação” , apresenta certamente aspectos problemáticos. Vou agora repetir coisas que já disse muitas vezes ao longo deste curso; e vou repeti-las resumidamente, com a finali­dade específica de tomar mais claras as alternativas de pesquisa que, diante desse problema, se tornam possíveis.

Como vocês se recordam, o ponto de partida da teoria do valor de Marx é o seguinte: que, não certamente em condições naturais, mas quando a produção se processa em condições capitalistas, e, portanto, no âmbito de uma determinada relação de classe, que é a relação burguesia- proletariado, e quando, em conexão com e em conseqüência disso, o processo produtivo assume uma fisionomia inteiramente peculiar, já que é um processo que se subordina tão-somente à ampliação progressiva da própria produção, a qual, precisamente por isso, apresenta-se como capital, ou seja, como uma realidade que é movida pelo impulso à própria auto-ampliação, quando tudo isso se verifica, quando se verificam portanto as condições capitalistas de produção, então o trabalho humano assume uma configuração determinada e particular. Essa configuração — histórica e socialmente determinada — do trabalho humano na situação capitalista é expressa por Marx com o termo sintético “trabalho abstrato” . Ou seja, trata-se — como vocês sabem — de uma condição na qual o trabalho não conta pelas qualidades específicas que lhe derivam da circunstância de ser efetuado por esse ou aquele indivíduo particular, mas conta apenas como explicitação genérica de energia laborativa humana. Segundo a indicação dada por Marx, em Para a Crítica da Economia Política, já por mim recordada outras vezes, a essência do trabalho abstrato consiste no seguinte: que o trabalho não é mais, como o seria em condições natu­rais, um atributo dos sujeitos humanos, uma qualidade deles; mas, ao contrário, esse trabalho assumiu a qualidade de sujeito, enquanto os indivíduos, isto é, os homens que o efetuam, tornaram-se na realidade seus atributos, ou seja, simples veículos de realização do trabalho, meras166

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ocasiões para que esse trabalho — que se tornou a verdadeira realidade subjetiva — seja executado. Ou seja, a relação entre sujeito e objeto se inverteu; nisso consiste a alienação capitalista; o trabalho perde sua posição de atributo ou qualidade de um sujeito e é elevado ele próprio à posição de sujeito, com a degradação dos indivíduos que o executam à situação de atributos do que, em condições naturais, seria um atributo deles; ou seja, os homens não contam mais por sua subjetividade, contam apenas enquanto ocasiões nas quais o trabalho é executado.

Esse é o trabalho abstrato para Marx. Disso, Marx deduz uma primeira conseqüência imediata: que esse trabalho, precisamente porque é separado dos indivíduos, dos sujeitos, é um trabalho igual, comum, genérico, não importa como e onde seja executado; e, precisamente nesse sentido, ele é — de acordo com a terminologia de Marx — a subs­tância comum das mercadorias; e as mercadorias, enquanto possuem essa substância comum, são valores. Se se quer, pode-se também pôr a questão assim: o trabalho, em geral, evidentemente não é trabalho a não ser que dê origem a um produto; se não dá origem a um produto, é trabalho apenas em sentido analógico; trabalho em sentido próprio só existe quando dá origem a um produto; mas esse fato, que é verdade no nível geral, deve ser verdade também para o trabalho abstrato. Para ser trabalho, portanto, o trabalho abstrato deve também dar origem a um produto. Mas qual pode ser o produto do trabalho abstrato? Deve ser um produto igualmente abstrato. E qual é esse produto abstrato? É precisamente o valor. É o produto não enquanto valor-de-uso, ou seja, não enquanto objeto dotado de determinadas propriedades, mas enquanto valor, ou seja, enquanto parte alíquota de uma riqueza genérica. É por isso que, do conceito de trabalho abstrato, segue-se em Marx — e segue-se necessariamente — a relação entre trabalho e valor, a ponto que, eu creio, deva-se dizer que, se tivéssemos (se alguém tivesse) de concluir que a ligação entre trabalho e valor é uma ligação que não pode ser afirmada, então deveríamos ser tão conseqüentes como Marx e renunciar ao conceito de trabalho abstrato como instrumento interpretativo da realidade capi­talista. É assim que as coisas se colocam no que se refere a Marx. E é por isso que, para Marx, a teoria do valor — tal como é exposta no Livro 1 de O Capital — desempenha um papel fundamental, já que essa teoria do valor é a conseqüência direta de uma categoria — a do trabalho abstrato — que é para Marx a categoria central da interpretação da reali­dade capitalista. É por isso também que, diante da realidade de fato, da realidade de que as relações de troca das mercadorias não coincidem com as relações entre valores, Marx deve encontrar uma conciliação, e tende a essa conciliação do modo a que nos referimos, um modo que — segundo a história do problema da “transformação” — parece ter fracassado.

Portanto, é este o problema diante do qual nos encontramos. Notem bem que, quando teve início essa história do problema da “transfor­

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mação” , alimentavam-se muitas esperanças a respeito. Os primeiros autores que abordaram essa questão mostraram a necessidade de acolher a sugestão de Marx, a sugestão que consistia em dizer que o processo da transfor­mação devia englobar todas as mercadorias, não só as que apareciam como produtos, mas também as que apareciam como elementos do capital; e puseram conseqüentemente em evidência que, por outro lado, se se acolhe essa sugestão, não é possível determinar a taxa de lucro antes de ter determinado os preços; por isso, propuseram uma estrutura analí­tica que se manteve imodificada ao longo de toda aquela história, uma estrutura segundo a qual os valores das mercadorias constituíam os coeficientes de um sistema de equações que tem como incógnitas, ao mesmo tempo, os preços relativos e a taxa de lucro. Essa história prosse­guiu depois através de uma série de etapas; muitos autores contribuíram paulatinamente para tornar mais sutil esse método inicial, até chegar às últimas formulações, as quais — partindo da constatação de que, enquanto se continuasse a raciocinar em termos agregados, pelo menos algumas relações de troca ainda eram determinadas em termos de valor e não em termos de preço — reformularam o problema em termos desa­gregados, de acordo com o esquema que expus na aula passada. É precisamente diante desse modo de solução (que não pode ser submetido a objeções formais de nenhum tipo) que se pode fazer, porém, a objeção substancial: a de que, desse modo, as quantidades de trabalho deixam de ter um papel essencial, já que podem ser substituídas, em sua eficácia determinativa dos preços e da taxa de lucro, — e, poderíamos dizer, substituídas com vantagem, — simplesmente por quantidades físicas de mercadorias. E assim a história se conclui; o problema da transfor­mação é destruído pela raiz, porque não resolve mais uma passagem dos valores aos preços mas consegue determinar os preços sem partir dos valores. Portanto, é essa a história tal como a vimos e como agora eu a resumi.

Vejamos agora que atitudes se podem assumir diante do problema que assim surge. Por uma razão elementar de prudência, deve me corrigir: vou me referir não a atitudes que se podem assumir, mas simplesmente a atitudes que foram assumidas, de fato, em face desse problema. É claro que não se pode excluir a possibilidade de que venham a surgir, no futuro, novas sugestões. Naturalmente, antes de passar à exposição, quero advertir que falo das posições que têm um mínimo de importância teórica; excluo assim como irrelevante a posição dos que (e são ainda muitos) pensam que esse problema não existe, e, portanto, reapresentam exposições escolásticas de Marx, quase como se a história desse problema da transfor­mação não nos tivesse obrigado a repensar toda a questão do valor. Portanto, deixando de lado essa posição, que me parece teoricamente muito pouco interessante e muito pouco fecunda, passo a apresentar em seguida as que têm um sentido teórico.

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A primeira posição é uma posição que, de modo explícito (e esse caráter explícito é precisamente um de seus méritos), vale-se dessas vicissi­tudes para colocar-se fora do marxismo. Ela consiste em dizer que esse resultado da história do problema da transformação obriga a abandonar a teoria do valor-trabalho, assim como todas as conseqüências que derivam da teoria do valor-trabalho, particularmente uma, que é porém a mais importante de todas, ou seja, a proposição de que a relação capitalista é uma relação de exploração; essa, que é a primeira conseqüência que se extrai da teoria do valor-trabalho, deve cair juntamente com a queda da teoria do valor-trabalho, pelo menos segundo essa posição. Como, por outro lado, a teoria da exploração é essencial ao marxismo, o aban­dono da mesma significa abandonar o marxismo.

Mas essa posição prossegue afirmando que, com isso, não se aban­dona necessariamente a posição crítica em face da economia e da socie­dade capitalista; e que, para a definição dessa posição crítica, muitas das coisas ditas por Marx continuam válidas. Para manter esse ponto, tal posição deve acentuar com grande força todos os aspectos de Marx que, de um ou de outro modo, contêm a descrição ou a definição do caráter alienado da atividade que se processa em condições capitalistas; naturalmente, esse tipo de alienação não pode mais ser captado através da categoria do trabalho abstrato, que é certamente posta em discussão ao se abandonar a teoria do valor-trabalho; mas isso não impede que certos aspectos da alienação do trabalho, tais como se expressam (apenas para indicar uma referência) em algumas passagens do Capítulo VI lidas por nós, ou no texto sobre as máquinas contido nos Grundrisse, possam ser acolhidos. Então, essa posição concluiria do seguinte modo: o que Marx chama de subsunção do trabalho ao capital, que é precisamente o máximo da alienação, determina o efetivo desaparecimento do trabalho como categoria autônoma, englobado que foi pelo capital; e trata-se do desaparecimento não apenas do trabalho concreto enquanto produtor de valores-de-uso, mas também do trabalho como possível substância valorizadora; e, por isso, é natural que — no âmbito do problema da transformação — chegue-se a dizer que os preços e a taxa de lucro podem ser determinados em base a circunstâncias que são inteiramente internas à realidade do capital, sem que haja assim necessidade de fazer referência a uma realidade externa e contraposta ao capital, como seria precisa­mente o trabalho. Temos aqui, assim, uma das posições assumidas diante do problema em questão.

Uma outra posição, que talvez seja a mais difundida de todas, tem em comum com a primeira o ponto de partida; depois, como veremos, afasta-se radicalmente dela, mas o ponto de partida é o mesmo. Essa segunda posição consiste em dizer que o resultado da história do problema da transformação indica que a teoria do valor-trabalho não pode ser mantida; nesse sentido é que a segunda posição tem um ponto de partida

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igual ao da primeira. Porém, após esse ponto de partida comum, as duas posições divergem radicalmente, já que essa segunda posição continua dizendo que a tese de Marx de que a relação capitalista é uma relação de exploração não requer, para ser afirmada, a teoria do valor-trabalho; e que, por isso, o fim da teoria do valor-trabalho, determinada pelo resultado do problema da transformação, não engloba a tese da explo­ração. Como é que essa posição defende essa tese? Defende-a mediante uma argumentação que pode ser expressa nos seguintes termos: qualquer que seja o modo pelo qual se determinem as relações de troca entre as mercadorias e, de modo correspondente, a taxa de lucro; e, portanto, mesmo admitindo-se que a determinação dessas grandezas ocorra mediante uma pura e simples referência a certa configuração produtiva, fora portanto da referência aos valores, umi fato resta porém seguro: que temos, no sistema econômico, uma certa quantidade de trabalho; que essa quantidade de trabalho se distribui, segundo uma certa propor­ção; entre a produção de meios de subsistência para os trabalhadores e a produção de todas as outras coisas, ou seja, essencialmente de produto excedente; que a subdivisão do trabalho global nessas duas partes (uma subdivisão que se conserva qualquer que seja a relação de troca entre as mercadorias) é suficiente para afirmar que o trabalho é explorado.

Com efeito, o que é que o trabalho recebe de volta? O trabalho recebe de volta apenas a parte do produto que se apresenta sob a forma de meios de subsistência para o assalariado; mas há uma outra parte do produto — quaisquer que sejam os modos de determinar os valores- de-troca das mercadorias que o compõem — que não volta para os traba­lhadores; portanto, há uma parte do trabalho que serve para produzir coisas que não são apropriadas pelo trabalhador. Basta isso para dizer que o trabalho é explorado. É precisamente em conseqüência dessa fideli­dade à tese da exploração que os defensores dessa posição pretendem continuar no interior do marxismo. Essa pretensão não me parece fundada, porque não creio que se possa estar dentro do marxismo quando não se aceita a teoria do valor-trabalho. Por que, segundo Marx, a teoria do valor-trabalho é uma etapa essencial no curso da demonstração de que a relação capitalista é uma relação de exploração? A razão, a meu ver, pode ser resumida nos seguintes termos: quando Marx diz que o trabalho do operário se distingue em duas partes, um trabalho necessário e um trabalho excedente, fornece uma noção particular, mas muito impor­tante, de trabalho necessário; ou seja, Marx diz, por exemplo, que se a jornada de trabalho dura 10 horas e nos bens-salário estão contidas 6 horas de trabalho, as primeiras 6 dessas 10 horas servem para recons­tituir o valor dos bens-salário, enquanto o resto é mais-valia. Prestem atenção ao que está implícito nessa posição, só aparentemente sim­ples: está implícito que as primeiras 6 horas de trabalho executadas pelo operário reconstituem por inteiro o valor dos bens-salário que o

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operário recebe; isso implica a tese de que, no valor dos bens-salário, que o operário recebe em pagamento de sua força-de-trabalho, não está contido mais do que trabalho, de modo que as primeiras 6 horas do operário são suficientes para reconstituir aquele valor, porque no valor não há mais do que 6 horas de trabalho. Se existisse alguma outra coisa, como não casualmente pretende toda a economia burguesa; se, por exemplo, nos bens-salário recebidos pelo trabalhador existissem 6 horas de trabalho e mais alguma outra coisa, que fosse de algum modo relativa a uma participação ativa do capitalista no processo produtivo, como precisamente pretende a economia burguesa, é claro que esse raciocínio de Marx não poderia mais ser feito, porque então se diria: na realidade, o trabalhador produz mercadorias que não contêm só 6 horas de trabalho, mas contêm também um outro X, que é a contribuição do capitalista. Portanto, não é absolutamente verdade que o operário, nas primeiras 6 horas de trabalho, reconstitua o valor do próprio salário, porque ele reconstitui apenas uma parte desse valor, apenas a parte imputável ao trabalho; a outra parte não é reconstituída por ele; e, desse modo, o operário precisa de todas as dez horas a fim de reconstituir aquele valor, isto é, a fim de compensar com um trabalho a mais a parte do valor do salário que é atribuível à contribuição do capitalista. Assim, a relação de exploração não existiria, pois o trabalhador receberia exata­mente o que dá.

Segundo Marx, nada disso é verdade. Por quê? Precisamente porque, nos bens-salário, estão contidas apenas seis horas de trabalho. Mas do que é que Marx precisa para fazer essa afirmação? Evidentemente, da teoria do valor-trabalho. Portanto, fora da teoria do valor-trabalho — pelo menos no sentido de Marx —, a exploração capitalista não pode ser afirmada. Diante da consideração feita por essa segunda posição, e que consiste em dizer que, qualquer que seja o modo de determinar os preços, mantém-se o fato de que o trabalho global se divide em duas partes, a que produz os meios de subsistência e a que produz o resto, a crítica burguesa poderia facilmente objetar que certamente é verdade que o trabalho se divide nessas duas partes, mas que existe uma outra coisa, além do trabalho, que é a contribuição do capitalista, também ela dividida em duas partes: uma que serve para produzir os bens-salários, e outra que serve para produzir o resto. Repito, então: essa posição não pode pretender estar no interior do marxismo; mas, precisamente porque essa pretensão é infundada, tal posição se priva das armas que o marxismo buscara construir, com a teoria do valor-trabalho, para responder, já na época, às possíveis críticas à tese da exploração, provenientes da eco­nomia burguesa. Essa, portanto, é a segunda posição.

Um modo pelo qual essa posição é por vezes exposta consiste em pôr diretamente em relação a produtividade em sentido material, ou seja, o produto excedente, com o trabalho. A argumentação pode então ser

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formulada nps seguintes termos. Na teoria de Sraffa, que mencionei no fim da lição passada, descreve-se o processo produtivo de um modo que torna possível a determinação do produto excedente em termos materiais, ou seja, como conjunto de quantidades de mercadorias, sem necessidade de passar pelos valores. A existência de um produto exce­dente é então julgada, por essa posição, como suficiente para definir uma produtividade do trabalho; e, dado que esse produto excedente não retorna (ou retorna só parcialmente) às mãos dos trabalhadores, isso é julgado como suficiente para definir a situação como uma situação de exploração. O quanto tudo isso esteja distante do marxismo, e também da realidade das coisas, resulta do que eu disse na lição 11 sobre a relação que Marx põe entre “produtividade do trabalho” e “produtividade do capital” : para Marx, repito, sob o ângulo da produção de valores-de-uso

'(ângulo no qual, evidentemente, entra a determinação do produto excedente em termos materiais), não se pode atribuir a produtividade ao trabalho, pelo fato de as forças produtivas como “combinação social” serem todas colocadas fora do próprio trabalho. Ou seja: para Marx, a produtividade do trabalho é definível apenas no terreno do valor e, portanto, da produção da riqueza abstrata, e não da produção de valores-de-uso.

Há ainda uma terceira posição, análoga à segunda, mas que dela se distingue por algumas particularidades que vale a pena mencionar. Essa terceira posição parte da idéia de que os produtos da economia capitalista são valores antes da troca e independentemente das modali­dades em que a troca se processa. Por isso, independentemente do fato de a troca ocorrer ou não segundo as relações entre valores, resta que os produtos não são senão objetivações do trabalho e, portanto, resta a possibilidade de identificar a mais-valia como objetivação de trabalho excedente. A troca intervém num segundo momento (“segundo” em sentido lógico, naturalmente), a fim de redistribuir a mais-valia entre os capitais singulares; mas isso não retira nem acrescenta nada à constituição do valor como trabalho objetivado.

Essa argumentação se caracteriza, em suma, pela omissão, na análise do capital, da categoria do valor-de-troca: por um lado, há o valor; por outro, o preço de produção; nem o valor tem seu prolongamento no valor-de-troca, nem o valor-de-troca é a premissa imediata do preço de produção. Assim, certamente, o problema da “transformação” é elimi­nado, porque o valor e o preço de produção estão cada qual em sua própria esfera, sem que sequer se coloque o problema da relação entre eles. Mas, com isso, não parece que a pretensão — que também essa posição avança — de estar no interior do marxismo possa ser acolhida. Para Marx, com efeito, um valor que não tenha sua própria “expressão necessária” ou “forma fenoménica” no valor-de-troca (isto é, na relação entre valores, entre quantidades de trabalho objetivado) não é sequer172

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pensável. 0 valor é a forma que o produto assume enquanto é mercadoria, ou seja, enquanto a sociedade se constitui sobre a base da mediação das coisas e não da relação direta entre os homens; mas, se o valor é necessariamente valor de mercadorias (aliás, se o valor não tem sentido a não ser quando é aquilo a que a mercadoria pode ser reduzida), isso significa que o valor se realiza na relação entre quantidades de trabalho objetivado nas mercadorias, ou seja, se realiza precisamente como valor- de-troca. Isso não significa negar que a categoria de “valor” tenha precedência com relação à de “valor-de-troca” ; e isso precisamente no sentido (que é o de Marx) de não ser verdade, como afirma a economia burguesa, que “as mercadorias têm valor porque são trocadas” , mas de ser verdade, ao contrário, que “as mercadorias são trocadas porque são valores” ; mas significa reafirmar que, sem o valor-de-troca, ou seja, sem a realização do valor no mercado como conjunto de relações entre quanti­dades de trabalho, o valor nem sequer existiria, pois os produtos não assumiriam a forma do valor. Mas, se é assim (e, de qualquer modo, para Marx é assim), o problema da relação com o “preço de produção” se coloca, porque também o preço de produção é uma relação de troca.

Portanto, tampouco a posição que elimina o problema da transfor­mação, afastando a categoria do valor-de-troca, pode ser aceita. Parece então que a única posição que se pretenda seriamente no interior do marxismo deva partir da constatação de um problema em aberto; e deva investigar se as categorias que Marx coloca como fundamento da análise do capital deram lugar, em Marx, a uma análise realmente correspon­dente à sua riqueza, e, portanto, se não existirá espaço para um desen­volvimento da análise marxiana que resolva os problemas que, no atual estágio, aparecem como contradições.

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