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  José Castilho Marques Neto (Organizador) Antonio Candido – Aracy Amaral Dainis Karepovs – Iná Camargo Costa Isabel Loureiro – João Machado Lélia Abramo – Luciano Martins Luiz Inácio Lula da Silva – Marco Aurélio Garcia Otília Arantes – Paul Singer – Sônia Salzstein MARIO PEDROSA MARIO PEDROSA MARIO PEDROSA MARIO PEDROSA MARIO PEDROSA E O BRASIL E O BRASIL E O BRASIL E O BRASIL E O BRASIL

Mario Pedrosa e o Brasil

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MARIO PEDROSA E O BRASIL

Jos Castilho Marques Neto (Organizador) Antonio Candido Aracy Amaral Dainis Karepovs In Camargo Costa Isabel Loureiro Joo Machado Llia Abramo Luciano Martins Luiz Incio Lula da Silva Marco Aurlio Garcia Otlia Arantes Paul Singer Snia Salzstein

A biografia de Mario Pedrosa traz a marca de seu tempo. Principalmente a capacidade de enfrentar desafios, de transpor barreiras aparentemente intransponveis, de apontar sempre novos caminhos. Visceralmente compromissado com o novo, enfrentou inmeras adversidades para defender suas idias, desde os primeiros anos de militncia poltica. ntegro, estendeu suas convices arte, campo em que tambm foi pioneiro como crtico e pesquisador, engajando-se com viso inovadora, paixo e lucidez na defesa da arte e de seus criadores, atividade que lhe rendeu respeito intelectual e grande prestgio internacional. A tentativa de capturar todos esses Mrios, que na verdade apenas um, o objetivo deste livro que a Editora da Fundao Perseu Abramo traz a pblico. JOS CASTILHO MARQUES NETO

Mario Pedrosa e o Brasil fruto de seminrio homnimo promovido pela Fundao Perseu Abramo e pelo Centro de Documentao e Memria da Universidade Estadual Paulista (Cedem-Unesp) um mergulho no pensamento e na atividade militante do poltico e do crtico de arte Mario Pedrosa, cujo centenrio de nascimento foi comemorado em 2000. Justa homenagem quele que considerado um dos maiores crticos de arte e um exemplo de intelectual engajado nas lutas populares, o conjunto de textos que formam este volume busca refletir sobre a contribuio de Pedrosa, examinando-a luz das preocupaes e perplexidades do presente. Tratando-se de Mario Pedrosa, nem poderia ser diferente. Sua irriquieta e despojada personalidade certamente no aceitaria apenas homenagens acrticas. Formado pela elite humanista da Capital da Repblica nas trs primeiras dcadas do sculo XX, freqentando o Colgio Pedro II e a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, Mario Pedrosa inicia sua vida poltica e intelectual enfrentando com singularidade o turbilho de crises polticas, econmicas e sociais que sacudiram o pensamento e a militncia das esquerdas nos anos 20 e 30.

Pode-se afirmar que essa singularidade o acompanhou durante toda a sua existncia, nunca deixando de ser um intelectual que levava radicalidade o pensamento independente e a crtica. Como militante poltico, tornouse, em vrios momentos da vida brasileira, smbolo da resistncia e do novo, tanto ao abrir caminho para o pensamento trotskista, contrrio ao Partido Comunista Brasileiro nos anos 30, como ao assinar a ficha nmero 1 do Partido dos Trabalhadores em 1980. Consagrado como um dos mais importantes crticos de arte do pas e com intensa atividade internacional nesta rea, Mrio Pedrosa um dos poucos brasileiros que se destacaram na arte e na poltica, sendo uma referncia preciosa para os pesquisadores e estudiosos da vida nacional. Estudar e refletir sobre esta marcante personalidade um fator de enriquecimento do debate poltico e intelectual dos difceis momentos que estamos vivendo como nao. Este o propsito ltimo desta homenagem.Leia tambm da coleo Pensamento Radical: Srgio Buarque de Holanda e o Brasil Antonio Candido (org.) Celso Furtado e o Brasil Maria da Conceio da Tavares (org.)

Mario Pedrosa e o Brasil

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mill, John Stuart, 1806-1873. Captulos sobre o socialismo / John Stuart Mill ; traduo Paulo Cezar Castanheira. 1 ed. So Paulo : Editora Fundao Perseu Abramo, 2001. (Coleo Clssicos do pensamentos radical) Ttulo original: Principles of political economy : and, chapters on socialism ISBN 85-86469-45-9 1. Socialismo I. Ttulo. II. Srie. 01-0544 ndices para catlogo sistemtico: 1. Socialismo : Cincia poltica 320.531 CDD-320.531

Jos Castilho Marques Neto (Organizador) Antonio Candido Aracy Amaral Dainis Karepovs In Camargo Costa Isabel Loureiro Joo Machado Llia Abramo Luciano Martins Luiz Incio Lula da Silva Marco Aurlio Garcia Otlia Arantes Paul Singer Snia Salzstein

Mario Pedrosa e o Brasil

EDITORA FUNDAO PERSEU ABRAMO

Fundao Perseu Abramo Instituda pelo Diretrio Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996 Diretoria Luiz Dulci presidente Zilah Abramo vice-presidente Hamilton Pereira diretor Ricardo de Azevedo diretor Editora Fundao Perseu Abramo Coordenao editorial Flamarion Maus Reviso Maurcio Balthazar Leal Candice Baptista Quinelato Editorao eletrnica Augusto Gomes Ilustrao da capa Mrio Pizzignacco

Impresso Grfica Vida e Conscincia

1a edio: maio de 2001 Tiragem: 2 mil exemplares Todos os direitos reservados Editora Fundao Perseu Abramo Rua Francisco Cruz, 234 04117-091 So Paulo SP Brasil Telefone: (11) 5571-4299 Fax: (11) 5573-3338 Na Internet: http://www.fpabramo.org.br Correio eletrnico: [email protected] Copyright 2001 by Editora Fundao Perseu Abramo ISBN 85-86469-46-7

PerdaA Mrio Pedrosa

Foi no dia seguinte. Na janela pensei: Mrio no existe mais. Com seu sorriso o olhar afetuoso a utopia entranhada na carne enterraram-no e com suas brancas mos de jovem de 82 anos. Penso e vejo acima dos edifcios mais ou menos altura do Leme uma gaivota que voa na manh radiante e lembro um verso de Brnett: no acrobtico milagre do vero. E Mrio? A gaivota voa fora da morte: e dizer que voa pouco: ela faz o vero com asa e brisa o realiza num mundo onde ele j no est para sempre E penso: quantas manhs viro ainda na historia da Terra? perda demais para um simples homem. (Ferreira Gullar, Toda Poesia)

Mario Pedrosa e o Brasil

Mario Pedrosa (julho de 1952)

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SumrioApresentao Jos Castilho Marques Neto, 9

PERFIS DE MARIO PEDROSAUm socialista singular Antonio Candido, 13 Uma chama revolucionria Llia Abramo, 19 Mario Pedrosa e o Partido dos Trabalhadores Luiz Incio Lula da Silva, 23 A utopia como modo de vida (Fragmentos de lembrana de Mario Pedrosa) Luciano Martins, 29

CRTICA, ARTE E EDUCAOMario Pedrosa e a tradio crtica Otlia Beatriz Fiori Arantes, 41 Mario Pedrosa: um homem sem preo Aracy Amaral, 51 A educao pela arte segundo Mario Pedrosa In Camargo Costa, 57 Mario Pedrosa: crtico de arte Snia Salzstein, 69

POLTICA E HISTRIAO jovem intelectual e os primeiros anos de militncia socialista Jos Castilho Marques Neto, 83 Mario Pedrosa e a IV Internacional (1938-1940) Dainis Karepovs, 99 Mrio Pedrosa e o socialismo democrtico Isabel Loureiro, 131

ATUALIDADE MARIO PEDROSAMario Pedrosa e o Vanguarda Socialista Paul Singer, 143 Mario Pedrosa: pensador socialista Marco Aurlio Garcia, 151 A coragem de comear de novo Joo Machado, 161

ANEXOSCarta aberta a um lder operrio, 169 O futuro do povo, 173 Sindicato ou partido, 177 O PT e o Estado, 180 Carta de resposta revista Veja, 185 Obras de Mario Pedrosa, 187 Programa do Seminrio, 189

Caderno fotos Dainis Karepovs, 193

ApresentaoO livro que apresentamos resultado de algumas contribuies ao Seminrio Mario Pedrosa e o Brasil 100 Anos de Arte e Poltica, organizado pela Fundao Perseu Abramo e pelo Centro de Documentao e Memria da Universidade Estadual Paulista (CEDEM-UNESP), por ocasio das comemoraes dos 100 anos do nosso maior crtico de arte. Mario Pedrosa nasceu na virada do sculo, em 25 de abril de 1900, perodo caracterizado pelo escritor e revolucionrio russo Victor Serge em suas memrias comoa fronteira de dois mundos: o que findava e o que despontava. Destruiu-se a noo estvel da matria; a guerra veio abolir a noo de estabilidade do mundo. A relatividade abria novas concepes desconcertantes de tempo e de espao.

J tive a oportunidade de afirmar, em outras ocasies, que a biografia de Pedrosa traz a marca de seu tempo. Principalmente a capacidade de enfrentar desafios, de transpor barreiras aparentemente intransponveis, de apontar sempre novos caminhos. Visceralmente compromissado com o novo, enfrentou inmeras adversidades para defender suas idias, desde os primeiros anos de militncia socialista, quando se colocou contra a corrente da poderosa Internacional Comunista dos anos 20 e 30, at seus ltimos anos de vida, engajado na luta pelo Partido dos Trabalhadores, em um momento em que este ltimo era apenas um sonho.9

Mrio Pedrosa e o Brasil

A propsito, tive naquele perodo uma experincia inesquecvel com Pedrosa, que me revelou muito de sua argcia intelectual e de seu destemor. Jovem militante trotskista, engajado na luta contra a ditadura militar, eu fazia parte de uma organizao que resistia ao surgimento do PT. Na primeira vez que encontrei Mario Pedrosa, por motivos profissionais, ele perguntou-me se eu j fazia parte do movimento pelo partido, dissertando com simplicidade, mas com muita convico, sobre a necessidade de um partido que representasse verdadeiramente os operrios, os trabalhadores do campo e os excludos, luta histrica de sua vida. No velho estilo, desfilei meus argumentos contrrios, todos permeados por um raciocnio esquemtico que, no limite, temia o que poderia vir a ser este novo partido. Ele ouviu-me com pacincia e retrucou, mais ou menos com essas palavras: Interessante a posio de sua organizao. Os trotskistas lutaram a vida toda por um partido operrio e, quando ele surge, vocs no entram. Percebi nesta resposta um homem que no se impunha barreiras intelectuais e tinha a coragem para experiment-las, o que constatei ser uma convico de vida, anos mais tarde, ao pesquisar suas cartas de juventude ao amigo Lvio Barreto Xavier. Em 1925 escreveu, criticando os raciocnios esquemticos do PCB: a limitao intelectual, eis onde no posso chegar. ntegro, estendeu suas convices arte, campo em que tambm foi pioneiro como crtico e pesquisador, engajando-se com viso inovadora, paixo e lucidez na defesa da arte e de seus criadores, atividade que lhe rendeu respeito intelectual e grande prestgio internacional. Tal como na militncia poltica, foi tambm neste campo um internacionalista, polemizando, abrindo perspectivas, divulgando novos artistas e tendncias. A tentativa de capturar todos esses Marios, que na verdade apenas um, foi o objetivo deste seminrio que a Editora da Fundao Perseu Abramo traz pblico. Como ainda no existe nenhum estudo que abranja o conjunto da obra e da vida de Pedrosa, na qual arte e poltica so uma unidade, traamos um roteiro para o livro constitudo de depoimentos de pessoas que privaram de sua companhia, seguido por estudos sobre sua crtica de arte e sobre sua vida poltica, concluindo pela reflexo sobre a atualidade das idias de Mario Pedrosa neste incio de sculo. Na primeira parte os depoimentos procuram retratar fases diferentes de sua longa vida, destacando sua participao poltica. So ex10

Apresentao

tremamente elucidadores e de grande sensibilidade os testemunhos de Llia Abramo, Antonio Candido, Luciano Martins e Luiz Incio Lula da Silva, abrangendo um perodo de 50 anos, desde os anos 30 at anos 80. A segunda parte trata de refletir sobre a crtica de arte e um aspecto pouco estudado na obra de Pedrosa, a educao pela arte. Contribuem Otlia Arantes, Aracy Amaral, Snia Salzstein e In Camargo Costa, em instigantes reflexes que analisam a contribuio permanente de Mario Pedrosa, demonstrando a atualidade de suas posies enquanto crtico. A militncia poltica e a histria de Pedrosa junto aos partidos de esquerda no Brasil so analisados na terceira parte, que reflete sobre trs momentos fundamentais para entender o percurso poltico de nosso homenageado a origem de sua militncia, sua ligao com a IV Internacional (trotskista) e suas convices sobre o socialismo democrtico. Escrevem Jos Castilho Marques Neto, Dainis Karepovs e Isabel Maria Loureiro. A quarta parte reuniu trs intelectuais que, tambm militantes do Partido dos Trabalhadores, buscam a atualidade das idias desenvolvidas por Pedrosa durante sua intensa vida poltica. Os textos so de Paul Singer, Marco Aurlio Garcia e Joo Machado. O livro se completa, como no poderia deixar de ser, com o prprio Mario Pedrosa. Um rico caderno iconogrfico, organizado por Dainis Karepovs, precedido por textos de grande significado poltico para os ltimos anos de militncia de Pedrosa, todos eles engajados na construo do PT, publicados no Jornal da Repblica. Mario Pedrosa nos deixou h 20 anos e este livro, nascido tambm no incio de um novo sculo, procura resgatar, ainda que parcialmente, sua presena forte, para utilizarmos a expresso que o professor Antonio Candido registra no incio de seu depoimento. Recordar e refletir sobre a vida de Pedrosa , sem dvida, uma lio para nossas prprias vidas e um convite para usufruirmos de sua audcia e coragem. Num mundo que novamente volta a findar e a despontar, pleno de desafios e de novas e inimaginveis possibilidades, Mario Pedrosa , sem dvida, uma grande companhia. So Paulo, abril de 2001 JOS CASTILHO MARQUES NETO11

Um socialista singular

Antonio CandidoEx-professor de teoria literria e literatura comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

freqente a expresso presena forte para indicar a fora da personalidade de algum. Eu diria que, para mim e alguns outros, Mario Pedrosa foi a princpio uma ausncia forte, no fim da dcada de 1930 e no comeo da de 1940, quando estava exilado e era meio lendrio. Eu me familiarizei indiretamente com ele por meio de Lvio Xavier, com quem convivi muito naquele tempo e depois. Ambos nasceram no mesmo ano, 1900, estudaram juntos na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, ingressaram juntos no Partido Comunista em meados da dcada de 1920, juntos aderiram por volta de 1930 oposio trotskista. Certa vez Lvio mostrou, para meu encanto de nefito no universo do socialismo, uma revista em francs dessa corrente, em que havia um artigo de ambos sobre a situao poltica do Brasil Lvio com o pseudnimo de L. Lion, Mrio com o de C. Camboa. Entre os dois havia uma dessas amizades raras, que duram sem nuvens a vida inteira, feitas de carinho, compreenso, admirao, afinamento completo e alegre13

Um socialista singular

convvio como foram a de Srgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto, ou a de Dcio de Almeida Prado e Paulo Emilio Salles Gomes. Registro entre parnteses uma coincidncia: eu era menino e estava passando uns tempos em Berlim com minha famlia, no ano de 1929, quando Srgio Buarque de Holanda morava l e quando por l esteve Mario Pedrosa, a caminho da Unio Sovitica para um curso de formao poltica mas claro que no os conheci quela altura. Mario contava que se salvou de uma provvel Sibria, ou coisa pior, graas a certa doena prosaica que o acometeu na etapa berlinense e impediu o prosseguimento da viagem. Isso lhe deu a oportunidade de se informar melhor sobre a dissidncia de Trotski, com a qual simpatizou imediatamente e qual teria aderido em Moscou, se no tivesse ficado na Alemanha. S o conheci pessoalmente quando voltou do exlio em 1945. Ele veio a So Paulo e eu o visitei no quarto do Hotel Esplanada, onde estava de cama, cozinhando uma gripe. Fiquei encantado com a sua inteligncia verstil e exuberante, mas no lembro do que falamos. Lembro apenas que se referiu a Lukcs, que estava comeando a ser lido aqui, pronunciando Lktch, o que me pareceu altamente refinado... Naquele mesmo ano, fundou no Rio o jornal Vanguarda Socialista e comeou a difundir uma nova orientao, anti-stalinista, no mais trotskista, com destaque para a democracia e a valorizao das posies de Rosa Luxemburgo, cuja obra contribuiu para difundir entre ns e de quem publicou em opsculos Reforma ou revoluo e A Revoluo Russa, no lembro se ambos ou apenas um deles. Essas posies correspondiam s do meu grupo, liderado por Paulo Emilio Salles Gomes, e foram um fator de aproximao entre ns. Em torno de Mario se juntaram no Rio principalmente antigos trotskistas ou simpatizantes, inclusive seu concunhado Nelson Veloso Borges, industrial abastado que escrevia no Vanguarda Socialista artigos com pseudnimo, sobretudo sobre a questo agrria, e era provavelmente o principal apoio financeiro do jornal. O Vanguarda Socialista estabeleceu um nvel elevado no debate poltico da esquerda brasileira e contribuiu para aclarar as idias dos que procuravam se orientar fora dos caminhos mais batidos. Sobre ele j foram produzidas teses universitrias, das quais conheo a de Gina Gomes Machado, muito boa.14

Antonio Candido

Quando se fundou a Esquerda Democrtica, em agosto de 1945, entraram para ela grupos e pessoas de vrios matizes, desde liberais socializantes e antigos tenentistas at ex-trotskistas, no faltando simpatizantes do stalinismo, alm de socialistas independentes, como o meu grupo. A certa altura, os integrantes do Vanguarda Socialista quiseram tambm incorporar-se. Ns, de So Paulo, manifestamos pleno acordo, mas houve resistncias no Rio, onde a influncia stalinista era acentuada. Apesar das reservas, eles acabaram no apenas entrando, como o seu jornal se tornou rgo da seo carioca, que no tinha conseguido ter um peridico, ao contrrio de So Paulo, onde fundamos e mantivemos a Folha Socialista. Pouco depois, em 1947, a Esquerda Democrtica passou a denominar-se Partido Socialista Brasileiro, por cesso dos socialistas remanescentes pelos quais fora fundado em 1933. Lembro bem da atmosfera de desconfiana que a princpio, nas reunies do Rio, envolvia Mario Pedrosa e o seu grupo, e tambm de momentos mais ou menos tensos, nos quais o exaltado professor Edgardo de Castro Rebelo, meio simptico ao Partido Comunista, nos irritava com o seu tom agressivo, de quem parecia estar sempre querendo brigar. Ele era um intelectual de grande valor, um dos raros professores socialistas na Faculdade de Direito do Rio, como tambm eram Joaquim Pimenta e Hermes Lima, o que valeu aos trs cassao e priso em 1935, quando foi perseguida e proscrita a Aliana Nacional Libertadora. Mario o admirava e tinha sofrido a sua influncia quando foi seu aluno, por isso continha a irritao e apenas resmungava, deixando explodir os comentrios negativos depois da reunio, na mesa do bar. Era interessante ver como esse homem ardoroso e combativo se continha por respeito ao antigo professor... Naqueles anos 40 Mario Pedrosa trouxe indiretamente para a esquerda brasileira uma contribuio civilizadora de grande alcance por meio da sua crtica inovadora das artes. Estvamos ento impregnados por concepes de cunho, digamos, pragmtico, favorecidas pela leitura pouco flexvel que se fazia do marxismo. Para essas concepes, as obras de arte e de literatura deveriam ser necessariamente interpretadas e avaliadas segundo a sua dimenso social e, no raro, segundo o seu significado poltico potencial. Em conseqncia, a crtica tendia a concentrar-se no contedo e a negligenciar as questes de forma, inclusive a fatura. Ora, ele surpreendeu um pouco ao valorizar a arte abstrata e os15

Um socialista singular

problemas de percepo da forma, no hesitando em recorrer psicologia gestltica na tese com que concorreu a uma cadeira na Escola Nacional de Belas Artes. A este propsito lembro a posio paralela, desde 1941, de Paulo Emilio Salles Gomes, que praticou no Brasil um tipo de crtica cinematogrfica igualmente voltada para a estrutura e a tcnica dos filmes, sem subordinar-se anlise ideolgica dos contedos. Digo isso tambm para assinalar que a sua personalidade apresentava afinidades com a de Mario Pedrosa, com quem tinha em comum a exuberncia, a liberdade intelectual, o desprezo pelas idias feitas e a disposio para criar o escndalo sempre que fosse necessrio. Quem me chamou a ateno para essa semelhana foi Lvio Xavier. Mais ou menos em 1954 eu me afastei da militncia, embora continuasse membro do Partido Socialista. E, como tempos depois fui morar no interior, perdi contato com Mario Pedrosa, e creio que s nos vimos novamente quando voltei para So Paulo em 1961. Ele era ento secretrio do Conselho Nacional de Cultura, criado pelo governo Jnio Quadros. Notificado de que me haviam nomeado membro, recusei, pois no queria colaborar com o governo de Jnio, que tnhamos apoiado para prefeito de So Paulo em 1953, mas de quem nos separamos a seguir, salvo um grupo que saiu do Partido, gente como o nosso presidente Alpio Correia Neto, Aristides Lobo, Francisco Giraldes Filho, Caetano lvares e outros. Mario, que provavelmente indicara o meu nome, no se conformou e veio a So Paulo me pedir para reconsiderar, o que fiz em ateno a ele. Creio que quela altura ele estava confiando demais nos liberais, como aconteceu com diversos setores da esquerda como reao contra a ditadura stalinista. Devido ao Conselho, convivemos nas reunies mensais, no Rio, mas por pouco tempo, pois logo aconteceu a renncia de Jnio e, com ela, o nosso afastamento. Perdemos contato de novo e creio eu no o vi mais at a sua volta do segundo exlio, em 1977. Dali por diante nos encontramos ocasionalmente em casa de amigos comuns, at que em 1979 ele me procurou mais de uma vez para falar do partido que os metalrgicos do ABC estavam formando e para o qual queriam que eu entrasse. Tivemos conversas longas, uma delas partilhada por Plnio Mello, e estivemos juntos em sesses preparatrias no Sindicato dos Jornalistas. Eu resisti um pouco, pois tinha a16

Antonio Candido

inteno de nunca mais ser membro de organizaes partidrias, devido s minhas lacunas como militante. Mas Mario insistiu e eu compreendi a sua insistncia, pois o projeto era feito para nos interessar por mais de uma razo. Por exemplo: era a primeira vez que no Brasil os prprios operrios assumiam esse tipo de iniciativa, com um senso de autonomia que os fazia desconfiar da adeso eventual de intelectuais e estudantes, atitude que Mario levou-os a modificar, e essa foi uma das suas grandes contribuies. Alm disso, o projeto correspondia ao que tnhamos querido fazer no passado e s conseguramos em escala muito limitada, quase simblica, isto , um partido decididamente de esquerda, com base operria, afastado das disputas do socialismo tradicional e procurando estabelecer critrios adequados nossa realidade. A este respeito Mrio chegava ao paradoxo de proscrever as preocupaes tericas, em nome do que chamou de empirismo salutar. o que podemos ver em artigos importantes que publicou no Jornal da Repblica, nos quais, s vsperas da fundao do Partido dos Trabalhadores, demonstrou o significado deste luz do percurso histrico do Brasil, como organizao poltica capacitada para transformar a sociedade a partir da classe operria. Esses artigos tiveram um papel importante na configurao e no encaminhamento do PT. A minha adeso a este deve portanto muito interveno de Mario, mas a ela devo acrescentar uma recomendao comovedora de Febus Gikovate s vsperas de sua morte, num quarto do Hospital da Santa Casa, onde me disse com profunda convico que eu deveria aderir ao novo partido, fazendo as mesmas observaes de Mario Pedrosa e dizendo que ele prprio entraria se no estivesse perto do fim. Essas duas presses de companheiros do antigo Partido Socialista foram fundamentais para a deciso que me levou reunio fundadora do Colgio Sion em 10 de fevereiro de 1980. Nela, vi as aclamaes de que foi objeto Mario, ao lado de outras figuras tutelares, como Llia Abramo, Srgio Buarque de Holanda, Apolonio de Carvalho, Manoel da Conceio. Talvez tenha sido a ltima vez que o vi, e creio que so estas as principais recordaes que tenho dele.

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Uma chama revolucionriaLlia AbramoAtriz com atuao em teatro, cinema e TV. Foi presidente do Sindicato de Artistas e Tcnicos em Espetculos de Diverses de So Paulo em 1978-80

Agradeo o convite da Fundao Perseu Abramo e da Universidade Estadual Paulista por ter me dado a honra de participar desse debate. Vou falar apenas como uma ex-militante trotskista, que na dcada de 1930 participou de inmeras lutas e batalhas de rua e que teve a honra e a felicidade de conhecer e de conviver muito freqentemente com Mario Pedrosa. Mario Pedrosa, para ns, no era s um lder; era, e continua a ser um grande homem. Havia em Mario Pedrosa uma chama to forte de convico revolucionria que nada o abalava. Desde 1926 Mario era filiado ao Partido Comunista Brasileiro, do qual s se afastou depois da expulso de Trotski. Ele saiu do Brasil em 7 de outubro de 1927 e foi para Berlim, com o propsito de depois seguir viagem para a Rssia, onde iria freqentar a Escola Leninista, cujo objetivo era a formao de lderes para os partidos comunistas de todo o mundo. Na Alemanha, Mario adoeceu e teve que adiar sua viagem; enquanto convalescia, teve19

Uma chama revolucionria

contato com integrantes da Oposio de Esquerda da Frana e da Alemanha, que tinham uma posio crtica em relao aos caminhos que vinham sendo trilhados pelos dirigentes soviticos. Isso fez com que Mario, que havia aderido s posies de Trotski j afastado por Stalin do PC sovitico reconsiderasse sua inteno de viajar para Moscou. Mas a vontade combativa de Mario Pedrosa, a flama que o iluminava e que o arrastava luta constante e cotidiana contra a sociedade burguesa capitalista, viveu nele sempre, at a ltima hora de sua vida. Ele era uma pessoa de grande beleza, de grande inteligncia, de grande cultura e, sobretudo, de uma simplicidade e de uma hombridade raras. Ele tinha um magnetismo e um carisma, alm da inteligncia, da combatividade, que prendiam a todos. Quando conheci Mario Pedrosa, eu era apenas uma jovem de esquerda tinha me tornado de esquerda por causa da minha famlia: meu pai era um humanista, mas meu av era um anarquista militante, meu irmo Flvio sempre lutou na esquerda era trotskista e eu fui crescendo com posies de esquerda assim, instintivamente, naturalmente. Quando conheci a histria de Trotski achei que ele era o ideal para conduzir o destino da Rssia. Quando Mario volta para o Brasil, em 1929, traz consigo uma vontade de luta, e a deciso de continuar militando contra o sistema capitalista. Aqui ele encontrou algumas pessoas que tambm j estavam em contato com as posies de Trotski e, ento, junto com Flvio Abramo e com outros, fundou um grupo trotskista ao qual eu me filiei. Ns, trotskistas, ramos muito poucos diante do Partido Comunista do Brasil (PCB), que tinha muitos milhares de scios e de companheiros. Mas, sob a direo de Mario Pedrosa, esse punhado de corajosos militantes, do qual eu fazia parte, tornou-se muito combativo. Eu militava no Sindicato dos Comercirios. Nessa ocasio, meu pai, enganado por um scio, perdeu todos os seus bens, ficamos muito pobres e eu precisei trabalhar. Arranjei emprego no escritrio de uma empresa e fiz parte tambm da direo do Sindicato dos Comercirios. Foi por meio da atividade sindical que comecei a me interessar pela luta social e pela poltica. Tinha apenas 22 anos quando fui chamada pelos comercirios para fazer parte da diretoria do Sindicato. Ns ramos da base do grupo trotskista e obedecamos s ordens que nos davam. Hoje em dia a juventude no pode compreender o que acontecia naquela poca; havia muita diferena, porque ns obedecamos,20

Llia Abramo

mas no obedecamos como carneiros: ns ramos convencidos; ramos muito poucos, nossa convico que nos mantinha firmes na nossa luta. Nosso grupo atuava no Sindicato dos Comercirios, no Sindicato dos Bancrios e, sobretudo, no dos grficos, no qual os trotskistas tinham uma certa penetrao, e fazamos uma agitao muito grande, dvamos muito trabalho para o Partido Comunista. ramos atacados pelos dois lados, pelos burgueses e pelo PCB. O partido nos perseguia terrivelmente, segundo ele ns ramos traidores, vendidos, as piores coisas. Mesmo Mario Pedrosa, que era uma estrela, um homem fantstico, era chamado de traidor, vendido, imaginem... Mario sempre lutou com a postura de quem faz parte de uma tendncia trotskista, mas, embora pertencesse a uma ala dissidente, permaneceu no Partido Comunista at a expulso de Trotski. (Foi um dos fundadores da Liga Comunista Internacionalista (LCI) e do Partido Operrio Leninista (POL) e atuou como representante das sees latino-americanas na conferncia que deu origem IV Internacional. Ele procurava influenciar amigos e companheiros, mas conseguia apenas cooptar alguns elementos, que optaram pela tendncia trotskista. Eu estive muitas vezes com Mario Pedrosa, porque ele nos dava aulas sobre marxismo e luta de classes, e estava sempre conosco. Havia de nossa parte uma certa sujeio, uma certa reverncia. Hoje no existe mais essa relao entre os lderes e a base, que, naquela poca, era muito forte. Hoje as relaes so muito mais democrticas. Continuamos lutando at 1935, quando houve a Intentona Comunista o levante do Partido no Nordeste que caracterizado pelos historiadores burgueses com esta palavra to desagradvel. Nessa ocasio, Getlio Vargas, que detinha o poder desde 1930, aproveitou o pretexto da revolta comunista para perseguir todos os opositores do regime: intelectuais independentes, democratas, livres-pensadores e militantes de esquerda, que tiveram todas as suas organizaes desbaratadas. Os que no puderam fugir foram presos, torturados, mortos. Mario Pedrosa, at o fim da vida, foi uma pessoa que jamais desistiu da esperana de que o mundo mudasse. Ele no era um iludido. Lutava com convico. Quando tudo parecia acabado, quando tudo parecia perdido, ele se dedicou crtica, mas crtica de arte; ele era um homem polidrico, tinha vrias qualidades: era um intelectual e, ao mesmo tempo, um grande militante. Mesmo nesse perodo, em que se21

Mrio Pedrosa e o Brasil

dedicou crtica de arte, ele nunca deixou de ficar ligado s questes sociais e polticas. Jamais. Tanto verdade que, quando surgiu o Partido dos Trabalhadores, a chama reviveu, e ele se aproximou como ns, que ramos jovens quando nos aproximamos dele do Lula e dessa perspectiva nova que estava aparecendo, e nasceu nele toda essa grande esperana. Ele foi o primeiro a assinar o manifesto de criao do PT, no Colgio Sion, em So Paulo. Uma das coisas que atraram o Mario Pedrosa para a aproximao com Lula e o PT que pela primeira vez um partido operrio comeava de baixo, do proletariado. Seu principal lder, Lula, saa do centro, do corao dos operrios. Isso foi algo que ele admirou e que o entusiasmou, por isso ele estimava muito o Lula, e fez tudo o que estava ao seu alcance para que o novo partido se viabilizasse. Nossa glria essa: Mario Pedrosa, at o ltimo momento de sua vida, mesmo quando estava doente, nunca deixou de acreditar e sempre lutou com convico e com inteligncia, porque sempre soube fazer crtica e autocrtica. Por exemplo, houve um tempo em que at com Trotski ele teve um desentendimento e houve uma ruptura foi quando Trotski, na discusso havida na IV Internacional, imps a palavra de ordem de defesa incondicional da Unio Sovitica, j que defender a URSS seria defender a prpria revoluo, posio que se acirrou com o pacto Hitler/Stalin. Nesse ponto Mario Pedrosa redigiu um documento em que fez restries linha de Trotski. Como conseqncia, Trotski reorganizou a Secretaria da IV Internacional e Mario Pedrosa foi excludo. Para concluir, gostaria de dizer que Mario Pedrosa, alm de ser um grande lder, um homem culto, inteligente e que jamais duvidou das suas idias, soube desenvolver uma atuao crtica em relao aos desvios do partido, da Internacional Comunista, da Rssia, dos stalinistas. Ele sempre combateu, sempre lutou pelas idias bsicas do movimento revolucionrio de 1917. S no final ele se desligou do Partido Comunista, mas continuou acreditando que existia a possibilidade de luta e de vitria sobre as injustias sociais. Nunca duvidou de que chegaria o dia em que seriam banidas da histria da sociedade a grande injustia do capitalismo e todas as suas conseqncias. Obrigada.22

Mario Pedrosa e o Partido dos TrabalhadoresLuiz Incio Lula da SilvaPresidente de honra do Partido dos Trabalhadores

Felicito a Fundao Perseu Abramo e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) pela iniciativa de promover este debate sobre uma figura to importante na vida cultural brasileira como foi Mario Pedrosa, que muitas vezes enfrentou dificuldades para ser reconhecido como tal. No vou falar do crtico Mario Pedrosa, at porque os expositores podero faz-lo melhor do que eu; vou tentar falar da minha relao poltica com o companheiro Mario Pedrosa, que comeou antes do Partido dos Trabalhadores (PT). Eu no o conhecia e, um belo dia, estou no Sindicato dos Metalrgicos de So Bernardo do Campo, quando recebo uma carta, datada de 1 de agosto de 1978, do nosso querido Mario Pedrosa. Esta carta terminava assim:Cunha-se assim com a naturalidade das coisas elementares o partido que a conscincia proletria de que voc e seus companheiros esto imbudos. Isso penhor do futuro: fruto das tradies dos mestres nutrida 23

Mario Pedrosa e o Partido dos Trabalhadores

do sangue dos nossos heris proletrios. Sem a libertao do movimento trabalhista intil falar-se em liberdade, democracia ou socialismo.

Essa carta, na verdade, foi o que permitiu que eu telefonasse ao Mario Pedrosa para dar-lhe um retorno, dizer que a recebera, e, ento, marcar um primeiro encontro com ele. Penso que Mario Pedrosa, e outros intelectuais, como Antonio Candido, que est presente aqui, Srgio Buarque de Holanda, alm de Llia Abramo e outros companheiros, tiveram um papel extraordinrio na criao do PT. E isto est presente at mesmo na atuao de militantes mais jovens do PT, que no viveram aquele perodo entre 1978 e 1981. s vezes penso que o PT no teria sido criado se no tivssemos um grupo de intelectuais que resolvesse, naquele instante, travar um debate poltico nacional. O que aconteceu naquele momento? Estvamos numa luta contra o regime militar muito sria, que envolvia, entre tantas outras questes, a luta pela liberdade de organizao partidria. Obviamente, os dois partidos que tinham hegemonia no cenrio poltico nacional se opunham s nossas propostas. De repente, estvamos em comcios falando em liberdade de organizao partidria e os partidos que nos convidavam para o palanque no queriam que falssemos sobre isso, porque o MDB (Movimento Democrtico Brasileiro) queria continuar MDB, a Arena (Aliana Renovadora Nacional) queria continuar Arena. Ou seja, eles queriam liberdade desde que apenas os dois continuassem a existir. Houve muitos debates sobre a questo da construo do PT e de muitos deles o companheiro Mario Pedrosa participou ativamente. Havia muitos intelectuais atuantes na defesa da necessidade de criar um partido como o PT. Mas havia dificuldades, pois muitos outros intelectuais diziam que o pas no comportava um partido assim, as condies objetivas no estavam criadas e que, portanto, era melhor participarmos da tendncia popular do MDB. Afinal, onde j se viu imaginar um partido constitudo do jeito que queramos criar, de baixo para cima? E obviamente eu e outros companheiros do movimento sindical tnhamos menos argumentos para refutar essas afirmaes dos intelectuais. Eu havia cometido um pequeno deslize. Em 1978, eu e um grupo de companheiros sindicalistas fomos convencer o Fernando Henrique24

Luiz Incio Lula da Silva

Cardoso a ser candidato ao Senado na sublegenda do MDB. Tnhamos, de um lado, Cludio Lembo, que era candidato pela Arena, e, de outro, Franco Montoro, do MDB. E j estvamos meio cansados do tal trabalhismo do Montoro, queramos alguma coisa nova. Logo em seguida, comeamos o debate sobre o PT e Fernando Henrique Cardoso comeou a falar da impossibilidade de organizar um partido assim. Foram argumentos como os de Mario Pedrosa que fizeram com que nos dotssemos de motivao para continuar acreditando que era possvel criar o PT. H um texto do Mario Pedrosa, reproduzido no livro Resolues de Encontros e Congressos do PT, que extraordinrio. Mostra exatamente a dimenso e a importncia que ele dava criao de um partido poltico. Ele dizia nesse texto que era preciso deixar a dupla militncia na porta quando tivssemos que entrar para criar o Partido dos Trabalhadores. Depois disso, foram muitas as vezes em que nos encontramos. A ltima vez em que fui visit-lo na sua casa no Rio de Janeiro ele j estava muito combalido pela doena. Mas posso dizer a vocs que ele teve um papel de fundamental importncia na criao do nosso partido. Ele acreditava na classe operria possivelmente at mais do que ns, que fazamos parte dela. Falava com uma convico extraordinria, fazia crticas profundas aos grupos mais sectrios dentro do PT, que queriam, s vezes, mais manipular a classe trabalhadora do que a ajudar. Na carta a que me referi inicialmente, ele escreve com muito cuidado, porque disseram a ele que eu tinha uma certa ojeriza a intelectuais. O que eu tinha era ojeriza s pessoas que pensavam que ns no entendamos nada, e que, portanto, a classe operria precisava de algum que viesse de cima para ensinar o que ela tinha que fazer. E acho que essa era uma das novidades que o Mario Pedrosa reconheceu. Um dia me ele disse: Lula, diferentemente do PC, que pega quadros na intelectualidade, na universidade, e coloca dentro da fbrica, o PT a primeira possibilidade de vocs tirarem os operrios da fbrica e coloc-los como dirigentes polticos de um partido. A nossa foi uma relao de muita solidariedade. Na discusso sobre o Manifesto do PT, o Mario Pedrosa teve uma participao importante, assim como tantos outros. Teve um papel de fundamental25

Mario Pedrosa e o Partido dos Trabalhadores

importncia na criao do partido e na motivao das pessoas a serem militantes polticas. Havia muitos companheiros j engajados em organizaes de esquerda naquela ocasio, muitos trotskistas que se achavam um pouco donos do Mario Pedrosa e tentavam manipul-lo. Mas, no fundo, a conscincia poltica dele o fez enxergar, em agosto de 1978, algo que ns ainda no tnhamos visto: ns ainda no falvamos em partido poltico em agosto de 1978 e, na carta, o Mario Pedrosa j mencionava esse assunto. Quero deixar como sugesto para a Fundao Perseu Abramo a publicao dos artigos que o companheiro Mario Pedrosa escrevia no Jornal da Repblica, naquele perodo. Toda semana havia um belo artigo defendendo o PT. Para ns, que apanhvamos tanto, aquilo era um alento. Porque os companheiros do PC diziam: No, no vai criar partido dos trabalhadores porque j existe. Mas existe onde? E os companheiros do PCdoB e do MR-8 falavam o mesmo. No tnhamos a menor noo de por que eles eram contra a criao do partido, somente depois que fomos nos dar conta de que eles no queriam porque achavam que o partido dos trabalhadores j existia, era o partido deles. Mario Pedrosa, como uma figura ativa, muito viva, muitas vezes comprou essa briga por ns. Eu me lembro que uma vez, no Rio de Janeiro, o pessoal do MR-8 entrou num debate, em que eu estava, pedindo a palavra para falar contra o PT. E foi o companheiro Mario Pedrosa que respondeu: Olha, isso aqui um debate do partido. Como que vocs querem falar contra? Vo falar em outro lugar. Isso aqui uma reunio de quem quer criar o partido. Acho que a publicao desses artigos seria uma homenagem a ele e permitiria que a juventude soubesse que, antes de ns, Mario Pedrosa j pensava em criar um partido dos trabalhadores. Dei tanta sorte que tive o prazer de me transformar numa figura pblica com ele ainda vivo. E mais sorte ainda de ter nascido em Pernambuco, onde ele nasceu. Era isso que eu queria dizer. Minha relao foi muito grande com ele, de muito carinho, de muito respeito. Eu diria a vocs que ele foi uma das pessoas que nos ajudaram a acreditar que era possvel criar um partido. Est a o partido. No sei se o Mario Pedrosa est no cu, descansando, mas se houver outro mundo, como eu acredito que h 26

Luiz Incio Lula da Silva

isso me conforta muito, acreditar que h , o Mario deve estar avaliando se criamos ou no o partido com o qual ele sonhava. Acho que h coisas em que somos melhores, h coisas em que somos piores. Mas se Llia Abramo est at hoje no PT porque o nosso o partido que o Mario Pedrosa queria que fosse criado. Obrigado.

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A utopia como modo de vidaFragmentos de lembrana de Mario Pedrosa

Luciano MartinsSocilogo e embaixador do Brasil em Cuba

IMario Pedrosa no era apenas uma pessoa. Era tambm um fenmeno intelectual e quase uma instituio. Essas trs dimenses nele se cruzavam para produzir um dos seres humanos mais ricos e interessantes de quantos tenho conhecido, e com o qual tive o privilgio de conviver, de forma prxima ou distante, durante quase trs dcadas. Pedrosa foi um dos expoentes de uma gerao de intelectuais que surgiu no Brasil nos anos 20 e cujos membros, embora seguindo diferentes caminhos, muitas vezes at opostos, aliavam a aventura do conhecimento a uma vontade de transformao do mundo que nada tinha de messinica ou dogmtica. Talvez o que melhor caracterizasse Mario Pedrosa fosse justamente sua paixo pelo novo e pelo movimento. A reinveno na representao do mundo e, ao mesmo tempo, a mudana do mundo a arte e a poltica dele fizeram tanto um vigoro29

A utopia como modo de vida

so pensador do moderno como um militante revolucionrio. E as duas coisas nele se fundiam, ou s vezes se confundiam, para fazer da utopia um modo de vida. Talvez por isso mesmo o pensador sempre lcido e perceptivo, quando voltado para o campo da arte, nele se alternava com um s vezes ingnuo voluntarismo no plano da ao poltica. Mario veio de uma famlia de senhores de engenho do Nordeste, que transferiam para a administrao pblica (seu pai foi senador da Repblica e ministro do Tribunal de Contas) a insero que j no tinham como classe economicamente dominante. Mario foi mandado com 12 anos para a Europa para fazer seus estudos iniciais. No sei que lembranas tinha disso, mas suspeito que essa foi sua primeira janela para o mundo. Ao voltar, faria o que todo jovem de sua classe e de sua gerao fazia: entrou para a Faculdade de Direito que deve ter enfrentado com o tdio de quem cumpria uma obrigao que nada tinha a ver com sua vocao intelectual latente. Mas na faculdade foi despertada sua ateno para o movimento da histria e para as questes sociais, por influncia do professor Castro Rebelo, contava ele. Foi essa vocao intelectual que pela primeira vez se realizou atravs de seu encontro com o marxismo, aos 20 e poucos anos. Esse encontro o atirou na grande aventura do conhecimento do mundo e da militncia poltica. Na verdade foi sempre mais alm, porque o levaria s rupturas existenciais e s dramticas revises conceituais. Primeiro, a ruptura com a tradio social herdada ao entrar no Partido Comunista do Brasil em 1926; depois, a expulso do PCB ao tomar o partido de Trotski; mais tarde, a ruptura com a prpria proposta marxista, diante da evidncia de sua transmutao em ideologia pelo stalinismo e sua contrafao no socialismo real. Essa vocao para o inconformismo manifestou-se muito cedo. Estava na Alemanha, a caminho da Unio Sovitica, onde fora mandado pelo PC para cursar a Escola do Partido, quando se deu a ciso trotskista, qual logo aderiu. A identificao com a figura intelectualmente fascinante de Trotski muito provavelmente teve a ver com essa opo, que j anunciava um permanente recomear. Mario talvez tenha sido um dos primeiros intelectuais no Brasil que procurou entender, ainda com o arsenal conceitual marxista, o fenmeno stalinista: as origens da burocracia sovitica e as verdadeiras causas da revoluo trada. Algo que muito mais tarde, j no final da30

Luciano Martins

dcada de 1950, seria sistematizado por Castoriadis, Claude Lefort e Edgar Morin, por intermdio da revista Socialisme ou Barbarie, que chegava ao Brasil pelas mos de Mario. A ruptura com o PCB e o primeiro recomear teve sua prxis na fundao da Liga Trotskista do Brasil. Como era de hbito, essa militncia se fazia sobretudo por intermdio das interminveis discusses e anlises, difundidas com a ajuda de hericos mimegrafos a lcool, quando no assumia, s vezes, a forma ingnua de entrar num quartel para distribuir um panfleto em que se pregava a formao de um soviete de soldados e operrios. Entrava no quartel e j no saa. No sei quantas prises, creio que mais de dez, teve Mario Pedrosa do final dos anos 20 aos anos 30, nas quais era maltratado simultaneamente pela polcia e pelos militantes stalinistas do PC. E com as prises iam tambm seus livros. (Uma vez, piscando o olho, disse-me de Alceu de Amoroso Lima: Esse nunca soube o que perder uma biblioteca.) Mas a militncia no se limitava apenas s discusses ou s formas ingnuas de ao. Mario articulou em So Paulo uma frente nica das esquerdas para a luta contra os integralistas. A palavra de ordem era no deixar as ruas aos fascistas. Em outubro de 1934 aconteceu um confronto com os integralistas na Praa da S, onde houve tiroteio e Mario recebeu sua parte ao ser ferido. Certa vez perguntei a Mary Houston, sua companheira de sempre, militante valente, tantas vezes tambm presa, anticlerical moda antiga no velrio de Mario se afastaria discretamente ao aparecer um padre para benzer o caixo , quantos eram, afinal, nessa poca os trotskistas do Brasil liderados por Mario. Ela custou um pouco, e afinal respondeu: Talvez uns 20. Ao que Mario acrescentou rpido: Mas tnhamos um operrio. Essa fase de militncia no Brasil foi interrompida pela represso violenta que se iniciou aps a aventura comunista de 1935 e com o advento do Estado Novo. Na iminncia de ser processado pelo Tribunal de Segurana, Mario foge para a Frana e l tem posio de relevo no secretariado provisrio que se ocupa da criao da IV Internacional. No eram fceis as condies em que isso ocorria, em meio ascenso do nazismo, o Pacto de Munique e a implacvel perseguio stalinista aos dissidentes. Um de seus companheiros no Secretariado, por exemplo, um militante alemo, um belo dia desaparece, para ser encontrado31

A utopia como modo de vida

depois, esquartejado, no fundo do Sena: o brao longo da GPU (precursora do KGB) stalinista fazia seu trabalho. Dada a iminncia da Segunda Guerra, decidido que o Secretariado da IV Internacional seja transferido para os Estados Unidos. Para l segue Mario e, em Nova York, entra em contato com artistas e intelectuais da esquerda norte-americana, que mais tarde fundariam a revista Dissent. O estupor e a revolta que lhe causa o Pacto MolotovRibbentrop o levam a se insurgir contra um dos dogmas das esquerdas de ento: o da defesa incondicional da Unio Sovitica. Talvez por isso, em 1940, quando Trotski, do Mxico, reorganiza o Secretariado da IV Internacional, Mario dele excludo. Tambm Trotski, mesmo na fase que Isaac Deutscher denominou como a do profeta proscrito, no era de tolerar as independncias de seus militantes. J muito antes disso, em paralelo, ou em contraponto, militncia poltica, e vivendo do jornalismo, como todo intelectual no Brasil dessa poca, Mario se inicia na sua outra vertente, a da crtica de arte. Dotado de uma poderosa inteligncia, sua influncia no campo intelectual desde esse tempo seria bem mais duradoura do que foi no plano da poltica. Uma influncia que se exercia, alis, mais por meio da convivncia no crculo de intelectuais que freqentava ou de artigos de jornal, do que de uma obra escrita sistemtica. E foi sempre assim. (S a partir de 1979, dois anos antes de sua morte, que Otlia Arantes viria a sistematizar e iniciar a publicao em quatro volumes de seus escritos sobre arte.) Mas essa influncia, transmitida pela interlocuo a vrias geraes de intelectuais, foi poderosa. Essa sua segunda paixo, pela arte, certamente se fortalece em seu exlio europeu e norte-americano, em que a convivncia com as vanguardas de ento nos dois continentes provavelmente lhe abriu novos horizontes. Dos Estados Unidos tenta, em 1941, voltar clandestinamente ao Brasil, atravs do Chile e da Argentina, em pleno Estado Novo. descoberto e preso logo ao chegar. (Muitos e muitos anos depois, pesquisava no National Archives, de Washington, para minha tese de doutorado, quando dei com um documento que talvez explique essa priso imediata ao chegar. Tendo arranjado um passaporte falso para fazer a viagem, Mario displicentemente e isso era bem dele desfez-se do verdadeiro num lugar qualquer. Um diligente cidado norte-americano por acaso o recolheu e mui amavelmente o enviou pelo correio ao Consulado do32

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Brasil, que certamente comunicou o fato polcia de Felinto Mller. Fichado como era no DOPS da poca, e tantas vezes, no deve ter sido difcil polcia brasileira imaginar quem estava para chegar). Seu pai, ento ministro do Tribunal de Contas, catlico devoto como o resto da famlia, intercedeu e obteve a libertao de sua ovelha negra, com a condio de Mario voltar de imediato para os Estados Unidos. O assassinato de Trotski no Mxico em 1940, o fortalecimento do stalinismo e a liquidao da IV Internacional levam Mario reviso do marxismo, com o mesmo vigor intelectual que o havia levado converso a ele. Mas, ao mesmo tempo, cada vez mais se volta para a representao do mundo por meio da crtica de arte. Nessa poca conhece Alexander Calder, de quem se torna amigo para o resto da vida. Muito embora, como se ver a seguir, nunca tenha abandonado a militncia poltica. Com o fim da Segunda Guerra e do Estado Novo, Mario volta ao Brasil. E pela mo de Niomar Moniz Sodr e de Paulo Bittencourt, a quem conhecera em Nova York, tambm expatriados, entra para o ento prestigioso Correio da Manh, no qual, alm da crnica poltica, cria em seguida a coluna de crtica de arte. Mas isso no bastava. Participa da criao da Esquerda Democrtica creio que tambm com Antonio Candido, pelo qual tinha o maior respeito , movimento que iria gerar o (ou degenerar no) Partido Socialista Brasileiro (PSB). E funda um jornal de idias, o Vanguarda Socialista, objeto de ataques furiosos do ento influente e stalinista PC de Lus Carlos Prestes. O jornal durou at mais do que costumavam durar os jornais de esquerda independentes: algo menos de dois anos. (Tudo isso se baseia, em parte, numa cronologia escrita por Mary Houston, e, em parte, no que me vem de memria por tradio oral, sendo possvel, por isso, que me engane sobre a seqncia de episdios, nomes ou datas.)

IIConheci pessoalmente Mario Pedrosa em meados dos anos 50. Em sua casa, em Ipanema, ele mantinha o que na tradio intelectual francesa se chamaria um salon. E esse seu lado instituio. Por l, impreteri33

A utopia como modo de vida

velmente, todos os sbados noite, passavam jovens intelectuais e artistas, suficientemente independentes para recusar ortodoxias, ou politicamente ignorantes e inquietos (como eu), na busca de marcos de referncias para construrem uma viso de mundo que a universidade era ento incapaz de lhes dar. Foi estimulado por Mario, por exemplo, que estudei a Revoluo Russa, que li Trotski, que entrei em contato com Socialisme ou Barbarie e que mergulhei nas obras seminais de Karl Mannheim e de Schumpeter. Na casa de Mario e Mary se dava uma espcie de encontro de guas. O convvio entre os velhos amigos e companheiros de Mario, como Barreto Leite Filho e Lvio Xavier (com o racionalismo erudito do primeiro e o ceticismo mordaz do segundo muito aprendi), os artistas e intelectuais inovadores como Lygia Clark, Aluizio Carvo, Franz Weissman, Milton da Costa, Ivan Serpa, Helio Oiticica, Almir Mavignier, Abro Palatinik, Ferreira Gullar, Lygia Pape, Carlinhos de Oliveira, Oliveira Bastos e, ainda, a figura flamejante de Helio Pellegrino e jornalistas de talento como Cludio Abramo, Janio de Freitas e Newton Carlos, para citar apenas alguns que agora me ocorrem. Nessas reunies, animadas apenas por um ou dois cafezinhos, que Mary trazia de vez em quando, nas pausas de suas muito concretas e s vezes irreverentes intervenes (seu interesse real, nessa poca, era no que estava escrevendo sobre o Finnegans Wake de Joyce, tarefa qual se dedicou por mais de 15 anos, e que nunca foi publicada), se discutia de tudo. A situao internacional, a evoluo do mundo comunista, as tendncias do capitalismo, a reviso do marxismo, as expresses da arte no mundo e no Brasil, a poltica do cotidiano brasileiro e os rumos do pas. Mario pontificava. Mas preciso qualificar essa palavra. Porque ele o fazia de forma muito especial: sem nunca impor nada, por meio do simples exerccio de sua inteligncia, com um ouvido atento ao que os outros diziam e com essa capacidade, rara em intelectuais, de nem sempre levar muito a srio o que eles prprios afirmavam, ou o que os outros diziam. No havia qualquer empfia ou pretenso de impor verdades. Muito ao contrrio, em geral brilhava em Mario, mesmo quando dizia as coisas mais srias, um olhar travesso. Lembro-me sempre, por exemplo, de que quando a necessidade de ganhar a vida o converteu em professor de Histria do Brasil no ginsio do Colgio Pedro II, um dia chegou em casa exultante34

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pelo lcido engano de um aluno pouco afeito ao manejo de advrbios. Na resposta que dera questo sobre o que havia sido a Inconfidncia Mineira, o menino escreveu: Uma revoluo de intelectuais, alis fracassada. E volta de Mario, embora no necessariamente freqentadores assduos de sua casa, havia um tipo de gente muito especial. Como um certo Evandro Pequeno, que ocupava funo apagada no Ministrio da Educao, mas que, uma vez fechada a repartio, corria para casa para tocar Mozart em seu violoncelo e que um belo dia resolveu aprender russo, para poder ler Tolstoi no original. Ou como o velho militante Hilcar Leite, que contava, como se fosse uma coisa natural entre militantes, como tivera as unhas arrancadas pela polcia de Felinto Mller. Ou, ainda, como esse outro personagem, Jos Sanz, dotado de uma memria de elefante e injustamente apelidado de Sanz-fiction, por ter fama de mitmano, quando, na realidade, tudo (ou quase tudo) o que dizia era verdade, ou podia ser. At mesmo o fato de ter sido membro do Comit Central do PC quando tinha 18 anos, como me diria certa vez. Era uma gente interessante e estimulante. Certamente muito mais do que aquela que eu encontrava no curso de Cincias Sociais que ento iniciava na Faculdade de Filosofia. E isso explica, em parte, o fascnio que Mario Pedrosa e seu crculo ento exerciam sobre grande parte da intelectualidade jovem e independente de ento. Mas no era isso (apenas) que fazia de Mario Pedrosa um fenmeno intelectual. O que o constitua como tal eram tanto sua acumulao intelectual num amplo leque de conhecimentos como sua permanente abertura ao novo, resultantes de uma fecunda inteligncia aliada insacivel curiosidade intelectual. O que o constituiu tambm como tal foi sua real contribuio para o entendimento do mundo, ou para uma maneira inteligente de procurar entend-lo, contribuio que socializava mediante essa espcie de reedio do mtodo socrtico. E era nisso que ele de fato se sentia bem. Quando fazia uma conferncia, para um pblico todo sentado direitinho e atento, era s vezes uma epopia: a numerao das notas estava fora de ordem, volta e meia o copo dgua do conferencista era derrubado em cima dos papis e a seqncia dos diapositivos s vezes apresentava surpresas inigualveis: Essa obra de Piero de la Francesca... e aparecia um quadro de Picasso. Mas isso era o lado folclrico. E tambm o charme de Mario Pedrosa.35

A utopia como modo de vida

Porque sua contribuio intelectual, repito, foi de fato substantiva. Por exemplo, eram provavelmente poucos os intelectuais no Brasil, se que existia algum, que se interessavam poca pelas experincias de Koeller e pela teoria da Gestalt. Mario logo percebeu sua importncia para o entendimento da expresso artstica e disso fez uma tese, que de to inovadora foi tambm injustiada. Nesse sentido, eu quase diria, transpondo um conceito de antropologia, que seu papel foi o de uma espcie de heri modernizador, exercido sobretudo por meio desse convvio pessoal com quem o procurava. Como disse com toda razo Barreto Leite, num artigo para a homenagem prestada a Mario quando este fez 80 anos, um ano antes de morrer: Mario maior que a obra escrita que deixa. E por isso que, pensando nos que no o conheceram pessoalmente, me pareceu importante descrever como era o convvio com ele.

IIIForam cheios de turbulncias e de mudanas os anos 50 no Brasil e, mais ainda, o incio dos anos 60. Mario, como sempre, se divide entre a arte e a poltica. Em sua vertente artstica, em 1953, passa quase um ano na Europa, articulando exposies para a II Bienal, a grande Bienal do IV Centenrio de So Paulo. Usando apenas seu prestgio pessoal no mundo artstico internacional obteve um resultado extraordinrio: conseguiu reunir salas especiais de Picasso, Klee, Mondrian, Munch, Henry Moore, Marino Marim e Calder. E naquele tempo, se havia um Ciccilo Matarazzo, no existiam neobanqueiros para financiar essas coisas. Em 1957, Mario cria a coluna de artes plsticas no Jornal do Brasil. O Caderno B desse jornal, dirigido por Reinaldo Jardim, e com o apoio de Janio de Freitas, tinha uma abertura para o que era novo no Brasil e no mundo talvez sem precedentes na imprensa brasileira. A comear pelo fato de ser inovadoramente paginado pelo ento pouco conhecido escultor Amilcar de Castro. Na verdade, o Caderno B, sobre o qual a sombra de Mario tambm se projetava fortemente, foi um veculo da expresso de movimentos artsticos e intelectuais de vanguarda, alm de caixa de ressonncia do movimento neoconcretista e do cinema novo. Foi por meio36

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dele que poetas como Mario Faustino e Ferreira Gullar se fizeram conhecer. Eu prprio cometi artigos sobre Norman Mailer (The White Negro) e sobre Ray Bradbury, e Vera Pedrosa, filha de Mario, chamou a ateno para a importncia de um certo Samuel Beckett, que creio poucos sabiam quem era no Brasil. Mario mantm-se ativo no campo das artes. Em 1958 vai ao Japo, indicado Unesco pela Associao Internacional dos Crticos de Arte (AICA), para realizar um estudo sobre as relaes artsticas entre Japo, Europa e Amrica. Nesse mesmo ano organiza no Museu de Arte Moderna de Tquio uma exposio sobre arquitetura brasileira e, no ano seguinte, se empolga com a inaugurao de Braslia e rene no Brasil um Congresso Extraordinrio da AICA sobre o tema Braslia, a cidade nova, sntese das artes. O recm-empossado Jnio Quadros cria um Conselho Nacional de Cultura e nomeia Mario para o cargo de secretrio geral. Enquanto se discutia o que fazer desse Conselho (algo que ningum sabia muito bem), um belo dia, provavelmente depois de uma noite de grande inspirao, o presidente ordena (a linguagem era essa) que o Conselho apresente, com data marcada, minuta de projeto para a nacionalizao das histrias em quadrinhos. No Conselho, houve perplexidade total, e foi um deus-nos-acuda entre os donos dos grandes jornais, cuja vendagem estava relacionada a essas coisas. Com a renncia de Janio Quadros, o assunto pode ser alegremente esquecido, e Mario pode voltar-se para coisas mais srias. Em 1961, assume os cargos de secretrio geral da Bienal e diretor do Museu de Arte Moderna de So Paulo, que ocupa por pouco mais de um ano. Sua vertente poltica se exerceria ento de forma bem mais complicada, s vezes aparentemente contraditria, o que de alguma maneira refletia o espao reduzido existente para uma esquerda democrtica e independente, face s mudanas que estavam ocorrendo tanto no plano internacional como no plano interno, um e outro sempre exaustivamente discutidos no crculo intelectual de Mario. No campo internacional estvamos em plena Guerra Fria, na qual as duas superpotncias exerciam impunemente a violncia em suas respectivas reas de influncia e polarizavam lealdades incondicionais, sem deixar espao para o exerccio de qualquer forma de dissidncia ou de apoio crtico. Condenar tanto a represso comunista ao levante ope37

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rrio da Alemanha Oriental de 1953 como a interveno norte-americana na Guatemala de Jacob Arbenz ou a invaso russa da Hungria de 1956 significava condenar tambm quem o fizesse a infernos polticos que se alternavam pendularmente. Como se a crtica e a coerncia, por lealdade a certos valores fundamentais, no mais tivessem lugar no exerccio da poltica. Novamente, o pensamento crtico sucumbia aos alinhamentos incondicionais. Numa poca feita de maniquesmo, quem ousasse exercer sua independncia crtica, ante a violncia ora de uma, ora de outra das duas superpotncias, era em geral politicamente exilado no campo da outra um campo ao qual de fato no pertencia. Com alguns mais, Mario Pedrosa viveu essa situao e muitas vezes foi levado a militar num terreno que no era o seu e a pagar o preo poltico disso. No plano interno, o Brasil vivia uma fase conturbada e de referncias polticas confundidas: a agitao lacerdista, o suicdio de Vargas, o golpe de 11 de novembro, os sindicatos enfeudados ao Ministrio do Trabalho, a inquietao militar, a corrupo e o clientelismo populista aliados ao conservadorismo pessedista como sustentao de Kubitschek, o udenismo golpista, as esquerdas a reboque dos ziguezagues do PC etc. Nesse momento, ao que me lembre, a anlise que Mario fazia era de que o populismo estava em crise, mas que essa crise no estava suficientemente madura de modo a criar espao para um movimento operrio autnomo; que as tenses sociais tendiam a se agravar, mas sem um instrumento que as canalizasse para um objetivo poltico claro; que as instituies polticas democrticas eram frgeis e vulnerveis; que o desenvolvimentismo juscelinista no levaria a nada (aqui, verdade, escapou a Mario a importncia das mudanas econmicas ento em curso); e que a heterogeneidade estrutural do pas com fragilidade das instituies polticas fatalmente desembocaria numa crise de poder. Nesse cenrio, seriam os militares que exerceriam papel decisivo e era preciso conquist-los para a idia de que sem grandes reformas sociais, sobretudo a reforma agrria, no haveria estabilidade social e poltica no pas. Data da a aproximao de Mario com os militares intelectualizados da Escola Superior de Guerra, onde fez conferncias. O diagnstico estava certo, a escolha dos parceiros polticos que estava errada e disso Mario se daria conta logo depois.38

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No final da dcada de 1950, o advento da Revoluo Cubana, no plano externo, e o surgimento das Ligas Camponesas, no plano interno, pareciam introduzir dados novos, capazes de redefinir os termos de anlise e abrir formas novas de participao para uma esquerda que recusava tanto o stalinismo como o populismo e que, portanto, no tinha onde ficar. Da Revoluo Cubana se esperava uma espcie de reposio inventiva da idia de revoluo socialista face s contrafaes do socialismo real; de Francisco Julio e das Ligas, um impulso de baixo para cima, rompendo o encapsulamento do movimento social pelo populismo. E era essa discusso que Mario animava. No foi bem isso o que aconteceu, por razes que no posso aqui discutir, mas creio que tal esperana serviu poca para de alguma forma recentrar a bssola da esquerda independente. Tanto assim que, quando eclode a crise poltico-militar, no rastro da renncia farsesca de Jnio Quadros, foi claramente percebido que a defesa da posse de Jango, populista ou no, era a posio correta. Para encurtar razes, porque isso no um ensaio histrico mas lembranas da vida de Mario Pedrosa, veio o golpe de 1964. E tambm quando Mario comea a escrever seus dois livros polticos (A opo imperialista e A opo brasileira, afinal publicados em 1966), nos quais procura sintetizar suas anlises e, como sempre, indicar caminhos a seguir. A seu pedido, escrevi a orelha do primeiro deles, mas de forma algo reticente, porque achava que o conceito de imperialismo era um pouco mais complicado do que no livro se dizia, dadas as transformaes por que estava passando o capitalismo. Certamente, esse ato de discordar aprendi com Mario Pedrosa. Em 1968 ocorrem as manifestaes contra o regime militar e baixado o Ato Institucional no 5 (AI-5). Meu testemunho dessa poca precrio porque eu j me encontrava na Frana. Mas lembro-me das notcias da passeata dos 100 mil contra o regime militar e de que, na missa na Igreja da Candelria, na qual se reverenciava, em pleno regime militar, o estudante Edson Lus, morto pela polcia no restaurante Calabouo, Mario havia tido uma isquemia. Mas dois anos depois estava ativo politicamente. Era a poca dos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, nos quais a maioria das pessoas ditas importantes olhava para o outro lado, para fingir que no viam o que se cometia: o39

A utopia como modo de vida

desrespeito sistemtico dos direitos humanos e a prtica normalizada da tortura. Em 1970, Mario toma conhecimento de um esquema de fazer chegar Anistia Internacional, via Londres ou Genebra, as denncias comprovadas sobre casos de tortura no Brasil. Creio que dele no tenha participado ativamente porque viajara para o exterior para realizar estudo para a Unesco. Deu no que deu, como em plena vigncia do AI-5 era de esperar: denncia e represso. Mario ouvido no processo, como testemunha. Negou sua participao direta mas declarou estar solidrio com as pessoas envolvidas pelo horror que lhe inspirava a tortura. De testemunha passou imediatamente a indiciado no processo. Em julho de 1970, avisado de que seria decretada sua priso preventiva, sai de casa s pressas com a ajuda de Janio de Freitas. A casa foi em seguida invadida por policiais, que, contaram-me depois, foram recebidos por uma impvida Mary, que nem sequer interrompeu o seu jogo de pacincia, at porque j havia passado antes por essas coisas. Em seguida, Mario se asila na embaixada do Chile, onde aguarda, durante trs meses, salvo-conduto para viajar para aquele pas. Mario Pedrosa tinha ento 70 anos. Mas no Chile no descansa. convidado para ser membro do Instituto de Arte Latino-Americano e professor na Faculdade de Belas Artes de Santiago. Salvador Allende lhe confia a misso de obter doaes internacionais de obras de arte para a criao de um Museu de Arte Moderna, ao qual Mario d o nome de Museu da Solidariedade. Acompanhei-o em Paris a visitas a Soullages e Calder, que doam obras, como o fazem tambm Mir e Picasso. A primeira exposio se realiza em Santiago em 1972. Mario viaja novamente Europa em busca de novas doaes (chegariam a vrias centenas) e volta ao Chile dois dias antes da queda de Allende. (O Museu da Solidariedade est hoje instalado num casaro em Santiago, que visitei em 1999, e, escandalosamente, nele no h uma nica referncia a Mario, embora toda a documentao sobre sua criao seja l conservada.) O nome de Mario posto entre os primeiros na lista de procurados pelos militares de Pinochet. No h outra coisa a fazer: se asila na embaixada do Mxico, onde aguarda um salvo-conduto para viajar que nunca chega. De Paris, Carlos Fuentes prontamente intercede junto a seu governo para a concesso do documento. Mario pode ir, ento, para40

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o Mxico, mas l no pode ficar. Precisa viajar para Paris e, quando vou busc-lo em Orly, percebo que est quebrado com a derrota da esquerda no Chile. A comea outra novela. Mario viajava com um passaporte chileno que Allende lhe havia dado e a polcia francesa s queria deix-lo ficar no aeroporto, em trnsito. Depois de muitas tentativas, lhe deram 48 horas para deixar a Frana. Graas a seu velho amigo David Rousset, que era ento prximo de De Gaulle, conseguiu-se que lhe fosse concedido asilo poltico. Mas para isso ele tinha antes que prestar um depoimento na Surt, fazendo um histrico de vida. Acompanhei-o nesse depoimento (que durou quatro horas e assumiu s vezes um carter surrealista), procurando intervir, quando possvel, para tentar esclarecer situaes e passagens biogrficas de Mario absolutamente incompreensveis para um cartesiano inspetor da polcia francesa. A entrevista parecia no avanar. Foi quando o inspetor virou-se para mim e perguntou: E o senhor, afinal quem o senhor?, ao que respondi: Bem, sou o ex-genro dele. A percebi que o bravo inspetor desistiu de entender o que quer que fosse e oficializou o asilo. Mario ficou quatro anos em Paris, onde escreveu um ensaio sobre Rosa Luxemburgo, at que, revogado o mandado de priso preventiva que havia contra ele, pde voltar o Brasil em 1977, e foi mais tarde absolvido no processo ao qual respondia por denegrir a imagem do Brasil no exterior. Aos quase 80 anos, Mario acompanhou com extraordinrio interesse e esperana o surgimento do que ento se chamava novo sindicalismo no ABC paulista. No teve dvidas, escreveu uma longa carta a Lula, recomendando: crie um partido poltico de trabalhadores. Afinal, era tudo que durante toda a sua vida havia esperado. Quando houve a cerimnia de fundao do PT, Mario estava presente. E depois me contou: Danei-me de chorar. Era assim o Mario Pedrosa que conheci, uma dessas pessoas e digo-o com tristeza que, acho, no se fabricam mais. Havana, 4 de maro de 2001

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Mario Pedrosa e a tradio crticaOtlia Beatriz Fiori ArantesProfessora de Esttica do Departamento de Filosofia da USP e presidente do Centro de Estudos de Arte Contempornea (CEAC). Estuda desde 1978 a produo crtica de Mario Pedrosa. Reuniu e organizou quatro volumes de textos do autor publicados pela Edusp

No centenrio de um crtico decisivo como Mario Pedrosa, natural que se pergunte pela atualidade de seu empenho de vida inteira em favor da renovao permanente e esclarecida da arte brasileira. Passados 20 anos de sua morte, em que p estamos? Beneficiados pela vantagem involuntria da perspectiva histrica, sabemos hoje que de nada sabamos quanto ao fim de ciclo vivido naquela virada dos anos 70 para os 80. No era para menos. quela altura, a cultura oposicionista brasileira parecia se aproximar de um novo auge. Para que no houvesse dvidas a respeito, ali estava a grande novidade histrica representada pela construo autnoma de um Partido dos Trabalhadores, de cuja fundao o crtico de arte e militante socialista Mario Pedrosa participou. Menos de dez anos depois, reforando aquela sensao de apogeu, uma frente popular liderada pelo novo partido por pouco no ganhava uma eleio presidencial. E, no entanto, estava se encerrando, sem ter resolvido nenhum dos problemas de uma agenda his43

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trica de construo nacional (nem mesmo a industrializao, que se completara nos anos 70, fez a diferena que se esperava), meio sculo de nacional-desenvolvimentismo (1930-1980), meio sculo de modernizao conservadora, portanto, em cujo desenlace positivo todavia a tradio crtica a que pertencia Mario Pedrosa apostara, pois, afinal, neste longo ciclo de crescimento material e polarizao social, o pas estivera inegavelmente em movimento. Exatamente ao longo destas cinco dcadas transcorreu a atividade crtica de Mario Pedrosa. Por isso mesmo, como tudo que foi rigorosamente moderno, ela poderia parecer arquivada, quando muito objeto de curiosidade histrica. Evidentemente, no sou desta opinio ou no estaria pesquisando, publicando e divulgando sua obra, como tenho feito ao longo destes anos todos. No fcil, contudo, definir a atualidade de Mario Pedrosa, para alm do exemplo e da envergadura do personagem, sobretudo se confrontados com os herdeiros intelectuais de duas dcadas de estagnao mental e retrocesso social. Se disser que a atualidade est antes de tudo no mtodo crtico e no na matria histrica das opinies alis exatas no seu tempo, de Kthe Kollwitz e muralistas mexicanos at Braslia e o construtivismo , estarei sendo pouco especfica, ou melhor, estarei dizendo apenas o essencial, a saber, que a fora de seu modo de aproximao dos problemas da modernizao artstica brasileira provinha justamente da maneira pela qual soube reatar com o veio subterrneo da melhor tradio cultural brasileira, mais exatamente com a tradio de reflexo antiilusionista sobre a diferena brasileira e, por isso mesmo, sempre projetada sobre o fundo da marcha desigual e enganosamente convergente da civilizao capitalista em expanso no planeta. Por isso, a boa pergunta sobre a atualidade de Mario Pedrosa diz respeito, antes de tudo, ao futuro dessa tradio crtica, na qual se cristalizou algo como o ponto de vista da periferia acerca da natureza de um sistema mundial que lhe retirava com uma mo o que lhe oferecia com a outra estou me referindo, por exemplo, ao colapso do desenvolvimento, mas de um desenvolvimento a um tempo dependente da metrpole, porm associado a esse mesmo plo dominante. Alis, termo de comparao obrigatrio para quem se disponha a pensar, agora que se encerrou, e com um fiasco sem precedentes, o breve interregno construtivo do capitalismo global na periferia. Resta ento saber se avanaremos culturalmente desarmados em meio ao vcuo ideolgico que se instalou. Em44

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poucas palavras: estamos ou no diante de um novo comeo da capo, como parece ser o drama das formaes interrompidas em sociedades mal-acabadas. Ou, por outra, simplesmente nossa modernidade enfim se completou como das outras vezes, a cada ciclo sistmico de acumulao mundial , s que com um desfecho inesperado e inescapvel (salvo numa ordem ps-capitalista), cuja lgica no mais a da integrao, mas a de um permanente girar em falso rumo desagregao? Mesmo assim, gostaria de ressaltar a originalidade do mtodo crtico de Mario Pedrosa: o ajuste entre tendncias internacionais e realidade local (algo impensvel ou sem sentido para um crtico europeu, pelo menos enquanto lhe for possvel refletir sobre a tendncia do seu material sem p-lo prova na cmara de decantao da periferia). E mais: toda vez que abandonamos tal modo de pensar em dois tempos que manda confrontar a norma metropolitana com o seu desvio colonial, e vice-versa, resvalamos para a mais completa irrelevncia (como costuma lembrar Roberto Schwarz). Este, claro, no foi o caso de Mario Pedrosa. Podemos apreciar tal mtodo crtico, caracterstico da situao perifrica, em funcionamento na disputa, redefinida pelo nosso autor, entre figurativos, partidrios da nfase na cor local tal como a redescobriu e reinventou o modernismo em seu momento nacionalista e o internacionalismo dos abstratos. Ao demonstrar a pertinncia nacional da abstrao e a relevncia cosmopolita do modernismo do perodo anterior, Mario Pedrosa, ao advogar nestes termos a causa de uma possvel tradio construtiva brasileira, simplesmente dava continuidade, apesar do desencontro na avaliao arte abstrata ou figurativa? , lgica mesma de nosso sistema cultural binrio, que mandava regular um pelo outro, o particular-local e o universal-ocidental. bem verdade que para os modernistas o primitivismo cubista e a deformao expressionista de ntida ndole social pareciam ajustar-se a um programa de transposio plstica do pas, ao que o desrecalque localista (na expresso de Antonio Candido) os induzia, ao passo que com a abstrao imaginavam que seramos obrigados a renunciar a tudo isso, que uma tradio articulada a duras penas seria erradicada da noite para o dia, forando a um novo recomeo. Ocorre que o partido da tradio local esquecia que o primeiro modernismo tambm fora um corpo estranho e que, do mesmo modo, rompendo com um sistema anlogo de esti45

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los quase oficiais, a pintura abstrata vinha inaugurar um novo ciclo de atualizao, a que nos condenava nossa sina de pas perifrico. Na metrpole, o olho contemporneo, acomodado abstrao, num certo sentido era muito mais fiel ao princpio da mimesis do que um naturalismo de fachada, meramente retrico, de sorte que o abstracionismo, longe de ser uma arte alienada, era uma verdadeira e rigorosa potica da alienao contempornea; e, do lado de c, ns ramos parte do problema. Convm pois observar que os dois plos no s esto presentes em cada um dos momentos em questo, como por sua vez se sucedem: so momentos com nfases esteticamente contrapostas, porm no no nimo construtivo nacional do mundial (abstrao) ao localista (modernismo) , sem que no entanto, repito, se rompa a continuidade do propsito formativo entre ambos, essa a causalidade interna decisiva. Exemplo: a fase iluminista-institucional do Mrio de Andrade dos anos 30 e a depurao abstracionista-construtiva no esforo de superao do subdesenvolvimento que daria o tom na etapa subsequente; de outro lado, nada mais local do que uma nova capital ente territorialista por excelncia , em que culmina esse processo. Por onde se v que os dois Mrios procuravam a mesma sntese entre a construo nacional e o passo universalizante dessa mesma construo. At aqui, porm, a metade, por assim dizer, afirmativa dessa lgica cultural que especifica o raciocnio crtico de todo intelectual brasileiro que se preze, envolvido portanto na tarefa histrica de viabilizao do pas. Por isso a naturalidade do argumento de Mario Pedrosa: tudo se passa como se estivssemos preparados desde sempre ao menos pelo vis construtivo dos modernistas para encaixar sem arbitrariedade o desdobramento abstrato da arte moderna. Carter afirmativo desse contraponto (no fundo harmonioso!) entre experincia local e sua formulao verdadeira nos termos artsticos os mais avanados, porque ele supe que uma tal sntese entre o local e o mundial se verifique tanto na sua dimenso expressiva ou simblica como na material ou social isto , que a competio entre as naes pela riqueza capitalista se transfigure (no h outro termo para esta fantasia) numa prosperidade compartilhada graas a uma sbia e racional diviso do trabalho, no concerto das naes enfim, tudo que o capitalismo est condenado a prometer sem jamais cumprir. Difcil no ver que o momento internacionalista (porm aclimatado) encarnado por Mario Pedrosa tinha pre46

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cisamente o mesmo pressuposto, a saber, que articulao cultural nos moldes da sensibilidade esttica emancipada correspondesse uma sociedade economicamente moderna e integrada. No espanta ento que ambos os projetos, o da arte moderna levada ao seu limite, ou plenitude construtiva, e o da superao nacional do subdesenvolvimento tenham se esgotado na mesma hora histrica. Condenados ao moderno na frmula sempre repisada por Mario Pedrosa significa o quanto esta dimenso afirmativa do sistema cultural brasileiro (por assim dizer, em constante perodo de formao) ineludvel: ignor-la seria uma sentena de morte poltico-intelectual; subscrev-la integralmente, tambm, como ensina a experincia de dois sculos de vida nacional independente porm de segunda mo, o que sempre acaba esterilizando qualquer impulso emancipatrio o qual, por sua vez, se descarta um tal passado, torna-se, agora sim, abstrato, como todo enxerto sem antes nem depois. Resta a outra metade desse ponto de vista da periferia: o seu avesso propriamente crtico ou negativo, o momento de revelao local do andamento desconjuntado do sistema mundial refiro-me ao contraponto sem sntese entre o influxo externo, sempre preponderante na periferia, condenada subalternamente a se atualizar para no perecer, e suas metamorfoses locais. Podemos ver esse outro lado atuando nas oscilaes de Mario Pedrosa em torno dos transplantes que ele batizou de civilizao-osis (inspirado em Worringer): ora enclave colonial, ora matriz geradora de uma nova ordem social altura de seu tempo, corporificada na mitolgica edificao de uma nova capital Braslia , fecho do processo construtivo a que me referia, e da qual Mario foi, como se sabe, um incansvel defensor. A esse respeito, alis, no sei de melhor exemplo do que o destino do Movimento Moderno no Brasil, se me for permitido citar um argumento que venho desenvolvendo, por minha conta e risco, a propsito do sucesso da arquitetura brasileira. Abreviando ao mximo: um transplante bem-sucedido quando tudo a condenava ao arremedo inconseqente, vista da clamorosa ausncia de pressupostos tcnicosociais exigidos pela nova racionalidade construtiva , cujo rumo necessariamente formalista no entanto exibia a verdade oculta nas metrpoles de origem, o fundo falso da ideologia do plano, cuja tbula rasa utpica vinha a ser o prolongamento funcional da interminvel, e47

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eufemstica, criao destrutiva que resume o regime da acumulao capitalista. Neste caso o da formao da moderna arquitetura brasileira e seu girar em falso final, a partir de Braslia , contraponto sem sntese entre mundial e local, quer dizer, algo como uma relativizao recproca, um desmentido mtuo, na origem (como presumo) de uma perspectiva crtica original acerca da gravitao conjunta das duas instncias: cpia e modelo, matriz e filial, reforando-se e desautorizandose mutuamente, como o demonstram os sucessivos e alternativos malentendidos entre crticos de c e de l a respeito de quem era verdadeiramente fiel ao projeto original. Repetindo: lado a lado, purismo rigoroso e desenvoltura meramente plstica acertavam acerca de si mesmos no que criticavam no outro. Mas, tudo somado, a prova dos nove se dava aqui mesmo, na periferia desenvolvimentista. Juntando as duas pontas da meada, s verificar, no que concerne implicao mtua de abstrao e projeto construtivo brasileiro (em todos os sentidos), e ver se no foi essa afinal a demonstrao levada a cabo ao longo da trajetria crtica de Mario Pedrosa. Voltando ao nosso ponto de partida, tudo isso para dizer, que, apesar do valor de Mario Pedrosa ir muito alm do esforo de atualizao da cultura esttica brasileira, grande parte do interesse na evocao de seu itinerrio reside na oportunidade de se avaliar a atualidade da tradio crtica que o inspirou e cuja lgica evolutiva, como vimos, reside no comparatismo sistemtico e obrigatrio em virtude da mera localizao perifrica da cultura local, submetida s idas e vindas das mars hegemnicas entre o desvio ou a diferena nacional e o corpus normativo da modernidade, definido pela normalidade das culturas centrais. Ora: o que at ento caracterizava (e deprimia) esse ponto de vista da periferia, sempre embaraado por uma questo nacional, primeira vista provinciana, se cotejada com o cosmopolitismo das formaes hegemnicas, e que, portanto, era uma exceo, tornouse hoje regra geral, embora ningum tenha parado para pensar o atual curso do mundo por esse ngulo que at ento era o nosso. Refiro-me, claro, ao perodo que se seguiu ao eclipse do nacional-desenvolvimentismo (na periferia) e do fordismo ou compromisso keynesiano (no ncleo orgnico do sistema), e que atende pelo nome passepartout de globalizao. Hoje, no h paper que no explore, infalivelmente, dicotomias que nos so familiares por exemplo, as dissociaes de48

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sempre entre o global e o local. Onde a novidade? que esse raciocnio chegou ao Primeiro Mundo no que os Estados nacionais deste ltimo estejam abalados pela transnacionalizao a ponto de se assemelharem aos quase-Estados do Terceiro Mundo, mas pela primeira vez se est fazendo, naqueles espaos privilegiados e resguardados, a experincia perifrica por excelncia da dessolidarizao nacional. Dualidade, tal qual a conhecemos: os fatores sem mobilidade redescobrem-se como locais, da mo-de-obra cultura autctone. E mais: pela primeira vez a competio pelas novas localizaes trouxe para o primeiro plano a sndrome das atualizaes perversas, at ento apangio dos retardatrios congnitos. Gostaria de destacar apenas um aspecto deste nivelamento de posies no mbito das reaes intelectuais o que nos traz de volta ao nosso tema. Trata-se do que se vem chamando de cultura global a partir da multiplicao das contribuies locais que vo aflorando na periferia (ou, nos pases centrais, por meio das minorias e imigrantes) medida que se processa algo como um desrecalque (nem mais nem menos) das culturas subalternas, antes preteridas, mas que agora ganham no s visibilidade mas passam a alargar algo como um cnone mundial em princpio desierarquizado. Ora, justamente a, na fico deste sistema cultural global, podemos reconhecer a componente afirmativa do contraponto harmonioso de que estvamos falando no incio, o ponto de convergncia sntese entre o particular e o universal no concerto das naes (ou ex-naes, ou ainda naes meramente culturais). quela poca, entretanto, um ponto de fuga com fundamento na realidade, mas hoje, quando o capitalismo j disse a que veio, como sustent-lo? Justamente aqui, a necessidade de pr prova o mtodo crtico que, por sua vez, Mario Pedrosa soube to bem levar adiante, e reativar enfim a carga negativa dessa mesma tradio. Talvez nossa contribuio consista em apressar, dado o nosso infeliz knowhow na matria, a hora da virada crtica, pressentida por Mario Pedrosa: desautorizando um pelo outro, globalistas e localistas-identitrios o fio vermelho que atravessa sua obra, to avessa ao emparedamento nacionalista como ao acanhado cosmopolitismo de nossos dias. Pensando bem, no estarei exagerando se observar que Mario Pedrosa nunca foi to premonitoriamente atual quando, pressentindo o retrocesso global que se anunciava, recomendava aos artistas que resis49

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tissem discretamente na retaguarda e dessem passagem luta poltica propriamente dita. que tantos anos depois tal premonio viu-se ironicamente confirmada pela reviravolta que somos obrigados a testemunhar, esfregando bem os olhos para crer: sombra da revanche do capital, os antigos dissidentes sentem-se cada vez mais vontade na substituio do confronto poltico pela ao cultural, tanto mais reconfortante quanto conduzida sob o pretexto de aprimoramento esttico na percepo da nova ordem mundial.Este texto, do qual retomei alguns tpicos na fala de encerramento da mesa redonda Crtica, Arte e educao, foi publicado originalmente no caderno Mais! da Folha de S. Paulo de 16 de abril de 2000.

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Mario Pedrosa: um homem sem preoAracy AmaralHistoriadora, crtica de arte e autora de diversos livros

O Brasil, com sua delgada estrutura moderna aplicada sobre este imenso continente fervilhante de foras naturais e primitivas, me faz pensar num arranha-cu rodo cada vez mais em sua fachada por invisveis trmitas. Um dia o grande edifcio desmoronar e todo um povinho fervilhante, negro, vermelho e amarelo, se espalhar sobre a superfcie do continente, mascarado e munido de lanas, para a dana da vitria.

ALBERT CAMUS, Rio de Janeiro, jul. 1949

O curioso em Mario Pedrosa que, pensando com certo distanciamento a sua trajetria, percebemos que sempre foi um homem intelectualmente dividido. Viveu sua paixo pela poltica e pelo destino dos outros homens. Por outro lado, sua sensibilidade fez com51

Mario Pedrosa: um homem sem preo

que tivesse um papel absolutamente fundamental no panorama da crtica de arte brasileira de nosso sculo XX, j encerrado, a meu ver, desde 1989. Ao mesmo tempo, considero um privilgio, um colrio, podermos nos reunir hoje, nesta semana de celebraes, para pensar um pouco nesta personalidade. Amigo, mestre, interlocutor sempre interessado em partilhar a aventura criadora com os artistas com quem conviveu. Falamos de um homem mltiplo e vivaz atravs das dcadas, homem de uma linhagem em paulatina extino, visvel ainda numa personalidade como Antonio Candido. Pedrosa: uma personalidade fora dos conluios de hoje, quando devem ser rpidos os movimentos, e quase impossvel a reflexo, pela inundao de informao, ou pela reverncia mdia. A menos que nos distanciemos de um meio artstico que parece tornar-se a cada dia mais estranho, a tica parece definitivamente em baixa na rea cultural. Ausncia de condies de trabalho a provocar um retraimento nos que no desejam se envolver nas regras da vistosa projeo social propiciada pelas artes neste fim de dcada marcado pela violncia urbana, pelo medo, pela desesperana, pelo valor desmesurado do dinheiro e do consumo. Para no falar do abandono em que vivemos numa cidade como So Paulo, situao inconcebvel at 15 anos atrs. E, embora no seja exatamente nosso tema, no deixamos de pensar, ao refletir sobre a trajetria de Mario Pedrosa, nas modalidades de artes visuais que se praticam nestes tempos de violncia, de guerra, hipocritamente no declarada, no campo e nas cidades do Brasil. Mario Pedrosa foi talvez o primeiro crtico de arte brasileiro no procedente da literatura prosa ou poesia, e espero no estar fazendo nenhuma injustia por desconhecimento a abordar a produo de arte, como fez em 1932, com o trabalho sobre Kaethe Kollwitz. Ou como faria mais tarde, com o trabalho de Alexander Calder, em 1944, em ensaio antolgico sobre esse artista. Crtico excepcional, de formao europia, moveu-se inteiramente vontade nos dois maiores centros de arte do pas, Rio de janeiro e So Paulo, onde viveu anos fundamentais de sua vida profissional. Seu interesse primeiro foi a poltica, sua rea de interesse final foi a poltica, assim como o indgena brasileiro desamparado, sua cultura e suas manifestaes.52

Aracy Amaral

A arte ocupou, assim, com paixo, seus anos de maturidade, tempo de nacionalidade mais intensa. E no entanto, ao nascer para uma atividade sistemtica como pensador de arte, ou seja, ao realizar reflexes sobre a emergncia da manifestao artstica, com presena regular no Jornal do Brasil e no Correio da Manh, no Rio de janeiro, centrou sua ateno na criatividade dos loucos, fascinado pelos trabalhos dos artistas do Engenho de Dentro, onde conviveu com as obras de Raphael, Emygdio, Carlos, por exemplo, levado por Almir Mavignier, monitor da seo de terapia ocupacional; e tambm na inventividade livre das crianas, s quais dedicou vrios textos, a partir da escolinha de Augusto Rodrigues e, em particular, dos cursos de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro. Mario Pedrosa movia-se com familiaridade no meio jornalstico e intelectual, tanto no Rio de janeiro, onde residia, como em So Paulo, aqui tendo vivido por muitos anos (nos anos 20, no incio dos anos 30 e 60). Presente a partir dos anos 50 nos grandes eventos de arte, identificava com facilidade as personalidades do meio artstico das duas capitais. Atuou, podemos dizer assim, como um efetivo e respeitado elemento de ligao entre os meios artsticos das duas cidades. Se passou a ser porta-voz da vanguarda carioca (concretos, neoconcretos), foi tambm, em incios dos anos 60, o diretor do Museu de Arte Moderna de So Paulo. Mas Pedrosa sabia bem distinguir a diversidade entre Rio e So Paulo: no Rio, a extroverso, o nervo, o ca