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Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=305526871006 Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica Duarte, Adriano Luiz; Meksenas, Paulo HISTÓRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS: POSSIBILIDADES E IMPASSES NA CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DO CONHECIMENTO Dialogos - Revista do Departamento de Historia e do Programa de Pós-Graduação em História, vol. 12, núm. 1, 2008, pp. 119-139 Universidade Estadual de Maringá Maringá, Brasil Como citar este artigo Número completo Mais informações do artigo Site da revista Dialogos - Revista do Departamento de Historia e do Programa de Pós-Graduação em História, ISSN (Versão impressa): 1415-9945 [email protected] Universidade Estadual de Maringá Brasil www.redalyc.org Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

Modernidade e Movimentos Sociais

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História dos movimentos sociais

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    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Duarte, Adriano Luiz; Meksenas, PauloHISTRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS: POSSIBILIDADES E IMPASSES NA CONSTITUIO DO CAMPO DO

    CONHECIMENTODialogos - Revista do Departamento de Historia e do Programa de Ps-Graduao em Histria, vol. 12, nm.

    1, 2008, pp. 119-139Universidade Estadual de Maring

    Maring, Brasil

    Como citar este artigo Nmero completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Dialogos - Revista do Departamento de Historia edo Programa de Ps-Graduao em Histria,ISSN (Verso impressa): [email protected] Estadual de MaringBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

  • Dilogos, DHI/PPH/UEM, v. 12, n. 1, p. 119-139, 2008.

    HISTRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS: POSSIBILIDADES E IMPASSES NA CONSTITUIO DO CAMPO DO

    CONHECIMENTO*

    Adriano Luiz Duarte Paulo Meksenas**

    Resumo. Este texto tem o objetivo de empreender uma incurso inicial no modo como os historiadores tm utilizado o conceito de movimento social. Para isso, faz-se necessrio um sucinto histrico da sua utilizao e uma breve comparao dos seus mltiplos usos na rea das cincias humanas. Palavras-chave: Movimentos sociais; Histria; poltica; conflito.

    HISTORY AND SOCIAL MOVEMENTS: POSSIBILITIES AND IMPASSES IN BUILDING KNOWLEDGE FIELDS

    Abstract. The present paper aims to explore the issue of how historians have used the concept of social movements. To reach this goal, it is necessary to provide a brief review of how this concept has been utilized and a succinct comparison of its multiple usages in the area of human sciences. Keywords: Social movements; History; politics; conflict.

    HISTORIA Y MOVIMIENTOS SOCIALES: POSIBILIDADES Y OBSTCULOS EN LA

    CONSTITUCIN DEL CAMPO DEL CONOCIMIENTO

    Resumen. Este texto tiene el objetivo de emprender una incursin inicial sobre el modo en que los historiadores han utilizado el concepto de movimiento social. Para ello, es necesario un sucinto histrico de su utilizacin y una breve comparacin de sus mltiples usos en el rea de ciencias humanas. Palabras Clave: Movimientos sociales; Historia; poltica; conflicto

    * Artigo recebido em 11/07/2007 e aprovado em 10/3/2008. ** Respectivamente, professor de histria do Brasil e Histria Contempornea, e professor

    de Filosofia e Sociologia da educao na Universidade Federal de Santa Catarina.

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    Um galo sozinho no tece uma manh: ele precisar sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; e de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manh, desde uma teia tnue, se v tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendo para todos, no toldo (a manh) que plana livre de armao. A manh, toldo de um tecido to areo Que, tecido, se eleva por si: luz balo Tecendo a Manh Joo Cabral de Melo Neto

    INTRODUO

    Debater a constituio de um campo do conhecimento relativo compreenso dos movimentos sociais no tarefa fcil. O primeiro problema que se coloca diz respeito abrangncia do tema: afinal, o que cabe na categoria movimentos sociais? E mais, os movimentos sociais urbanos e rurais constituem objeto de quase todas as cincias humanas. No presente artigo, pretendeu-se buscar um tratamento interdisciplinar para o tema, com nfase, porm, na histria e nas cincias sociais. O segundo problema diz respeito s dificuldades de uma discusso que seja, simultaneamente, abrangente nos temas abordados e detalhada nas suas peculiaridades. Diante desses riscos, optamos pelo primeiro: uma abordagem panormica, sem nos aprofundar em algum tema especfico. Lembramos, ainda, que este texto s foi possvel porque muitos outros, antes de ns, lanaram questes que nos fizeram pensar. Desse modo, o que pretendemos aqui tecer alguns novos fios que podero ser aproveitados por outros como ns, nessa tessitura coletiva do conhecimento, como sugere a poesia em epgrafe.

    Assim, a proposta deste artigo refletir sobre a multiplicidade de significados quando pensamos os movimentos sociais como categoria

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  • Histria e movimentos sociais 121 capaz de orientar a pesquisa, com destaque para as cincias sociais e para a histria, ou seja, sobre o que queremos dizer quando nos reportamos ao estudo dos movimentos sociais.

    Nosso ponto de partida o reconhecimento de que o tema dos movimentos sociais est inextricavelmente ligado ao trinmio: modernidade, modernismo, modernizao, porque ele se configura como um problema no contexto da industrializao, da consolidao do capitalismo e da configurao da sociedade liberal. Partimos do suposto que essa qualidade do debate s pode ser atingida de modo interdisciplinar.

    Definir os movimentos sociais significa entend-los no seu contexto de origem, mas implica tambm reconhecermos os percursos que fizeram deles um tema, uma categoria que tem fecundado diferentes disciplinas acadmicas. Ora, muito se escreveu a respeito da modernidade enquanto fenmeno histrico. A modernidade fica reduzida a modernismo, quando pensada exclusivamente no plano da cultura, e reduzida a sinnimo de relaes sociais de produo, quando pensada exclusivamente no plano da modernizao.

    Marshall Berman foi o autor que melhor questionou essa concepo dualista que estabelece a dicotomia modernidade/modernismo e modernidade/modernizao. Ao perceber o contexto histrico em que as possibilidade so ao mesmo tempo gloriosas e deplorveis, Berman prope-se um estudo sobre a dialtica da modernizao e do modernismo (1992, p. 21-16) no qual a modernidade se torna o movimento histrico que conecta a modernizao com o modernismo. no mbito da modernidade que emerge a idia de contingncia. Ainda pouco referida em diversos autores que tratam dos movimentos sociais, talvez seja a idia que melhor tipifique o significado dos movimentos sociais como tentativas histricas, promovidas por diferentes classes sociais em diversas pocas, na busca por ordenar aquilo que parece no ser propcio ordenao: os conflitos oriundos da modernidade.

    O Contingente o instvel e o provisrio; aquilo que e pode no ser; o acaso; o vir-a-ser. Por isso essa noo comporta pelo menos duas implicaes importantes. Antes de tudo, contingncia uma situao na qual o sujeito da ao no mundo se v perdido, pois tudo se modifica com tal rapidez que difcil perceber para onde as coisas vo, e em que o mundo, ao apresentar-se como uma totalidade, permite a escolha de vrios e diferentes caminhos na construo da vida e faz com

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  • 122 Duarte e Meksenas que o sujeito da ao tenha que lidar com a possibilidade do acaso. Por outro lado, contingncia o reino das possibilidades, em que tudo pode ser realizado, tudo pode ser tentado, tudo pode ser experimentado. Ou seja, a modernidade apresenta um mundo aberto em relao ao futuro, no qual o destino no um dado, mas um contnuo vir-a-ser e, ao mesmo tempo, um mundo sem anteparos e sem seguranas consolidadas.

    Nesse contexto, a exploso de diversos movimentos sociais mais organizados ou menos organizados, mais institucionalizados ou menos institucionalizados deve-se dinmica prpria da modernidade, ao instaurar a noo de que o destino obra do sujeito coletivo na Histria. Pensemos, ento, numa genealogia terica que explique os movimentos sociais nos planos das cincias sociais para propor, a seguir, uma compreenso dos movimentos sociais na historiografia.

    POR UMA GNESE DO CONCEITO DE MOVIMENTOS SOCIAIS NAS CINCIAS SOCIAIS

    No sculo XIX a noo de movimento social aparece, de modo geral, como um sinnimo das lutas operrias organizadas, como o Cartismo, em oposio s aes diretas, localizadas, explosivas e secretas, como o Ludismo, por exemplo. Marx foi o autor que melhor usou a ambigidade contida no termo movimentos sociais com o significado de ao poltica dos trabalhadores fabris, considerando a importncia das trade-unions inglesas na formao da conscincia de classe.

    No Manifesto Comunista, o autor destaca que as relaes sociais de produo, mediadas pelas foras produtivas, ao destrurem a velha ordem social e ao desintegrarem o trabalho artesanal na Inglaterra, consolidaram a unidade produtiva tpica do capitalismo a indstria ao reunirem, num mesmo local, as massas de trabalhadores despossudos. Organizados militarmente e segundo a diviso social do trabalho, a constituio do proletariado se converteria na base produtiva do novo sistema. Contraditoriamente, estavam dadas as condies para a organizao do proletariado a partir das suas experincias e dos seus movimentos histricos. Em Misria da Filosofia Marx afirma que as condies econmicas e de produo fizeram dos trabalhadores uma nova classe para o capital; mas apenas a sua luta coletiva, os movimentos sociais, os teriam convertido em classe consciente de si mesma.

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    As condies econmicas tinham por princpio transformado a massa da populao do pas em trabalhadores. A dominao do capital criou para essa massa uma situao comum, interesses comuns. Por isso, essa massa j uma classe diante do capital, mas no o ainda para si mesma. Na luta, de que s assinalamos algumas fases, essa massa rene-se, constitui-se em classe para si mesma. Os interesses que defende tornam-se interesses de classe. Mas a luta de classe com classe uma luta poltica (MARX, 1976, p. 136).

    Em suma, as lutas contra o capital forjaram a conscincia de classe. A noo de movimentos sociais aparece como as diversas formas de participao do proletariado na sua prpria emancipao social. Assim, mesmo no criando uma teoria especfica sobre os movimentos sociais, Marx forneceu indicaes precisas para a sua compreenso. Seus estudos a respeito da gnese e do desdobramento das relaes sociais burguesas, que partiram da anlise da forma-mercadoria, no prescindiam do conceito de prxis; ou seja, as aes emancipatrias e de carter poltico nunca foram desconsideradas em favor da anlise das estruturas econmicas. Para Marx, o poltico e o econmico formam uma unidade contraditria e, nesse contexto, a anlise dos movimentos sociais foi integrante do seu projeto terico, o que se evidencia nos trabalhos o Dezoito de Brumrio ou Guerra Civil na Frana.

    Na tradio marxista, Lnin, ao concordar com as posies assumidas por Marx, enfatizou que o proletariado no se converte na classe para si, distante da mediao do Partido. Assim, a emergncia dos movimentos sociais tenderia ao esgotamento, a menos que os intelectuais sados da classe trabalhadora ou com ela comprometidos viessem a assumir a direo da ao poltica por meio do Partido. Criticando Martov e Plekhnov, Lnin afirmou que os movimentos do proletariado no evoluam espontaneamente. Em Que Fazer? admitiu que as carncias materiais e as experincias comuns dos trabalhadores podiam at produzir movimentos de reivindicao, porm as possibilidades de que tais movimentos viessem a revolucionar a sociedade burguesa ocorreriam apenas no momento em que eles se tornassem polticos. Portanto, seria preciso superar o estgio das reivindicaes puramente econmicas e, para tanto, seria fundamental o papel dos intelectuais do Partido na organizao e direo dos movimentos sociais.

    A grande maioria dos sociais-democratas russos, nesses ltimos tempos, foi quase inteiramente absorvida pela organizao

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    dessas denncias de fbricas. bastante lembrar a Rabtchaia Mysl, para se ver a que ponto chegou tal absoro; esquecia-se que, no fundo, essa atividade no era ainda em si mesma social-democrata, mas apenas sindical. As denncias referiam-se, no fundo, somente s relaes dos operrios de uma determinada profisso com seus patres, e no tiveram outro resultado seno o de ensinar queles que vendiam sua fora de trabalho, a vender esta mercadoria de forma mais vantajosa, e a lutar contra o comprador no terreno de uma transao puramente comercial. Essas denncias podiam servir de ponto de partida e de elemento constitutivo da ao social-democrata; mas tambm podiam conduzir luta exclusivamente profissional e a um movimento operrio, no social-democrata. [...] Conseqentemente, portanto, os social-democratas no podem limitar-se luta econmica, mas tambm no podem admitir que a organizao das denncias econmicas constitua sua atividade mais definida. Devemos empreender ativamente a educao poltica da classe operria, trabalhar para desenvolver sua conscincia poltica (LNIN, 1978, p. 45).

    A hiptese de que os movimentos sociais extrapolassem as fronteiras do mundo produtivo e viessem a ocorrer nos bairros operrios a esfera do consumo foi aventada por Lnin, ao admitir que o Partido deveria considerar a ao de organizadores profissionais da luta operria nos bairros, desenvolvendo atividades de propaganda e agitao, aglutinando e conscientizando moradores por quarteiro, desde que a atuao desses organizadores estivesse atrelada s diretrizes do Partido e s lutas fabris. Aqui, a noo de movimentos sociais se confunde com aes insurrecionais de suporte ao Partido, no processo de tomada do poder.

    As teses leninistas no foram, contudo, hegemnicas no pensamento marxista. Rosa Luxemburgo, em 1918, j criticava a noo de que o movimento operrio, se deixado sua prpria sorte, no passaria de uma massa amorfa.1 Ao contrrio, acreditava que a espontaneidade das massas e as suas iniciativas criativas seriam o produto direto das suas experincias no mundo, servindo para qualificar os seus movimentos coletivos. Antes mesmo da entrada do Partido em cena, Rosa Luxemburgo defendia que, a cada luta, independentemente dos seus

    1 Para uma discusso das teses de Rosa Luxemburgo a respeito da relao do movimento

    operrio com o partido, ver Negt (1984).

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  • Histria e movimentos sociais 125 resultados imediatos, os trabalhadores avanavam no seu aprendizado poltico e na auto-organizao.

    Ela sugeria que a relao partido-massas se constitua como uma relao democrtica. Criticando o centralismo das aes partidrias proposto por Lnin, entendia que os trabalhadores no seriam conduzidos pela vanguarda, pois eram capazes de influenciar nos projetos de construo do socialismo a partir da autonomia presente nos seus movimentos. Nesse contexto, o respeito s decises tomadas em assemblias populares seria a maior garantia das liberdades no curso da Revoluo e a maior garantia para a pujana dos movimentos sociais.

    Na tradio do pensamento marxista, as posies de Gramsci tambm questionam a tese da orientao determinante do Partido nos movimentos sociais. As relaes entre o Estado e a sociedade civil eram entendidas de modo que os movimentos sociais fossem vistos com autonomia relativa perante as instituies. Tal noo est vinculada viso do Estado no apenas como fora coercitiva, mas, sobretudo, como instrumento de busca do consenso dos trabalhadores (hegemonia). Destarte a tomada do poder e a construo do socialismo no aparecem como meta do Partido que orienta as massas; ao contrrio, preciso um longo processo, que se inicia com a transformao da sociedade civil e assinala a quebra do consenso e a elaborao da contra-hegemonia. Assim, os movimentos sociais emergem como o plo mais dinmico da sociedade civil, cujas aes transcendem e at mesmo escapam ao controle do Partido.

    Os movimentos sociais se tornariam o campo da produo do novo consenso, fornecendo elementos para a afirmao da cultura que fossem capazes de reinventar o cotidiano das classes trabalhadoras. Por isso, eram eles entendidos, preliminarmente, como momentos da educao popular. Nesse cenrio, o dirigismo partidrio pode ser um elemento de quebra da capacidade inventiva das aes coletivas. Assim, os movimentos sociais so entendidos como aportes da educao popular para as prticas da conquista e ocupao de espaos na sociedade civil; portanto, para Gramsci, o dirigismo do partido deveria ser substitudo pela sua co-autoria nas aes coletivas, pois todos os membros de um partido poltico devem ser considerados como intelectuais e as suas tarefas so diretivas e organizativas, isto , educativas (GRAMSCI, 1978, p. 15).

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    As tentativas de compreenso dos movimentos sociais no se restringiram ao campo do marxismo. As releituras das obras de Durkheim e Weber contriburam para a formao de um corpo terico no-marxista e de interpretao dos movimentos sociais. Categorias como ao social, anomia; indivduo e grupo; integrao social e crise; famlia e vizinhana; sexo e cor vo ser incorporadas por vrios autores na compreenso dos movimentos sociais no sculo XX. A nfase deixa de ser o potencial revolucionrio desses movimentos e os sujeitos sociais no so mais definidos a partir das relaes de classe.

    O centro dessa anlise se volta explicao das reaes psicossociais dos indivduos que participam das aes coletivas. Tais reaes so vistas como decorrentes de mudanas socioeconmicas que, por desenvolverem novas regulaes de modo rpido e abrupto, no encontraram correspondncia na conscincia do homem comum e produziram, a partir da, contextos de desagregao dos grupos sociais. Nessa concepo, os valores modernos suplantam os tradicionais de modo to intenso que provocam uma crise nos padres de adaptao e integrao do indivduo vida social. Assim, os participantes dos movimentos sociais so vistos como sujeitos que no souberem integrar-se ao novo cenrio social e, por isso, podem se constituir como ameaa ordem institucional.

    Tais idias aparecem na sociologia funcionalista de Parsons, que incorporou as proposies de Durkheim e Weber. Parsons admitia que o sistema social se manteria em equilbrio a partir de quatro nveis da ao social: integrao; manuteno dos modelos sociais; finalidades coletivas; adaptao (Parsons apud Habermas, 1986, p. 281). As duas primeiras ocorreriam, prioritariamente, no sistema escolar, pois, sendo produtoras de lealdade, eram capazes de criar nos indivduos o sentimento de pertencer coletividade. No momento em que a integrao e a manuteno dos modelos sociais falhassem, o sistema se desequilibraria pelas aes de grupos que se tornariam marginais s ordenaes sociais. Tal cenrio seria propcio exploso dos movimentos sociais, percebidos, deste modo, como aes coletivas desordenadas e que colocariam em risco a organizao social e as instituies.

    Nas sociedades com grau de integrao elevado, o pequeno nmero de tenses sociais impediria a emergncia dos movimentos sociais. Ao contrrio, em sociedades que passassem por transformaes rpidas em suas estruturas econmicas, polticas e institucionais, a desorganizao oriunda de tais transformaes criaria condies para a

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  • Histria e movimentos sociais 127 exploso das aes coletivas. Na sociologia funcionalista, os movimentos sociais seriam entendidos, portanto, como um problema de sociedades anmicas ou disfuncionais, sendo, portanto, carregadas de potencial desagregador, o que impediria a consolidao da vida democrtica e institucional regular.

    A essa perspectiva negativa dos movimentos sociais, presentes na sociologia funcionalista, soma-se o corpo terico da Escola de Chicago, nomeadamente, Park, Lewis e Merton. No centro desta perspectiva emerge o conceito de comunidade, definida como o campo das relaes pessoais ou das relaes face a face, em que os vnculos de vizinhana e o envolvimento interpessoal seriam integrais e diretos. Essa concepo de comunidade, segundo Kowarick (1975), levou os tericos da Escola de Chicago ao estudo do espao urbano como capaz de recriar, no seu interior, grupos com identidade nos laos pessoais e no apenas nos jurdico-contratuais, estes ltimos tpicos da modernidade. Tais identidades proviriam das prticas econmicas, sociais e culturais tradicionais, as quais estariam em desacordo com os padres da sociedade industrial.

    O descompasso entre o tradicional e o moderno produziria o contexto da exploso dos movimentos sociais nos guetos urbanos. Para abordar essa realidade, os tericos da Escola de Chicago relacionaram os movimentos sociais aos conceitos de homem marginal, cultura da pobreza e condutas desviantes, entre outros. Desse modo, se a modernizao tenderia a substituir valores tradicionais, um conjunto de aes institucionais poderia gerar um processo de adequao dos indivduos que ainda no estivessem adaptados aos novos valores e se encontrassem margem do sistema. Isto seria possvel por meio de reformas que partissem do Estado e atingissem as relaes face a face, presentes nos grupos primrios, sob o controle de lideranas locais, os quais seriam transformados pela ao institucional. Para os investigadores filiados Escola de Chicago, os movimentos sociais eram pensados como aes coletivas desordenadas, porm passveis de ordenao pela atuao do poder institucional.

    A provocao que aqui se faz : no haveria uma proximidade do mtodo proposto pela Escola de Chicago com o mtodo proposto pela Escola dos Annales? A pergunta pertinente, uma vez que as duas escolas concordam com o fato de que a compreenso de um caso, mesmo abordado particularmente, pode ser a chave para a compreenso do todo, pois a totalidade se faz presente no caso destacado. Vale

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  • 128 Duarte e Meksenas salientar que esse modo de perceber os movimentos sociais - em que o particular diz sobre o universal, e no o contrrio - predomina at a dcada de 60 do sculo XX, marcada pela emergncia de inmeros e diversificados movimentos coletivos no cenrio internacional, quando se tornou cada vez mais evidente que esse modo de definir movimento social no dava conta de responder s demandas, por exemplo, dos movimentos que podemos reunir sob a rubrica de contracultura o movimento black power, os panteras negras, o movimento feminista, a pop-art, etc. nesse contexto que emergem profundas modificaes no modo de pensar o problema dos movimentos sociais. O aspecto mais evidente dessa guinada no tema dos movimentos sociais o retorno a certos pressupostos da tradio marxista.

    Em a Questo urbana, publicado em 1983, Manuel Castells centra seu foco no fenmeno urbano. Ele identifica trs tipos de movimentos urbanos: movimentos de orientao sindical; movimentos de orientao comunitria; movimentos de cidados. esse conjunto que, para Castells, o verdadeiro impulsionador de mudanas e inovaes sociais (CASTELLS, 1983). Publicado em 1984, a Crtica da Modernidade de Alain Touraine viria manter alguns dos pressupostos da escola funcionalista, mas retomaria alguns princpios do marxismo. Para ele, por um lado, a sociedade no o mero resultado de normas e instituies, ela se reproduziria tambm pelas suas tenses e conflitos; por outro, ela sociedade seria mais do que o seu simples funcionamento, porque possuiria a capacidade de se auto-representar e criar sistemas simblicos, responsveis pela orientao da ao dos atores sociais. Nessa perspectiva, Touraine caracteriza os movimentos sociais do sculo XIX como centrados na questo do trabalho, sendo seu contorno dado pela luta de classes e pelo antagonismo entre burguesia e proletariado.

    No final do sculo XX, no contexto da globalizao, a esfera do trabalho teria perdido a sua centralidade em favor das esferas do consumo e da comunicao. Os movimentos sociais se definiriam, doravante, em torno dessas demandas: consumo e comunicao, mudanas que teriam intensificado o individualismo, passando os movimentos sociais de ofensivos a defensivos. Os conflitos no mais apareceriam num quadro macrossocial, mas emergiriam localizados, fragmentados e particularizados. Seria a crise das utopias. nesse contexto que a noo de direitos e de cidadania passa a ser central para o debate acerca dos movimentos sociais (TOURAINE, 1984).

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    OS MOVIMENTOS SOCIAIS: UMA QUESTO MODERNA

    A reflexo proposta at o presente permite retomar a idia segundo a qual os movimentos sociais so, simultaneamente, produto e produtor da modernidade. No h como se referir a eles em contexto histrico que no seja perpassado pelos problemas e contradies do mundo moderno. Cabe, portanto, refletir sobre as diferentes maneiras como o moderno pode ser pensado. O no-enfrentamento dessa pluralidade poderia levar-nos a pensar o conceito de movimentos sociais desvinculado de uma noo de totalidade. Comecemos, pois, com David Harvey:

    H a suspeita de que o projeto do iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipao humana num sistema de opresso universal em nome da libertao humana. Foi essa a atrevida tese apresentada por Horkheimer e Adorno na Dialtica do Esclarecimento (1996, p. 23).

    Citando os autores da Dialtica do Esclarecimento, Harvey destaca que a modernizao fez com que a objetividade, expressada no saber cientfico, limitasse os nexos entre conhecimento e tica, pois, medida que as relaes sociais de produo capitalistas buscaram reduzir a cincia a atividade quase exclusiva da reorganizao/reorientao das foras produtivas, nos propsitos da acumulao do capital, no haveria como pensar nos propsitos do conhecimento. nesse contexto que a tcnica toma o lugar da poltica, conforme afirmam Adorno e Horkheimer:

    Os reis no controlam a tcnica mais diretamente do que os comerciantes: ela to democrtica quanto o sistema econmico com o qual se desenvolve. A tcnica a essncia desse saber, que no visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o mtodo, a utilizao do trabalho de outros, o capital (1991, p. 20).

    A partir dessa perspectiva, Harvey l os autores do sculo XX, entre eles Adorno e Horkheimer, e volta-se compreenso do significado da modernidade. O projeto iluminista, que, originariamente, assumira a contingncia humana como possibilidade da realizao da liberdade com nfase no reconhecimento da individualidade, da subjetividade, da

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  • 130 Duarte e Meksenas igualdade e da fraternidade como processos de humanizao pelo reconhecimento e respeito alteridade, tomaria seu curso guiado pelo primado da razo. No entanto, a razo tcnica que predominaria, por isso a contingncia humana seguiria o curso de uma modernizao totalitria. Conclui-se: o esclarecimento possui o germe do totalitarismo.

    Ao contrrio dessa perspectiva, a filosofia do sculo XIX, mesmo sob olhares diversos como os presentes em Hegel, Marx e Nietzsche apostou na possibilidade das realizaes de uma modernidade que no fosse opressiva. J o pensamento inquiridor do sculo XX mostrou-se um tanto ctico quanto a essa possibilidade. nesse contexto que, no s Adorno e Horkheimer, mas tambm Weber e Foucault, desconfiaram daquilo que aconteceria se apostssemos todas as nossas fichas na emancipao humana: ela se voltaria contra si mesma. Continua Harvey: Marx, que em muitos aspectos era filho do pensamento iluminista, buscou transformar o pensamento utpico a luta para os seres humanos realizarem sua natureza especfica. E, ainda, continua o autor, o movimento socialista contestava, cada vez mais, a unidade da razo iluminista e inseriu uma dimenso de classe na modernidade (1996, p. 24 e 37).

    O Iluminismo mostrou que a modernidade assume as caractersticas da emancipao da humanidade, e que os veculos dessas transformaes poderiam ser os movimentos sociais. O sculo XIX afirmou a modernidade como o momento de emancipao da burguesia, mas indicou, por outro lado, que poderia vir a ser o momento da realizao do projeto de emancipao dos trabalhadores urbanos. Da emancipao genrica chegamos emancipao de classe. E o sculo XX, o que nos mostrou? Primeiro com Weber, depois com Adorno e Horkheimer, Heidegger, Foucault e tantos outros, que, a despeito de suas diferenas de perspectiva, a modernidade, enquanto uma emancipao da modernidade de classe, seria uma quimera e, nesse contexto, os movimentos sociais, como movimentos de classe, tambm seriam iluses.

    Estes ltimos autores citados puseram em questo a realizao de um projeto emancipatrio partindo da idia de que a Histria mostrou os desdobramentos autoritrios dessa possibilidade na experincia sovitica, entre outras, duvidando, assim, da revoluo. Tais autores, ao assumirem essas posies, defenderam, na verdade, uma modernidade tal como ela , e no como um projeto, como um vir-a-ser. Contraditoriamente, possuam a peculiaridade de referir-se modernidade como fenmeno margem das determinaes de classe e reassumiram igualmente, como os

    Dilogos, DHI/PPH/UEM, v. 12, n. 1, p. 119-139, 2008.

  • Histria e movimentos sociais 131 Iluministas do sculo XVIII, um projeto genrico de redeno da humanidade. Berman ser o autor a referendar a crtica que expusemos acima:

    Se nos movermos para o plo oposto do pensamento do sculo XX, que declara um enftico No vida moderna, encontraremos uma viso surpreendentemente semelhante do que seja a vida. No desfecho de A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo, escrito em 1904, Max Weber afirma que todo o poderoso cosmo da moderna ordem econmica como um crcere de ferro. Essa ordem inexorvel, capitalista, legalista e burocrtica determina a vida dos indivduos que nasceram dentro desse mecanismo [...] com uma fora irresistvel. Essa ordem determina destino do homem, at que a ltima tonelada de carvo fssil seja consumida. Agora, Marx e Nietzsche e Tocqueville e Carlyle e Mill e Kierkegaard e todos os demais grandes crticos do sculo XIX chegam a compreender como a tecnologia moderna e a organizao social condicionaram o destino do homem. Porm, todos eles acreditavam que os homens moderno tinham a capacidade no s de compreender esse destino, mas tambm de, tendo-o compreendido, combat-lo. Assim, mesmo em meio a um presente to desafortunado, eles poderiam imaginar uma brecha para o futuro. Os crticos da modernidade, no sculo XX, carecem quase inteiramente dessa empatia com e f em seus camaradas, homens e mulheres modernos. Segundo Weber, seus contemporneos no passam de especialistas sem esprito, sensualistas sem corao; e essa nulidade caiu na armadilha de julgar que atingiu um nvel de desenvolvimento jamais sonhado antes pela espcie humana. Portanto, no s a sociedade moderna um crcere. Como as pessoas que a vivem foram moldadas por suas barras; somos seres sem esprito, sem corao. Sem identidade sexual ou pessoal quase podamos dizer: sem ser. Aqui, como nas formas futuristas e tecnopastorais do modernismo, o homem moderno como sujeito como um ser vivente capaz de resposta, julgamento e ao sobre o mundo desapareceu. Ironicamente, os crticos do crcere de ferro, no sculo XX, adotam a perspectiva do carcereiro: como os confinados so desprovidos do sentimento interior de liberdade e dignidade, o crcere no uma priso, apenas fornece a uma raa de inteis o vazio que eles imploram e de que necessitam (1992, p. 27).

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  • 132 Duarte e Meksenas

    Berman sugere, desse modo, a necessidade de resgatarmos, a partir da leitura dos clssicos da filosofia do sculo XIX, uma postura crtica diante das feies da modernidade do sculo XX. Em outras palavras, sugere que devemos ser pessimistas quanto razo tcnica e instrumental responsvel pelas experincias terrveis do holocausto ou dos gulags soviticos , mas devemos ser otimistas, como o foram os filsofos do sculo XIX, e perceber na histria os sinais capazes de ainda conter a possibilidade de realizao da modernidade sob os valores das classes trabalhadoras.

    OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A HISTORIOGRAFIA

    De modo geral, difcil encontrar uma definio dos movimentos sociais elaborada por historiadores. Afinal de contas, o que os historiadores tm entendido por movimentos sociais para alm das narrativas de suas dinmicas?2 A primeira considerao que a operacionalidade do conceito se tornou recorrente em perodo muito recente.

    Possivelmente, a primeira grande referncia a movimentos sociais, na historiografia, tenha sido feita no livro Rebeldes Primitivos, de Eric Hobsbawn (1978), cujo subttulo : Estudos de formas arcaicas de movimentos sociais nos sculos XIX e XX. Nesse livro, publicado originalmente em 1959, movimentos sociais podem ser as iniciativas tomadas por trabalhadores industriais urbanos, assim como as mltiplas formas de protesto da vontade popular, em diferentes pocas e por diferentes grupos socioprofissionais, cuja importncia adviria do seu carter radical e de massa; ou eventos caracterizados pela presena da multido nas ruas, no importando sua inteno e sua ideologia nesse caso poderiam ser de esquerda ou de direita , nem sua capacidade de provocar reao na sociedade; ou, ainda, os movimentos milenaristas e os banditismos sociais, como a mfia.

    2 Essa mesma pergunta inspirou um artigo de Adalberto Marson em 1992: Lugar e

    identidade na historiografia de movimentos sociais, publicado em Jogos da poltica: imagens representaes e prticas, organizado por M. S. Bresciani, Eni Smara e Ida Lewkowicz. Essa sesso deve muito da sua inspirao a esse artigo. Alm disso, a disseminao de linhas de pesquisa e grupos de estudo em programas de ps-graduao em histria com referncia explcita a movimentos sociais foi decisiva para estimular essas reflexes.

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  • Histria e movimentos sociais 133

    O mesmo autor, num texto de 1972, intitulado Da histria social histria da sociedade, toma movimentos sociais como sinnimo do estudo dos conflitos sociais, dos tumultos e das revolues num claro retorno ao marxismo da primeira metade do sculo XX como sinnimo de uma transformao radical e profunda da sociedade. Ele aponta, tambm, ser perigoso tomarmos as revolues como acontecimentos isolados dos contextos em que elas ocorrem.

    Segundo Hobsbawm, o maior desafio para os historiadores continua sendo o estudo dos comportamentos de classe e, sobretudo, as manifestaes da conscincia de classe. Esse era um terreno em que todos se viam tentados a avaliar o contedo ideolgico doss movimentos sociais. Os riscos so: isolar certos fenmenos de seus contextos mais amplos; privilegiar manifestaes que s ocorrem em momentos de transformao revolucionria; ignorar os movimentos cujos participantes no se manifestem na linguagem articulada dos documentos escritos. Essas advertncias nos alertam de que por movimentos sociais no podemos entender apenas os eventos do conflito social. No obstante, mesmo com essa ressalva, parece bvio que perdemos alguma coisa com essa definio restrita de movimento social. Isso nos levaria a pensar os movimentos sociais como movimentos contra alguma coisa; porm, como ficariam movimentos a favor de ou em defesa de alguma causa? Fica claro que continua havendo uma enorme dificuldade no estudo dos movimentos sociais.

    Por a j possvel perceber a dificuldade do historiador que se atreva a uma definio suficiente e plausvel de movimentos sociais. O conceito parece ter uma consistncia meio gelatinosa, e escapa pelos nossos dedos quanto mais tentemos delimit-lo. Mais do que uma dificuldade de definio, essa amplitude de critrios parece sugerir uma inconsistncia lgica que inviabilizaria pensar movimentos sociais como um tema historiogrfico.3 Isso nos coloca diante de um paradoxo, pois, afinal, como tema historiogrfico que movimentos sociais tm ocupado um lugar privilegiado na produo historiogrfica, desde, pelo menos, os anos 60, e na formao de diversas linhas de pesquisa acadmica nos ltimos anos.

    As ambigidades contidas no conceito de movimentos sociais sugerem as encontradas na rea maior de interesse onde ele se situa: a histria social. Assim, movimentos

    3 Esse aparente beco sem sada foi apontado por Adalberto Marson no seu texto de 1992.

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  • 134 Duarte e Meksenas sociais devem ser tomados como objeto de reflexo no mesmo momento em que se interroga o papel e o significado da histria social. Nossa hiptese que os conceitos so mutuamente esclarecedores, porque os problemas que eles pem em cena esto umbilicalmente ligados. Afinal, o que a histria social, na qual os movimentos sociais esto inseridos? Qual o seu objeto, o que permite defini-la como uma rea especfica? Quais os seus mtodos e procedimentos que podem proporcionar a compreenso dos movimentos sociais? Quais os critrios usados para distinguir os enfoques dados pelos historiadores sociais daqueles dados em outras reas, como histria econmica, histria poltica, histria cultural?

    Obviamente, esse no um debate brasileiro. Ingleses, franceses e alemes tambm enfrentam esses dilemas. Madeleine Rebrioux, uma das mais renomadas historiadoras dos movimentos sociais, disse, sobre a Histria Social, que esta se definiria menos por seu territrio e mais pela sua ambio, pelos seus tipos de questionamento, seus modos de abordagem.

    O historiador ingls Raphael Samuel comentou, certa vez, que a Histria Social se caracteriza por uma preocupao com a vida real no apenas com as representaes, ou com abstraes filosficas. Preocupa-se com as pessoas comuns, e no com as elites privilegiadas. Preocupa-se com as coisas cotidianas, e no com os eventos sensacionais. Assim a histria social seria um modo particular de interrogar e abordar, e a sua ambio, teria o desejo de abarcar aspectos diferentes (social, poltico, cultural, econmico) da realidade, recusando um recorte estreito. Exatamente por isso, ela estaria mais prxima do que se poderia chamar de uma histria total, ou seja, ela teria a pretenso de conectar os aspectos social, poltico, cultural, econmico em explicaes totalizantes. Desse modo, haveria uma possibilidade de histria social em todas as reas: religio, cincias, artes, gnero, sade, literatura, msica, poltica e outras.

    A histria social ou seja, o tema dos movimentos sociais entrou em voga, de fato, apenas nos anos 40, o que faz dela uma rea do ps-guerra. At ento no havia pressa em definir seus contornos, porque ainda no havia interesses profissionais e institucionais que exigissem uma demarcao precisa. Nesse contexto, histria social referia-se

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  • Histria e movimentos sociais 135 histria das classes pobres ou classes inferiores e aos seus movimentos. Em termos mais especficos, significava histria do trabalho e das organizaes socialistas, mas tambm podia ser usada para definir o estudo dos usos, dos costumes e da vida cotidiana; o uso mais comum para histria social, contudo, era combinao dos termos social a econmico. O que fica claro que o social dessa histria social, no ps-guerra, no era mais o difuso e impondervel, ou o resto que sobrava depois que se fizesse anlise econmica e poltica mas tambm, no era o social das permanncias seriais, nem das longas duraes maneira de Braudel.

    No obstante, s a partir dos anos 50 a histria social se tornou um tema e um problema. Muito se deve aos movimentos de emancipao colonial nos anos 50 e 60 que estimularam novos temas e pesquisas a que a simples rotulao histria econmica no dava conta de responder. Alm disso, mudanas no interior das disciplinas acadmicas, uma especializao maior da histria econmica, a expanso da sociologia e da antropologia fez com que certas reas da histria se vissem foradas a uma redefinio. uma questo que gira em torno das definies institucionais, das fontes de financiamento, das concesses de bolsas e do prestgio acadmico. , tambm, uma disputa por espao.

    O que comeou a ficar evidente que tanto a economia quanto a sociologia no eram modelos bons o suficiente para a histria social e os movimentos sociais, porque, de fato, ambas se desenvolveram sem uma preocupao central com a mudana/permanncia no tempo. A relao da histria com a sociologia, a antropologia ou a economia sempre uma relao muito delicada.

    Em 1986, a revista Francesa Le Mouvement Social apresentou um balano das suas publicaes e concluiu que, at 1968, o tema predominante sob a rubrica movimentos sociais era histria do movimento operrio; entretanto, desde ento, essa rea de estudos entrou progressivamente em declnio e, a partir dos anos 80, movimento operrio um tema marginal nas pginas da Revista. O que passa a predominar, ento, histria poltica, histria da ao patronal, ou histria do Estado.

    Quinze anos depois, em 2002, em nmero comemorativo L histoire Sociale en Mouvement a revista fez um novo balano. O editorial, redigido por Patrick Fridenson, abre com uma pergunta: afinal, qual o notre nouvelle place dans latelier de dhistoire sociale et culturelle? Em

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  • 136 Duarte e Meksenas seguida, h uma cuidadosa descrio com o ttulo de Caminhos sobre os temas que tm sido publicados na ltima dcada: cultura, meio-ambiente, estado, guerra, literatura, Nao, Oriente, patrimnio, poltica, proteo social, sexualidade, territrio, teoria, trabalho e urbanismo, que seriam, basicamente, as grandes reas que tm ocupado o espao da Le mouvement social nos anos noventa.

    O editorial no se furta a um comentrio especfico sobre cada uma dessas grandes reas e as expectativas futuras em relao a elas, sobre como cada uma delas tem se transformado, as novas questes que tm sido incorporadas a elas, e sobre o que tem sido, paulatinamente, deixado de lado em cada uma dessas reas especficas. Independentemente de cada caminho particular, o que fica evidente que o tema dos movimentos sociais tem se expandido continuamente, abarcando as novas temticas e as novas indagaes que o presente tem dirigido ao passado.

    No muito fcil explicar isto. Afinal, o que teria acontecido nesses trs momentos distintos na histria da revista, para marcar essa mudana de foco: at 1968, movimento operrio; de 1968 a 1986, histria poltica, histria da ao patronal e histria do Estado; aps 2002, uma profuso de novos temas? possvel imaginar que as peculiaridades da vida interna da revista afinal, sabemos que editores podem deixar a sua marca, enquanto dirigem os peridicos possam ter determinado essas escolhas temticas. Tambm possvel considerar que os debates especficos da historiografia francesa, nesses anos, tenham sido decisivos para as escolhas temticas da revista.

    Em que pese a isso, gostaramos de concentrar nossa ateno num aspecto mais global. A despeito das lnguas nacionais e de suas especialidades metodolgicas e temticas, a comunidade de historiadores e cientistas sociais est mais conectada nos ltimos quarenta anos do que jamais esteve (e os novos meios de comunicao como a internet tm facilitado esse contato, tanto quanto os eventos transnacionais e o crescente interesse pela histria comparada). Portanto, podemos considerar tambm a hiptese de que as mudanas que ocorreram em Le mouvement social expressem mudanas mais gerais no campo da histria social. Neste sentido, o maio de 1968 na Frana e fora dela e tudo o que ele representou, em termos de impasse, para certa tradio de esquerda, ancorada num leitura estruturalista da histria, pode, certamente, ter colocado de novo em cena a histria poltica, bem como a preocupao de entender o outro lado da luta de classes: a ao patronal.

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    O aprofundamento dessas indagaes - com a luta pelos direitos civis nos EUA, os movimentos contra a guerra do Vietn, a contracultura e a emergncia dos debates ligados especificidade dos movimentos de negros, de mulheres e gays e a crise do estruturalismo - colocou o tema da ao humana no centro do debates acadmicos. Possivelmente, foi nessa chave a agency que a historiografia inglesa (com figuras como E. P. Thompson, Raphael Samuel, Christopher Hill, Dorothy Thompson, Eric Hobsbawm, John Saville, dentre outros), principalmente o grupo de historiadores ligados ao Partido Comunista Britnico, marcou sua presena nesse debate (KAYE, 1984). Com eles, os movimentos sociais extrapolaram os limites do movimento operrio, e temas como cultura, experincia e agncia humana passaram a fazer parte da agenda terica e poltica dos historiadores.

    Obviamente, esses debates aconteciam simultaneamente em diversos pases, mas acreditamos que, especificamente no caso brasileiro, o grande impulso inovador tenha vindo, principalmente, dessa tradio marxista britnica, que no apenas marcou a renovao e ampliao dos temas da histria social brasileira, mas tambm fecundou reas at ento muito distantes entre si, como histria do movimento operrio e histria da escravido, caracterizando, de forma definitiva, a ampliao do modo como se percebem os movimentos sociais. Mas no so apenas os debates intramuros que modificam os rumos das disciplinas. No caso especfico do Brasil, as greves dos metalrgicos do ABC, em 1978, tiveram um impacto poltico profundo tambm para a realidade brasileira, a quem se colocava uma questo crucial a responder: como a agncia humana fazia sua apario na histria, onde ela se gestava, como articulavam o geral e o especfico? Por isso, as mudanas em Le mouvement social falam tambm sobre ns.

    CONSIDERAO QUASE FINAL: ABRINDO O DEBATE

    O que parece claro, depois desse percurso, que movimentos sociais tm sido um tema e um conceito muito mais da sociologia e da cincia poltica do que da historiografia. Os historiadores, de modo geral, no tm se preocupado em definir o que entendem por movimentos sociais ao fazer uso do conceito, e o fazem com crescente freqncia. Isso refora a necessidade de o dilogo interdisciplinar de historiadores com cientistas sociais tornar-se uma prtica cotidiana na constituio de um campo de conhecimento sobre os movimentos sociais.

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  • 138 Duarte e Meksenas

    Parece claro, tambm, que diante das exigncias do nosso presente, a noo de movimentos sociais deve ser posta em relao com a teoria dos direitos, portanto, com a idia de polticas pblicas, de sociedade civil e de cidadania. No possvel, hoje, pensar movimentos sociais sem pensar poltica, s que possvel pensar a poltica de dois modos distintos: de um ponto de vista mais geral e terico e de um ponto de vista mais concreto e imediato. Do ponto de vista mais terico, Jacques Rancire, num livro muito estimulante, O Desentendimento, argumentou que Existe poltica quando a ordem natural dos reis pastores, dos senhores de guerra ou das pessoas de posse interrompida por uma liberdade que vem atualizar a igualdade ltima na qual assenta toda ordem social (1996, p. 31). Ou, dito de outro modo:

    Existe poltica quando a contingncia igualitria interrompe como liberdade do povo a ordem natural das dominaes [...] Existe poltica quando pela lgica supostamente natural da dominao perpassa o efeito dessa igualdade. Isso quer dizer que no existe poltica sempre (RANCIRE, 1996, p. 32).

    A poltica no seria um dado pronto e acabado, uma coisa, ela seria um fenmeno histrico. Mas o que faria a poltica acontecer? Hannah Arendt, em A condio Humana, sugere que existe poltica quando acontecem duas prerrogativas eminentemente humanas: ao e palavra. A esfera pblica seria o locus no qual se formam e se transformam a ao comum e a palavra coletiva. A esfera da poltica no seria uma esfera natural, mas um espao historicamente determinado, sujeito configurao e ao esvaziamento, conquista e perda; e, para as classes populares, como diz Hannah Arendt, s dura um piscar de olhos (1989, p. 16).

    De um ponto de vista mais concreto, possvel dizer que o tema dos movimentos sociais no se separa do tema da poltica, porque, afinal, toda a vida social, tanto a domstica quanto a pblica sempre ritualizada, e o rito cumpre, sempre, uma determinada funo. O trabalho do historiador seria compreender/descrever qual essa funo. Essa ritualizao da vida nos remete idia da teatralizao do exerccio do poder, e a noo de Teatro4 est diretamente relacionada ao conceito gramsciano de hegemonia que o modo como um determinado grupo obtm o consentimento para o exerccio do seu domnio. Mas o teatro do poder e os rituais da hegemonia produzem, sempre, um contrateatro e um

    4 Para uma discusso das noes de ritual teatro ver Thompson (2001).

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  • Histria e movimentos sociais 139 contra-rito. E o que so afinal os movimentos sociais, partindo-se de uma histria social, de uma histria preocupada com os de baixo, seno o exerccio contnuo pela ao e pela palavra da construo de contra-ritos e contrateatros, contestando, questionando e indagando o poder em tempos de modernidade?

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