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UM GOSTO PELOS ENCONTROS Luiz B. L. Orlandi.* Prólogo As anotações aqui transcritas são apenas o esboço de uma busca que as atrai, embora as supere consideravelmente. Por isso, não desembocam numa conclusão. Elas pretendem buscar uma pluralidade de ocorrências que talvez permitam tratar -- como decisivo para uma filosofia em devir o jogo da produtividade dos encontros na co- criação conceitual deleuziana. Como isso implica o problema da imanência, este pode ser assim resumido [1]: assim como a potência de casuais encontros intensivos lança o pensador deleuziano à espreita de um pensamento necessário e de atuações pontuais, assim também é na imanência dos encontros que a repetição diferencial de multiplicidades intensivas, proliferando implicações mútuas entre o virtual e o atual, põe o pensamento filosófico em devir e faz do próprio pensador um co-operador de devires para além de recaídas ego e logocêntricas. Este é o abusivo resumo do problema que inspira as anotações abaixo transcritas, mas em relação ao qual elas evitam concluir de maneira peremptória. Experiência e filosofia De partida, convém levar em conta a seguinte banalidade: é impossível separar filosofia e experiência. Mesmo quando praticados pelo mais estrito e justificável formalismo e mesmo que o experimento se dedique ao movimento abstrato do conceito, o fato é que certos procedimentos que isolam os fluxos argumentativos de uma filosofia qualquer, evitando, portanto, referências a alguma experiência do filósofo, mesmo nesse caso um certo experimentalismo filosófico está acontecendo na determinação dos problemas, no detalhamento de vínculos entre componentes de conceitos, na seleção de pontes entre eles etc. Inversamente, outro tipo de experimentalismo filosófico está operando nas tentativas de ligar conceitos de uma filosofia às experiências individuais vividas pelo filósofo ou ao campo sócio-histórico mais geral que abarca sua vida. Admite-se, portanto, a própria impossibilidade de separar uma filosofia qualquer de alguma experiência. Por exemplo, num dos seus primeiros ensaios da série Situations [2], Sartre indicava uma maneira toda sua de interrogar uma filosofia. Ele dizia mais ou menos o seguinte: a todo filósofo (Descartes, no caso desse ensaio) é possível perguntar pela situação privilegiada a propósito da qual ele fez a experiência de sua liberdade. Pois bem, quando se lê escritos de Deleuze, não é raro notar que seu pensamento se envolve também com experiências, delineando, portanto, mais uma filosofia de algum tipo de experiência. Mas qual seria, precisamente, esse tipo? Caberia impor a ele a pergunta feita por Sartre a Descartes? Deleuze certamente viveu momentos ou situações em que sua subjetividade experimentou certa liberdade de escolher este ou aquele atalho para buscar esta ou aquela composição com seu território. Por exemplo, nos momentos finais de sua existência, e já não aguentando o estado de extrema exaustão do seu poder de respirar, talvez ele dispusesse de pelo menos duas vias e ainda

Luiz B. L. Orlandi - Um Gosto Pelos Encontros

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Luiz B. L. Orlandi - Um Gosto Pelos Encontros

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UM GOSTO PELOS ENCONTROS

Luiz B. L. Orlandi.*

Prólogo

As anotações aqui transcritas são apenas o esboço de uma busca que as atrai,

embora as supere consideravelmente. Por isso, não desembocam numa conclusão. Elas

pretendem buscar uma pluralidade de ocorrências que talvez permitam tratar -- como

decisivo para uma filosofia em devir – o jogo da produtividade dos encontros na co-

criação conceitual deleuziana. Como isso implica o problema da imanência, este pode

ser assim resumido [1]: assim como a potência de casuais encontros intensivos lança

o pensador deleuziano à espreita de um pensamento necessário e de atuações pontuais,

assim também é na imanência dos encontros que a repetição diferencial de

multiplicidades intensivas, proliferando implicações mútuas entre o virtual e o atual,

põe o pensamento filosófico em devir e faz do próprio pensador um co-operador de

devires para além de recaídas ego e logocêntricas. Este é o abusivo resumo do problema

que inspira as anotações abaixo transcritas, mas em relação ao qual elas evitam concluir

de maneira peremptória.

Experiência e filosofia

De partida, convém levar em conta a seguinte banalidade: é impossível separar

filosofia e experiência. Mesmo quando praticados pelo mais estrito e justificável

formalismo e mesmo que o experimento se dedique ao movimento abstrato do conceito,

o fato é que certos procedimentos que isolam os fluxos argumentativos de uma filosofia

qualquer, evitando, portanto, referências a alguma experiência do filósofo, mesmo nesse

caso um certo experimentalismo filosófico está acontecendo na determinação dos

problemas, no detalhamento de vínculos entre componentes de conceitos, na seleção de

pontes entre eles etc. Inversamente, outro tipo de experimentalismo filosófico está

operando nas tentativas de ligar conceitos de uma filosofia às experiências individuais

vividas pelo filósofo ou ao campo sócio-histórico mais geral que abarca sua vida.

Admite-se, portanto, a própria impossibilidade de separar uma filosofia qualquer

de alguma experiência. Por exemplo, num dos seus primeiros ensaios da série Situations

[2], Sartre indicava uma maneira toda sua de interrogar uma filosofia. Ele dizia mais

ou menos o seguinte: a todo filósofo (Descartes, no caso desse ensaio) é possível

perguntar pela situação privilegiada a propósito da qual ele fez a experiência de sua

liberdade.

Pois bem, quando se lê escritos de Deleuze, não é raro notar que seu pensamento

se envolve também com experiências, delineando, portanto, mais uma filosofia de

algum tipo de experiência. Mas qual seria, precisamente, esse tipo? Caberia impor a ele

a pergunta feita por Sartre a Descartes? Deleuze certamente viveu momentos ou

situações em que sua subjetividade experimentou certa liberdade de escolher este ou

aquele atalho para buscar esta ou aquela composição com seu território. Por exemplo,

nos momentos finais de sua existência, e já não aguentando o estado de extrema

exaustão do seu poder de respirar, talvez ele dispusesse de pelo menos duas vias e ainda

pudesse escolher uma delas: a hospitalar, sempre oscilando entre recuperações e

gradativas degradações desse poder; ou a do atalho que prevaleceu, o do suicídio capaz

ou não de criar um relampejante corpo sem órgãos. Seja como for, sua filosofia não

parece determinada por experiências que expressem uma soberana liberdade subjetiva.

Reencontro com o aqui-e-agora

A própria liberdade de escolher, no caso dos escritos deleuzianos, não é

simplesmente a de uma subjetividade auto determinadora. Escolher esta ou aquela via

nos emaranhados do território vivencial implica um complexo envolvimento da própria

volição com quebradiças condições não transparentes à consciência. É num estado de

profunda ignorância que se vive, aqui-e-agora, na imanência de desafiadoras condições

do sentir, do pensar, do agir... condições cujos blocos se recombinam a cada lance dos

corpos. Há o bloco das condições longitudinais, vale dizer: dinamismos dos

movimentos de que se é capaz, dos repousos que estão ao seu alcance, das velocidades

que pode atingir, das lentidões a que se é submetido, e isso tudo se passa sem que se

saiba o que pode o corpo; e há o intempestivo bloco das condições latitudinais, vale

dizer: a inesperada fulguração de afectos que tomam o corpo no aqui-e-agora,

intensificações de um poder, sim, mas de um poder de ser afetado. Tudo isso lança

as escolhas num jogo não regrado de razões contingentes e de um complicado

ziguezague de paixões e ritmos, pois implicam o que se passa nos aqui-e-agora das

conexões entre os corpos. Essas palavras estão aí para insinuar uma atmosfera

espinosista, é claro, atmosfera que é, precisamente, aquela que dá estofo à ideia

deleuziana de experiência [3].

Mas foi no conjunto dos seus escritos, entrevistas e aulas, que Deleuze consolidou

conceitualmente uma filosofia da experiência desse tipo de atmosfera. Propriamente

falando, ele determinou sua experiência filosófica como sendo a de um pensar por

conceitos, sim, mas um pensar que implica, em sua própria efetuação, um singular

envolvimento mútuo de atividade e de passividade; um pensar que se sente atuando

por força de conexões diferenciais irredutíveis tanto ao voluntarismo de um sujeito

pensante quanto à ordinária recepção de dados exteriores. Por isso, essa filosofia evita

definir-se estritamente como um “dogmatismo” ou como um “empirismo”. Conforme

ela mesma explicita, sua perspectiva é evitar dois erros: tanto o “erro” dogmático

de um invasivo sujeito pensante, destinado a “sempre preencher o que separa”;

quanto o “erro” empirista vulgar levado por um tipo de percepcionismo que “deixa

exterior” o que se lhe apresenta como “separado”. Nessa filosofia, o pensar vem a ser

experimentar o que Deleuze chama de ponto crítico. Como se caracteriza esse ponto

paradoxal capaz de operar separando e reunindo? Eis como Deleuze diz o que se passa

nesse ponto: trata-se do “ponto ‘crítico’ em que a diferença, como diferença, exerce a

função de reunir”. É no sentido de um diferencial capaz de reunir heterogêneos que essa

filosofia se define como “empirismo transcendental” [4].

Pois bem, onde ocorre, por onde se distribui essa experiência de um pensar que

se sente pensando por força de conexões diferenciais que o forçam a pensar? Ela ocorre

num campo problemático, num campo que não para de impor questões e disparar

problemas, campo transcendental afirmado num plano de imanência... em suma, na

produtiva multiplicidade de encontros que eclodem nos aqui-e-agora. O que ganhamos

com esse empirismo transcendental não é simplesmente um narcísico pensamento

satisfeito com suas próprias expressões, mas uma filosofia da experiência do pensar

imerso nessa produtividade complexa.

Se há algum Ser em pauta nessa filosofia, é o ser dos devires que pulsam nos

encontros. E se acharmos que o vocabulário dessa filosofia complica as coisas, ela nos

responderá que a complicação já está nos próprios encontros dos corpos. Em estados de

vivência comum, nesses estados de não-filosofia, sente-se como experiência complexa

até mesmo uma admiração, uma simpatia ou algum espanto ou susto em face de algo; e

isso quase sempre abre dimensões não contidas nesse algo, dimensões que o

participante sente como insistentes nessa aparição.

Pluralidade de encontros

Todo encontro ordinário, portanto, está exposto à possibilidade de uma

reviravolta instantânea que pode projetar tudo para fora dos eixos. É como se a própria

vida se sentisse abalada por esse vinco em que uma experiência ordinária é dobrada

junto a outra, a extraordinária. Pressentimos que a efetiva complexidade da experiência

dos encontros depende do que se passa nessa dobra, razão pela qual é preciso buscar sua

explicitação. Cada um sente e exprime a seu modo essa ocorrência simultânea de linhas

divergentes, a estranha dobradura na qual os juntados experimentam seu próprio vínculo

como sendo aquilo que os lança num tempo fora dos eixos: o fantasma que aparece a

Hamlet, revelando que mãe e tio assassinaram seu pai, é um lance complicando sua

situação, a sensação de um eu rachado e de um tempo que não se reconcilia consigo

mesmo. É o que diz a singular expressão de Shakespeare: “o tempo está fora dos

gonzos” [5]. Deleuze, como é sabido, leva esta e outras “fórmulas poéticas” ao encontro

de subversões kantianas. Neste caso, a subversão consiste em pensar o tempo como

“forma autônoma”, forma “imutável da mudança e do movimento”, a forma pura da

determinação pela qual o eu penso determina o eu sou. Com isso, esse “eu” ganha a

rachadura que não se nota na fórmula cartesiana do cogito: “penso, logo existo” [6]. É

a complexidade da experiência fomentando passagens de uma problemática filosófica

a outra.

Por que esse flerte com uma subversão kantiana? Quando Deleuze cria ou

apreende uma ressonância como essa entre Hamlet e Kant, é para fazer valer um fora

produtivo, um fora que é o de forças anônimas vibrando nos encontros e se insinuando

também na elaboração conceitual. Essa ressonância “romântica”, criada entre o filósofo

e o personagem literário, passa por referências a combinações de um novo conceito de

tempo. Essas combinações ocorrem num plano que se erige à medida que um filósofo é

tomado pela criação dos seus conceitos. Portanto, estar à espreita da força que inflama

encontros vivenciais, e pensá-los filosoficamente, impõe um novo estado de espreita e

dedicação aos próprios encontros conceituais, o que deve inibir cada vez mais a mera

substituição daqueles por estes, mas também destes por aqueles. Um dos efeitos do

pensamento deleuziano é justamente este: essa dedicada espreita, duplamente instigada

pelos encontros conceituais e pelos encontros entre modos de viver, acaba suscitando

linhas variadas de leitura não reducionista de qualquer filosofia anterior, o que nos

desloca da posição de juiz, abrindo-nos a transposições fecundadas por variados níveis

de receptividade seletiva. Para Deleuze, essa dedicada espreita é também a do

“empirismo”, pois este “trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-

agora” [7].

No livro em que expõe o vocabulário de Deleuze, Zourabichvili aponta a tarefa

que garantiria certo tipo de encontro com um pensamento: “a exposição dos conceitos

é a única garantia de um encontro com um pensamento”. O termo encontro aparece

em itálico para marcar o que distingue a exposição por ele defendida: ela é irredutível

tanto a meras tecnicalidades expositivas, pretensamente neutras relativamente ao

texto estudado, quanto a melosos sentimentos de adesão às palavras e frases do

filósofo; trata-se de expor os conceitos de um filósofo, sim, mas “sob a dupla

condição do simpático e do estranho” [8], condição que certamente corresponde ao

que há de estranheza e força atrativa nas interseções de sítios problemáticos. As

filosofias anteriores não merecem exposições tecnocratas e nem o adesismo imbecil,

mas, para que isso não ocorra, é preciso que uma vibração de problemas imante o

encontro com suas articulações conceituais.

O experimentalismo filosófico de Deleuze, seu construtivismo, implica

também um certo respeito às outras disciplinas do pensar. Com efeito, para Deleuze

e Guattari, ao lado da arte e da ciência, o pensamento filosófico, como é também

sabido, é uma das “três grandes formas” ou “vias” de pensar. Sem hierarquia, elas

são basicamente definidas pela comum tarefa de “enfrentar o caos”. Mas cada uma

erige seu próprio e distinto plano de exercício do seu modo de pensar. Enquanto a

arte pensa “por sensações”, traçando um “plano de composição”, enquanto a ciência

pensa “por funções”, traçando um “plano de coordenadas”, a filosofia, ao enfrentar

as variabilidades da caótica dos encontros, traça um “plano de imanência” erigido à

medida que ela “pensa por conceitos” [9]. Portanto, o aprendizado filosófico da

produtiva complexidade da experiência nos expõe a uma dupla impregnação: a da

própria caótica dos encontros seja lá com o que for e a do vai-e-vem vertiginoso,

“voltiginoso” [ 1 0 ] , que os conceitos exibem nos variados encontros mútuos a que

são levados por problemas a que têm de corresponder.

Esses problemas não são verborragias, como aqueles considerados eternos por

certa imagem do que seja filosofia, e que seriam sanáveis por uma delas ou por uma

higienização da linguagem. São problemas que ganham sua objetiva verdade numa

revolucionária pragmática dos encontros [11]. Com efeito, em O que é a filosofia?,

os conceitos ganham sentido por corresponderem dinamicamente a problemas que

lhes transferem uma força de autoposição, de modo que eles, irredutíveis à

arbitrariedade subjetiva ou ao simples engajamento discursivo do filósofo, implicam

um modo de invenção sensível ao caráter problemático dos encontros. Desde o

primeiro livro de Deleuze, essa problematicidade está numa relação de imanência com

a circunstancialidade dos próprios encontros; e já se insinua na ideia de que os encontros

constitutivos do próprio sujeito implicam relações exteriores aos termos relacionados

[12]. Em outro escrito, Deleuze deixa ver que a própria “voz” incide na “dinâmica”

dos encontros conceituais:

“a filosofia é a arte de inventar os próprios conceitos, de criar novos conceitos dos

quais temos necessidade para pensar nosso mundo e nossa vida. Deste ponto de

vista, os conceitos têm velocidades e lentidões, movimentos, dinâmicas que se

estendem ou se contraem através do texto: eles não remetem a personagens, mas

são eles próprios personagens, personagens rítmicos. Eles se completam ou se

separam, confrontam-se, estreitam-se como lutadores ou como apaixonados” [13].

Sentir e pensar nos encontros

Quando se entra no jogo de conceitos de um filósofo, não é raro sentir-se

oscilando entre uma leitura extensiva, geralmente guiada por um fio condutor, desde

fios evanescentes até os marcadamente teoremáticos, e o estado problemático de uma

leitura intensiva. Neste caso, neste estado de estranha impregnação, não é raro sentir-se

ligado a um ziguezague de ritmos pelos quais transitam transpassagens de ida e volta

entre encontros conceituais e encontros vivenciais. Essas transpassagens parecem ecoar

dobras e desdobras que pulsam nessa dupla experiência de encontros, dobras quase

sempre rebeldes a fios condutores excessivamente categóricos. Parece que elas

implicam quebradiços segmentos de fios de metamorfose sensíveis às circunstâncias das

ocorrências, ao que abre jogos de forças, ao que exala tensões etc. Há uma frase dita por

Deleuze ao recordar sua infância: quando se é acordado num certo momento, a gente é

acordado por alguém. No caso dessa frase, pode-se imaginar que esse ‘alguém’ seja

Pierre Halbwach, então professor em Deauville, e que, com entusiasmo, lia aos alunos,

e a ele em particular, textos de Baudelaire, de Anatole France, de Gide... [14]

Pois bem, seria ingênuo demais perguntar pela transpassagem conceitual da

experiência desse encontro? Que houve nele para tornar necessária esta pergunta? Para

responder, é preciso perguntar ainda outra coisa, talvez por inspiração bergsoniana: será

que a memória deleuziana desse encontro esgotou-se apenas numa lembrança que o

teria retido, simplesmente, como atualidade extensiva, amortecida lá nos idos da

existência? Primeiro, ao encontrar-se com esse outro sujeito, chamado Pierre Halbwach,

percebe-se que esse outro não foi simplesmente reduzido a um sujeito falando sobre

objetos culturais; percebe-se que ele foi sentido, no próprio encontro, como uma “bela

voz” abrindo mundos literários ao jovem Deleuze, mundos que se multiplicaram em sua

vida. Aconteceu, portanto, a bela expressão vocálica de mundos literários possíveis. Isso

basta para tomar esse encontro como intensivo, o que pede o retorno daquela pergunta:

haveria, pelo menos, algum exemplo de que tal intensidade cintila em transpassagens

conceituais deleuzianas?

Sim, há mais de um exemplo. Um deles vai rápida e diretamente ao ponto de

interesse aqui. Encontra-se no cap. V de Diferença e repetição, nos parágrafos

dedicados à noção de Outrem, “sua natureza e função nos sistemas psíquicos”. Essa

dedicação buscou ir além de uma espécie de eutuismo, isto é, de retenção do par eu-tu

no rodízio dos papéis de sujeito e objeto; esse eutuismo é frequente em certo nível de

letras para música e de imagens para televisão, mas é também notado em certas “teorias”,

diz Deleuze, que vagam “de um pólo em que outrem é reduzido ao estado de objeto a

um pólo em que ele é levado ao estado de sujeito. Mesmo Sartre – que Deleuze tinha

como seu “mestre” [15] extra acadêmico – mesmo ele “contentava-se em inscrever essa

oscilação em outrem como tal, mostrando que outrem devinha objeto quando eu era

sujeito, e não devinha sujeito sem que eu, por minha vez, fosse objeto”. O problema

sentido por Deleuze é que esse tipo de rodízio mantém como “desconhecida” o que ele

chama de “estrutura d’outrem” e “seu funcionamento nos sistemas psíquicos”. Mais

precisamente: cabe pensar que os “dois sistemas” – vale dizer, “eu para o outro e o

outro para eu” – implicam um “ninguém”. Esse ninguém é justamente “Outrem a

priori”, isto é, não um palpável sujeito ou objeto, mas sim o que vibra, “em cada

sistema, por seu valor expressivo, isto é, implícito e envolvente”. Imaginemo-nos

encontrando um “rosto aterrorizado (em condições de experiência nas quais não vejo e

não sinto as causas desse terror; esse rosto exprime um mundo possível – o mundo

aterrador” [16]. Há valores expressivos produzindo-se como vibrações em certos

encontros, aqui chamados intensivos. O sentir-e-pensar deleuziano é forçado a operar

nas transpassagens entre valores expressivos, que saltam nos encontros, e junturas

conceituais que não se impõem como coordenadas, pois operam por ordenações

intensivas imantadas pelo problema que se lhes impõe. Foi dito sentir e pensar forçados.

Sim, pois essas transpassagens correspondem a uma imagem do pensamento segundo a

qual o sentir e pensar são afetados por conexões diferenciais que se lhes impõem de

fora, justamente como acontece nesse conceito de outrem como abertura de mundos

possíveis [17].

A cada instante, um problemático alvoroço de encontros vai percutindo o meio

da nossa imersão vital. Dentre as redes de linhas que nos ligam à experiência dos

encontros, duas delas gozam de um privilégio do qual filósofo algum pode livrar-se.

Trata-se de sentir e pensar. Quando Deleuze peneira conceitualmente os encontros que o

tocam, notamos que ele elabora uma singular conexão entre sentir e pensar. O que o

atrai nessa nova elaboração? O que o atrai é aquilo que determina seu destino, sua

fortuna, seu fado, sua sorte na história da filosofia: a problemática das diferenciações

complexas implicadas nos encontros. As conexões produtivas entre sentir e pensar são

decisivas nessa nova problemática. Pode-se ter uma impressão disso na simples menção

a perguntas que se impuseram: por exemplo, a pergunta pelo que « força a sensibilidade

a sentir » e pelo que « só pode ser sentido” e que é “o insensível ao mesmo tempo” [18].

São perguntas, aparentemente estranhas, que registram um novo tipo de atenção à

experiência da percussão que freme nos encontros, atenção já presente na terceira crítica

de Kant, a Crítica da razão judicativa. Essa atenção pode registrar o quanto, nos

encontros, algo percutia em cada uma dessas redes de linhas abrindo fissuras até então

insuficientemente tematizadas. A mera pluralidade dos sentidos empíricos não diz o

drama que se passa quando, ao romper a própria tecedura do sentir, uma intensidade

propaga-se como raio e vem percutir o pensar, o imaginar etc. Isto impõe a Deleuze a

tarefa de corresponder conceitualmente a essa dramaturgia das Ideias no sentir e no

pensar. A fórmula resumidora disso é esta: “eis-nos forçados a sentir e a pensar a

diferença” [19].

Então, a pergunta pelo que se passa na dobra de complicação dos encontros

aproxima-se de outra: aquela interessada no modo pelo qual certa ideia de diferença

atua nessa dramaturgia em que sentir e pensar sofrem percussões que, perpassando-os,

impõe uma revisão de suas conexões. É dito comumente que Deleuze contraria toda

uma tradição que, segundo ele, erigiu uma imagem dita “dogmática” do que significa

pensar. Num resumo abusivo, diz-se o seguinte: como “forma da representação”, essa

imagem simplifica o problema: algo impressiona nossos sentidos, nossa percepção o

apreende, e nosso pensar o representa a partir do esforço voluntário, do “exercício

natural de uma faculdade”; essa faculdade de pensar estaria por si mesma, desde o seu

íntimo, dotada de uma “afinidade com o verdadeiro”, de modo que o pensador, enquanto

tal, se caracterizaria por uma “boa vontade”, assim como seu pensamento se

caracterizaria por uma “natureza reta”, atribuindo-se os erros e desacertos a paixões, a

uma falta de métodos etc. [20]. Trata-se de reverter essa forma, essa imagem

representativa ou recognitiva que escamoteia o que efetivamente se passa quando sou

forçado a sentir, a pensar etc. E como Deleuze faz isso? Ele o faz, chamando a atenção

para a própria experiência de encontros que, disparando a sensibilidade, disparam outras

faculdades, inclusive o pensar. Recorde-se que, em aliança com Proust, ele dizia que “o

pensamento nada é sem algo que force a pensar, que faça violência ao pensamento” [21].

Isto não quer dizer que, no encontro intensivo, não haja consciência do algo

encontrado: pode ser fulano, que reconheço pelo semblante ou pela voz, pode ser

determinada favela, que reconheço por ter vivido em seu labirinto etc. Do mesmo modo,

no encontro, aquele que percebe esse algo tem consciência de o estar apreendendo com

alegria ou dor. Porém, se o encontro ficasse apenas nisso, nesse nível da consciência de

algo e na consciência dos sentimentos pessoais, então não se poderia, rigorosamente,

chamá-lo de fundamental, do ponto de vista da problemática que nos ocupa. Digamos

que um encontro desse tipo, isto é, nesse nível, é não só inevitável como necessário, útil

etc. do ponto de vista da sobrevivência, dos passeios, da vida em geral. Ele está presente

em qualquer circunstância e funciona na comum apreensão das situações. São encontros

extensivos.

Sentir e pensar de outro modo

Como o plano de organização dos encontros extensivos não esgota a

problemática dos encontros, precisamos retomar a pergunta: concretamente, que ocorre

nos encontros que Deleuze considera notáveis, encontros que põem em jogo uma outra

experiência de exercício das faculdades de sentir, de memorar, de imaginar, de pensar

etc? Num encontro dito fundamental, o que se passa é um processo complexo:

suponhamos que eu, neste aqui e agora, neste atual presente em que vivo, esteja

saboreando a qualidade sensível deste gostoso e leve bolinho chamado madalena, como

aquela de Proust, por exemplo; e suponhamos que, como Proust, esse encontro gustativo

com a madalena desencadeie em mim uma alegria tão singularmente intensa que não

posso atribuí-la apenas a isto que me foi dado neste encontro, a esta qualidade sensível

do bolinho na minha boca; assim como não posso explicá-la recorrendo a lembranças

do vivido por mim no passado. Por quê? Porque essa intensa alegria, que só pode ser

sentida, abre-me a estados aos quais sou involuntariamente lançado; impõe-me

atmosferas que transbordam situações vividas; abre-me a virtualidades que insistem

naquilo que me foi dado no encontro, mas que não aparecem no próprio dado.

Ora, um encontro desse tipo não é um encontro qualquer. Vejamos. É certo que

também aqui, como nos encontros extensivos, temos consciência dos partícipes:

ficamos alegres ou levamos um susto quando encontramos “Sócrates, o templo ou o

demônio”; e temos consciência de estarmos apreendendo a presença dessas companhias

“sob tonalidades afetivas diversas, admiração, amor, ódio, dor”. Ou seja: mesmo um

encontro fundamental comporta as séries das diferenças extensivas que, num encontro

marcadamente extensivo, são aparentemente as únicas; vale dizer: nunca estamos

totalmente livres do “senso comum”, de modo que nos nreconhecemos contentes ao

saborear a madalena, que ela é um “sensível na recognição”, isto é, que conta com o

acordo pelo qual os sentidos (visão, paladar etc), em seu exercício empírico, reportam-

se a um “objeto” (a madalena) “que pode ser lembrado, imaginado, concebido”. De

repente, porém, a intensidade da alegria percute nas linhas do sentir, escapa das ligações

recognitivas comandadas pelo senso comum, com o que as linhas do pensar são também

percutidas, pondo em nocaute o voluntarismo e a boa vontade do pensador. E até uma

lágrima pode saltar, forçando-nos a perguntar pelo que se passa nesse estranho instante

que lanceta passado e futuro simultaneamente.

Paradoxo: a filosofia é um modo de pensar por conceitos, mas o pensamento não

seria suficiente, por si, para chegar à necessidade do que é pensado ou à própria

necessidade de pensar. O que é preciso ocorrer para que haja essa dupla necessidade?

Eis como Deleuze encaminha a resposta numa frase que escancara sua filosofia à

intromissão do fora produtivo, isto é, não à simples exterioridade de encontros

extensivos, mas ao surpreendente acaso de encontros intensivos: “não contemos com o

pensamento para assentar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao

contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de

realçar e erigir a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar”. É

o cuidado com essa abertura aos encontros que justifica o combate pela “destruição da

imagem de um pensamento que pressupõe a si próprio” e que se julga capaz de fixar um

fundamento das coisas. E uma outra afirmação acrescenta mais um ponto nesse combate:

“há no mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro

fundamental e não de uma recognição”.

Intensificar

Primeiro, não sabemos ainda como opera esse algo. Por isso, não antecipamos o

seu nome. Mas, pela frase, desconfiamos que essa alguma coisa não se esgota como

objeto para o pensamento de um sujeito pronto e recognitivo, já que é posta como

objeto de um encontro fundamental. Por que fundamental? Porque, em primeiro lugar,

como foi dito, esse estranho objeto cintila, percute nas linhas do sentir. Essa percussão é

tal que o vetor determinante nessas linhas deixa de ser aquele dominado pelo senso

comum, ou seja, não é mais aquele do seu exercício empírico (exercício ordinário,

embora importante), aquele pelo qual a qualidade sensível do dado é recebida pelo

sentido (a simples doçura da madalena atiçando o paladar); o vetor agora determinante é

o da “sensibilidade” elevada à “enésima potência”, sensibilidade que nasce

momentaneamente nas linhas do sentir, que nasce por força do que provocou a percussão

e daquilo que nela ressoa, ressonância que insiste no dado, embora não apareça

como o dado (a intensidade da alegria, no exemplo da madalena de Proust). É a esse

estranho objeto de um encontro fundamental que Deleuze dá o nome de “signo” [22].

Por que sempre se diz que esse objeto, o signo, é estranho? Primeiro, ele não é

objeto para um sujeito, mas objeto de um encontro fundamental. Segundo, ele é dito

estranho por uma razão aparentemente simples, mas que mostra a preocupação

humiana, nietzschiana etc. de Deleuze, a de colocar seus conceitos a serviço do caso, do

caso na radicalidade dele: então, se algo não suscitar alguma estranheza na própria

experiência empírica de encontrá-lo, já não posso conceituá-lo como signo. Com efeito,

se submeto esse algo a uma identificação na situação do encontro, se o tomo como

semelhante a seja lá o que for, se o confronto com outra coisa que penso ser-lhe oposta

ou se enuncio uma analogia entre ele e outro fenômeno, então esse algo já estará de

antemão enredado por macro-operações que o submetem ao meu senso comum, ao meu

poder (ilusório ou não) de representá-lo, às minhas agilidades retóricas etc. Eu o submeto

à imagem representativa do pensamento, ao grande jogo dessa “quádrupla sujeição”,

diz Deleuze, “em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante,

análogo e oposto”, esses quatro guardiões da representação [23]. Mas quando a

estranheza de algo me pega, sinto sem esoterismos a fragilidade desse poder de

sujeitar e de fazer de cada coisa um diverso no meio de outros, ou de tomá-la como

parte de um funcionamento extensivo ou discursivo qualquer etc. Então, ela me pega

como signo, provocando variações em meu poder de ser afetado, forçando-me a sentir, a

memorar, a imaginar... a pensar de outro modo, quer dizer, sem o apoio dos dispositivos

de simplificação dos meus encontros, dispositivos de fixação de identidades, de

semelhanças, de oposições e de analogias.

Na reconstrução conceitual deleuziana, o próprio encontro é pensado como

conexão complexa, uma conexão que comporta linhas heterogêneas. Conforme o que se

passa na multiplicidade das linhas, o próprio encontro varia: é marcado como extensivo,

quando as diferenças empíricas são dadas a afecções e percepções que o pensamento

representa por meio de categorias sobrepostas; mas ele pode ser marcado como encontro

intensivo, quando “fluxos de intensidades” passam pelas linhas. Experimentados como

vibrações de “corpos sem órgãos” [24], esses fluxos abrem afectos e perceptos, isto

é, outros modos de sentir e perceber, e disparam no próprio pensar um “pensamento

por demais intenso” [25], lançado num “trabalho rizomático” em meio a “percepção de

coisas, de desejos”, em meio a “percepções moleculares”, ‘”micro-fenômenos’”,

‘”micro- operações’”... um “mundo de velocidades e de lentidões sem forma, sem

sujeito, sem rosto”, mobilizado pelo “ziguezague de uma linha” ou pela “’correia do

chicote de um carroceiro em fúria’” [26].

Por isso, a cada vez, por força da própria experiência de encontros, essa filosofia

reanima-se com retomadas e variações. Não se trata, simplesmente, de macro

deslocamentos conceituais entre disciplinas filosóficas. Variam, isto sim, as sondagens

dos matizes do sentir e pensar, o que refina a apreensão da própria atividade noológica

investida neste ou naquele caoide. Com efeito, ao mesmo tempo em que afirmam que o

“essencial” está nas “forças, nas densidades e nas intensidades”, e não “nas formas e nas

matérias”, é preciso entender o seguinte: a seleção valorativa do intensivo ressoa com

uma tendência filosófica “moderna”, esta “idade do cósmico”, dizem. Pois bem, em

Deleuze e Guattari, essa tendência quer exigir mais do próprio ato de pensar. Por quê?

Porque se trata de “elaborar material de pensamento” para captar “forças não pensáveis

em si mesmas”. O “problema” filosófico dessa tendência não é o de um “começo” e

muito menos o de uma “fundação-fundamento”. Trata-se, isto sim, de um “problema de

consistência ou de consolidação: como consolidar o material, torná-lo consistente, para

que ele possa captar”, no plano de imanência que ele erige à medida que traça seus

conceitos, “essas forças não sonoras, não visíveis” e até “não pensáveis?” Neste ponto,

esta filosofia retoma seus encontros dionisíacos com as artes. Dionisíacos, porque não

se trata simplesmente de uma comunicação extensiva entre conceitos dominadores e

fragmentos de arte postos a serviço de teses filosóficas. Trata-se de uma comunicação

por encontros intensivos. Pode-se falar que esses encontros intensivos são encontros

entre Ideias, mas desde que se compreenda uma Ideia na imanência do seu estado

problemático, na imanência dos dramas que a ocupam como dinamismos espacio-

temporais. É o efeito de uma comunicação entre Ideias que se nota nas passagens dessa

filosofia pelas artes, como acontece nesta passagem de Mil platôs: “Mesmo o ritornelo

devém ao mesmo tempo molecular e cósmico, Debussy... A música moleculariza a

matéria sonora, mas devém, assim, capaz de captar forças não sonoras como a Duração,

a Intensidade. Tornar a Duração sonora. Lembremo-nos da ideia de Nietzsche: o eterno

retorno como pequena cantilena, como ritornelo, mas que capta as forças mudas e

impensáveis do Cosmo. Saímos, portanto, dos agenciamentos para entrar na idade da

Máquina, imensa mecanosfera, plano de cosmicização das forças a serem captadas”

[27]. Para não estranhar essa referência à duração como força, convém lembrar que

esse conceito bergsoniano remete ao que “só se divide mudando de natureza” [28].

Empregamos a palavra intensidade, pressupondo que ela diga respeito a um

conceito, mas não temos ainda uma ideia dele. Sabemos que ele opera na determinação

do signo como aquilo que, intensificando o sentir, nos força a pensar. E já devemos

destacar um detalhe. Dizer que ele nos força a pensar já é dizê-lo portador de uma

“conexão da força com a força”. Essa conexão, ou cruzamento de forças, implica “o

elemento diferencial da força” (força dominante / força dominada) que Deleuze, em

seus encontros com Nietzsche, liga à ideia de “vontade de potência” [29]. Afirmar que

esse elemento diferencial é a nietzschiana vontade de potência quer dizer o seguinte: é

como elemento diferencial que essa vontade está “em seu mais elevado grau”, em “sua

forma intensa ou intensiva” [30]. É como “princípio ‘intensivo’”, como “princípio

de intensidade pura”, que a ideia de vontade de potência se desprende do “gosto”

nietzschiano pela energética, do interesse pela física das “quantidades intensivas”, e

opera na ideia de um diferenciador da diferença e de um critério de seleção dos

encontros, seleção duplamente orientada: tanto na direção de uma ética, como veremos,

quanto em prol de um pensar mais exigente, pois que coligado ao esforço por

“desprender a forma superior de tudo o que é”, ou seja, “a forma de intensidade” [31].

No caso do signo, sua forma superior (a que não se reduz às qualidades sensíveis

de uma de suas faces) é justamente aquela pela qual a intensificação do sentir força o

ato de imaginar, de pensar etc. Por que isso ocorre? Por que se desprende essa forma

intensiva superior? Nessa filosofia, não podemos buscar a causa dessa superioridade

num transcendente externo ou interno ao sujeito pensante. Então, temos de buscar na

própria imanência dos encontros a operação pela qual as diferenças disparam por

intensificação. Nessa imanência dos encontros, qualquer coisa pode ser signo, desde

que, no próprio encontro, opere um sistema de diferenças ou de diferenciações

complexas em que haja uma disparação intensiva. Algo é signo quando ocorre por

disparação num “sistema dotado de dissimetria”, num sistema em que há “disparatadas

ordens de grandeza”. Deleuze diz ainda que o signo (ou o fenômeno) “fulgura no

intervalo” dos “disparates”, pondo aí a vibrar uma estranha “comunicação”.

Propriamente falando, o “signo é um efeito” no encontro de séries divergentes, efeito

composto de “dois aspectos: um pelo qual, enquanto signo” (propriamente dito) “ele

exprime a dissimetria produtora; o outro” (seu aspecto de dado atual) “pelo qual ele

tende a anular” a própria dissimetria produtora [32]. É sob este último aspecto que

ele ainda deixa um flanco aberto a macro-apropriações redutoras do seu impacto,

como quando se diz que aquela intensa alegria proustiana, no exemplo já referido, remetia

tão só a complicados efeitos de encontros extensivos ocorridos no passado vivido.

Nos encontros extensivos, o vivido quer dizer apenas “qualidades sensíveis”. Mas,

quando disparado, o vivido quer dizer “o ‘intensivo’” numa processualidade em que

primam devires, “passagens de intensidade” [33]. Por implicar intensificações e

passagens de intensidade em fluxos e cortes de fluxos (“já que cada intensidade está

necessariamente em conexão com outra, de tal modo que alguma coisa passe”), o “estado

vivido” não é necessariamente “subjetivo” e nem “individual”, mas pleno desse

“movimento”, ou “jogo”, que é o das “intensidades, das quantidades intensivas”, como

outros também “viram” [34].

Disparação intensiva

Depois de anotar esses pontos da teoria deleuziana do signo, tendo grifado o

jogo dos encontros, reteremos o seguinte: em cada caso pensado, Deleuze encontra a

necessidade e os meios de sua criação filosófica na disparação de encontros intensivos.

O paradoxal centro nervoso dessa disparação é uma síntese de linhas heterogêneas, é

uma síntese disjuntiva. Paradoxal, porque, em cada caso, a articulação disparadora é

ameaçada por bordas grudadas à própria síntese: de um lado, são bordas que entulham

os encontros extensivos com um excesso de opiniões e de comunicativismo irrisório; de

outro, são bordas que trazem para muito perto a caótica das intensidades, que, todavia,

não podem ser simplesmente suprimidas, sob pena de não se estar à altura da

problemática da diferença. Por isso, para Deleuze, “falar da criação” é estar “traçando

seu caminho entre duas impossibilidades” [35]. Por um lado, não é possível levar a crítica

da representação a ponto de simplesmente suprimir o extensivo. Por outro lado, se o

acaso é o mais necessário, então, nos encontros, as articulações criativas precisam das

intensidades, mesmo com a ameaça de sua caótica: “dir-se-ia que a luta contra o caos” é

inseparável de certa “afinidade” com este “inimigo”, pois ficar na mesmice já é perder a

luta [36].

Que nome dar ao estranho ato que ecoa nas articulações cuidadas por essa

filosofia em seus encontros? É o mesmo do qual os signos são feitos. É também ele que

encontramos na construção de todos os conceitos deleuzianos. E nada existiria ou

apareceria sem o paradoxal contágio mútuo dos heterogêneos, sem essa conexão dita

síntese disjuntiva, sem esse impalpável díspar, portanto. Desde o bom encontro teórico

de Deleuze com a renovação do problema da individuação por Gilbert Simondon,

díspar aparece, e “sem a condição de um mínimo de semelhança entre as séries”;

aparece como “’precursor sombrio’”, estabelecendo “comunicação” intensiva entre

“séries díspares”, desencadeando “acoplamentos, ressonâncias internas”, “movimentos

forçados”, assim como a “constituição de eus passivos e de sujeitos larvares no sistema,

e a formação de puros dinamismos espacio-temporais” etc. [37]. Díspares também

operam como “elementos últimos do inconsciente” [38]. Díspar aparece como “elemento

paradoxal que percorre as séries” divergentes, fazendo-as “ressoar, comunicar e

ramificar”, e ainda comandando “a todas as retomadas e transformações, a todas as

redistribuições”; isto faz com que Deleuze o pense, nesse momento, como o “lugar de

uma questão” numa conexão especial com a ideia de problema: “o problema é

determinado pelos pontos singulares que correspondem às séries, mas a questão [é

determinada] “por um ponto aleatório que corresponde à casa vazia, ao elemento

móvel”, sendo que o complexo questão-problema (que está no paradigma do par virtual-

atual) caracteriza o “modo do acontecimento” como “problemático” [39]. Pensar díspar

como lugar de uma questão é uma fórmula retomada de outro modo em Mil platôs.

Trata-se de uma nova incidência no sistema conceitual deleuziano. No platô

denominado “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, Deleuze distingue as

ciências “teoremáticas” (geometria euclidiana, por exemplo, voltada para as

“constantes”) das ciências “problemáticas” ou “nômades” (como a geometria

arquimediana). Díspar opera fortemente nessa distinção [40]. O que aí notamos é um

desdobramento de díspar como operador de liberações, como disparação de estados

intensivos, estados que aguçam no aprendiz o estar à espreita da disparada de linhas de

fuga. Esse desdobramento era como que previsível desde o emprego de uma

“tautologia” que definia díspar como “diferença de intensidade”. Tautologia, porque

“toda intensidade é diferencial, é diferença em si mesma”. Há um diferenciar

“infinitamente desdobrado” em mudanças de fases ou estados que, citando Rosny,

Deleuze anota como sequência de proliferações de encontros quebradiços: “toda

intensidade é E-E’, em que o próprio E remete a e-e’, e e’ remete a ε- ε’ ...” [41].

Como paciente dos encontros intensivos, como sujeito larvar do seu próprio

sistema, mantendo-se à espreita dos díspares, é que o pensador pode vir a ter o que

pensar e a criar com seus conceitos e seus macro e micro encontros com intercessores

as variações que correspondam aos problemáticos dinamismos espacio-temporais não

submetidos a uma forma prévia. Pode-se dizer que essa intensificação do pensar implica

uma “involução” a sínteses passivas. Implicaria uma “regressão” que não remontasse

“a um princípio” [42]. É que “a ‘regressão’ é mal compreendida enquanto não se vê nela

a ativação de um sujeito larvar imerso em sensações, único paciente capaz de sustentar

as exigências de um dinamismo sistemático” [43]. Implicando disparações, esse duplo

movimento corresponde a um problema que circula pelo sistema deleuziano, problema

fecundado justamente pela complexidade dos encontros, mas que também percute na

própria elaboração dos conceitos [44].

Um problema desse tipo cria uma boa conexão entre o filósofo Deleuze e o

animal não edipianizado. Por exemplo, a idéia de marcar um “território”, este “domínio

do ter”, situação que nos diz respeito, mas que já concernia os animais. Implicando uma

miríade de matizes na multiplicidade de encontros, marcar um território não se reduz a

funcionalidades. É que, por meio de “posturas, cantos, cores”, são atingidas linhas de

uma “arte em estado puro”. Além disso, um “território só vale em relação a um

movimento através do qual se sai dele”. Ou seja, não há território sem

“desterritorialização”, isto é, sem que pulse nos encontros “um vetor de saída do

território; e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo

tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”. E os animais participam

disso, porque “emitem signos” e “reagem a signos”, e “produzem signos”. E tanto

quanto o “escritor” e o “filósofo”, o animal em seus encontros “é o ser à espreita, um ser

fundamentalmente à espreita” [45], à espreita de novos encontros, sem os quais a

desterritorialização se reduziria à mera mudança de domicílio.

Percorrer encontros conceituais

Como percorrer os encontros conceituais deleuzianos? Esta pergunta não é

meramente didática e só dirigida aos que nunca leram algum escrito desse filósofo.

Como não deixa de ser uma questão de variável gosto filosófico, ela sempre retorna a

cada texto lido por um iniciante ou relido por um experimentado pesquisador. Não é o

caso de apresentar um guia turístico que dê a ela uma resposta. Trata-se de buscar aquilo

que pulsa em qualquer detalhe dessa filosofia interessada na experiência da complexidade

dos encontros: a pulsação díspar como operação amortecida ou proliferada nos

encontros e implicada na criação dos próprios conceitos deleuzianos. Como elemento

sem identidade, a pulsação díspar gera no aprendiz a sensação de que o sistema

deleuziano é um labirinto. E a pergunta retorna: não encontraríamos por aí uma espécie

de fio de Ariadne, como aquele que guiou Teseu na labiríntica aventura em que venceu

o monstro?

Em filosofia, digamos que o monstro é o pensamento do filósofo... monstro, sim,

por razões que ele recria a seu modo, que não nos confirmam em nossas opiniões, nem

mesmo naquelas baseadas em outros filósofos. A monstruosidade aparece na forma de

velozes e intempestivos encontros de noções, ideias afiadas num afã de se distinguirem

umas das outras, mas que se dedicam, ao mesmo tempo, a se ajudarem mutuamente em

estranhas concatenações. Só quando a leitura se sente afirmativamente afetada por uma

força nascida do seu encontro com o texto, é que o estudioso percebe que não precisa

matar o monstro, mas impregnar-se dele, juntar-se às suas travessias e até travessuras e,

com isso, vencer em si mesmo seu inevitável estado de lentidão ou aqueles borrifos de

precipitação. Isto quer dizer que o fio de Ariadne não nos espera à porta do labirinto

deleuziano. Por que?

Referindo-se à literatura, Deleuze conecta a "obra de arte moderna", essas "obras

problemáticas", ao "abandono da representação", passando a ser decisiva uma

importante questão presente em sua filosofia: a da construção de um sistema de

diferenças irredutíveis a um centro ou a uma convergência. Nota-se, nesse momento,

sua aliança com Umberto Eco em torno do “problema da Obra Aberta” [46]. Ele se

alia para dizer que “a obra de arte 'clássica' é vista sob várias perspectivas e está sujeita

a várias interpretações, mas que a cada ponto de vista ou interpretação não corresponde,

ainda, uma obra autônoma, compreendida no caos de uma grande-obra. A característica

da obra de arte 'moderna' aparece como a ausência de centro ou de convergência"

[47] . Achamos que também a filosofia deleuziana está em ressonância com a

modernidade de obras de arte assim caracterizadas, pois ela própria implica um princípio

de proliferação intensiva de leituras, proliferação que acaba corroendo centros e

convergências em proveito de uma coexistência intensiva que nos põe em ziguezague

[48].

Mas que tem isso a ver com o termo ‘labirinto’? Pois bem, esse termo

acompanha o nome de um dos operadores dessa proliferação, nome que Umberto Eco

emprega ao escrever o Pós-Escrito ao seu romance O Nome da Rosa. Ele determina três

tipos: o "labirinto clássico", de Teseu, mas que é também o de Sherlock Holmes,

percorrido com o auxílio do "fio de Ariadne", comportando "entrada para o centro" e

caminho do "centro para a saída"; há o "labirinto maneirista", estruturado como "árvore",

em "forma de raízes com muitos becos sem saída", comportando "uma só saída" e

também carecendo do socorro de um fio condutor. Por fim, diz ele, há “aquilo que

Deleuze e Guattari chamam de rizoma". Neste labirinto “cada caminho pode ligar- se

com qualquer outro", não havendo "centro", "periferia" ou "saída", por ser ele

"potencialmente infinito". Diríamos que a pulsação díspar dispara nele uma ilimitação

por efeito de fragmentações e conexões de heterogêneos. Eco rizomatiza o “mundo em

que Guilherme" (uma das personagens) "pensa viver”, mundo “estruturado em forma de

rizoma: ou melhor, estruturável, mas nunca definitivamente estruturado"[49].

Sem a lógica de Sherlock Holmes, Guilherme, que investiga assassinatos num

mosteiro medieval, pratica uma espécie de lógica do e, pois ele é o personagem que

insiste como abertura acolhedora de uma série de escolhas possíveis, a tal ponto que sua

busca se complica numa prática rizomática só resolvida ao acaso dos encontros. É que

“o rizoma”, tal como a conjunção “e”, não é precisamente uma coisa, mas um “inter-

ser”, uma mobilidade entre coisas, salto que “conecta um ponto qualquer com qualquer

outro ponto, e cada um dos seus traços não remete necessariamente a traços de mesma

natureza”, podendo por “em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados

de não-signos”. Ao contrário da “árvore”, o rizoma é irredutível ao Uno e ao múltiplo;

ele “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças”.

Rizomatizar implica disparações e a tarefa de “mapear” multiplicidades substantivas.

Então, para que o rizoma seja “modelo” dinâmico destas, é também preciso que

rizomatizar comporte operações de disparação que levem o mapeamento a se aliar

àqueles componentes que, presentes nas multiplicidades dos encontros, possam romper

os processos que concorrem para o bloqueio delas, processos que são também

produzidos nelas mesmas. Por comportar esse tipo de operação, é que os autores podem

dizer que o rizoma “não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele

cresce e transborda”[50]. Aí está o produtivo e paradoxal funcionamento teórico-prático

do rizoma: o modelo que mapeia dobra-se em operações que mudam a natureza do

mapeado.

E se o desejo, como querem Deleuze e Guattari, é a potência desse meio, é

porque ele próprio se define, não pela falta de algo, mas como “princípio imanente” de

uma produtividade complexa. Essa produtividade, tão natural quanto artificial, é a de

um produzir que se reitera diferentemente, uma surpreendente maquinação do fora, um

“produzir sempre o produzir”, que vem a ser, justamente, a “regra” imanente das

“maquinas desejantes” [51]. O ponto de vista que procuramos para vislumbrar a potência

dos encontros nessa filosofia, o ponto díspar, não pode ser indiferente ao modo como

essa regra opera na própria escrita deleuze-guattariana, regra que não deixa de invadir

também a proliferação de textos envolvidos com essa filosofia, regra que é também

aquela do gosto, como veremos mais adiante.

É interessante notar como Deleuze vê seu próprio esforço de criação conceitual.

Desde um manuscrito seu dos anos cinquenta 52

, o que já se impõe a ele é uma ideia de

“re-criação”, de “re-começo”, pois o próprio começo já se encontra em estado de

dinamismos espacio-temporais, como um “ovo irradiante”. Seus escritos são rebeldes à

tristeza das simplificações praticadas pela grosseria das generalidades e até pelos

dispositivos de uma representação promotora de identidades, semelhanças, oposições e

analogias. A atmosfera desses escritos parece corresponder ao que eles valorizam: “um

meio fino de perspectivas encavaladas, de distâncias, de divergências e de disparidades

comunicantes, de potenciais e de intensidades heterogêneas”, pois “não se trata,

primeiramente, de resolver tensões no idêntico, mas de distribuir díspares numa

multiplicidade” [53] . O conjunto dos seus escritos é rico em passagens que

comprovam seus encontros co-criativos com artes e outros pensadores. Ele diz que “os

intercessores são o essencial”, que a “criação implica os intercessores”, pois “não há obra

sem eles”. Não podemos tomar essas afirmações apenas como homenagem a

influenciadores que teriam propiciado a ele algo importante ao seu ter o que dizer. Se ter

o que dizer já está ligado à exposição de si a um campo problemático, a encontros

intensivos, a coisa ganha mais uma dimensão de intensidades quando se trata de poder

dizer o que se tem para dizer. É tomado pelas tensões desse entremeio que Deleuze fica

à espreita de seus intercessores. E são as tensões próprias do discurso indireto livre

de Deleuze, tão fortemente salientado por Zourabichvili, que se evidenciam nesta frase

de Pourparlers: “ ‘dei-me intercessores, e é assim que posso dizer o que tenho para

dizer’ ”[54]. Os intercessores são vetores intensivos que um poder de ser afetado

seleciona em seus encontros com aquilo que o força a sentir e pensar; são como

lances rítmicos que fecundam esse poder, poder que, duplamente afetado, devém

transeunte, passageiro capaz de vagar entre o ter ganho o que pensar e o dizer o que

ganhou.

O gosto na elaboração conceitual dos encontros

Um encontro intensivo basta para que um filósofo seja forçado a pensar; nesse

encontro ele se sente invadido por um ter o que pensar e, assim, por um ter o que dizer;

e outros encontros (mais ou menos intensos) propiciarão a ele intercessores decisivos

para o seu poder dizer o que afetou seu pensamento. Pois bem, Deleuze e Guattari

discernem algumas operações atuantes entre esses componentes do processo criativo de

conceitos filosóficos. Considere-se, por exemplo, a operação que consiste em nomear

um conceito, seja qual for. É suficiente manusear um dicionário de filosofia para notar o

gosto filosófico por distinções que dão testemunho de variações aparentemente

rebuscadas, mas que comprovam que nunca se tem a mesma coleção de encontros, o

mesmo mundo na ponta das dicções diferenciadas. Em suma, nunca se tem plena

consciência da atmosfera que envolve o batismo de um conceito. Como conceituar essa

atmosfera? Que está implicado na simples denominação de um conceito? A resposta dos

autores leva o batismo a se encontrar com algo mais: "O batismo do conceito solicita

um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação, e que

constitui na língua da filosofia não só um vocabulário, mas uma sintaxe que alcança o

sublime ou uma grande beleza"[55].

Se um gosto filosófico está implicado até na denominação dos conceitos, cabe

perguntar: em quais operações filosóficas ele atua? Como os autores finalmente

caracterizam sua função nessas operações? Entre as grandes operações filosóficas

destacadas em Que é a filosofia?, há uma dedicada a inventar, a fazer viver

personagens, ditos personagens conceituais (ou personagens pró-filosóficos) ricos em

traços personalísticos. Essa operação, chamada operação de insistência, parece ser, à

primeira vista, dado seu vigor imaginativo, a que esgotaria ou a que mais absorveria os

investimentos do gosto filosófico. Aliás, um dos exemplos levados em conta pelos

autores parece ir nesse sentido: é que o gosto está acentuadamente ativo na ligação que

o exemplo exibe entre imagens de encontros vivenciais privilegiados por um filósofo e

pesadas teses intrínsecas à filosofia dele; o filósofo, nesse caso, é Espinosa, e o encontro

vivencial tem seu aspecto anedótico deslocado, filtrado por uma apreensão estritamente

filosófica como esta: "o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas" se justifica

porque eles "reproduzem, de maneira pura, conexões de modos no sistema da Ética " [56].

Esse é um belo exemplo de aranhas-em-combate devindo personagem conceitual.

Essa operação de insistência -- operação inventiva de personagens conceituais

com seus traços personalísticos -- "intervém", dizem os autores, tanto entre a caótica das

variabilidades e os "traços diagramáticos do plano de imanência", quanto entre este e os

"traços intensivos dos conceitos que vêm povoar" esse plano. Isto quer dizer que a

insistência atua entre as duas outras grandes operações filosóficas, com as quais ela

completa o trio de "elementos" constitutivos da filosofia: a operação de imanência, pela

qual os investimentos conceituais vão traçando o plano de imanência pleno de traços

diagramáticos; finalmente, mas simultaneamente, tem-se a operação de consistência de

uma filosofia, que é a de criar os conceitos filosóficos plenos de traços intensivos

imantados pelo problema a que correspondem.

Pois bem, que vem a ser o gosto filosófico nesse conjunto? Como não se pode

deduzir alguma dessas operações das demais, sendo mesmo "incomensuráveis as

conexões entre elas", é preciso, dizem os autores, "uma co-adaptação das três". O gosto

vem a ser, então, "essa faculdade filosófica de co-adaptação, e que regra a criação dos

conceitos" [57]. Pouco acima, acompanhando de certo modo o termo díspar, vimos

o termo regra caracterizando o regime das máquinas desejantes como produzir sempre

o produzir. Agora, no presente caso, que se deve entender por esse regrar a criação

de conceitos?

Primeiro, "o gosto aparece como a tríplice faculdade do conceito ainda

indeterminado, do personagem ainda nos limbos, do plano ainda transparente". Já nesse

estado nascente, o gosto não aparece como instância sobreposta, regrando de cima

alguma coisa. Por que? Porque "é preciso criar" (conceitos), "inventar" (personagens

conceituais) e "traçar" (o plano), de modo que o gosto aparece como regra, sim, mas

"regra de correspondência das três instâncias" (produtivas, diríamos) "que diferem por

natureza". Os autores deixam bem claro que o gosto filosófico é irredutível a uma

"faculdade de medida". Eles levam o gosto filosófico a aparecer como "amor do conceito

bem feito", o que não quer dizer "moderação do conceito", mas algo como um "relance",

uma "modulação".

Finalmente, um dos cuidados sugeridos é não imaginar que o gosto filosófico

substitua a criação dos conceitos ou a modere. Ao contrário, dizem os autores, "é a

criação dos conceitos que faz apelo a um gosto que a modula". Por que isso acontece?

Simplesmente porque "a livre criação de conceitos determinados tem necessidade de um

gosto do conceito indeterminado". Isso implica, certamente, a atmosfera de encontros

intensivos forçando o sentir, o pensar, o imaginar..., de maneira que o gosto, enquanto

gosto filosófico, aparece como o conceito em estado potencial, como "o ser-em-potência

do conceito". A consequência disso é reafirmar que o conceito "não é criado por razões

'racionais' ou razoáveis".

Cada filósofo efetua o gosto filosófico no estilo ou estilos que o caracterizam

neste ou naquele estado de suas operações. Cada estilo comporta construções frásicas

que estão ao alcance do filósofo; essas construções dependem de procedimentos que se

distinguem tanto de um filósofo para outro quanto em escritos de um mesmo filósofo.

Efetuado neste ou naquele estilo, o gosto filosófico jamais deixa sem rastros o estado de

"crise permanente" em que "a filosofia vive". Crise, sim, porque, afetadas pelos

encontros, as operações que o gosto junta como pode são as de um "plano que opera

por abalos", de "conceitos que procedem por saraivadas" e de "personagens que

procedem por solavancos" [58].

Mas é justamente esse emaranhado de dificuldades que excita o interesse prático

e teórico por uma complexa pedagogia do conceito.

Ética nos encontros

A filosofia deleuziana, essa filosofia da experiência dos encontros, propende a

uma especial produtividade ética, aquela que desata proliferações intensivas de bons

encontros. Deleuze quer isso, acreditando que “não há obra que não indique uma saída

para a vida, que não trace um caminho entre as pedras” [ 5 9 ] . É possível afirmar

que Deleuze toma como bom encontro o que ele ajuda a extrair dos seus bons

encontros com Nietzsche e Espinosa.

Com efeito, a nietzschiana vontade de potência é díspar, é elemento diferencial

numa conexão de forças quando está em seu mais elevado grau, em sua “forma intensa

ou intensiva”. Nesse estado intensivo, que a distingue de uma vontade de poder, ela

força o pensar a “desprender a forma superior de tudo o que é”, ou seja a “forma de

intensidade”, como vimos. Porém, ela também atua como critério de seleção dos

encontros ao promover uma postura ética: esta “não consiste em cobiçar e nem mesmo

em tomar, mas em dar e em criar”; é para ela que Zaratustra encontra o “verdadeiro

nome”: em sua forma intensa, a vontade de potência “é a virtude que dá” [60]. Espera-

se que pulse nessa virtude o que sugere o imperativo ético nietzschiano: “elevar o que

se quer à última potência, à enésima potência”. O problema ético se repõe no movimento

das intensidades, impondo-se um cuidado com o “jogo das intensidades baixas e

intensidades elevadas”, “a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar a mais

elevada e mesmo ser tão elevada quanto a mais elevada, e inversamente” [61].

Da Ética de Espinosa, este caso de amor extremado, Deleuze recolhe uma

etologia. Isto quer dizer, grosso modo, que a distinção dos bons e dos maus encontros,

dispensando as prescrições transcendentes da moral, passa a depender do que ocorre em

duas ordens de dimensões: aquela em que os entes vivem a experiência da maneira

como suas respectivas conexões constitutivas se compõem ou não em seus movimentos

e repousos e em suas velocidades e lentidões (longitude); e aquela em que, nas suas

mútuas conexões, vivem a experiência do aumento ou diminuição da sua “força de

existir” e do seu “poder de ser afetado” (latitude), a experiência do que se passa,

portanto, em seus “estados intensivos”, experiências que eles expressam em paixões

alegres ou tristes [62] estes afectos que afloram como vida na etologia dos seus encontros.

Conclusão

Peço ao eventual leitor, encarecidamente, que volte a ler o prólogo destas

anotações.

Atenciosamente

Lista das anotações

Prólogo

Experiência e filosofia

Reencontro com o aqui-e-agora

Pluralidade de encontros

Sentir e pensar nos encontros

Sentir e pensar de outro modo

Intensificar

Disparação intensiva

Percorrer encontros conceituais

O gosto na elaboração conceitual dos encontros

Ética nos encontros

Conclusão

Luiz B. L. Orlandi.

Notas 1 Esse resumo depende de passagens pelas seguintes obras de Gilles Deleuze: Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, pp. 383-389; Spinoza et le problème de l’expression. Paris : Minuit, 1968, 162 ; e pela obra de Deleuze e Félix Guattari Mille plateaux. Paris : Minuit, 1980, p. 31. É preciso lembrar que é a essas passagens que François Zourabichvili faz uma referência preciosa em Deleuze. Une philosophie de l’événement. Paris: PUF, 2ª ed. 2004, p. 84. 2 Jean-Paul Sartre, Situations I. Paris: Gallimard, 1947. 3 G. Deleuze, Zpinoza – Philosophie pratique, cap. VI, “Spinoza et nous” (1981), p. 171. 4 G. Deleuze, Différence et repetition, op. cit., pp. 221 e 187. 5 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (“The time is out of joint”). 6 G. Deleuze, “Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne” (1986). Ver G. Deleuze, Critique et clinique. Paris : Minuit, 1993, pp. 40-49. Ver também G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?. Paris : Minuit, 1991, Exemplo 1, pp. 29-31. 4 G. Deleuze, Différence et repetition, op. cit., pp. 221 e 187. 5 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (“The time is out of joint”). 6 G. Deleuze, “Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne” (1986). Ver G. Deleuze, Critique et clinique. Paris : Minuit, 1993, pp. 40-49. Ver também G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?. Paris : Minuit, 1991, Exemplo 1, pp. 29-31. 7 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 3. 8 François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze. Paris : Ellipses, 2003, Introdução, item 2. 9 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, op. cit., pp. 186, 187. 10 Em Ave, Palavra (12/20), voltiginoso é um intensificador que Guimarães Rosa põe em companhia de peresperto numa expressão que diz uma visão de colibris: “depois, mudam com a luz, bruxos pretos, uns sacis de perespertos, voltiginosos, elétricos, com valores instantâneos”. Cf. Nilce Sant’Ana Martins, O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001. 11 Eis a primeira regra que Deleuze extrai de Henri-Louis Bergson (1859-1941): “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas”. Le Bergsonisme. Paris : PUF, 1966, p. 3. 12 G. Deleuze, Empirisme et subjectivité. Paris : PUF, p. 109-110. 13 G. Deleuze, “Ce que la voix apporte au texte” (1987) – em Deux régimes de fous, Paris: Minuit, 2003, p. 303. 10 Em Ave, Palavra (12/20), voltiginoso é um intensificador que Guimarães Rosa põe em companhia de peresperto numa expressão que diz uma visão de colibris: “depois, mudam com a luz, bruxos pretos, uns sacis de perespertos, voltiginosos, elétricos, com valores instantâneos”. Cf. Nilce Sant’Ana Martins, O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001. 11 Eis a primeira regra que Deleuze extrai de Henri-Louis Bergson (1859-1941): “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falsos

problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas”. Le Bergsonisme. Paris : PUF, 1966, p. 3. 12 G. Deleuze, Empirisme et subjectivité. Paris : PUF, p. 109-110. 13 G. Deleuze, “Ce que la voix apporte au texte” (1987) – em Deux régimes de fous, Paris: Minuit, 2003,p. 303. 14 Cf. G. Deleuze, Logique du sens. Paris : Minuit, 1969, apêndice II, pp. 350-372. 15 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 185. 19 G. Deleuze, Différence et répétition, p. 293. 20 G. Deleuze, Différence et répétition, p. 171. 21 G. Deleuze, Proust et les signes. Paris : PUF, 1976, p. 117. 22 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 182. 23 “O Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte destes elementos e a unidade de todas estas faculdades: eu concebo, eu julgo, eu imagino, eu me recordo, eu percebo - como os quatro ramos do Cogito. E, precisamente sobre estes ramos, é crucificada a diferença. Quádrupla sujeição, em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação”. Différence et répétition, p. 180. 24 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., p. 200. 25 Mille plateaux, op. cit., p. 164. 26 Mille plateaux, op. cit., p. 347. Neste ponto, os autores passam pelo encontro com Misérable miracle, obra de Henri Michaux (1899-1984). 27 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., pp. 422, 423. 28 G. Deleuze, Le bergsonisme, op. cit., p. 32. 29 G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie. Paris : PUF, 1962, p. 7. 30 G. Deleuze, “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, op. cit., p. 166-167. 31 G. Deleuze, “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, op. cit., p. 171. 32 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 31. 33 G. Deleuze, “Capitalisme et schizophrénie” (1972), em L’Île déserte, op. cit., p. 331. 34 Como Klossowski e Lyotard. Ver G. Deleuze, “Pensée nômade”, em L’Île déserte, op. cit., p. 358- 360. 35 G. Deleuze, Pourparlers. Paris : Minuit, 1990, p. 182. 36 G. Deleuze, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 191. 37 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., pp. 156, 356. 38 G. Deleuze e F., L’Anti Oedipe, Paris, Minuit, 1972, p. 386.

39 G. Deleuze, Logique du sens, op. cit., pp. 72, 69. 40 “Como elemento da ciência nômade, o díspar remete a material-forças, mais do que à matéria-forma. Já não mais se trata, exatamente, de extrair constantes a partir de variáveis, mas de pôr as próprias variáveis em estado de variação contínua. Se há ainda equações, são adequações, inequações, equações diferenciais irredutíveis à forma algébrica, e inseparáveis por sua vez de uma intuição sensível da variação. Captam ou determinam singularidades da matéria em vez de constituir uma forma geral. Operam individuações por acontecimentos ou hecceidades, e não por ‘objeto’ como composto de matéria e forma; as essências vagas são tão-somente hecceidades”. G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., p. 458. 41 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 387. 42 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., p. 326. 43 G. Deleuze, L’Île déserte, op. cit., p. 136. Ver ainda Différence et répétition, op. cit., 128-140. 44 Eis como François Zourabichvili enuncia esse problema: “como, para além de Bergson, articular as duas dinâmicas inversas e não obstante complementares da existência, de um lado a atualização de formas e de outro a involução que destina o mundo a redistribuições incessantes?”. Ver Le Vocabulaire de Deleuze, op. cit., Verbete “Corpo sem órgãos”. 45 L’abécédaire de Gilles Deleuze, op. cit., letra A como Animal. 46 Umberto Eco, Obra Aberta, tr. br. de Giovanni Cutolo com revisão de Pérola de Carvalho, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1971. 47 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 94, n.1. 48 “Quando invoco o ziguezague, a questão é como por em conexão singularidades díspares”, diz Deleuze em L’Abécédaire, op. cit., p. 200. 49 Umberto Eco,, Postille a "Il nome della rosa" (1984). Pós-Escrito a “O Nome da Rosa”, tr.br. de Letizia Z. Antunes e Álvaro Lorencini, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2a.ed., 1985, pp.45-47. 50 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux,op. cit., p. 31. 51 G. Deleuze e F.Guattari, L’Anti Oedipe, op. cit.: “A produção como processo excede todas as categorias ideais e forma um ciclo ao qual o desejo se relaciona como princípio imanente” (p. 10-11). “A regra de produzir sempre o produzir, de inserir o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção de produção”, p. 13. 52 G. Deleuze, « Causes et raisons des îles désertes », em Lîle déserte, op. cit. pp. 11-17. 53 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 71. 54 G. Deleuze, Pourparlers, op. cit., p. 171. 55 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 13. 56 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 71. 57 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 74. 58 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., pp. 75, 76, 79.

59 G. Deleuze, Pourparlers, op. cit., p. 196. 60 G. Deleuze, “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, op. cit., pp. 166-167 ; 171. 61 G. Deleuze, “Pensée nômade” (1973), em L’Île déserte, op. cit., pp. 358-360. 62 G. Deleuze, Zpinoza – Philosophie pratique, op. cit., p. 171. Ver também pp. 27 ss : cap. II, « Sur la différence de l’Ethique avec une morale ».