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Departamento de Sociologia MAPEAMENTO DE CASAS DE RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO RIO DE JANEIRO Aluna: Ana Luzia de Oliveira Moreira Guimarães Orientadora: Sônia Maria Giacomini Introdução O presente relatório tem por objetivo reunir os pontos mais relevantes do trabalho de pesquisa desenvolvido ao longo de dois anos, no período de julho de 2009 a julho de 2011. A pesquisa Mapeamento de Casas de Religiões de Matriz Africana no Rio de Janeiro surge respondendo a uma demanda advinda do social e sua intrincada teia de relações; sua pertinência é justificada ao mesmo tempo em que se investiga e elucida os mecanismos de estruturação e as conseqüências da atuação do fenômeno social que a ocasionou: a intolerância religiosa. A intensidade das tensões sociais conformadoras de tal fenômeno no seio de nossa sociedade é exacerbada no fim do século XX, com o surgimento de grupos neopentecostais que rapidamente ganharam terreno e influência, encabeçados pela precursora Igreja Universal do Reino de Deus. Além de reorganizar o cenário religioso brasileiro, a atuação dessas igrejas neopentecostais vem reforçando o preconceito em relação às religiões de matriz africana, preconceito esse que em muitas ocasiões se confunde com o racial. Na disputa por adeptos em sua grande maioria provenientes de uma mesma classe social desprivilegiada , esse tipo de protestantismo lança mão de uma estratégia que mistura a identificação de todo o mal às entidades afro-religiosas com uma teologia da “Guerra Espiritual”. Como resposta à intensificação da intolerância, entidades e instituições das religiões afrodescendentes têm se organizado na reivindicação de cidadania; desta forma o fenômeno da intolerância religiosa tem sido um impulsionador da maior visibilidade dessas religiões, que por tanto tempo permaneceram recônditas, ou acessíveis apenas sob um falso sincretismo. A atual pesquisa pode ser considerada um exemplo dessa reação. Tendo sido iniciada em 2008, conta com a participação de membros da academia e de um conselho de quatorze autoridades do candomblé e da umbanda, o Conselho Griot, e pretende cadastrar casas de todas as tradições religiosas afro-brasileiras localizadas no Estado do Rio de Janeiro, dando visibilidade ao conjunto formado e sua territorialidade. Com a incumbência de oferecer resistência as atitudes religiosas intolerantes, bem como possibilitar a construção de políticas públicas que sirvam ao avigoramento e desmarginalização das religiões de matriz africana, a pesquisa apresenta duas formas de atuação complementares: a visita de pesquisadores aos espaços para a “cartografia social”, com a aplicação de um questionário, e a reflexão teórica sobre o campo religioso brasileiro. O trabalho de campo realizado pelo mapeamento tem como função dar visibilidade para as casas e divulgar a pesquisa para que mais casas possam ser mapeadas. A reflexão teórica sobre fenômeno da intolerância religiosa aqui proposta, além da leitura e discussão dos textos teóricos sobre o tema, voltou-se nos últimos meses para uma abordagem inicial dos registros de intolerância que constam nos questionários aplicados pela equipe de pesquisa do Mapeamento de Casas de Religiões de Matriz Africana no Rio de Janeiro. O presente relatório é resultado dessa segunda parte da pesquisa, de reflexão teórica, que tem como orientadora a professora Sônia Giacomini e como bolsista de iniciação científica a aluna de graduação Ana Luzia de Oliveira Moreira Guimarães.

MAPEAMENTO DE CASAS DE RELIGIÕES DE …© e da umbanda, o Conselho Griot, e pretende cadastrar casas de todas as tradições religiosas afro-brasileiras localizadas no Estado do Rio

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Departamento de Sociologia

MAPEAMENTO DE CASAS DE RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO

RIO DE JANEIRO

Aluna: Ana Luzia de Oliveira Moreira Guimarães

Orientadora: Sônia Maria Giacomini

Introdução

O presente relatório tem por objetivo reunir os pontos mais relevantes do trabalho de

pesquisa desenvolvido ao longo de dois anos, no período de julho de 2009 a julho de 2011. A

pesquisa Mapeamento de Casas de Religiões de Matriz Africana no Rio de Janeiro surge

respondendo a uma demanda advinda do social e sua intrincada teia de relações; sua pertinência é

justificada ao mesmo tempo em que se investiga e elucida os mecanismos de estruturação e as

conseqüências da atuação do fenômeno social que a ocasionou: a intolerância religiosa. A

intensidade das tensões sociais conformadoras de tal fenômeno no seio de nossa sociedade é

exacerbada no fim do século XX, com o surgimento de grupos neopentecostais que rapidamente

ganharam terreno e influência, encabeçados pela precursora Igreja Universal do Reino de Deus.

Além de reorganizar o cenário religioso brasileiro, a atuação dessas igrejas neopentecostais vem

reforçando o preconceito em relação às religiões de matriz africana, preconceito esse que em

muitas ocasiões se confunde com o racial. Na disputa por adeptos – em sua grande maioria

provenientes de uma mesma classe social desprivilegiada – , esse tipo de protestantismo lança

mão de uma estratégia que mistura a identificação de todo o mal às entidades afro-religiosas com

uma teologia da “Guerra Espiritual”.

Como resposta à intensificação da intolerância, entidades e instituições das religiões

afrodescendentes têm se organizado na reivindicação de cidadania; desta forma o fenômeno da

intolerância religiosa tem sido um impulsionador da maior visibilidade dessas religiões, que por

tanto tempo permaneceram recônditas, ou acessíveis apenas sob um falso sincretismo. A atual

pesquisa pode ser considerada um exemplo dessa reação. Tendo sido iniciada em 2008, conta

com a participação de membros da academia e de um conselho de quatorze autoridades do

candomblé e da umbanda, o Conselho Griot, e pretende cadastrar casas de todas as tradições

religiosas afro-brasileiras localizadas no Estado do Rio de Janeiro, dando visibilidade ao conjunto

formado e sua territorialidade.

Com a incumbência de oferecer resistência as atitudes religiosas intolerantes, bem como

possibilitar a construção de políticas públicas que sirvam ao avigoramento e desmarginalização

das religiões de matriz africana, a pesquisa apresenta duas formas de atuação complementares: a

visita de pesquisadores aos espaços para a “cartografia social”, com a aplicação de um

questionário, e a reflexão teórica sobre o campo religioso brasileiro. O trabalho de campo

realizado pelo mapeamento tem como função dar visibilidade para as casas e divulgar a pesquisa

para que mais casas possam ser mapeadas. A reflexão teórica sobre fenômeno da intolerância

religiosa aqui proposta, além da leitura e discussão dos textos teóricos sobre o tema, voltou-se

nos últimos meses para uma abordagem inicial dos registros de intolerância que constam nos

questionários aplicados pela equipe de pesquisa do Mapeamento de Casas de Religiões de Matriz

Africana no Rio de Janeiro. O presente relatório é resultado dessa segunda parte da pesquisa, de

reflexão teórica, que tem como orientadora a professora Sônia Giacomini e como bolsista de

iniciação científica a aluna de graduação Ana Luzia de Oliveira Moreira Guimarães.

Departamento de Sociologia

Observações sobre o desenvolvimento da pesquisa

No que tange à caracterização do debate acadêmico já consolidado acerca da religiosidade

brasileira, essa parte da pesquisa foi dedicada à leitura, interpretação e discussão de textos

acadêmicos, artigos, monografias, teses e ensaios que tratassem sobre o tema do campo religioso

brasileiro. Destarte, as leituras selecionadas versavam tanto sobre candomblé e umbanda, quanto

sobre igrejas neopentecostais. Os fichamentos e resenhas produzidos foram de grande auxílio,

assim como o foram as discussões engendradas a partir das leituras. As reuniões com o grupo de

pesquisadores de campo foram significativas, pois demonstravam, com base na experiência

empírica, as características estudadas através dos livros, usos e costumes, cosmovisões e

organizações hierárquicas, entre outros aspectos. A participação em eventos públicos, como o I

Seminário Estadual de Combate à Intolerância Religiosa – em 18 de dezembro de 2009 –, o

Seminário “Herança Cultural Jeje-Nagô no Brasil” – em 18 de julho de 2011 – foram de suma

importância, de modo que deixavam entrever a inserção do tema da pesquisa na sociedade, a

mobilização e participação política, tanto das autoridades governamentais como dos cidadãos

participantes.

No que respeita à análise de questionários, busca-se apresentar resultados conclusivos que

possibilitem identificar alguns contornos do campo afro-religioso no Estado do Rio de Janeiro. A

análise de questionários d uma certa maneira corporifica a pesquisa, uma vez que, através da

observância dos relatos transcritos pelos pesquisadores de campo sobre os casos de intolerância

religiosa, dá-se voz e face a personagens que aparecem na maioria das vezes apenas como

números. A análise dos questionários foi resultado de um processo no qual os critérios de

classificação procuraram estar em consonância com o campo e a terminologia utilizados. Os

questionários foram analisados a partir de uma tipologia, nascida do próprio processo de análise:

a repetição de aspectos, ou a não-repetição, possibilitou estabelecer certos padrões através dos

quais o material foi organizado. Nesse momento da pesquisa, a importância das leituras avultou-

se: a familiarização com o tema e o diálogo entre teoria e realidade foram os aspectos

possibilitadores para o estabelecimento de hipóteses e algumas incipientes conclusões.

Do calundu ao candomblé: a formação do campo religioso afro-brasileiro

No intuito de analisar a formação do espaço religioso brasileiro, faz-se pertinente a

caracterização da formação das religiões de matriz africana. Fazendo uma digressão até seus

primórdios, é profícua a apresentação de um panorama sobre a formação do candomblé; por ser a

primeira religião de matriz africana a ser formada no Brasil, ela serviu de raiz da qual as demais

religiões afrodescendentes puderam se erigir, amalgamando elementos diversos de outras

crenças, indígenas e européias, formando religiões genuinamente brasileiras.

Para tanto, será caracterizada a formação de dois grupos distintos, que hoje exercem grande

influência entre os adeptos do culto às entidades do candomblé: a nação bantu e a nação jeje.

Partindo do pressuposto de que esses processos – no que concerne à formação de instituições e

organizações públicas a partir do século XIX – figuram a dupla posição de causa e conseqüência

da reafricanização da cultura brasileira, dois trabalhos serão utilizados como ilustração desse

movimento.

Robert Slenes apresenta um trabalho sobre a formação de uma identidade banto entre os

escravizados no centro-sul do território brasileiro. Seu argumento parte da afirmação de que entre

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o final do século XVIII até meados do XIX o trafico de escravizados direcionou para essa região

contingentes populacionais advindos da África Central. Através de estudos de carácter

lingüístico, o autor descreve uma unidade lingüística dessa região africana. Transcrevendo as

palavras de um pesquisador e lingüista britânico estudioso de África no século XIX, Slenes

descreve “a existência de uma única grande família lingüística em toda a África ao Sul do

Equador” (SLENES, 1992, p.50)

Slenes afirma que a semelhança entre essas línguas possibilitou que “cativos de diversas

etnias centro-africanas, destinados ao Brasil” pudessem “entender-se entre si” (ibid., p.51).

Analisando diversos estudos, fontes de época, o autor ressalta que a extensão dessa cumplicidade

lingüística era grande, abrangendo a áfrica central e regiões mais ao sul, como Moçambique. Essa

cumplicidade estendia-se a outros aspectos: “os escravos da África banto podiam encontrar-se,

através das palavras, não apenas no mesmo „barco‟ semântico, mas no mesmo „mar‟

ontológico” (ibid., p.52). Existiam, segundo ele, “grandes afinidades entre as culturas de uma

região extensa da África Central, no que diz respeito a suas pressuposições básicas sobre

parentesco e suas visões cosmológicas” (ibid., p.58). Elementos fundamentais à religião eram

então compartilhados por essas diferentes populações, bem como trocas interétnicas entre elas,

cuja “capacidade de criar novos símbolos e de reinterpretar o sentido de objetos e rituais

„estrangeiros‟” (idem) foram os fatores possibilitadores da criação dessa comunidade “bantu”,

que doravante irá se enraizar na cultura através da grande nação do candomblé, em decorrência

da “presença de uma consciência religiosa nitidamente centro-africana” (ibid., p.65). Slenes

ressalta que essa identidade comum pôde acontecer através da palavra, muito impulsionada pela

solidariedade engendrada pela lancinante condição de escravizados. Dessa forma, os escravizados

de origem “bantu” utilizavam essa cumplicidade lingüística como código contra os dominantes,

utilizando termos africanos, ou termos brasileiros sob uma lógica africana comum; essa

identidade ao longo do tempo “havia tomado feições políticas” (idem), formando muitas vezes

uma “interlíngua”, a saber, uma língua franca.

Através desses estudos, o autor chega à conclusão de que o tráfico de escravizados e a

condição diaspórica desses africanos foi promovedora de encontros que revelaram a África aos

africanos: “Ao mesmo tempo em que as vias de acesso à nova sociedade provavelmente não lhes

pareciam muito abertas, os africanos no Brasil viam suas ligações com seu continente de origem

constantemente renovadas pelo tráfico” (ibid., p.56). Africanos aqui chegados podiam rever os

rostos negros tão familiares, como também conhecer outros tons do mesmo negror, outras

culturas negras, outros tambores e palavras mágicas, conformadores de uma identidade africana

mais generalizada.

O segundo trabalho versa sobre grupos procedentes de outra região africana, geradores de

um tipo de crença afrodiaspórica. Elegendo como objeto de estudo os povos de línguas gbe e

iorubá da África Ocidental, Parés se dispõe a falar sobre a formação de uma outra identidade

entre os escravizados no Brasil: a identidade jeje. Esta é desenvolvida por povos provenientes do

Golfo do Benin, do Rio Volta ao Rio Níger, áreas que vão do atual Gana à Nigéria. Reproduzindo

as palavras da antropóloga Claude Lepine, o autor descreve que a área sobrecitada “„constitui

uma grande área cultural, onde podem ser observadas marcantes semelhanças ao nível das

instituições sociais e políticas, dos costumes, das práticas e crenças religiosas.‟” (PARÉS, 2006,

p.31). Essa semelhança provém, conforme nos informa o autor, de um passado de “„migrações e

contactos‟”. Parés nos inicia numa complexa rede de denominações que ele apresenta dividindo

o conceito de denominação: “distinguir entre denominações „internas‟, utilizadas pelos membros

de um determinado grupo para identificar-se, e denominações „externas‟, utilizadas, seja pelos

africanos ou pelos escravocratas europeus, para designar uma pluralidade de grupos

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inicialmente heterogêneos” (ibid., p.25); essa distinção é conceituada como “etnômio” e

“denominação metaétnica”, respectivamente.

Parés afirma que na Bahia, a denominação jeje se referia aos povos advindos do reino de

Daomé (atual Benin). Essa denominação configurava a priori um etnômio, posto que se referia a

um grupo minoritário, que se localizava na região que hoje é a cidade de Porto Novo, capital

litorânea do Benin. Por conta do Tráfico, essa denominação torna-se metaétnica, uma vez que

passa a englobar uma diversidade de grupos territorialmente diferenciados, inclusive os nagôs.

Essa denominação, que se referia à etnicidade, com o passar do tempo define religiosidade. Com

a perda da função operacional que essas denominações ofereciam aos dominantes por conta do

fim do tráfico em meados do XIX, elas encontram espaço para a sobrevivência entre os

escravizados, como parte de uma dinâmica de diferenciação entre eles. Isso porque as etnias

falantes da mesma língua e com traços culturais semelhantes passam a se organizar em torno de

práticas ritualísticas religiosas em comum. Isto posto, “as práticas de carácter religioso

conhecidas como calundus, e depois como candomblés, foram um dos espaços de contraste e

diferenciação dos mais importantes para a demarcação dos limites das diversas nações

africanas” (ibid., p.101)

O conceito de nação [1]

passa então a se definir não mais por uma mesma terra de origem ou

ascendência comum; ele simboliza “o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da

Bahia” (ibid., p.102). O laço por parentesco se perde, e instaura-se o “parentesco pelo santo”.

Parés define seu conceito de religião: “aquele conjunto de práticas que estabelecem uma

interação entre „este mundo‟ (dos humanos) e o „outro mundo‟ invisível, habitado (geralmente)

por uma série de „entidades espirituais‟ responsáveis pela sustentabilidade da vida” (ibid.,

p.104), sendo o processo ritualístico o mediador dessa interação. Com essa noção de religião, o

autor vai buscar em África a base da institucionalização das religiões dos povos que lá viviam,

para que se possa entender como essas religiões serão institucionalizadas em solo brasileiro.

Nos transportando no tempo e além-mar, Parés chega ao remoto reino de Uidá. Apresenta-

se então um sistema religioso complexo, com um panteão bem definido, com práticas e espaços

ritualísticos fixos, hierarquias sacerdotais, um conjunto de princípios coeso e um considerável

número de devotos. As entidades cultuadas, além dos ancestrais, eram entidades da natureza,

como as árvores, o mar e a serpente. Responsáveis por manter o bem estar em tempos difíceis,

eram invocadas através de sacerdotes para curar doenças, para uma boa colheita, para fazer

chover, restabelecer a saúde, entre outras demandas. O corpo sacerdotal, tendo o monopólio do

saber necessário para se conectar com essas entidades, era privilegiado e respeitado, obtendo

assim a fonte para sua subsistência e também ótima relações com os reis e os chefes dos clãs. A

religião era elemento de coesão social e fonte de autoridade moral, e através desse “pacto

social”, figurava também um aparato de trocas econômicas relevantes: “a instituição do culto de

voduns, baseada em oferendas às divindades e em processos de iniciação dos devotos, encobre

uma dinâmica de troca de recursos econômicos que justifica a sua existência e perpetuação; e

esse fato não difere muito de certa dinâmica inerente aos cultos de voduns contemporâneos,

tanto no Benim como no Brasil” (ibid., p.106). Com essa digressão ao passado do Benin o autor

chega à conclusão de que “certas sociedades da África ocidental, especialmente aquelas

localizadas perto do litoral, desenvolveram progressivamente complexas instituições religiosas,

[1]

Para uma definição do conceito de nação ver: Luis Nicolau Parés. “Entre duas costas: nações, etnias, portos e

tráfico de escravos”, in: A formação do candomblé – História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: ed.

UNICAMP, 2006.

Departamento de Sociologia

fundamentais para sua organização sóciopolitico-economica, e, portanto, „centrais‟ no sistema

de relações sociais.” (idem)

Com a diáspora, os africanos que chegaram aqui no Brasil trouxeram em forma de memória

e vivências passadas seus cultos, porém estes vieram desprovidos das instituições sociais que lhe

davam fundamento. A constituição da comunidade de cultos de matriz africana é a construção

dessas instituições, através de fragmentos culturais amalgamados: “a formação de uma sociedade

afro-brasileira só se deu quando se reconstituíram novas instituições ou, nas palavras de

Bastide, com a criação de estruturas sociais complexas (infra-estruturas) que acomodassem as

múltiplas culturas africanas (superestruturas) trazidas por indivíduos ou grupos escravos”

(ibid., p.109). A reinstitucionalização das religiões africanas no Brasil passa por diferentes

momentos; da congregação de negros em irmandades católicas, passando pelo calundu, chega-se

ao candomblé.

O autor apresenta o calundu como a prática que antecede o candomblé, no que diz respeito

à complexidade institucional. Esse termo foi amplamente utilizado ao longo do século XVIII para

designar “atividades religiosas de várias índoles, porém de origem africana, em oposição às

práticas católicas ou ameríndias.” (ibid., p.115). O “calunduzeiro” era um ente móvel,

normalmente uma só pessoa que, atribuída de poderes mágicos, atendia pessoas na incumbência

de curar ou adivinhar. A partir do momento em que esses “calunduzeiros” passam a se organizar

minimamente em torno de práticas rituais coletivas que envolviam mais pessoas do que o

“mágico” e o consulente, a partir do culto de ídolos com a presença de altares é que se tem a

necessidade da criação de lugares fixos para esses cultos, portanto, inicia-se a formação e

consolidação do candomblé. O autor atribui essa mudança à presença do elemento jeje-nagô;

partindo da proposição de que “as bases da organização de tipo „eclesial‟, que permitiram a

formação das congregações extradomésticas descritas acima, encontram antecedentes nas

tradições dos grupos vindos da África ocidental, e, muito especialmente, dos jejes.” (ibid.,

p.119), Parés chega a seguinte conclusão: “Foi provavelmente a partir dessa tradição da África

Ocidental, em oposição às tradições congo-angola, mais baseadas nas atividades individuais dos

curadores-adivinhos, que se organizaram os primeiros cultos domésticos, em „casas e roças‟,

com uma estrutura social e ritual mais complexa” (ibid., p.116).

Assim Parés apresenta a formação do candomblé no Brasil. A comparação entre sua

apresentação sobre os grupos de língua gbe e yorubá com a exposição feita por Slenes dos povos

de língua banto reforça nossa tese inicial de que a reafricanização da cultura brasileira é causa e

conseqüência da formação das religiões de matriz africana, a começar pelo candomblé. A escolha

das fontes, ou ainda, a possibilidade documental que se mostra disponível para a reflexão de tais

autores sobre essas religiões no Brasil é reveladora de um outro aspecto crucial para o

entendimento do cenário religioso brasileiro atual. A maioria das fontes utilizadas são inquéritos

policiais, registros de prisões e sentenças judiciais, fato que releva a perseguição e

marginalização das quais esse segmento religioso sempre foi vítima.

Hédio Silva, especialista na questão da intolerância religiosa no que diz respeito à

legislação, chama atenção para a ineficácia da lei na atuação contra os abusos intolerantes. Em

seu artigo intitulado Notas sobre sistema jurídico e intolerância religiosa no Brasil, o autor se

posiciona a respeito da questão da intolerância religiosa no Brasil ser um dos aspectos das

relações raciais racistas, rechaçando a crença na neutralidade da lei na formação do modelo

nacional de tais relações. Associando a estrutura escravista à atuação da lei, o autor afirma que

“por muito tempo, incluído o século passado, a função da lei, especialmente da lei penal, como

também do sistema penal, não esteve totalmente dissociada do modelo de relações raciais e, por

extensão, do padrão religioso adotado pelos colonizadores e senhores de engenho.” (SILVA,

Departamento de Sociologia

p.304). O sistema jurídico de tradição romano-germânica adotado pelo Brasil desde seus

primórdios reservara regras de controle e subordinação de africanos escravizados.

Buscando apresentar um panorama histórico sobre o Direito brasileiro, Hédio Silva exibe as

Ordenações do Reino, sendo o Código Filipino a mais utilizada delas, na qual diversos artigos são

designados contra qualquer tipo de culto não-católico. Como exemplo, o autor cita o livro V das

Ordenações Filipinas, onde a heresia é criminalizada, bem como a feitiçaria e qualquer tipo de

festa ou baile organizado por escravizados. Já no Brasil império, o sistema legal, quando

destinado à população negra funcionava como uma catequese, cerceando sobremaneira qualquer

idéia de liberdade religiosa. Hédio afirma que a ênfase do código criminal era a repressão à

rebeldia negra, fosse ela de homens escravizados, livres ou libertos. Na sentenciação de um

crime, o status da pessoa negra mudava de acordo com sua posição e participação no fato

ocorrido : “sendo réu, era pessoa; sendo vítima, coisa.” (ibid, p.306). O autor chega à conclusão

de que “a história da empresa colonialista e do escravismo no Brasil confunde-se com a história

da subordinação do direito penal aos interesses dos senhores de engenho.” (ibid, p.308).

Com o fim da escravidão e a proclamação da República, a perseguição e criminalização aos

negros e seus cultos são levadas adiante. O código penal republicano operava em seus artigos “a

criminalização da capoeira, do curandeirismo e do espiritismo” (ibid, p. 309), sendo este último

descrito como a invocação de espíritos e bruxaria. O próximo código penal, outorgado em 1940,

modifica-se, não obstante mantendo a perseguição aos cultos afrodiaspóricos sob a alcunha de

curandeirismo e charlatanismo. O autor revela “a frequente associação feita pelo Judiciário entre

tais delitos e práticas religiosas de origem africana, vistas como insalubres, bárbaras e

primitivas” (ibid., p.315). Os cultos de origem africana sofreram desde o princípio com a atuação

da lei, com o direito penal e as próprias constituições nacionais como seus principais algozes.

É o que Hédio Silva tenta demonstrar apresentando um quadro histórico da relação Estado-

religião no Brasil. Desde as noções de religião de estado, com a proibição da construção de

templos não-católicos, até os tempos de idéias laicizadas, como o casamento de natureza civil e a

secularização de cemitérios, a perseguição aos cultos afrodiaspóricos seguiu inabalável. Prova

disto é o fato de que, mesmo depois da Carta de 1946, que prevê a imunidade tributária para os

templos religiosos, esta questão é ainda hoje ponto de conflito. Os templos afro-religiosos, antes

de conseguir a imunidade, tem de lutar para provar sua autenticidade, enquanto que qualquer

pessoa interessada em abrir uma igreja evangélica tem total liberdade para fazê-lo, vide a forma

epidêmica como se espalham igrejas de denominações várias ao longo de todo o vasto território

nacional. A Constituição de 1967, ao associar “o princípio da igualdade à proibição de

discriminação em razão de credo religioso” (ibid, p.312) abriu o caminho para o combate à

intolerância apenas na esfera da lei, no sentido de oferecer subsídios legais para a reação dos

praticantes, porém a sociedade continuou a operar com mecanismos preconceituosos, como deixa

entrever a Constituição de 1969: “assegurava ampla liberdade de crença, mas condicionava o

culto religioso à observância da ordem pública e dos bons costumes” (ibid, p.312). Adjetivações

como “desordem” e “maus costumes” eram freqüentemente atribuídas aos cultos de matriz

africana; daí a subordinação do funcionamento de tais cultos a permissões e registros frente a

secretarias de segurança pública e delegacias, como no caso do estado da Bahia, onde tais

medidas foram levadas à cabo até o ano de 1976, ou no estado da Paraíba, onde além de exigir

autorização da Secretaria de Segurança Pública, era exigido também a prova da sanidade mental

do responsável pelo terreiro, através de um exame psiquiátrico.

Mesmo após a laicização rigorosa do estado brasileiro através da Constituição de 1988, o

cenário de perseguição e ineficácia legal persiste até os dias atuais, como aponta o autor: “Na

cidade de São Paulo ainda hoje nenhum templo de candomblé tem assegurada a imunidade

Departamento de Sociologia

tributária, os ministros não conseguem obter a inscrição no sistema de seguridade social (na

qualidade de ministros religiosos) e os cartórios se recusam a reconhecer a validade dos

casamentos celebrados no candomblé.” (ibid, p.315). O estado laico revela-se nem tão laico

assim, como a permanência do ensino religioso sob a influência de segmentos religiosos cristãos

permite supor. Hédio Silva propõe o questionamento “da regulamentação da disciplina de

ensino religioso, a qual tem sido implementada nos Estados excluindo-se deliberadamente o

acompanhamento e participação das religiões afro-brasileiras; no estado do Rio de Janeiro, o

governo estadual contratou padres e pastores para ministrarem a disciplina nas escolas

públicas” (ibid., p.318).

Para Hédio, a intolerância religiosa está intrinsecamente relacionada com o racismo

fortemente entranhado na nossa sociedade. Destarte, o autor se propõe a demonstrar de que forma

os casos de intolerância religiosa podem ser autuados como crimes de racismo, através de sua

definição do conceito de etnia: “Etnia, uma categoria antropológica, refere-se a um conjunto de

dados culturais – língua, religião, costumes alimentares, comportamentos sociais – mantidos por

grupos humanos não muito distantes em sua aparência, os quais preservam e reproduzem seus

aspectos culturais no interior do próprio grupo, sem que estejam necessariamente vinculados

por nacionalidade comum, ainda que compartilhem um território comum” (ibid., p.317).

Informada por essa noção de etnia, a discriminação religiosa passa a conter aspectos de

discriminação étnica, logo, a aplicação da norma constitucional do crime de racismo tem

pertinência nesses casos.

Em suma, a apresentação dessas reflexões sobre o campo religioso afro-brasileiro nos

possibilita afirmar que sua formação representou a reconstituição de instituições africanas em

solo brasileiro, bem como a criação de religiões nascidas aqui. O processo de entretecer o que

havia sido esgarçado ao longo de um vasto oceano contou com a plasticidade dessas culturas,

abertas a novos usos e costumes, há muito familiarizadas com trocas interétnicas e com o apreço

pelo inaudito. Essa formação foi desde sempre acompanhada pelo preconceito, racismo e

discriminação, que resistiram à redemocratização e até hoje coabitam intimamente entre nós.

Ainda que a constituição de 1988 tenha mudado o estatuto legal das religiões de matriz africana,

existe “um hiato entre os direitos constitucionalmente deferidos e o cotidiano de violações de

direitos que vitimizam os templos e os ministros religiosos do candomblé” (idem). O que está em

jogo é a percepção de que a marginalização e discriminação das religiões de matriz africana

figuram um processo, cujo desenovelar paulatino garantiu sua enraização na sociedade brasileira.

O universo do Candomblé e o campo religioso afro-brasileiro

Uma vez caracterizada a formação dos cultos afrodiaspóricos no Brasil, é-nos pertinente

apresentar o campo religioso afro-brasileiro em suas especificidades e características. Fábio

Lima, em sua dissertação de mestrado, faz uma caracterização do candomblé e sua lógica

estrutural. A percepção de uma hierarquia fortemente instituída entre aqueles que detém o

monopólio do sagrado, a saber, os babalorixás e iyalorixás, e os leigos, os filhos de santo e fiéis, é

o aspecto que se apresenta de início. O equilíbrio dessa hierarquização é a relação dialética entre

expectativa e resultado. Sua constituição destaca-se na área urbana, sendo formado por agentes

religiosos, constituidores de um “corpo de sacerdotes”, fundamentado em tradições africanas. O

candomblé se consolidou em meados do século XIX, tecendo uma cooperação interétnica, tendo

um grupo de sacerdotes socialmente reconhecidos entres os negros e mestiços (escravizados e

libertos) da época.

O papel da liderança, atribuído aos pais e mães-de-santo, segundo Lima, cumpre uma

função pedagógica de transmissão e preservação dos preceitos sagrados e de uma ideologia

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própria que informa uma cosmologia de acordo com a mitologia de entidades ancestrais. Esta

ideologia informa ainda padrões e estilos de vida, usos e costumes do proceder cotidiano.

Detentores dos bens sagrados, estes sacerdotes são a autoridade inquestionável, cuja boa atuação

é medida “pela sua capacidade de manter a estabilidade, controlar os conflitos, de garantir o

recrutamento contínuo e evitar a deserção dos membros e da clientela” (LIMA, p.3); dessa

forma, a figura do sacerdote é indissociável do terreiro ao qual pertence.

O terreiro, espaço sagrado, é destinado à manipulação dos signos. É o local da

ressignificação, da criação de novas práticas rituais. Informado pelo conceito de Bourdieu de

“habitus” [2]

, o autor acredita referir-se o conceito de nação dentro do candomblé não só ao

território, mas ao conjunto ideológico de um habitus, aos diferentes ritos. Essa noção de

pertencimento proporciona ao negro afro-brasileiro a dupla identidade de brasileiro e de africano;

o devoto que se identifica com a herança da África pode se auto-denominar brasileiro e “nagô”,

ou “banto”, de acordo com sua herança ideológica, sabendo que esta advém de específicas

regiões deste continente. Seria um pleonasmo afirmar que essa identidade africana não equivale à

identidade do africano em si. Os processos históricos descritos pelos autores aqui utilizados

deixam bem claro que a idéia de África foi, para os africanos e seus descendentes, deveras

alterada no processo de diáspora. Partindo da noção de que a identidade é uma construção, e de

que essa construção na pós-modernidade revela inúmeras possibilidades de referência [3]

, é

possível afirmar que, ainda que essa identidade não corresponda a uma identidade baseada em

uma nacionalidade, corresponde a uma “identidade imaginada”, informada pela noção que os

afro-brasileiros tem de seu continente de origem. O terreiro representa então a territorialidade

transcendental, não refere-se apenas ao espaço geográfico e geométrico ocupado, representa

também o espaço metafísico, é o orum e o aiyé. É o território ancestral, por isso mesmo africano,

aonde os antepassados vêm e podemos revê-los e reverenciá-los.

A atuação dos pais e mães-de-santo foi fundamental para a manutenção dessa identidade

africana. Ao longo da tese, Lima apresenta a ortodoxia de alguns deles. O perigo da deturpação

dos cultos era motivo constante de preocupação, assim como o perigo do embranquecimento de

seu corpo de devotos. Sendo assim, os pais e mães-de-santo dos candomblés mais ortodoxos e

tradicionais da Bahia restringiam a entrada de brancos, condenavam o alisamento dos cabelos, e

buscavam de todos os modos se reafricanizar, mantendo forte identificação com a origem

africana. Nesse sentido, Martiniano Eliseu do Bonfim deve ser lembrado. Como nos narra Lima,

ele foi uma autoridade dentro da comunidade do povo-de-santo. Conhecido internamente como

Martiniano-Ojeladé, contribuiu em pesquisas acadêmicas como informante, chegando a trabalhar

com Nina Rodrigues. Esse ex-escravizado fez constantes viagens à África, mais precisamente à

Nigéria, buscando religar a cultura africana brasileira à propriamente africana.

Esse proceder faz relembrar as idéias de Hampaté Bâ a respeito da importância e

significado da tradição para os povos de origem africana. No livro intitulado História Geral da

África , coordenado por Joseph Ki-Zerbo, Hampaté Bâ escreve um artigo cujo nome é A Tradição

viva. Esse autor malinês se põe a dissertar acerca da história oral. Logo num primeiro momento,

denuncia a visão preconceituosa construída sobre os povos africanos, na qual estes seriam

ahistóricos e desprovidos de cultura, por não utilizarem a escrita. Desde então o autor procura

[2] é um conhecimento acerca da atuação, regras de conduta “inscritas no corpo”, é um funcionamento sistemático

do corpo estruturado no campo; são informações dadas a priori, que se estabelecem marcando o proceder do

indivíduo; funciona “como princípios geradores e organizadores de práticas e representações” . cf. Fábio Lima.

“Candomblé: na encruzilhada da tradição e da modernidade” p. 1, l.15 -22. [3] Para mais ver: Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: ed. DP&A,

2002. & Da Diáspora –Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: ed. UFMG/ UNESCO, 2003.

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desarticular essa idéia: “Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade

mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração para geração.(...) os próprios

documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificações ou alterações,

intencionais ou não” (BÂ, p.182). Desautorizando essa premissa espúria de uma memória de

papel, o autor afirma que “O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio

valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a

fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma

determinada sociedade” (idem). A despeito de uma busca de veracidade do relato histórico, para

Hampaté Bâ o que importa é a forma como cada sociedade qualifica a palavra e a história. Entre

os povos da África ocidental, a palavra se reveste de uma importância divina e espiritual, e a

história é a estória da família, se estrutura por genealogias e não por uma cronologia. A palavra é

ainda, elemento de coesão social: “Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado á palavra

que profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra.” (idem).

Está aí a base para o entendimento da diferença filosófico-epistemológica entre os povos

africanos e os povos ocidentais; a tradição oral vivifica a história, oxigenando com o ar dos

próprios pulmões o relato histórico. Desconcertando o pensamento cartesiano e esquentando uma

memória tão fria quanto o papel que a resguarda, a oralidade profere um determinado ponto de

vista que se distingue do ocidental de maneira diametralmente oposta. Prova disso pode ser a

interpretação que podemos ter do conceito de tradição ocidental explanado por autores como

Hobsbawn, Peter Burke e E. P. Thompson [4]

. Ao longo da história, a tradição foi construída

como algo estático, morto, um dado do passado, informado somente pela história.

Completamente diferente da “tradição viva” de que nos informa Hampaté Bâ. Essa importância

da palavra realmente faz das tradições africanas tradições vivas, que, para garantir sua autoridade

e confiabilidade se movimentam, se reinventam e se retradicionalizam. Como deixa a entender o

depoimento de Pai Cido de Oxum, recolhido do seu livro A panela do Segredo e transcrito por

Lima em sua tese : “Nenhuma religião sobrevive se não acompanhar as mudanças que

acontecem no mundo, seja no campo social, tecnológico, cientifico etc. O Candomblé, para

sobreviver ao longo desses anos, teve que se modificar, e essa é uma realidade, embora alguns

prefiram negar.(...). Manter uma mentalidade arcaica não é sinônimo de seguir a tradição.(...) A

maquina que faz a massa do acarajé não muda a dedicação nem o amor do filho ou filha-de-

santo.” (LIMA, p.11-12)

Fábio Lima chega a uma conclusão bastante semelhante à de Slenes e Parés, em suas já

sobrecitadas obras. O tráfico de escravos tem duas conseqüências: desorganizador e desagregador

étnico e reorganizador, propulsor de “etnogêneses” americanas. Em África o culto ao orixá se

restringia ao seu território; no Brasil, diversos orixás de diferentes procedências são cultuados

num mesmo espaço, novas identidades se formam misturando antigas etnias. O autor também se

posiciona sobre a questão da tradição, através de tal definição, baseada em Sahlins: “um conjunto

de sistemas simbólicos que são passados de geração a geração, que tem carácter repetitivo.

Repetição significa atualização dos esquemas de vida.” (ibid, p.24). Dentro dessa concepção está

subentendida a idéia de que em toda mudança vê-se a persistência de alguma substância do que é

considerado antigo, partindo do pressuposto de que “o princípio da mudança se baseia no

princípio de continuidade” (idem). Desta forma, a categoria tradição pode ser entendida como

[4]

Cf. Eric Hobsbawm & Terence Ranger. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. Peter

Burke. Cultura Popular na Idade Moderna - Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.E. P.

Thompson. Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

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“um meio prático de garantir a preservação calcado em modelos que podem ser histórias

míticas, reais e reinventadas” (idem). A tradição é o que foi, é o que se vive e o que deve ser

feito no futuro. A visão dinâmica sobre a tradição – de que “as tradições tendem a ter um

carácter orgânico: se desenvolvendo e amadurecendo, ou enfraquecendo e „morrendo‟” (ibid,

p.25) – opõe-se, segundo Lima, à visão tradicional do campo acadêmico do início do século XX,

“em termos de uma cultura inerte ao tempo, não dando conta da historicidade, da posição dos

sujeitos na estrutura do campo religioso e da subjetividade desses atores.” (idem).

Essa plasticidade e adaptabilidade da tradição nas religiões afrodiaspóricas é um marco

referencial de suma importância. A cosmologia de uma moralidade diametralmente oposta à

cristã e baseada numa fértil mitologia abre espaço para que muitas concepções de vida que se

afastam da lógica ocidental possam nela sobreviver. Desta forma, as religiões de matriz africana

atraem para o seu corpo de fiéis um grande contingente de grupos socialmente marginalizados.

Refletindo sobre a relação entre religião e homossexualidade, Marcelo Natividade e Leandro de

Oliveira, em seu artigo intitulado Religião e Intolerância à homossexualidade, afirmam que “os

cultos afro-brasileiros são retratados, de modo geral, como formas religiosas mais flexíveis

frente à homossexualidade” (NATIVIDADE & OLIVEIRA, p.265). Isto se dá, segundo os

autores, posto que “tanto a homossexualidade como os cultos de possessão apresentam práticas

sociais divergentes relativamente aos valores dominantes.” (ibid, p.266). A marginalidade dessas

religiões, somada às suas concepções próprias acerca do gênero – que identificam as

demarcações de masculino /feminino não necessariamente de acordo com o modo como essas

categorias são entendidas oficialmente – são associadas à posição marginal do homossexual em

nossa sociedade.

A classificação de gênero encontra no candomblé, uma liberdade para além dos limites do

clássico dualismo homem/mulher. O orixá representa a personalidade e não a sexualidade do

praticante. Inúmeras figuras andróginas – como por exemplo Oxumaré, que possui as duas

identidades dentro de si – existem no panteão das entidades afrodiaspóricas, e “homossexuais e

heterossexuais podem ter como donos de cabeça tanto orixás masculinos como femininos.”

(ibid, p.269). Essa liberdade identitária seria, segundo os autores, atraente aos homossexuais,

como também a valorização simbólica do feminino existente em tais culturas. De fato, as

mulheres empenham nos cultos afrodescendentes, papéis de prestígio, ocupando cargos de

autoridade máxima. Neste cenário, a “cosmologia e a doutrina religiosas não segregam os

homossexuais, mas o incorporam ao culto em determinadas posições hierárquicas.” (ibid, p.270).

Prova disso é a designação de um termo específico para homens efeminados, chamados de adés. Diferentemente das religiões de cunho cristão que tratam o homossexualismo como um distúrbio

a ser ajustado, como um desvio de carácter que pode ser solucionado, as religiões de matriz

africana integram e reconhecem essa identidade na dinâmica do culto. A utilização do corpo

como peça fundamental, por conta dos transes e possessões, abre a possibilidade de trejeitos

masculinizados e afeminados para fiéis de ambos os sexos: “Entre o povo de santo prevalece um

sistema de representações do corpo que permite diversas expressões da sexualidade. O corpo é

menos a morada do pecado e mais veículo pelo qual os deuses se expressam” (idem).

Todavia, os autores chamam atenção para a diferença entre os candomblés mais tradicionais

e os mais liberais no que concerne ao tratamento dispensado ao homossexualismo. Em primeiro

lugar, existe uma diferença muito clara e deveras respeitada entre a “vida no santo” e “vida

secular”. O fiel e seguidor deve prestar atenção aos limiares entre os dois mundos, e os autores

conseguem perceber uma postura conscienciosa a respeito dessa linha sutil que estrema as duas

superfícies da realidade: “o discurso nativo significa a homossexualidade como um fato da vida

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que, como tal, exige medidas e interpretações práticas que não se encontram articuladas à

cosmologia e vivências religiosas.” (ibid, p.266).

Nos cultos tradicionais, os homossexuais se encontram menos possibilitados de exprimir

suas preferências eróticas através de performances do que nos cultos de tendência mais aberta

onde através de adereços, roupas e movimentos corporais eles expõem sua opção sexual. Nos

candomblés que reivindicam para si uma posição de tradição, eles muitas vezes sofrem censuras.

O artigo de Milton Silva dos Santos cujo título é Sexo, gênero e homossexualidade: o que diz o

povo-de-santo paulista?, no qual ele versa sobre de que modo o povo-de-santo paulista lida com

o homossexualismo, , demonstra bem essa diferença. Em depoimentos recolhidos em terreiros na

região de São Paulo, fica claro o posicionamento das casas tradicionais quanto ao

homossexualismo, como no depoimento de Pai Geraldo:

“Existem casas que não se dão ao respeito(...). Aqui, por exemplo, a mulher que tem a

opção sexual dela de ser lésbica... É opção dela, divergência sexual dela, ninguém tem nada a

ver com isso. (...) Homem não usa nem brinco! Nem homem, quem dirá viado. Nem brinco! Se os

homens têm de dar exemplo, os adés [homens homossexuais] também. Senão começam com

brinquinhos, depois vem a maquiagem, pulseiras, argolas, penduricalhos. Fica feio dançar para

o orixá.” (SANTOS, p.152).

Em resumo, fica clara a noção de que a tradição do candomblé não é igual desde sempre,

“os ritos e mitos, muitas vezes, perderam sua originalidade e aqui foram ressimbolizados, assim

tal como a língua ritual dos cânticos, rezas e fórmulas mágicas, „identificável na sua estrutura e

no seu léxico, mas certamente modificada em seus valores semânticos e fonéticos‟” (LIMA,

p.21). A partir dessa noção fica mais fácil entender o campo afro-religioso e suas disputas. Os

limites desse campo são construídos a partir do domínio da tradição, que torna-se uma categoria

de diferenciação. O conflito acontece dentro de diferentes grupos de uma mesma casa e entre

diferentes terreiros. Os membros utilizam esta categoria para tentar se sobrepor aos opositores. O

ejó, a fofoca acaba sendo indicadora de transformação: “o ejó termina sendo, de alguma forma, a

crônica da novidade no espaço da comunidade” (ibid, p.17). A comunidade se entremeia dessa

maneira, através de comentários de reprovação ou aprovação de atitudes, que são consideradas

corretas ou não, de acordo com a tradição. O conhecimento, que é transmitido através da

oralidade, torna-se marco de distinção do status de cada membro na estrutura religiosa. A disputa

entre casas figura uma “luta simbólica que tem como finalidade uma elaboração diferencial da

identidade” (ibid, p.18); não obstante, uma oposição plena e contundente nunca existiu. A falta

de uma maior solidariedade se deve a falta de uma “estrutura formal centralizada” entre a

composição vária do campo afro-religioso.

Fábio Lima expõe uma sensível percepção sobre os processos de mudança social em que

essa tradição em toda sua plasticidade esteve envolvida: “as recriações e reinvenções das

tradições dos terreiros de candomblé, também obedeceram às estruturas econômicas da

sociedade dividida em classes a qual estavam inseridos” (ibid, p. 23). Isto posto, é improfícuo

ignorar o carácter pecuniário que as religiões adquiriram ao longo dos tempos. Nos dias atuais, o

que determina a adesão a uma agência religiosa é o desejo de administrar o próprio futuro. A

competência está no fato de oferecer previsibilidade e segurança. O autor aponta para a formação

de um mercado religioso, onde “Os indivíduos são conduzidos a racionalizarem as suas vidas

pelas ofertas expostas nos balcões do mercado religioso, um mosaico de fórmulas mágicas, de

doutrinas esotéricas, de medicinas paralelas, de psicanalismo e todo um amplo receituário de

modos de vida e superação de obstáculos” (ibid, p.31). O candomblé está inserido nesse

mercado, e muitos pais de santo vêem na religião a possibilidade de ascensão social . Além da

tradição, “o que está em jogo é a competência no campo religioso do pai e mãe-de-santo frente

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às expectativas” (ibid, p.32) e o jogo de búzios, as consultas privativas, podem tornar-se apenas

serviços mágicos ofertados, sem nenhum sentimento religioso. Esse tipo de proceder sofre muitas

críticas do “povo de santo”, assim como também não faltam censuras à atuação de sacerdotes que

não passaram por todos os níveis de iniciação. Chamados de “sacerdotes clandestinos”, são

denunciados pela má formação.

As religiões de matriz africana e a academia

A categoria tradição movimentou todo o debate acerca do campo afro-religioso brasileiro.

Esse debate nasce da ortodoxia de alguns sacerdotes mais tradicionais, que sempre rejeitaram

certas mudanças, principalmente as que incorporaram elementos para além das tradições

africanas. A figura do africano é romantizada, e funda-se um ideal de pureza, contra o culto às

novas entidades, e novas práticas ritualísticas. Assim, a presença do culto ao caboclo tornou-se

um demonstrativo da falta de tradição. Este ideal de pureza é uma invenção que tem a ver com as

“disputas de poder e prestígio” internas ao campo afro-religioso; a adoção do culto ao caboclo

deu-se inicialmente a partir do candomblé banto, de nação angola, o que acarretou a idealização

da pureza nagô, fenômeno que acontece no âmbito da sociabilidade dos candomblés. Foi no jogo

das relações sociais que essa idéia se fundou, sendo reproduzida pelo pensamento intelectual: “A

idéia de pureza foi idealizada pelos pesquisadores concomitante com a idéia de tradição,

relacionada com a história de cada casa-de-santo na preservação dos costumes e valores dos

ancestrais africanos.” (ibid, p. 9).

Essa noção de uma pureza nagô chega à academia muito por conta da participação de

intelectuais devotos e praticantes de religiões de matriz africana, a partir dos anos de 1970.

Figuras como a de Mestre Didi e organizações como a Sociedade de Estudos da Cultura Negra no

Brasil traduzem discussões próprias da sociabilidade religiosa afrodiaspórica para a linguagem

acadêmica através de “etnografias domésticas”. Como conseqüência, o debate acadêmico, num

primeiro momento tem o interesse totalmente voltado para o candomblé de nação nagô. A busca

pela pureza por parte dos pais e mães de santo definiu o olhar da antropologia e da história, que

elegeram o culto nagô como objeto de pesquisa e modelo de candomblé, através do qual era

possível direcionar “uma perspectiva intelectual de pensar o afro-brasileiro” (ibid, p.8). A idéia

de pureza é então associada a uma idéia de “valorização da áfrica” (idem). O culto nagô torna-se

modelo, parâmetro de análise comparativa, demonstrativo de “traços culturais que passaram a

serem tomados como expressão máxima de africanidade” (ibid, p.9). Os pesquisadores com

tendências de “genética cultural” reforçam a diferença entre origem iorubá e banto, classificando

os cultos de origem banto como “impuros”.

Num segundo momento, a partir da década de sessenta, em decorrência do surgimento de

um novo conceito de ciência social, que valorizava as descontinuidades e não mais a duração,

ocorre a abertura dos estudos para outros cultos e outras vertentes das religiões afro-brasileiras.

Neste sentido é digno de nota o pioneirismo de Edson Carneiro, no que diz respeito ao estudo dos

candomblés de outras nações, conforme nos relata Lima. A identificação de novas “morfologias

sociais” nas religiões afro-brasileiras faz com que a idéia de “transculturação” [5]

sobreponha a

idéia de aculturação, revelando que a identidade não é algo dado, e sim um processo

permanentemente mutável, uma construção contínua. A mudança é então valorizada, bem como

“o caráter dinâmico da cultura ao reinventar a tradição” (ibid, p.27).

[5]

cunhado na década de 40 pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz. Cf. Mary Louise Pratt. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC, 1999

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A atuação dos intelectuais “de santo” cumpriu também a função de sistematizar a doutrina,

transcrevendo em linhas o que até então só era transmitido em sons. O sobrecitado babalaô

Martiniano-Ojeladé pode ser considerado a vanguarda do candomblé intelectualizado. Esses

intelectuais orgânicos reafirmavam a cultura africana no Brasil, e à medida que mais se

informavam, mais desejosos ficavam de se auto-representar e se reafirmar enquanto afro-

descendentes. O movimento de dessincretização iniciado em 1983 como o manifesto da

descatolização, assinado por importantes iyalorixás das casas mais tradicionais da Bahia na

Conferência Mundial da Tradição e Cultura dos Orixás é um exemplo de grande relevância do

desejo de auto-representação. As “etnografias domésticas” são tidas como estratégia para

corroborar o ponto de vista e autoridade desses intelectuais “de dentro para fora”, que acreditam

ser academia uma das alternativas possíveis para transmitir a ideologia afro-centrada, entretanto,

um desafio, quando se chocam a cultura da oralidade e a produção escrita. Essa camada de

intelectuais atuou na implementação de planos de mídia: sites, revistas, com a incumbência de

educar e perseverar a cultura, história e memória do Candomblé, como a revista Orixás, conforme

nos exemplifica Lima.

A aproximação entre os intelectuais do santo com os demais profissionais acadêmicos

teceu boas parcerias, estabelecendo relações de aproximação e diálogo, todavia, muitas vezes,

houveram querelas. O que entra em jogo é a “luta concorrencial, agora pelo monopólio de falar

de si” (ibid, p.15). Os intelectuais “de dentro” questionam a autoridade dos acadêmicos, bem

como o papel secundário dentro da própria experiência. Estabelecem paradigmas e premissas

epistemológicas, apontando padrões, métodos de análise, formas de olhar. Ainda há a denúncia:

acusam alguns cientistas sociais de usar o estudo do candomblé para a autopromoção, e o mau

uso das informações recolhidas; os cientistas sociais muitas vezes agem “deturpando muito do

que lhes foi informado, ou equivocando-se nas suas interpretações e muitas vezes revelando

segredos a que tiveram acesso” (idem).

No intuito de sistematizar a doutrina religiosa afrodiaspórica os intelectuais praticantes de

religiões de matriz africana muito colaboraram para o alargamento dos horizontes desses campos

de estudos, bem como utilizaram essa sistematização como estratégia de defesa contra a

intolerância religiosa.

O neopentecostalismo

A presença de religiões neopentecostais é uma realidade demasiado notória na sociedade

brasileira. O rápido aparecimento e o quase epidêmico desenvolvimento nos permitem supor a

força dessas doutrinas e de suas estratégias de conversão e angariação de adeptos.

Emerson Giumbelli, antropólogo e professor da UFRJ, aponta para uma importante

mudança do campo religioso : “Nas últimas décadas, os evangélicos se tornaram os principais

protagonistas de uma redefinição do religioso no Brasil.” (GIUMBELLI, p.149). O advento da

categoria “os evangélicos”, não obstante caracterizar uma rude generalização por se tratar de um

número vário de vertentes, representa o papel de destaque que as igrejas neopentecostais

exerceram nessa trajetória, que, segundo ele, clarifica o campo religioso, tornando-o nédio,

aclarando seus contornos de um modo nunca antes experienciado. A força de tal lume se deve à

posição assumida pela Igreja Universal do Reino de Deus, que ao longo dos anos 90 vai se

estabelecer como principal igreja evangélica, amalgamando em seus discursos a diversidade das

demais igrejas, utilizando e reforçando a categoria “os evangélicos”. O autor chama atenção

ainda para o fato de que tal redefinição do campo religioso afeta à sociedade como um todo,

como também faz emergir as semelhanças entre católicos e evangélicos no que diz respeito ao

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modo de atuação, o agir que de forma aberta se deixa permear por outras lógicas, na busca

incessante por expansão.

Sobre essa mudança no campo religioso, diversos outros autores também se colocam. Ari

Pedro Oro, num artigo que tem como missão analisar as respostas afro-religiosas no Rio Grande

do Sul aos ataques iurdianos intolerantes, apresenta o crescimento da IURD como um fenômeno:

“A Universal, ou simplesmente Iurd, como também é conhecida, consiste num dos mais

impressionantes fenômenos religiosos do Brasil dos últimos anos.(...) esta igreja neopentecostal

brasileira alcançou um crescimento espantoso na última década.” (ORO, p.31). Consoante com

Giumbelli sobre a recomposição do campo religioso brasileiro, Oro acredita que a IURD operou

uma quebra no paradigma religioso quando “se insurgiu contra o lugar secundário que o

pentecostalismo ocupava no campo religioso dominado pelo catolicismo.” (ibid, p.32). A prova

mais visível dessa mudança é a exacerbação do religioso no espaço público: “A Iurd surgiu e

impôs uma lógica diferente da que predominava até então no campo pentecostal. Em vez de

templos modestos e retirados dos espaços nobres das cidades, a Iurd vai alugar grandes espaços

físicos (...) erguer templos e ultimamente catedrais de dimensões impressionantes” (ibid, p.38).

Giumbelli ressalta como principal característica da IURD “a agressividade com que se

contrapõe às religiões não evangélicas”. Desejoso de analisar tal aspecto mais profundamente, o

autor busca auxílio no conceito de fundamentalismo. Segundo sua definição, esta categoria

“remete à intervenção da religião sobre a sociedade”, e “serviria para abarcar, mais ou menos,

indistintamente, os ataques discursivos, os ataques rituais, as intrusões sociais e mesmo as

agressões diretas que vão parar nos registros policiais ou nas páginas de jornais populares.”

(GIUMBELLI, p.158). Esse termo, nascido no contexto norte-americano, cunhado pelos

protestantes como resposta ao liberalismo teológico, era utilizado como referência aos preceitos

bíblicos, que como o fundamento primordial e intocável, deveriam ser literalmente traduzidos e

interpretados ao pé da letra. Esse literalismo, considerava que a Bíblia ainda hoje serviria “para

orientar a vida e organizar o mundo”, sem que precisasse ser feita nenhuma adequação de termos

para a realidade atual, criticando a leitura filológica e o método da crítica histórica.

As igrejas neopentecostais no Brasil, tendo a IURD ainda como o referencial, adotaram

traços diretos desse fundamentalismo. No sentido de uma concepção de relação entre religião e

política e em seu projeto de um cristianismo hegemônico, essa analogia fica mais clara. Todavia,

o autor chama atenção para a ineficácia de uma generalização entre os sentidos da categoria

fundamentalismo de diferentes experiências. O lugar destinado à bíblia, no caso do

neopentecostalismo brasileiro, se difere bastante do seu uso pelo fundamentalismo do

protestantismo norte-americano. Giumbelli afirma que: “De fato, o uso que os pastores fazem da

Bíblia é bastante seletivo, privilegiando determinadas passagens e interpretações.(...) A leitura

da Bíblia pelos pastores da Igreja Universal não é literalista (...) porque a Bíblia é menos um

fundamento e mais um elemento dessa religiosidade pentecostal.” (ibid,p.165). No

neopentecostalismo à brasileira, a bíblia torna-se quase como uma alegoria, e representa muito

mais do que instrui.

Ronaldo de Almeida, professor da Unicamp admite existir uma certa “exegese bíblica”,

traço comum às religiões protestantes, porém de forma superficial. Em seu artigo intitulado Dez

anos do “chute na Santa – A Intolerância com diferença, o autor procura pensar como se dá a

relação da IURD com as demais crenças nos dias atuais, bem como a sua atuação em outras

esferas da vida social no Brasil. Tal como Giumbelli, Almeida também associa o proceder

neopentecostal brasileiro ao fundamentalismo norte americano, através da asserção de que “o

sistema doutrinário vindo para o Brasil assenta-se, em boa medida, na matriz fundamentalista-

evangélica, acrescida da doutrina do Espírito Santo” (ALMEIDA, p.182). O ponto de

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aproximação que o autor estabelece é o proselitismo, como o “impulso que inculca nos

evangélicos o dever de tornar as pessoas iguais a eles” (ibid, 183). Aprofundando ainda mais a

reflexão sobre o proselitismo neopentecostal, Vagner Gonçalves da Silva afirma que essa tática é

possível graças ao arcabouço midiático do qual o empreendimento neopentecostal lança mão.

Uma ampla rede de comunicação de massa foi urdida, contando com programas de rádio, grande

material panfletário, sites, editoras e emissoras de tv. Oro caracteriza a Igreja Universal como

uma igreja midiática: “A Universal também vai dar grande atenção à mídia. Ela surge como uma

igreja midiática e hoje detém duas redes de televisão (...) exporta seus programas para vários

países(...) É também proprietária de 62 emissoras de rádio no país.” (ORO, p.39).

Silva atribui a grandeza dessa empresa midiática de uma “cruzada proselitista” ao status

adquirido pelos neopentecostais na sociedade brasileira. A crescente eleição de candidatos que

assumem a fé protestante, assim como candidatos coligados a igrejas evangélicas representa um

amparo aos ideais discriminatórios e perseguidores dos neopentecostais aos praticantes da fé

espírita. No campo da representação política, esses personagens atuam para atrasar e/ou

prejudicar o desenvolvimento das religiões de matriz africana. Ari Pedro Oro também atesta essa

influencia política: “A Iurd detém também importante presença na política. Elegeu seu primeiro

deputado federal em 1986. A partir daí sua progressão foi constante” (ORO, p.39). Almeida

indigita uma má utilização da fé como plataforma política por parte dos neopentecostais, fator de

incomodo perante a sociedade brasileira. O movimento do “púlpito ao palanque” promove na

opinião pública mais difundida, segundo a opinião do autor, a maledicência dos evangélicos,

“cujas lideranças costumam ser percebidas com desconfianças, sendo algumas consideradas

ambiciosas e arrivistas” (ALMEIDA, p.174). A filantropia é a estratégia que consolidou a

aproximação entre neopentecostalismo e política. Com efeito, a presença dos evangélicos na

prática da política “é retroalimentada pela presença na mídia e pela prática filantrópica. A mídia

garante visibilidade à igreja e aos seus candidatos e a filantropia estabelece um vínculo

clientelista.” (ibid, p.176). Giumbelli considera esse assistencialismo, no caso da IURD, como

tática de hegemonia religiosa; agindo desta maneira, esta igreja estaria querendo tornar-se a mais

influente no Brasil, e esse procedimento “de certa forma mimetiza o lugar ocupado pela Igreja

católica” (GIUMBELLI, p.162)

Retornando ao ponto da belicosidade iurdiana, a adoção da retórica da batalha espiritual é

ponto crucial para o entendimento da atitude neopentecostal. Apelando para a tradicional

dualidade entre o bem e o mal, essas doutrinas maniqueístas – ilustradas pela teologia da batalha

espiritual desenvolvida pelo protestantismo norte-americano e adaptada às especificidades

culturais brasileiras – associam todo o mal à atuação do diabo na terra. Vagner Gonçalves da

Silva pontua o comportamento exorcista da ideologia neopentecostal, na qual os demônios que

vivem na terra materializados na figura dos deuses de outras religiões devem, por obrigação do

fiel, ser combatidos e exterminados. A incumbência maior do crente seria “dar prosseguimento à

obra iniciada por Jesus Cristo de combate a tais demônios” (SILVA, p. 11) Esse dever moral e

espiritual exorcista é também uma tática proselitista. Shows e programas de tv são montados,

sempre fazendo representações difamadoras, trazendo depoimentos de pessoas convertidas e ex-

praticantes de cultos e práticas candomblecistas: “enquanto outras igrejas se mostram

relativamente discretas na expressão das práticas exorcistas, a Iurd faz disso o centro de suas

atividades ritualísticas” (ORO, p.35). Entidades do candomblé, principalmente o Exu, associadas

ao demônio cristão são a materialização do mal, no dualismo bem (deus) e mal (diabo), e são

exorcizadas nos cultos. Desse modo, Oro conclui a importância central da figura do diabo na

lógica neopentecostal: “as representações do diabo „constituem o eixo a partir do qual o

universo simbólico desta igreja é construído‟” (ibid, p.42).

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Muito apropriada é a caracterização que Oro faz da Igreja Universal como uma “igreja

religiofágica (...) que construiu seu repertório simbólico, suas crenças e ritualística

incorporando e ressemantizando pedaços de crenças de outras religiões, mesmo de seus

adversários.” (ibid, p. 33). O autor releva que, esta igreja incorporou do catolicismo “as noções

de milagre, inferno, pecado e demônio”, assim como “sua forma organizacional episcopal”

(ibid, p.34). A importância atribuída às entidades afro-religiosas é tamanha, que essa mitologia é

incorporada ao sistema simbólico das igrejas neopentecostais de modo que “ser bispo, pastor,

obreiro e mesmo freqüentador da Universal, ao menos aqui no Brasil, implica não somente em

conhecer a bíblia e a doutrina pentecostal mas também em dominar os códigos simbólicos, as

crenças e o discursos das religiões afro-brasileiras” (ibid, p.48). Prova disto é o status atribuído

aos ex-sacerdotes das religiões afro dentro da Iurd. Estes ocupam posição de destaque dentro da

ritualística, sendo chamados para traduzir termos e comportamentos de supostas entidades

incorporadas. Oro lança mão do conceito de ressemantização para dar conta de tal fenômeno.

Entendida como um processo de alteração de significados, a ressemantização introjeta o culto

afro-brasileiro em seu culto para poder apurá-lo, modificando seu sinal de positivo para negativo.

A partir de então, os símbolos alusivos às religiões afro-brasileiras são estigmatizados. Giumbelli

descreve esse fenômeno como um “sincretismo às avessas”, que paradoxalmente incorpora

através do exorcismo as entidades africanas à cosmologia neopentecostal. Esses processos de

“ressemantização” e “sincretismo às avessas” tem como um exemplo o “acarajé do Senhor”,

como nos relata Silva; o famoso alimento de entidades afrodiaspóricas é ressignificado à luz da

ideologia protestante.

A partir dessa explanação podemos concluir que o universo simbólico desse par de

seguimentos religiosos antagônicos estabelece uma relação dialógica, e que as igrejas

neopentecostais, inspiradas pela inauguradora Igreja Universal utilizam como principal tática de

recrutamento de adeptos a simbologia própria às crenças que considera como antônimas.

A intolerância religiosa

Nas décadas finais do século XX, a sociedade brasileira viu irromper um conflito,

prognóstico de uma mudança estrutural no que concerne ao espaço da religiosidade. Tal querela

foi o que se convencionou chamar de “intolerância religiosa”, envolvendo protestantes e espíritas,

em especial àqueles das religiões de matrizes africanas. Num extremo desse embate estão os

neopentecostais, e a intensificação da intolerância acontece ao mesmo tempo que o processo de

desenvolvimento e disseminação da cultura protestante no Brasil. No outro extremo,

diametralmente opostos, estão os espíritas, no caso, os pertencentes às religiões afro-brasileiras.

Eles são o alvo dos ataques neopentecostais e ocupam oficialmente um lugar marginal, segundo

as estatísticas de adesão religiosa.

Frente ao agravamento da hostilidade aos cultos afro-brasileiros e das respectivas reações,

Silva destaca algumas causas através das quais seria possível explicar esse fenômeno; a disputa

por adeptos de uma mesma origem ou classe social é a principal delas; o proselitismo é também

uma forte motivação, uma vez que a vontade de que todos se tornem iguais avulta a diferença e

aumenta o sentimento intolerante. Silva cita ainda o preconceito racial que existe sob a

discriminação religiosa. Todos os símbolos que remetem a herança africana são associados às

religiões afro-brasileiras, e dessa forma, marginalizados, estigmatizados e impugnados. O autor

traz o exemplo dos livros didáticos vetados pelos professores evangélicos por abordar temas

relativos à África e ao candomblé

O autor conceitua o termo “ataque” enquanto “uma investida pública de um grupo religioso

contra o outro” (SILVA, p.9) e aponta para a ambiguidade semântica do termo, que a um só

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tempo significa intolerância religiosa e discriminação para os espíritas, evangelização e libertação

na perspectiva neopentecostal. O ataque chegou, nas ultimas décadas do século passado, a fatos

extremados, como a invasão a terreiros, destruição de artefatos e agressão a pessoas; festas e

rituais religiosos em lugares públicos foram interrompidos, o que gerou uma maior mobilização

de reação a esses abusos intolerantes. O autor ressalta que, não obstante essa reação tenha sido

crescente, ainda é muito tímida frente à organização da grande empresa neopentecostal, disposta

a ocupar todos os lugares, sociais, políticos e religiosos. Aponta alguns episódios como

excitadores dos movimentos de reação, tais como o “chute na santa”, no qual um pastor

evangélico em rede nacional chuta uma imagem de uma santa (negra, diga-se de passagem), e a

morte da mãe Gilda, uma tradicional ialorixá de Lauro de Freitas, Bahia, que faleceu por conta de

um ataque cardíaco provocado pela perseguição e agressão à sua pessoa e familiares.

Ricardo Mariano também se propõe a apontar as causas do ataque neopentecostal às

religiões afrodiaspóricas. À emergência da reflexão acerca da intolerância religiosa, seu artigo

demonstra uma tentativa de inquirir suas causas, bem como se mostra atento à discussão

conceitual travada em torno do tema. Para tanto, procura nas igrejas neopentecostais a força

motriz que impulsiona o sentimento intolerante, relendo os argumentos teológicos e proselitistas,

formadores de um “antagonismo religioso”.

O autor destaca a noção de tolerância e intolerância; numa breve explanação histórica

pontua que a questão da tolerância nasce das guerras civis religiosas na Europa do século XVI,

onde a quebra da autoridade política da igreja católica e as perseguições aos protestantes

resultaram em leis precursoras da democracia moderna, que versavam sobre tolerância e

liberdade. A intolerância, por sua vez, é como a noção de possuir uma verdade que não aceita

nenhum argumento contendedor, que deve ser levada a todos de forma impositiva. Esse par de

conceitos antagônicos é, segundo Mariano, relativizado na sua utilização empírica, e apresenta

pólos negativos e positivos. O autor chama atenção para a vária interpretação, que se modifica

quando a discussão é inserida em diferentes contextos históricos e sociais. Os casos de

intolerância são de difícil interpretação, principalmente em países democráticos, onde a política

aberta e a liberdade de culto promovem a diversidade religiosa. A própria tipificação do crime de

intolerância religiosa (crime contra o sentimento religioso) é precária, dependendo da

interpretação dos agentes da lei. Ricardo Mariano atenta para a própria contradição da expressão

“tolerância religiosa”, uma vez que ela parte do pressuposto da liberdade de crença, e esse mesmo

pressuposto de liberdade é o direito que permite aos evangélicos por exemplo, considerarem

diabólicas certas crenças, usos e costumes religiosos que lhes são exógenos.

O autor chama atenção para a correta utilização dos termos e conceitos, bem como para a

diferenciação entre eles; afirma que no Brasil o candomblé possui liberdade religiosa, ainda que a

discriminação não tenha se erradicado. Mariano conclui que os crimes e a hostilidade direcionada

aos cultos afro-brasileiros foram aspectos construídos sócio-historicamente, frutos de um passado

racista e escravocrata. Regressa ao século XIX, e apresenta o racismo científico criado na sua

segunda metade como forte fator fundador de discriminação ao candomblé naquele contexto. A

escravidão ainda em voga tornava a perseguição aos cultos um dever cívico. Com o seu fim,

denominações como “baixo espiritismo” reafirmavam uma hierarquia religiosa que

subalternizava o candomblé, que a partir de então sofre forte repressão institucional até meados

do século XX. As acusações eram de cunho religioso, policial e judicial, ainda que as

justificativas para elas se respaldassem basicamente em chavões religiosos, mais precisamente

cristãos. O século XX é conceituado pelo o autor como um tempo de fragilidade, onde a própria

democracia nacional dava os primeiros passos, fato que possibilitou a permanência e a

manutenção tardia da marginalização e perseguição. No cenário atual, a liberdade fora garantida,

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posto que existem aparatos legais para tanto, mas a discriminação prevalece tardiamente, e se

manifesta na grande maioria das vezes por razões religiosas, na opinião do autor.

A discriminação de hoje teria haver então com a demonização dos cultos afro-brasileiros

efetuada pelo crescente protestantismo nacional. Buscando as motivações dessa discriminação

dentro da filosofia protestante, Mariano aponta para o carácter maniqueísta desse conjunto vasto

e vário de igrejas e denominações. Dentro da lógica dualista dessa cosmologia, dois pilares são

construídos: um no qual o bem é associado a deus, que é associado à espiritualidade elevada;

outro, onde o mal é associado ao demônio, cujo agir é relacionado à uma espiritualidade negativa,

ao que é mundano. Nessa hierarquização de dualismos, a figura do demônio exerce um claro

protagonismo; agente de todo o mal que acontece na terra, o seu campo de atuação é o

espiritismo – todas as suas vertentes –, através do qual ele se manifesta nos homens. Parte daí o

combate aos cultos afro-brasileiros, que se alimenta na esfera espiritual desse tipo de concepção,

e na esfera prática, de interesses expansionistas que visam angariar mais adeptos, retirados das

crenças espíritas direto para as fileiras do exército de cristo. Mariano vê a demonização das

entidades africanas como efeito de velhas idéias católicas e racistas inveteradas na mentalidade

nacional, todavia atesta para a auto-demonização que é feita por certos segmentos dessas

religiões. Lideranças e adeptos da umbanda, por exemplo, se baseiam em crenças dualistas cristãs

e nomeiam entidades com nomes de demônios bíblicos, as tratando como seres inferiores,

espíritos do mal.

No que respeita às reações do afro-religiosos, dispõe-se diversas opiniões, algumas até

divergentes. Giumbelli descreve uma vitimização, isto é, as religiões afro-brasileiras e seus

personagens são sempre retratados como vítimas, o que limita a reflexão acerca de sua atuação

como sujeitos, delimitando assim um dado lugar de passividade. È exatamente buscando elucidar

esse processo de vitimização que o autor escreve, entendendo que esse fenômeno é por si só

revelador do campo religioso. Esse processo se deve em parte pela pouca juridicização, que por

sua vez é conseqüência da falta de preparo e de interesse por parte das autoridades legais

responsáveis, como também pela dificuldade de analisar os casos de intolerância, cujo exame

muitas vezes apresenta aspectos que se dispõem afora da esfera legal. Giumbelli assesta para

uma desinformação por parte dos entes religiosos, sendo na maioria das vezes provenientes de

camadas populares; contudo, destaca o crescimento de uma preocupação que se direciona no

sentido de uma tomada de consciência acerca dos próprios direitos, no que concerne à

regularização e institucionalização de casas, a luta pela garantia de imunidade tributária e o

tombamento de propriedades históricas.

Essa tomada de poder reflete-se também nos crescentes processos abertos na justiça,

denúncias de casos de abuso e intolerância religiosa. A movimentação de contra-ataque reuniu

em si diversas vertentes do espiritismo, e contou até com a participação de outras religiões,

formando um movimento ecumênico de resistência à intolerância neopentecostal, uma vez que o

ataque é direcionado a toda e qualquer religião que não as protestantes. Os resultados são

favoráveis à causa espírita, processos, condenações e sentenças são benéficas, e as entidades de

defesa dos direitos humanos tomam partido, ainda que a falta de informação e a burocracia das

varas judiciais ainda desestimulem a mobilização pela reação. Neste sentido, Silva relembra os

movimentos de resposta à intolerância religiosa: O Movimento Contra a Intolerância Religiosa,

na Bahia; A Comissão de Assuntos Religiosos Afrodescendentes, em São Paulo; a Comissão de

Defesa das Religiões Afro-Brasileiras, no Rio Grande do Sul.

Oro apresenta uma outra visão a respeito da resposta afro-religiosa. Em sua opinião, o que

existe é a resignação negra. O autor levanta algumas hipóteses para um “relativo conformismo”.

A desmotivação seria então ocasionada pela eficácia das práticas de ressemantização da

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simbologia africana por parte da IURD e pela sua influência política e midiática, ou pela

diferença ética entre as ideologias: “a diferença entre a agressividade da ofensiva neopentecostal

e a relativa indiferença de parte das religiões afro-brasileiras reside também na diferença

existente entre tais religiões no que tange à concepção do mal e na conseqüente abrangência do

sistema ético, religiosamente justificado” (ORO, p.53). Um outra hipótese seria de que a

desmobilização estaria relacionada à própria estrutura fragmentária do campo religioso afro-

brasileiro, um mosaico de casas e terreiros autônomos que competem por adeptos. Ou ainda, o

silencio seria proposital, repetindo a estratégia que durante os quase quatrocentos anos de

escravização garantiu a sobrevivência de tais cultos.

Em resumo, a intolerância religiosa representa um processo de longa data construído

vagarosamente dentro da sociedade brasileira, que ainda está longe de ser resolvido.

A análise dos questionários

O Trabalho de mapeamento das casas e templos de religiões de matriz africana se iniciou

em meados de 2008. Durante esse tempo, foram mapeadas mais de 800 comunidades de terreiros

e outros tipos de comunidades afro-religiosas em todo o estado do Rio de Janeiro. Esse número

revela a importância da matriz africana na composição da religiosidade nacional; é digno de nota

que a perseguição dessa esfera do campo religioso brasileiro, levada a cabo ao caminhar de tantos

séculos, gerou um processo de marginalização da afro-religiosidade, que durante muito tempo

permaneceu oculta, como estratégia de preservação das religiões e proteção dos adeptos.

Destarte, sobre esse montante, é possível até arriscar-se a estabelecer duas hipóteses:

primeiro, que ele representa um novo momento e uma nova estratégia de preservação,

impulsionada pela intensificação do fenômeno da intolerância religiosa a partir dos anos 80 do

século XX, com o advento do neopentecostalismo, fato que gerou um movimento de auto-

afirmação e de mobilização social por parte dos adeptos afro-religiosos, como atestam em seus

escritos autores sobrecitados, como Oro e Giumbelli; segundo, que ele representa também uma

parcela bem menor do que se pode estimar do número total de comunidades no estado, ao passo

que o medo da perseguição ainda figura uma realidade muito intensa dentro desse universo

religioso.

Refletindo sobre a posição da afro-religiosidade nos dias atuais, Reginaldo Prandi, num

artigo intitulado As religiões Afro-brasileiras e seus seguidores, aponta que esse ramo do campo

religioso brasileiro está em declínio. Segundo suas pesquisas realizadas comparando censos

produzidos nas décadas de 80, 90 e 2000, o Brasil está menos católico, menos afro-religioso, e

mais neopentecostal. Todavia, Prandi afirma que “no caso das religiões afro-brasileiras, o senso

oferece sempre cifras subestimadas de seus seguidores. Isto se deve às circunstâncias históricas

nas quais estas religiões se construíram no Brasil.” (PRANDI, p.16). Sobre essas

“circunstâncias históricas” de que se refere o autor, o recente passado de perseguição – até muito

pouco tempo atrás as religiões afro-brasileiras eram proibidas e duramente perseguidas pela

polícia e outros órgãos públicos – e o racismo ainda muito forte em nossa sociedade são grandes

fatores, como mais a frente será melhor elucidado.

O mapeamento funcionou da seguinte forma: foram enviados pesquisadores de campo

devidamente treinados para visitar as comunidades, conversar pessoalmente com o responsável

religioso e aplicar um questionário, bem como operar a cartografia, por meio da tecnologia GPS.

O intuito era realizar uma “cartografia social”, permitindo visualizar graficamente a dispersão das

comunidades afro-religiosas assim como conhecer sua realidade social. A visitação cumpriu a

dupla função de mapear e divulgar a pesquisa, em coerência com a natureza do próprio campo

afro-religioso: relações de constantes trocas e proximidade no seio das comunidades afro-

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religiosas fazem com que este campo funcione como uma rede muito bem entretecida. O

questionário aplicado seguiu um padrão, cujos itens de maior relevância são:

- Denominações (nomes de auto-definição)

- Entidades patronas

- Ano de fundação da casa

- Localidade da casa

- Se há desenvolvimento de trabalhos sociais

- Se há filiação a federações ou associações

- Se o terreno onde funciona o espaço religioso é próprio

- Se possui CJNP

- Se o espaço religioso é legalizado

- Se o espaço religioso possui alvará da prefeitura ou de alguma federação para o funcionamento

- O número de adeptos da comunidade religiosa

- Se já houve algum endereço anterior

- Se a comunidade religiosa já sofreu intolerância religiosa

Nesse primeiro contacto com o material recolhido em campo, foram selecionados 391

questionários, como uma primeira tentativa de estabelecer padrões de análise que possibilitem

hipóteses e conclusões. O foco de análise recaiu sobre os relatos de intolerância religiosa; a

tipologia dos relatos, a recorrência de lugares ou nações e casos extremos formam algumas das

categorias de análise. Alguns dados começam a revelar as formas desse campo tão vasto e

desconhecido.

No que tange à pauta da questão da intolerância, 207 dos 391 questionários apontaram

uma maioria de comunidades que alegaram já terem sido vítimas de intolerância religiosa,

descrevendo, através de relatos, agressões de todos os tipos, chegando ao extremo de agressões

físicas e ameaças de morte. Surpreendente é o fato desses casos extremos de agressão serem tão

recorrentes. Dentre os 207 questionários onde aparecem os casos de intolerância religiosa,

surgem 46 referências a agressões físicas, tanto a pessoas quanto aos templos e espaços afro-

religiosos.

Como exemplos pertinentes, é possível transcrever alguns relatos dos questionários.

Numa casa de Umbanda localizada no bairro do Santíssimo, o respondente do questionário

revelou sofrer “agressão física e verbal. Corte de luz, ameaça de morte e destruição das

imagens, invasão da casa. As agressões são constantes, jogam fogo nos bancos, jogam fezes

dentro da casa, mexem na eletricidade, tentam inviabilizar as sessões.” (questionário nº36);

numa casa da nação Efón na Baixada Fluminense, em Duque de Caxias, outro relato: “Uma „filha

de santo‟ da casa foi apedrejada na rua por adeptos de outra religião” (questonário nº564); em

Anchieta, num templo da nação Ketu, “O pai de santo tomou um tiro por colocar um ebó na

rua.” (questionário nº156). Esses são apenas alguns dos casos extremos de intolerância religiosa.

E qual o motivo de tamanha intolerância? Segundo Ari Pedro Oro em seu artigo intitulado

Neopentecostais e afro-brasileiros: quem vencerá esta guerra?, publicado em 1997 pela revista da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esse ódio religioso provém de uma interpretação que

o neopentecostalismo faz da realidade, informado por uma concepção “que deita raízes nas

profundezas da humanidade, em diversos contextos culturais, foi enfatizada e adaptada à

cosmovisão cristã na Idade Média européia, aportada no Brasil com os católicos portugueses e

perpetuada até o presente, tanto no campo da religião em particular quanto da cultura em geral,

que concebe o mundo em tensão permanente entre os espíritos ou demônios causadores do mal e

da desordem e os deuses associados ao bem e a ordem.”(ORO, 1997, p.3).

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Vivendo a humanidade nessa eterna guerra do bem contra o mal, as religiões de matriz

africana e o espiritismo em geral são, segundo essa interpretação, o principal meio de atuação das

forças do mal. Oro afirma que “o neopentecostalismo brasileiro reproduz e exacerba a crença no

demônio” (idem, p.3-4), sendo este responsável por tudo, literalmente tudo – desemprego,

infidelidade, doenças, vícios, pobreza, etc – de ruim que acontece no mundo e na vida das

pessoas, assim como o “espírito santo” atuando no extremo oposto. Destarte, conclui Oro, o

neopentecostalismo ignora a construção histórico-social das noções de “bem” e de “mal”, bem

como retira a responsabilidade dos seres humanos sobre suas ações, uma das explicações para as

ações agressivas de neopentecostais desferidas contra adeptos de outras religiões, mesmo quando

chegam a casos extremos de agressão física como apedrejamentos e tiros de revólver, não serem

consideradas mau comportamento, ou falha de carácter, levando em consideração de que se trata

de um segmento religioso muito rígido em relação a índoles, procederes e posturas.

Tentando confeccionar uma tipologia dos relatos de agressão, podemos perceber que

certos padrões se repetem. A referência à intolerância sofrida por parte de evangélicos aparece 76

vezes nos questionários analisados, e a referência ao demônio, utilizada para agredir verbalmente,

aparece mais de 20 vezes. A intolerância acontece na maioria das vezes através de agressões

verbais – a referência a essa prática aparece pelo menos 71 vezes nos questionários, na maioria

das vezes relacionada a pessoas e entidades neopentecostais. Uma outra prática muito comum

utilizada por esse segmento religioso contra os adeptos de religiões de matriz africana é a

utilização de músicas, através de alto-falantes, rádios e televisão, colocados em alto volume,

como estratégia de afrontamento e até como tentativa de impedimento da realização de rituais

afro-religiosos.

Essa prática faz parte de uma estratégia de conversão e confrontação, como nos elucida

Vagner Gonçalves da Silva, no já citado prefácio do seu livro. Essa demonstração de intolerância

religiosa é proselitista e se vale do carácter midiático das religiões neopentecostais. Através de

todo um aparato de comunicação de massa, incluindo aí programação televisiva, programas de

rádio, gravadoras e produtoras musicais, sites, editoras e emissoras de tv inteiras, esse segmento

religioso desrespeita a agride os demais.

Oro também reflete sobre o tema em seu artigo já citado. Considerando como fraca reação

dos afro-religiosos, o autor afirma que o espaço midiático e político ocupado pelo

neopentecostalismo é talvez uma das explicações: “(...)secundário poder político que as religiões

afro-brasileiras ocupam na sociedade brasileira. Paradoxalmente, trata-se de religiões

procuradas e freqüentadas em todo o país, por indivíduos de todas as camadas sociais, inclusive

por políticos, mas que não desfrutam de uma força política capaz de mobilizar a sociedade, a

mídia, os intelectuais, etc, contra as reiteradas e diuturnas acusações de que são vítimas.”(idem,

p.14).

Não obstante, a análise dos questionários nos possibilita entender a intolerância religiosa

para além do seu óbvio, isto é, a guerra religiosa entre neopentecostais e afro-religiosos; muitos

dos relatos deixam entrever que a intolerância não acontece apenas pelo advento do

neopentecostalismo. Suas bases estão enraizadas em outras esferas da nossa cultura. A

intolerância de vizinhos, ainda que suas religiões não façam parte dos relatos, e ainda que estes

não tenham religião, ou que não sejam neopentecostais, é outro padrão que muito se repete nos

questionários. Diversos foram os relatos de abaixo-assinados promovidos pela vizinhança

insatisfeita e intolerante, movidos contra responsáveis religiosos e contra a permanência de

templos afro-religiosos nos locais.

Existe algo como uma “intolerância institucional” da qual se queixam muitos adeptos,

conforme os relatos nos questionários. A referência a esse tipo de intolerância aparece pelo

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menos 36 vezes, no conjunto de 209 questionários onde foi marcada a opção “sim”, quanto a

casos de intolerância religiosa. O que aqui é classificado como “intolerância institucional” é o

fato da opção religiosa ser motivo de demissões em empresas, preconceito em órgãos públicos e

discriminações externas ao ambiente das comunidades de terreiros. Diversos relatos acusam

hospitais, órgãos públicos, e principalmente escolas, de atitudes intolerantes.

Os relatos de agressão sofrida em transportes públicos, cemitérios no momento de ritos

fúnebres afro-religiosos, e em ambiente de trabalho são muito comuns nos questionários, assim

como a referência a formas veladas e dissimuladas de intolerância religiosa. A utilização de

paramentos religiosos, por exemplo, é sempre reprimida e condenada. A referência à agressão

policial também é muito recorrente. Diversos foram os relatos em que aparece a figura da polícia

como repressora, ou como arma utilizada por vizinhos e/ou evangélicos intolerantes. Este tipo de

intolerância pode ser explicado pelo fato de que “Até recentemente essas religiões eram

proibidas e por isso duramente perseguidas por órgãos oficiais.” (PRANDI, p.16). Esse passado

faz-se ainda presente: a memória da afro-religiosidade como prática proibida e ilegal ainda é

muito recente, o que permite e reforça a existência desses casos.

Ainda que não seja citado nos relatos de intolerância contidos nos questionários, o

racismo figura, para muitos autores que versam sobre o tema, um dos motivos latentes da

intolerância religiosa. Segundo Prandi, os adeptos das crenças afro-religiosas “seguem sobre forte

preconceito, o mesmo preconceito que se volta contra os negros independentemente de religião.”

(ibidem). O autor apresenta o processo a partir do qual as religiões de matriz africana

tradicionais, isto é, as quais se formaram desde a época da escravização, transformaram-se no

que ele chama de “religião universal”. Segundo o autor, a religião, que antes era freqüentada

apenas por afro-descendentes, nos dias atuais perde essa característica étnica, passando a ser

freqüentada por todo tipo de gente, sem que seja necessária a identificação com a “raça negra” e

sua luta por preservação do seu patrimônio cultural.

Ainda que esse processo de transformação do candomblé1 em religião universal seja

comprovado na realidade, o racismo ainda é forte motivo de intolerância às práticas afro-

religiosas, seja de maneira explícita ou de maneira subliminar. Os símbolos utilizados em rituais,

o toque dos tambores, as danças e comidas não são aceitos por fazerem referência à cultura

afrodiaspórica. Para Prandi, isto se deve “pelo peso do preconceito racial que se transfere do

negro para a cultura negra” (idem, p.26). Esse racismo “escondido” e enraizado é o que faz com

que muitos relatos recolhidos dos questionários não façam menção às religiões rivais como

causadoras de práticas intolerantes. Desta forma, a “intolerância institucional” é também

intolerância racial, ao passo que a simples menção a elementos dessa herança cultural, mesmo

que não sejam elementos da afro-religiosidade em si, já é o suficiente para que pessoas sejam

discriminadas, ainda que não se tenha certeza sobre suas opções religiosas.

Já Maurício Azevedo de Araújo, em sua dissertação de mestrado, defendida em 2007,

pela faculdade de direito da Universidade de Brasília, aborda a questão da relação do racismo

com a intolerância religiosa de outra maneira. Para ele, após as teses racialistas do início do

século XX caírem em desuso, o culturalismo substitui a compreensão sobre raça e etnia nos

centros de estudos nacionais. Teóricos da década de trinta, como Gilberto Freyre, surgem com

novas interpretações sobre as relações raciais e sobre a posição do elemento africano e afro-

descendente na cultura e sociabilidade do Brasil. Assim sendo, teorias são criadas buscando

entender o fenômeno não mais através da “raça”, e sim através da cultura.

[1]

Prandi afirma que o termo candomblé resume em si variadas religiões e práticas. Dessa forma, o Tambor de Mina,

o Xangô e o Batuque são também denominados como candomblé.

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Estabelece-se então, sendo fiel às palavras de Araújo, uma nova “verdade discursiva”,

que consiste em afirmar que a singularidade nacional está na convivência e na mistura entre três

elementos distintos, o “branco”, o “negro” e o “índio” na conformação da cultura nacional. E

para além, esta singularidade é positivada, sendo esta relação interpretada como “harmoniosa”,

ou pelo menos, menos agressiva e conflituosa do que em outros lugares onde estes três elementos

também conviveram. Araújo afirma que tal interpretação torna-se, na década de 50, um discurso

oficial de Estado, posto em prática através de políticas públicas que utilizavam o motim da

“convivialidade racial”, num período em que um projeto nacional-desenvolvimentista buscava

consolidar seus fundamentos ideológicos.

Nasce, assim, o que o Movimento Negro do Brasil convencionou chamar de “mito da

democracia racial”, que consiste na amenização da colonização portuguesa, na visão “açucarada”

das relações raciais no país. Para Araújo, o “mito da democracia racial” é um dos grandes fatores

causadores da intolerância religiosa, quando desferida contra as religiões de matriz africana.

Ainda que festejasse a cultura africana como importante matriz da cultura nacional, essa visão,

não obstante, ainda hierarquizava as relações raciais, sendo vista a cultura européia como mais

importante e determinante. A colaboração das três supostas “raças” não se dava com igual

importância, fato que, segundo Araújo, ainda confirmava a visão de inferioridade do elemento

negro e indígena.

Araújo utiliza um comentário de Gilberto Freyre para validar sua interpretação: “O livro

procurava enfatizar o fato de a formação brasileira representar um misto de impacto

civilizatório e cristianizante, traduzido pelo colonizador português, e uma espontaneidade, um

carácter telúrico, ecológico, primitivo, porém capaz, tanto em música como em arte, de afirmar

essa primitividade. Daí minha insistência em considerar o afro-negro co-colonizador do Brasil,

ao lado do português europeu.” (comentário de Gilberto Freyre sobre seu livro Casa grande e

Senzala, apud ARAÚJO, p.32). Para o autor essa visão nascida dessa interpretação que se

solidifica através da história, contribui para a intolerância religiosa nos dias atuais ao passo que

cristaliza uma visão acerca das religiões de matriz africana, uma certa imagem folclorizada e

distante, que faz com que esses cultos suscitem o passado, o primitivo, o barbarismo.

Quanto à relação de recorrência de casos de intolerância de acordo com lugares e nações,

ainda não está bem elucidada. Pelo que a análise inicial dos 391 questionários nos possibilitou

perceber, a intolerância está dispersa igualitariamente pelos focos de comunidades religiosas de

matriz africana, segundo a proporção de casas existentes nesses focos. Isto quer dizer que aonde

se encontra a maior concentração de casas, tem também a maior concentração de relatos de

intolerância. Das 391 comunidades registradas nesses questionários, 121 estão na Baixada

Fluminense, dispersas pelos municípios de Belford Roxo, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São

João de Meriti, Mesquita, Queimados, Nilópolis e Seropédica. É digno de nota a ínfima

existência de comunidades afro-religiosas na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, sendo

classificadas apenas 3, nos bairros da Rocinha, Glória e Leme.

O segundo foco de comunidades afro-religiosas é a zona norte e a zona oeste da cidade do

Rio de janeiro, com 86 comunidades em cada uma dessas áreas, instaladas ao longo de bairros

como: Oswaldo Cruz, Anchieta, Olaria, Pilares, Vila Isabel, Cordovil, Quintino, Água Santa,

Vicente de Carvalho, Rocha Miranda, Bento Ribeiro, Tomás Coelho, Piedade, Ramos, Cachambi,

Vaz Lobo, Méier, Madureira, Campinho, Engenheiro Leal, Honório Gurgel, Penha, Rio

Cumprido, Abolição, Marechal Hermes, Parada de Lucas, Brás de Pina, Ilha do Governador,

Colégio, Vista Alegre, Engenho de Dentro, Cascadura, Coelho Neto, São Francisco Xavier, Irajá,

Rocha Miranda, na zona norte; e Santíssimo, Realengo, Recreio, Inhoaíba, Campo Grande,

Taquara, Guaratiba, Pedra de Guaratiba, Paciência, Magalhães Bastos, Pechincha, Bangu, Vila

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Kennedy, Senador Camará, Vila Valqueire, Praça Seca, Santa Cruz, Padre Miguel, Freguesia,

Cosmos e Curicica, na zona oeste.

Os casos de intolerância seguem quantitativamente de acordo com essa dispersão; sendo

assim, das 121 comunidades afro-religiosas localizadas na Baixada Fluminense, 62 afirmaram

sofrer intolerância religiosa; das 86 comunidades da zona norte da cidade, 45; das 86

comunidades da zona oeste da cidade, 35; das 42 comunidades localizadas em Niterói, São

Gonçalo ou Itaboraí, 25 sofrem com intolerância religiosa, e assim sucessivamente.

A nação Ketu configura uma maioria significativa; em 163 questionários é afirmada como

nome de auto-definição, compreendendo assim quase a metade do total dos 391 questionários

analisados, seguida pela Umbanda(75), nação Angola(49), nação Jeje(48), nação Efón(28), nação

Omolocô(12), entre outras nações de menor expressão, tais como Ijexá, Nagô, Cantoá, Tumba

Junçara, etc. A lógica da proporção também parece funcionar para os relatos de intolerância

analisados segundo as nações, ou denominações. Desta forma, a nação Ketu é a que mais se

queixa de abusos intolerantes (84 comunidades afirmaram sofrer intolerância), seguida pela

Umbanda(32 comunidades), nação Angola(25 comunidades), nação Jeje(24 comunidades), nação

Efón(17 comunidades) e nação Omolocô (6 casas).

Prandi reflete sobre a proporção entre Umbanda e Candomblé existente no interior do

campo afro-religioso. Afirma que a partir da década de 50 do século XX, a Umbanda ocupou a

posição majoritária dentro deste campo. Essa popularidade da Umbanda decorre do fato dela já

ter nascido “híbrida”, tendo permanecido o candomblé, pelo menos até a primeira metade do

século XX, como religião dos descendentes dos africanos escravizados. Porém, a partir da década

de 60, os quadros se alteram: “O candomblé foi extravasando suas fronteiras geográficas,

abandonando os limites originais de raça e etnia dos seus adeptos e ampliando seu território.

Espalhou-se pelo Brasil conquistando para seus quadros até mesmo antigos seguidores da

Umbanda. (...) marcando presença em esferas culturais não religiosas: literatura, cinema,

teatro, música, carnaval, televisão, culinária, etc.” (idem, p.21).

O crescimento do Candomblé em detrimento da Umbanda é exposto em números: “O

candomblé cresceu para dentro e para fora do universo afro-brasileiro. Seus seguidores

declarados eram cerca de 107 mil em 1991 e quase 140 mil em 2000, o que representa um

crescimento de 31,3% num período em que a população brasileira cresceu 15,7%. (...)Por outro

lado, a Umbanda, que contava com aproximadamente 542 mil devotos declarados em 1991, viu

seu contingente reduzido para 432 mil em 2000. Uma perda enorme de 20,2%.”(ibidem). Esta

relação é reafirmada pela análise inicial dos 391 questionários. No caso do estado do Rio de

Janeiro, a maioria dos questionários com a auto-denominação “nação Ketu”, somada à todas as

outras denominações de nações do candomblé que aparecem nesse item ultrapassam em números

a Umbanda.

Para Prandi esta alteração se deve pelo que ficou conhecido entre antropólogos e

sociólogos como movimento de africanização das religiões de matriz africana, que consiste em

“certas reformas de orientação fortemente intelectual, como o reaprendizado das línguas

africanas esquecidas ao longo de um século, a recuperação da mitologia dos deuses africanos

(...) e a restauração de cerimoniais africanos.”(idem, p.22). Um outro movimento, o de

descatolização, faz parte dessa reafricanização, que ao aproximar as religiões de matriz africana

de seus fundamentos africanos, as aproxima também de seus aspetos mágicos, ao mesmo tempo

em que as desassocia das referências cristãs, mantendo-as afastadas da antiga proteção do

sincretismo, já obsoleta. Esse processo faz com que, segundo Prandi, o candomblé ganhe um

maior status dentro do campo afro-religioso, por conter em seus terreiros maior conhecimento

sobrenatural e utilizar com maior frequência e propriedade essas forças mágicas. Isso atrai para o

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candomblé não só adeptos da umbanda, como também pessoas de fora da cultura afro-religiosa,

que se utilizam destas somente como forma de resolver questões pessoais, num contexto onde o

campo religioso é também um mercado.

Um outro aspecto interessante do universo das religiões afro-diaspóricas é o papel que

esses grupamentos desempenham em suas regiões e comunidades. Um montante de 245

comunidades afro-religiosas afirmaram atuar em trabalhos sociais. De acordo com o

entendimento dessas comunidades sobre o que é um “trabalho social” estão algumas atividades

declaradas nos questionários, tais como: cursos profissionalizantes; educação para adultos;

assistência social; reforço escolar; distribuição de cestas básicas; aulas de capoeira; aulas de

iorubá; palestras sobre orientação sexual para adolescentes; aulas de música; visitas a orfanatos;

doação de comida aos moradores de rua; assistência jurídica; ensino religioso; distribuição de

roupas e brinquedos; contação de estórias e aulas de artesanato; acolhimento de pessoas

desamparadas; doação de alimento para orfanatos; biblioteca, consultório médico: ginecologista,

acupuntura, mapeamento de chacras; jogo de búzios e ebó de graça; orientação para a tirada de

documentos; eventos culturais; aula de violão para a 3ª idade; aulas de alfabetização para

crianças; corte de cabelo gratuito; distribuição de frutas e legumes; caridade, trabalhos espirituais

no bairro; assistência médico-odontológica; cursos sobre a cultura afro; aulas de trança nagô,

aulas de dança e culinária africana; trabalho com crianças carentes; almoço comunitário;

distribuição de leite em pó; verificação da pressão arterial; acupuntura para idosos, curso de

cabeleireiro; etc.

Essa atuação das religiões de matriz africana é muito importante, por revelar um carácter

fundamental dessas crenças: o senso de comunidade. Dentro de sua filosofia, o espaço, o terreiro,

a terra onde acontecem os ritos, é considerada sagrada. Dentro da dinâmica afro-religiosa, o

trabalho coletivo é uma prática comum e fundamental: todos cumprem funções e dividem tarefas.

Reginaldo Prandi chama atenção para a natureza quase familiar de organização dessas religiões.

E afirma que a dinâmica de formação dessas religiões se caracterizou “pela formação de

pequenas comunidades, em que todos se conheciam e se relacionavam. A religião recriava

simbolicamente relações sociais comunitárias que o avanço da industrialização e da

urbanização ia deixando de lado.” (idem, p.25).

O autor atesta, porém, que essa realidade não se alterou. Enquanto as demais religiões

evoluíram de acordo o sistema capitalista, oferecendo “serviços religiosos” convergentes com as

demandas atuais – um evangélico tem acesso à palavra e ao discurso do pastor sem ao menos

necessitar sair de casa, através de massiva programação televisiva, programas e rádios, e diversas

outras formas –, dentro do campo afro-religioso a relação permanece, sob esse aspecto, arcaica.

Dessa forma, a interação do espaço afro-religioso com a comunidade que o cerca é de suma

importância, talvez maior do que a relação do neopentecostalismo com este, posto que o

candomblé é a comunidade, depende dela para existir.

Quanto à situação jurídica, uma grande maioria de casas possui terreno próprio; das 391,

apenas 21 das casas não possuem o terreno em que funcionam; isto reflete a já mencionada

tensão entre afro-religiosos e a vizinhança. Diversos relatos apontam para a dificuldade em se

alugar um imóvel, caso o proprietário esteja ciente de que ali funcionará um templo afro-

religioso. 164 espaços estão legalizados, e apenas 94 possuem CNPJ. 215 comunidades estão

filiadas a algum tipo de federação ou associação. Sobre esses números, muito pode se dizer. O

recente passado de ilegalidade, como já foi acima exposto, dificulta a legalização, tanto jurídica

quanto imagética desse segmento religioso. Hédio Silva Jr. expõe essa dificuldade em seu já

citado artigo, quando por exemplo, menciona a pesquisa realizada por Ana Lucia Pastore

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Schirtzmeyr, onde esta observa a recorrência da associação entre os delitos de charlatanismo e

curandeirismo às práticas afro-religiosas, nos anais da justiça referentes ao século XX.

Araújo considera que foi a partir da formação e atuação de um movimento negro no Brasil

que o segmento afro-religioso teve os caminhos abertos para que reivindicações de proteção

jurídica pudessem surgir. A começar pela atuação da Frente Negra Brasileira, criada em 1931, a

reivindicação política desses movimentos abriu caminho para que a afro-religiosidade começasse

a ser respeitada enquanto religião. A década de 70 é, segundo o autor, momento de especial

importância, pois é quando, após um intervalo imposto pela ditadura, o movimento negro

nacional, pegando carona no contexto mundial revolucionário – as lutas pelos direitos civis nos

Estados Unidos, as lutas pela descolonização do continente Africano – se articula e reivindica

maiores direitos.

O que entra em jogo então é a noção de “afrocentrismo2”, conforme expõe Araújo: “Ao

invés de uma ação política voltada à integração e assimilação ao modelo universalista de

identidade nacional, marcada pela predominância da cultura eurocêntrica, o movimento negro

contemporâneo vai pautar suas ações por uma política de afirmação da africanidade, na

perspectiva de que a superação da hierarquia racial deve passar pelo reconhecimento das

tradições africanas.” (ARAÚJO, p.46). Essa noção é fundamental para a legalização do

candomblé e para sua legitimação enquanto religião.

O “mito da democracia racial”, ao folclorizar o candomblé, destorce sua imagem. Assim,

segundo Araújo, o entendimento desse fenômeno social enquanto instituição religiosa é

dificultado: “os novos mecanismos de controle e normalização que se moldam na esteira da

exaltação do Brasil como modelo de convivência racial podem ser sintetizados em duas táticas

de dominação: a reificação do universo religioso africano agenciado pela folclorização e

construção da imagem exótica do Candomblé, que, ao tempo em que atende aos interesses do

mercado de turismo e da imagem do estado brasileiro no cenário internacional, alimenta a

discriminação e a falta de reconhecimento jurídico e social de seu status de religião.” (idem,

p.35). Se a percepção do candomblé enquanto religião é desfocada, que dirá a percepção sobre a

intolerância religiosa. Se a “verdade discursiva” oficial entendia o Brasil como um país onde as

raças conviviam cordialmente, como é possível que exista discriminação a elementos da cultura e

sociabilidades afrodescendentes?

O movimento negro, entendido aqui como as diversas organizações de afro-descendentes

pela luta de seus direitos civis, vai dissolver essa visão encrostada no seio de nossa sociedade,

iniciando assim até mesmo a noção de intolerância religiosa. Para Araújo, dois momentos podem

ser elencados como marcos de resultados dessa luta: a promulgação do decreto 25.095, em 15 de

janeiro de 1976, eximindo as comunidades afro-religiosas da obrigação de conseguir um

requerimento policial para o funcionamento; e o Manifesto das Yalorixás contra o sincretismo

religioso, em 1983. Como atesta Hédio Silva, leis como a promulgada em 29 de dezembro de

1972, nº3 097, do Estado da Bahia, e a de nº3 443, de 6 de novembro de 1966, da Paraíba,

subordinando a existência e atividade das casa afro-religiosas à Secretaria de Segurança Pública,

eram, até o século passado, comuns.

[2]

Afrocentrismo é um conceito cunhado por intelectuais africanos e afro-diaspóricos do final do século XIX e início

do XX, impulsionados pelas mudanças mundiais, como o fim da escravização e as guerras civis nos Estados Unidos,

travadas em torno da questão racial. Cf: Afrocentrismo: Entre uma contranarrativa histórica universalista e o

relativismo cultural. FARIAS, Paulo. F. de Moraes. Tradução de João José Reis, in: Revista Afro-Ásia, nº29-30,

2003.

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O sincretismo foi largamente utilizado pelos adeptos do “mito da democracia racial”

como prova de convivência cordial de raças no Brasil. A luta pelo fim dessa prática, é também a

luta pelo reconhecimento da afro-religiosidade enquanto instituição religiosa, sem que para tanto

fosse preciso associá-la ao catolicismo. O fato de os terreiros de comunidades afro-religiosas

serem obrigados a pedir permissão policial pelo seu funcionamento era uma das maiores provas

do desrespeito às religiões de matriz africana, como atesta Araújo: “A obrigatoriedade de

pagamento de taxa e requerimento de licença policial para a realização das atividades litúrgicas

representava o caso típico de limite ao direito à liberdade religiosa das religiões de matriz

africana, que mesmo sendo exaltadas e utilizadas comercialmente pela elite branca, ainda

permaneciam como caso de polícia, entendidas como perigo à ordem pública.” (idem, p.51).

A filiação a associações pode ser entendida como resquício dessa situação de perseguição

do Estado ao segmento afro-religioso. Se já não é mais preciso pedir permissão policial para o

funcionamento de templos afro-religiosos, a necessidade de proteção a partir de filiação à

associações ou federações ainda é uma necessidade imperiosa. Os números do questionário

comprovam isso: entre as casas que possuem alvará de funcionamento, 189 foram outorgados por

federações ou associações, enquanto que apenas 32 são da Prefeitura. Numa das reuniões com os

pesquisadores de campo, foi enfatizado a reclamação dos adeptos da afro-religiosidade quanto a

atuação desses órgãos. Sendo necessário o pagamento de uma taxa para filiação, segundo um dos

pesquisadores de campo, as autoridades afro-religiosas muito se queixam que as associações e

federações não servem efetivamente para nada, não se engajando na luta pela consolidação dos

direitos dessas religiões, tampouco lutando ativamente contra a intolerância religiosa.

Prandi afirma que “as federações de umbanda e candomblé, que supostamente uniriam os

terreiros, não funcionam” (PRANDI, p.24); mas, segundo a sua visão, isto se dá por conta da

dinâmica estrutural das religiões de matriz africana, uma vez que a autoridade das Ialorixás e dos

Babalorixás nunca é contestada, aspecto que causa dificuldades de interação dentro do próprio

universo afro-religioso. Nos questionários aparecem várias referências a esses órgãos, sendo

alguns de maior recorrência: União Espírita dos Cultos Afro-Brasileiros; União Umbandista dos

Cultos Afro-Brasileiros; União Umbandista Pomba Branca; União Espírita de Umbanda; União

Espiricista de Umbanda do Brasil; Federação Umbandista dos Cultos Afro- Brasileiros;

Federação Brasileira de Umbanda; Federação Nacional de Cultos Afro Brasileiros; Federação de

Umbanda e Nações Africanas; Federação Espírita Dedo de Deus; Federação Pomba Branca;

Associação Umbandista do Brasil; Centro de Tradições Afro- Brasileiras, entre outros de menor

relevância.

A existência de poucas casas legalizadas e pouquíssimas casas possuidoras de CNPJ

contrasta em muito com a situação do neopentecostalismo. Não é preciso ler autores da academia

para entender a facilidade com que igrejas evangélicas contam para seu funcionamento, sendo

necessário apenas olhar ao longo de toda a cidade, onde cada vez mais proliferam templos

neopentecostais. Prandi fala sobre a desigualdade de condições entre os dois segmentos religiosos

rivais: “Sobretudo, nem o candomblé em suas diferentes denominações, nem a umbanda têm

quem fale por eles, muito menos quem os defenda. Muito diferente das modernas organizações

empresariais das igrejas evangélicas, que usam técnicas modernas de marketing, que treinam

seus pastores-executivos para a expansão e prosperidade material das igrejas, que contam com

canais próprios e alugados de televisão e rádio, e com representação aguerrida nos legislativos

municipais, estaduais e federal.”(idem, p.25). Essa discrepância torna a questão da intolerância

ainda mais dificultosa para as religiões de matriz africana.

Esse contacto inicial com os questionários recolhidos em campo, portanto, nos possibilita

algumas hipóteses. Como foi demonstrado, a nação Ketu possivelmente é majoritária dentro do

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campo afro-religioso no Estado do Rio de Janeiro. A Baixada Fluminense parece ser o espaço

onde se localiza a maior existência de templos e espaços das religiões afro-diaspóricas. A

situação jurídica ainda sofre com o recente passado de ilegalidade do segmento religioso, e com

as investidas de evangélicos, que ocupam muito mais espaços de poder. Uma grande maioria de

comunidade parece sofrer com a intolerância religiosa, ainda que em tempos de liberdade de

opção religiosa garantida. Esses e outros aspectos são fundamentais para a luta contra a

intolerância religiosa, uma vez que só partir da sua compreensão enquanto fenômeno será

possível traçar as bases para a sua erradicação, na direção de uma sociedade mais justa e

tolerante.

Conclusão

Definido o campo religioso brasileiro e seus conflitos, é-nos possível apontar algumas

conclusões. A formação do candomblé simbolizou a reafricanização da cultura brasileira, a

preservação da herança africana, bem como atuou como uma agente possibilitador da criação de

uma identidade africana para os negros brasileiros. O campo religioso afro-brasileiro é ainda hoje

muito pulverizado, ainda que após os anos de 1960 essa segregação tenha diminuído a partir de

uma tomada de consciência por parte de membros dessas religiões intelectualizados. O advento

das doutrinas neopentecostais significou uma reorganização do campo religioso brasileiro e seu

crescimento se deu de uma maneira assaz intensa e veloz, tendo como principal expoente a Igreja

Universal do Reino de Deus, que oferece aos demais neopentecostais “os horizontes

conquistados através da assistência social, da mídia e da política” (GIUMBELLI, p.166). O

neopentecostalismo tomou o lugar principal religioso por conta da força de sua doutrina e da

eficácia de suas estratégias de angariação de novos adeptos, e principalmente por causa de sua

adaptabilidade. A intolerância religiosa é produto de um processo histórico racista e

discriminatório, fruto da marginalização atemporal das religiões de matriz africana, acrescido

pela recomposição do campo religioso brasileiro, cujos novos protagonistas, por razões de

disputa de influências e poder, atribuíram às entidades afrodiaspóricas a culpa por todo o mal que

acontece no seio de nossa sociedade.

Como conseqüências, podemos indicar a maior visibilidade das religiões afrodiaspóricas, e

a reafirmação da democracia a partir de uma mobilização social de combate à intolerância. Ainda

que a liberdade religiosa tenha sido garantida legalmente para as religiões de matriz africana, na

prática essa dura realidade persiste obsoletamente, entranhada em nossa cultura. A diferença

representativa e demográfica favorável aos pentecostais dificulta a desmarginalização dos cultos

e age como mantenedora de velhos preconceitos e discriminações. Os textos lidos nos permitiram

a construção da percepção de que religiões de matriz africana e neopentecostalismo não são pólos

tão opostos, apesar de decididamente antagônicos. A estratégia lançada pela Universal de

ressemantização e incorporação de elementos de outras religiões em sua cosmologia criou uma

relação dialética entre protestantismo e espiritismo, pondo-os em constante relação de

aproximação e antagonismo “tal como dois espelhos que se refletem mutuamente” (ORO, p.67).

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