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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE SUL

    FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAO

    DEPARTAMENTO DE COMUNICAO

    TRABALHO DE CONCLUSO DE CURSO HABILITAO JORNALISMO

    ARTHUR WOLFF HACK

    A VOZ OVERCOMO INSTRUMENTO NARRATIVO:

    narrao, repetio e estiloem Berli n Alexanderplatz

    Porto Alegre2014

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE SUL

    FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAO

    DEPARTAMENTO DE COMUNICAO

    TRABALHO DE CONCLUSO DE CURSO HABILITAO JORNALISMO

    Arthur Wolff Hack

    A VOZ OVERCOMO INSTRUMENTO NARRATIVO:

    narrao, repetio e estiloem Berli n Alexanderplatz

    Trabalho de concluso de curso de graduaoapresentado ao Departamento de ComunicaoSocial da Universidade Federal do Rio Grande doSul como requisito parcial para a obteno do ttulode Bacharel em Comunicao Social, HabilitaoJornalismo.

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva

    Coorientador: Prof. Ms. Jamer Guterres de Mello

    Porto Alegre

    2014

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    ARTHUR WOLFF HACK

    A VOZ OVERENQUANTO INSTRUMENTO NARRATIVO:

    narrao, repetio e estiloemBerlin Alexanderplatz

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado

    Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul como

    requisito parcial obteno do grau de Bacharel

    em Comunicao Social, habilitao Jornalismo.

    Aprovado em: ______ de ___________________ de _________

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________________Prof. Dr. Alexandre Rocha da SilvaUFRGS

    Orientador

    __________________________________________________

    Prof. Ms. Jamer Guterres de MelloUFRGS

    Coorientador

    ___________________________________________________

    Prof. Ms. Gabriela AlmeidaUFRGS

    Examinadora

    ___________________________________________________

    Prof. Ms. Pablo LanzoniUFRGS

    Examinador

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAO

    AUTORIZAO

    Autorizo o encaminhamento para avaliao e defesa pblica do TCC

    (Trabalho de Concluso de Cursos) intitulado.....................................................

    .......................................................................................................................................................

    ......................................................................................................................................................,

    de autoria de ..............................................................................................................,

    estudante do curso de...........................................................................................................

    .............................................., desenvolvida sob minha orientao.

    Porto Alegre, .............. de .............................. de 20......

    Assinatura:

    Nome completo do orientador:

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    O Homem no comea sua vida com boaspalavras ou intenes, mas com conhecimentoe compreenso, e os companheiros certos.[Man fngt nicht sein Leben mit guten Wortenund Vorstzen an, mit Erkennen und Verstehen

    fngt man es an und mit dem richtigenNebenmann.]

    (Alfred Dblin, na capa da primeira edio deBerlin Alexanderplatz)

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, pelo carinho e compreenso, alm do apoio incondicional que sempre

    demonstraram.Ao meu orientador Alexandre Rocha da Silva, e em especial ao meu coorientador Jamer

    Mello, pela Orientao dedicada e empenhada que me foi dada e que muito contribuiu para o

    resultado final deste trabalho.

    Aos amigos que fiz nesse tempo de faculdade, Arethusa Dias, Arthur Nonnig,

    Guilherme Almeida, Las Webber, Priscila Daniel e Thayse Hoffmann, por todas as risadas,

    piadas internas e sadas.

    Galera Skol Litro do Pattico Mineiro FF, por me mostrar que tardes e noitesfabicanas podem ser feitas de ousadia e alegria.

    Aos meus amigos Bernardo Casaroli, caro Conceio, Karine Leo e Rossana Prux,

    por estarem sempre presentes, pelas risadas e pelo companheirismo constante.

    Embora ele no v entender esse clich em forma de pargrafo, agradeo ao meu

    cachorro, o Slash, por ter sido um companheiro fiel, por ter estado sempre junto de mim

    durantes os ltimos dez anos (o que no foi diferente durante as madrugadas fazendo este

    trabalho) e por seu amor incondicional.

    Por ltimo, em um trabalho de concluso de curso no posso deixar de agradecer

    pessoa mais especial e marcante que entrou na minha vida nos ltimos quatro anos. Agradeo

    Stefanie por ter sido a melhor companheira que eu poderia esperar, pelas risadas, pelas

    conversas, pela compreenso e pelos conselhos. Enfim, por tudo, por existir e existir ao meu

    lado.

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    RESUMO

    Este trabalho se prope a analisar a vozoveremBerlin Alexanderplatz, filme alemo de 1980dirigido por Rainer Werner Fassbinder e baseado no livro homnimo de Alfred Dblin. A partirda observao de que essa voz no narra objetivamente o que se passa na histria, pretende-secaracterizar como esse artifcio se transforma em um instrumento narrativo do filme. Assim,este trabalho est divido em trs partes. Na primeira, so feitas contextualizaes do Cinema

    Novo Alemo, movimento dentro do qual filme e diretor se inserem, da obra de Fassbinder edo prprio filme. Esses trs eixos trazem discusses tanto sobre o modo de trabalho deFassbinder, a recepo deBerlin Alexanderplatze como o movimento a que ambos pertenciammoldou possveis escolhas estticas do filme. A segunda parte traz uma abordagem tericaacerca tanto da narrativa como da voz no cinema. Pretende-se aqui mostrar como esses doistemas dialogam entre si e como a voz pode servir como formadora da narrativa cinematogrfica.Alm disso, essa parte trouxe tambm questes especficas da voz overno cinema, com o intuitode problematizar seus usos e sua histria Por fim, foi analisada a voz over em Berlin

    Alexanderplatz luz das discusses realizadas nas primeiras duas partes da monografia.Dividiu-se a anlise em quatro categorias, cada uma representativa de um uso dessa tcnica naobra. As categorias foram escolhidas tanto por serem recorrentes na narrativa como por serelacionarem entre si. Chegou-se assim a categorias que tratam a voz over como presenaetrea, como forma de marcar repeties, como elemento intrusivo e como elemento de estilonarrativo.

    Palavras-chave: Cinema, Cinema Novo Alemo, Rainer Fassbinder, NarrativaCinematogrfica, Voz over.

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    ABSTRACT

    This work proposes an analysis of the voiceover in Berlin Alexanderplatz, German movie of1980 directed by Rainer Werner Fassbinder and based on the novel by Alfred Dblin. Afternoticing that such voice does not narrate objectively what happens at the story, the aim here isto characterize this artifice as being an instrument of narration in the film. Thus, the monographwas divided in three parts. In the first, contextualizations are made regarding the New GermanCinema, movement in which both director and movie are based upon, the work of RainerFassbinder and the movie itself. Those themes bring discussions on the ethosof Fassbinder, thereception of Berlin Alexanderplatz, and how the movement to which both belong shapedesthetical choices in the movie. The second part brings a theoretical approach both on narrationand on voice in cinema. Such approach is meant to show how both themes interact with eachother, and how voice can mold cinematic narratives. Furthermore, this second part brings aswell specific questions of the voiceover on cinema, serving the purpose of problematizing itsuses and its history. Lastly, it was analyzed the voiceover in Berlin Alexanderplatz on the

    ground of the discussions made in the first and second parts. It was divided the analysis in fourcategories, each one representative of a form of use of the technique in the object of this study.The categories were chosen for being recurrent in the narrative and for having imbrications andrelations between them. It was reached, hence, categories that examine the voiceover as ethereal

    presence, as a way of emphasizing repetitions, as an intrusive element and as a style element.

    Keywords:Cinema, New German Cinema, Rainer Fassbinder, Narration, Voiceover.

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    SUMRIO

    1. INTRODUO.....................................................................................................................9

    2. CONTEXTUALIZAES: DO CINEMA NOVO ALEMO A BERLIN

    ALEXANDERPLATZ..............................................................................................................13

    2.1 Cinema Novo Alemo.........................................................................................................13

    2.2 Rainer Fassbinder: vida e obra.............................................................................................19

    2.3Berlin Alexanderplatz..........................................................................................................28

    3. NARRATIVA E VOZ NO CINEMA: INTERSECES E TEORIAS........................373.1 Narrao, narrativa e histria: algumas perspectivas..........................................................37

    3.2 A voz no cinema..................................................................................................................44

    3.2.1 A voz overno cinema...........................................................................................49

    3.2.1.1. Usos da voz over...................................................................................52

    4. ANLISE: A VOZ OVEREM BERLIN ALEXANDERPLATZ.....................................56

    4.1 Presena etrea da voz over................................................................................................58

    4.2 A voz over nas repeties da morte de Ida.........................................................................62

    4.3 A voz over intrusiva............................................................................................................68

    4.4 Voz overque no condiz com a imagem............................................................................72

    5. CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................77

    REFERNCIAS......................................................................................................................80

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    1. INTRODUO

    Este trabalho surgiu a partir de uma inquietao. A inquietao da criana, frequentadora

    diria da locadora do bairro, que queria saber o porqu daquele rato detetive que via na tela da

    televiso estar vestido de boina e morar na Rua Baker, que queria saber a motivao por trs

    da espada fincada na pedra ser to importante para os personagens do desenho. Que no queria

    crescer, queria poder ver repetidas vezes os filmes que adorava diariamente e para sempre, que

    no concebia um mundo sem suas fitas vhs.

    O tempo passou, as fitas foram perdidas ou doadas, o vdeo cassete substitudo por um

    aparelho mais moderno e mais sem graa, o DVD. A inquietao, porm, embora transfigurada,

    permaneceu. Ser que essa passagem est na bblia mesmo? Como que o diretor fez para colocar

    sete minutos de silncio sem ficar cansativo nunca? Como ele filmou o tiroteio emslow motion?

    Essas questes serviram como substitutas s anteriores, assim como os discos do DVD

    substituram as fitas do VHS.

    A hora chegou, ento, de levar esse percurso de inquietaes para a universidade. Em

    um curso que de certa forma reflete a paixo do cinfilo pelo que se convencionou de chamar

    de stima arte (embora poucos saibam elencar as outras seis), as disciplinas que abordavam o

    audiovisual sempre foram as que mais me interessaram. Foi nelas que passei a lidar com autoresque nunca antes ouvira falar, e a partir deles fazer relaes que sozinho no conseguiria. Nesse

    contexto, nada mais natural ento que o meu trabalho de concluso de curso fosse realizado na

    rea do audiovisual.

    Tendo desde sempre a rea bem clara, a questo era, ento, sobre qual aspecto ou objeto

    fazer o Trabalho de Concluso. A resposta tambm no tardou a vir, j que fazia algum tempo

    que minha ateno de cinfilo estava voltada ao diretor alemo que fizera tantos filmes que

    tanto me agradavam: Rainer Werner Fassbinder. Seu filme que mais me chamara ateno desdeo primeiro contato, pelo tamanho, pelo tema e pela esttica foiBerlin Alexandeplatz. E, dentro

    do filme, desde sempre fiquei fascinado pela voz over que trazia textos to originais, que

    aparentemente no tinha nada a ver com a histria que presenciava e que trazia consigo um ar

    etreo que no me lembrava de ter presenciado em nenhum outro filme. A voz do filme

    despertou em mim a mesma inquietao que trouxe comigo desde a infncia, passando pela

    adolescncia e pelo incio da faculdade. Assim, no posso dizer que a escolha da voz overcomo

    tema deste trabalho tenha sido difcil ou surpreendente, j que aconteceu de forma natural edireta.

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    Embora o perodo entre 1969 e 1982 compreenda apenas 13 anos, foi durante esse tempo

    que o diretor alemo Rainer Werner Fassbinder dirigiu 41 filmes, em uma mdia de mais de

    trs filmes por ano ou um a cada cem dias. Essa produo frentica teve incio com O Amor

    Mais Frio que a Morte (Liebe ist klter als der Tod, 1969) e terminou com Querelle(idem,

    1982). Quando, em junho de 1982, Fassbinder foi encontrado morto com apenas 37 anos em

    seu apartamento em decorrncia de uma overdose de cocana, j tinha sua agenda de filmagens

    ocupada pelos prximos quatro anos.

    Ao contrrio do que geralmente acontece com outros diretores, a produo desenfreada

    de Fassbinder no significa dizer que ela foi mal pensada ou esteticamente malograda. Pelo

    contrrio, so muitos os seus filmes que atingiram sucesso de crtica e/ou de pblico. Mesmo

    em uma produo to vasta e bem-sucedida, o filmeBerlin Alexanderplatzse destaca. Adaptadodo livro homnimo de Alfred Dblin lanado em 1929, conta a saga de Franz Biberkopf (Gnter

    Lamprecht), recm sado da priso aps ter matado sua mulher. Ele promete a si mesmo que a

    partir de ento levar uma vida justa e digna, sem se envolver com qualquer tipo de crime.

    Porm, as dificuldades econmicas e sociais na Berlim entre guerras fazem com que suas

    escolhas no sejam as mais fceis ou moralmente corretas.

    Coproduzido pela produtora alem Bavaria Film e as emissoras pblicas alem e a RAI

    italiana, o filme de cerca de 15 horas foi dividido em 13 partes e um eplogo para ser exibidona televiso, em um episdio por semana. Tal caracterstica pode, a uma primeira vista, colocar

    em xeque o status deBerlin Alexanderplatz enquanto filme. verdade que autores como Jane

    Shattuc (1995) enxergam nas caractersticas de produo algo que o caracterizaria como srie

    ou, no mnimo, filme para televiso, embora ele tenha sido filmado em pelcula de 35mm.

    Por outro lado, o fato de sua narrativa no ser seriada1e o suporte no qual foi filmado (em

    pelcula de 35mm) advogam por seu enquadramento como filme.Nesse sentido, esta ltima

    denominao que adotaremos no trabalho, j que esta que os autores aqui utilizados e queteceram anlise especfica sobre Berlin Alexanderplatz utilizam, como Sontag (2005), Elena

    Del Ro (2012) e Paul Coates (2012).

    O fato de at mesmo sua denominao ser fruto de anlises e elucubraes sintoma do

    quo potente o filme . O uso de espelhos em cena, os interttulos, a adaptao do romance, a

    caracterizao de poca, a encenao, a recepo pela audincia, as alegorias bblicas e

    cientficas, o desenvolvimento dos personagens, a narrativa circular etc. so todos sinais de uma

    obra ampla e cujos artifcios so muitos. Mesmo com isso em mente, a voz overdo filme se

    1De fato, Susan Sontag (2005) atesta que o filme deve ser assistido com o menor intervalo possvel entre seuscaptulos.

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    sobressai. Ela permeia o filme inteiro, aparece em todos os 13 captulos, e se faz presente desde

    os primeiros minutos. Percebe-se nessas aparies que nem sempre o que ouvimos atravs da

    voz coaduna (pelo menos no em sentido direto) com a imagem; semelhantemente, notamos

    tambm que a instncia que profere a voz nos traz textos com os elementos mais diversos:

    notcias da poca (como se fossem notcias do dia em que se passa a histria), citaes bblicas

    e textos sobre leis cientficas. Tais passagens de narrao em voz overso retiradas do livro do

    qual o filme adaptado, exatamente como foram escritas por Alfred Dblin. Se ns falantes da

    lngua portuguesa assistirmos ao filme e acompanharmos a legenda concomitante com a leitura

    do romance, notaremos pequenas diferenas no texto, mas isto se deve apenas ao fato dos

    tradutores das legendas do filme e do livro serem distintos; no original em alemo no h

    qualquer diferenao mximo que Fassbinder chega a fazer cortar algumas frases ou juntartrechos diferentes em apenas uma apario da voz, algo sobre o que nos debruaremos na

    anlise.

    Assim, este trabalho se prope a analisar a voz over emBerlin Alexanderplatz, quais

    seus usos e quais suas especificidades dentro da obra. Com isso, pretende-se mostrar como ela

    se transforma em instrumento narrativo do filme, apesar de suas falas por vezes no dizerem

    respeito histria. A tcnica cinematogrfica da voz overfoi pouca estudada pela pesquisa

    acadmica, em boa parte devido noo de que esta seria uma tcnica menor ou que seu usodemonstraria pouco domnio da arte cinematogrfica pelo diretor. Porm, a partir das

    caractersticas j citadas, o uso de tal artifcio no filme em questo no to simples, direto ou

    redundante nem denota pouco domnio cinematogrfico como podemos primeira vista pensar

    quando falamos em voz over.Pelo contrrio, a voz overemBerlin Alexanderplatz mais um

    aspecto que demonstra a potncia e as mltiplas facetas da obra de Rainer Werner Fassbinder,

    e por isso se justifica um trabalho que se debruce especificamente sobre esse assunto. A escolha

    pela voz overacontece tanto pelos poucos trabalhos produzidos a respeito desse tema quantopelo fato de ser este um aspecto para e pelo qual convergem muitos outros.

    A obra de Fassbinder tambm pouco estudada no que diz respeito aos aspectos formais

    do seu cinema propriamente dito. Muitos so os estudos que abordam as temticas de gnero

    ou sexualidade em sua obra, que se propem a fazer uma anlise psicanaltica dos contedos

    dos filmes do diretorque tinha um relacionamento notoriamente conturbado com sua me,

    ou ento que analisam sua biografia e seu mtodo de trabalho e as imbricaes destes com sua

    obra. Conquanto tais aspectos sejam de fato importantes, at para construirmos o contexto

    maior dos filmes de Fassbinder, esquece-se por vezes que se a temtica e a biografia de um

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    diretor so importantes a ponto de merecerem anlise, s o so a partir do momento em que os

    filmes de tal diretor so importantes e pungentes cinematograficamente.

    Este trabalho dividido em trs captulos. No primeiro, sero realizadas uma srie de

    contextualizaes. Primeiramente, do Cinema Novo Alemo enquanto movimento esttico e

    dentro do qual se inserem Fassbinder eBerlin Alexanderplatz; depois do prprio diretor, mais

    especificamente seu ethos, seu modo de trabalho e outros aspectos gerais de sua obra; e por fim,

    deBerlin Alexanderplatz, sua produo, recepo e caractersticas mais especficas. O captulo

    2 traz uma discusso do referencial terico que sustenta esta pesquisa. Ele foi dividido em duas

    partes, onde na primeira nos deteremos nos conceitos de narrativa, narrao e histria, os quais

    muitas vezes se confundem entre si e geram muitas ideias errneas ou genricas nos estudos

    sobre cinema. Na segunda, feita uma pesquisa bibliogrfica sobre a voz no cinema e, maisespecificamente, sobre a voz overno cinema, sua histria e seus usos.

    O ltimo captulo dedicado anlise do uso da voz overemBerlin Alexanderplatz.

    Metodologicamente todas as suas aparies no filme foram aferidas, para ento serem erigidas

    quatro categorias, sobre as quais foram tecidas as anlises. A escolha pelo uso de categorias foi

    no sentido de criar uma anlise na qual as categorias se relacionassem entre si, em que seus

    aspectos fossem por vezes partilhados, e tambm por reunir os usos que foram considerados

    mais importantes.

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    2. CONTEXTUALIZAES: DO CINEMA NOVO ALEMO A BERLIN

    ALEXANDERPLATZ

    A partir do momento em que este trabalho se prope a analisar um filme especfico,

    Berlin Alexanderplatz, torna-se necessrio fazermos uma srie de contextualizaes que

    contribuiro para a anlise dos elementos utilizados nele. Primeiramente, trataremos do Cinema

    Novo Alemo2, movimento cinematogrfico da Alemanha das dcadas de 1960, 1970 e 1980,

    dentro do qual se insere a obra de Rainer Werner Fassbinder e, consequentemente, Berlin

    Alexanderplatz.Analisar essa cinematografia nos permitir compreender o contexto histrico e

    cultural da Alemanha poca da feitura do filme em questo. O prprio Rainer Fassbinder

    objeto da segunda seo deste captulo; aqui o foco mais na forma como o diretor trabalhava

    e lidava com suas relaes profissionais que em passagens biogrficas de sua vida apesar

    dessas tambm aparecerem eventualmente. Tal seo ser de grande importncia para a

    compreenso de como foi concebido e filmado o filme que aqui nos propomos a analisar. Por

    fim, a ltima parte deste captulo contempla aspectos especficos de Berlin Alexanderplatz,

    desde sua produo e recepo at suas caractersticas cinematogrficas. Juntas, tais

    contextualizaes nos possibilitaro usar na anlise tanto aspectos histricos como

    caractersticas de produo do filme.

    2.1 Cinema Novo Alemo

    Thomas Elsaesser (1997), Caryl Flinn (2004), Jane Shattuc (1995), Cnepa (2007), Inga

    Scharf (2008) e John Davidson (1999): todos parecem concordar com os motivos para o

    surgimento de uma nova era do cinema alemo na dcada de 1960, que ficou conhecida como

    Cinema Novo Alemo. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 at 1945, a

    Alemanha se encontrou devastada moral, econmica e politicamente. Por isso, o mercadocinematogrfico era amplamente dominado pelo cinema hollywoodiano. Sobre isso, Shattuc

    (1995) nos diz que:

    Depois da devastao fsica e econmica da Segunda Guerra Mundial, aindstria europeia emergiu das cinzas da guerra como uma indstria jovem eincipiente. Ela foi presa fcil para as maiores firmas cinematogrficas dosEstados Unidos, cuja potncia domstica no tinha sido afetada pela Guerra.Com o Plano Marshall para reinstalar o capitalismo em uma Europa fracapoltica e economicamente, multinacionais de Hollywood foram capazes dereafirmar sua dominao em um continente necessitado de dlares e

    2Diversos autores divergem entre chamar o movimento de Cinema Novo Alemo ou Novo Cinema Alemo. Aqui,optou-se por utilizar a primeira nomenclatura, j que desta forma que Laura Cnepa (2007), nica autora delngua portuguesa utilizada neste trabalho que teorize sobre o assunto, utiliza o termo.

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    produtividade. A indstria flmica europeia do ps-guerra resultou da fortepujana do capitalismo americano e seu modelo monopolista. (SHATTUC,1995, p. 10, traduo nossa)3

    A indstria norte-americana aprendeu com os filmes de arte a usar tanto contedos

    sexuais mais explcitos, quanto locaes mais realistas, alm de economizar ao filmar em pases

    longe dos sindicatos e das leis trabalhistas dos Estados Unidos. As companhias burlavam a

    proteo europeia contra empresas de fora ao se registrarem como locais; tal medida fez com

    que os estadunidenses penetrassem amplamente no mercado europeu. "Nesse cenrio as

    maiores companhias americanas tiveram tanto sucesso em subverter as tentativas do governo

    de barrar a entrada de filmes norte-americanos em outros pases que no final dos anos 1960 era

    difcil distinguir os filmes europeus dos hollywoodianos. (SHATTUC, 1995, p. 11, traduo

    nossa)4

    A citada devastao da Alemanha se d a partir de sua derrota na Guerra para os

    Aliados (Unio Sovitica, Frana, Inglaterra, Estados Unidos), sendo ocupada e posteriormente

    dividida por esses pases. Alm disso, os horrores do Holocausto fizeram com que o mundo

    inteiro deixasse de respeitar a Alemanha enquanto nao. Aps o trmino da guerra, a

    Alemanha foi dividida em quatro zonas entre os pases vencedores do combate. Mais tarde, em

    1949, seriam formadas a Repblica Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, nas

    zonas dos Estados Unidos, Frana e Inglaterra, e a Repblica Democrtica Alem (RDA), na

    zona sovitica. Scharf (2008) comenta que tal diviso, alm de geogrfica e ideolgica (j que

    opunha o capitalismo do lado Ocidental ao socialismo dos orientais), se manifestava tambm

    na viso sobre o Holocausto. Enquanto o lado oriental no se considerava responsvel pelos

    crimes do terceiro Reich, os ocidentais se viam como sucessores de fato e de direito do regime

    de Hitler, e, portanto, como responsveis pelos crimes ocorridos.

    Em seus setores, os Aliados se engajaram numa busca por reeducar a populao alem;

    reeducao, aqui, adquire o sentido de apagar os vestgios do nazismo to recente e tornar aAlemanha uma nao democrtica. Uma das primeiras aes foi abrir os campos de

    concentrao, onde milhes de judeus, ciganos e gays haviam sido massacrados, para obrigar a

    3After the physical and economic devastation of Europe in World War II, Europe's industries rose unprotectedeconomically from the ashes of war as undercapitalized infant industries. They stood as easy prey for the majorAmerican film companies whose strong domestic hold was unaffected by the ravages of the European war. Withthe U.S. government's Marshall Plan to reinstate capitalism in economically and politically weak Europe,multinational Hollywood firms were able to reassert their dominance in a Europe starved for dollars and

    productivity. The postwar European film industry resulted from the ever tightening grip of American monopoly

    capitalism and its multinational style.4 "In this scenario the major American film companies have been so successful in their ability to subvertgovernment attempts to bar the entrance of American films into other countries that by the late 1960s Europeanfilm had become virtually indistinguishable from the American product."

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    populao a visit-los. A busca, logo, era por imbuir na populao sentimentos democrticos

    alinhados com os dos Aliados. Tanto Shattuc (1995) como Scharf (2008) colocam a arte e a

    cultura como tendo importncia estratgica nessa reeducao alem. Enquanto a ltima nos

    conta que havia um controle pelos Aliados das produes artsticas e culturais e no s do

    ponto de vista do contedo, mas em toda a cadeia de produo, a primeira elucida o papel da

    televiso nesse contexto. Para Shattuc (1995), ento, a indstria cinematogrfica alem no ps-

    guerra minguou no s pela pujana econmica da indstria de Hollywood, mas tambm pelo

    prprio status da Alemanha enquanto pas ocupado. Os Aliados, vencedores da guerra e que

    ocuparam a Alemanha Ocidental, concebiam o cinema enquanto forma de entretenimento

    comercial, e, por seu alcance, seus filmes tiveram o papel de reeducar a Alemanha nazista.

    Scharf (2008) acredita que podemos categorizar os cineastas do Cinema Novo Alemocomo uma "gerao". Fassbinder nasceu em 1945, mesmo ano de Wim Wenders, enquanto que

    Werner Herzog nasceu em 1944 e Helma Sanders-Brahms em 1940todos eram pertencentes

    gerao diretamente posterior ao perodo da Segunda Guerra (que durou de 1939 a 1945),

    uma gerao que se rebelou contra o passado de seus pais. Nesse sentido, Scharf (2008) e

    Cnepa (2007) dissertam sobre o estado do cinema alemo, o pouco que existia dentro da

    supracitada supremacia hollywoodiana, na dcada de 50 e 60. O cenrio, contam-nos, era

    amplamente dominado pelo gneroHeimat5

    , esteticamente defasado, ideologicamente acrticoe que propunha uma viso datada da identidade nacional. De fato, muitos filmes do gnero se

    tratavam meramente de verses colorizadas dos filmes do regime nazista: filmes picos com

    motivos idlicos, mostrando grandes sagas em busca da liberdade e da verdade.

    Em termos narrativos, filmes Heimat perpetuaram uma viso acrtica decomunidade, baseada no passado e na tradio. Alm disso, os filmes eramsituados em um espao delimitado, frequentemente um lugar idlico e rural. Acomunidade rural, ento, era retratada como atemporal e natural, aludindo noo essencialista de comunidade. Por fim, o modo realista e o enredo

    linear tentavam uma identificao com os protagonistas, usualmente presosa um final feliz romntico das histrias de amor. (SCHARF, 2008, p. 25,traduo nossa)6

    5O termo alemo de difcil traduo, mas pode ser entendido como terra natal, desde que entendamos essesentimento de pertena no s geogrfica, mas tambm afetiva e socialmente. Tanto por ser difcil traduzi-la parao portugus quanto por denominar um gnero altamente especfico do cinema, neste trabalho a escolha foi pordeix-lo no original.6In narrative terms, Heimat films perpetuated an unproblematic sense of community, which was rooted both in

    the past and in tradition. In addition, the fi lms were set in a bounded space, which predominantly took the shapeof a rural idyll. The rural community and its place were then portrayed as timeless and given, thereby alluding toessentialist notions of communality. Finally, the films realist mode and linear plotline called on the audience foridentifi cation with the protagonists who were usually caught up in romantic and happy-ending love stories.

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    O nascimento do que se convencionaria chamar de Cinema Novo Alemo, ento, foi a

    recusa doPapas Kino7, o cinema do papai, e o surgimento de um outro, de postura crtica e de

    acordo com as questes alems da dcada de 60. No Manifesto de Oberhausen, documento

    considerado por Cnepa (2007) e Shattuc (1995) como o comeo do Cinema Novo Alemo, os

    diretores que o assinaram firmaram posio em prol de reformas nacionais no sistema de

    financiamento e, assim, gostariam de criar as bases para um cinema no-comercial que

    entendesse o papel das narrativas na vida da sociedade. H de se fazer a ressalva, porm, que o

    status do Manifesto de Oberhausen como fulcral para o Cinema Novo Alemo no ponto

    pacfico. Davidson (1999), por exemplo, acredita que, por mais que o manifesto tenha tido

    grande alcance e importncia polticas, seus signatrios no correspondiam aos diretores que

    mais tarde alcanariam sucesso internacional8. Alm disso, o autor traz que nem mesmo quandode seu lanamento Oberhausen foi uma unanimidade: setores da mdia achavam que o programa

    no atendia s necessidades do cinema alemo e outros diretores no viam correspondncia

    entre o que os signatrios de Oberhausen produziam cinematograficamente e o que eles diziam

    representar para o cinema alemo. Porm, mesmo assim o autor no nega a importncia do

    manifesto. Ele encerra sua explanao dizendo que no se pode desconsiderar Oberhausen

    enquanto catalizador das mudanas pretendidas do panorama cultural alemo da dcada de 50.

    Davidson (1999) tambm atesta que no se pode conceber a importncia esttica doCinema Novo Alemo separadamente de seu contexto poltico. Para ele, o clima poltico da

    dcada de 1960 se somou organizao de jovens diretores para resultar no Movimento. O

    autor, contudo, v a vontade de se distanciar do cinema americano como um fenmeno no s

    alemo, mas da Europa como um todo: os cinemas regionais buscavam uma forma de refletir o

    esprito nacional, algo impossvel com o domnio do cinema hollywoodiano. Mesmo assim,

    apesar de identificar a vontade de retomar tanto a identidade quanto o mercado cinematogrfico

    como um fenmeno europeu e no apenas alemo, Davidson (1999) traz especificidades docaso da Alemanha, como a preocupao com a poltica intranacional e uma busca de ruptura

    com o cinema da gerao antecedente (no caso a gerao que tinha ligao com o regime

    nazista).

    Ao dissertar sobre a escola do Cinema Novo Alemo, Cnepa (2007) o destrincha em

    trs fases. Na primeira, que tem incio no fim da dcada de 1960, os filmes eram produzidos

    com baixo oramento, e acabaram obtendo pouco sucesso na Alemanha do ps-guerra, que,

    7Conforme Davidson (1999), Scharf (2008) e Shattuc (1995) o citam.8Fassbinder, Wim Wenders e Werner Herzog, por exemplo, no assinaram o manifesto. Dentre os mais conhecidosque o fizeram, podemos citar Alexander Kluge e Edgar Reitz.

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    comprometida com o capital estrangeiro que permitiu alar o pas a uma posio melhor em

    termos econmicos, incentivava mais a divulgao e exibio de filmes americanos que de

    produes domsticas. A segunda, que teve lugar na primeira metade da dcada de 1970, j

    trouxe novas produtoras e um sistema de financiamento que permitiu que as obras desse perodo

    fossem mais bem produzidas e alcanassem um pblico maior. Finalmente, o ltimo perodo,

    que diz respeito ao final da dcada de 1970, marca ao mesmo tempo o auge e o declnio do

    movimento; auge porque foi nessa poca que o cinema alemo obteve altos ndices de filmes

    produzidos por ano; mas o declnio se deu a partir do momento em que vrios diretores

    decidiram emigrar da Alemanha.

    Tanto Elsaesser (1997) quanto Scharf (2008) e Davidson (1999) percebem o que se pode

    considerar como um dilema ou contradio em que os diretores do Cinema Novo Alemoincorriam: ao mesmo tempo em que proclamavam uma arte crtica poltica do Estado Alemo

    e sem quaisquer ligaes com este, a grande maioria dos seus filmes era financiada justamente

    pelo estado; alm disso, os diretores contavam com o apoio dos Institutos Goethe9para que

    seus filmes fossem divulgados e reproduzidos fora da Alemanha. Apesar do patrocnio pblico

    no ter feito do Cinema Novo Alemo um instrumento de propaganda, mesmo assim indica um

    interesse vital dos representantes da Alemanha Ocidental de promover os filmes do Cinema

    Novo Alemo como cultura alem. (SCHARF, 2008, p. 30). A questo ento era: comoquebrar com ostatus quoe fazer uma arte independente se essa arte era financiada e sustentada

    pelo Estado? Elsaesser (1997) v em tal dicotomia um teor de representao oficial dado ao

    movimento; porm, os autores parecem concordar que tal sistema de arrecadao era necessrio

    dentro do contexto econmico da poca.

    No que diz respeito s diferenas entre o gneroHeimate o Cinema Novo Alemo,

    Scharf (1999) v principalmente o fato de que esta ltima cinematografia tratava diretamente

    da identidade nacional alem, entendida aqui no como um ufanismo acrtico ou propagandanacional, mas como uma representao direta das questes sociais da Alemanha Ocidental.

    Alm disso, prossegue a autora, o trabalho dos diretores seguia no sentido de reconhecer uma

    forte imbricao entre texto (filme) e contexto (sociedade), de forma que um refletisse o outro

    e vice-versa. Rejeitava-se, assim, uma concepo unidirecional da mdia enquanto entidade

    representadora. Scharf (1999) ainda nos traz que as figuras mais revolucionrias e

    9O Instituto Goethe uma organizao alem sem fins lucrativos que tem filiais em todo o mundo, e atua com oobjetivo de divulgar a lngua, a literatura e a cultura alems. Apesar de no ser propriamente ligada a nenhumgoverno, os autores citam-no com esse teor de oficialidade, pois boa parte do finaciamento do Instituo advm deconvnios com o Estado alemo.

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    iconoclastas do Cinema Novo Alemo eram Rainer Fassbinder e Holger Meins10. Segundo ela,

    tal caracterizao possvel pois ambos iam alm dos ideais supracitados, entendendo a relao

    entre filme e sociedade como intensamente poltica e sobre a qual o diretor deve estar

    plenamente ciente: [...] ele/ela [o/a diretor/diretora] deve utilizar todo o seu potencial criativo

    e poder social de forma responsvel e direcionada ao futuro, ou seja, trabalhar visando a uma

    reforma societria ou at mesmo revoluo. (SCHARF, 2008, p. 29, traduo nossa)11

    Esse certo teor revolucionrio do Cinema Novo Alemo tambm exposto por Flinn

    (2004), embora sob outro vis. A autora analisa em seu trabalho a msica dentro do Cinema

    Novo Alemo, bem como a importncia do melodrama enquanto gnero cinematogrfico.12

    Para ela, a msica cresce em importncia justamente na medida em que no Cinema Novo

    Alemo predominavam os temas melodramticos, no qual h uma propenso em se mostrardiversos tipos de emoo. Assim, quando o dilogo chega a seu limite e no consegue mais

    expressar todo o carter emotivo que uma cena exige, o diretor deve lanar mo da msica. O

    teor revolucionrio referido aqui vem a partir do momento que Flinn (2004) nota a importncia

    do melodrama, apesar de primeira vista parecer esse um gnero menor, dentro do contexto

    social e poltico alemo:

    luz das vrias conexes (histricas, escolares, populares) entre mulheres,feminilidade e a esfera domstica da poca, o melodrama pareceu uma forma

    apropriada de expressar questes histricas a partir de histrias e memriascentradas no feminino. Crticos veem nisso uma voz e experincia a partir dasquais a mulher pode falar; tambm pode ser entendido como um impulsoautobiogrfico que seus correspondentes masculinos deixaram amplamenteno explorado. (FLINN, 2004, p. 44)13

    Diferentemente do melodrama hollywoodiano, em que as mulheres eram retratadas

    apenas atravs de clichs, no Cinema Novo Alemo s mulheres era permitido ter vida prpria;

    10Meins era um estudante de cinema que produziu diversos filmes do Cinema Novo Alemo; alm disso, era

    amigo de muitos diretores e atores do movimento. Meins acabaria largando o cinema para se juntar ao grupoterrorista Red Army Fraction (tambm conhecido como Grupo Baader-Meinhof), organizao de extrema esquerdaque visava a uma revoluo na Alemanha e denunciava as contradies do sistema capitalista. Por sua atuao nasaes do grupo, Meins seria preso em 1972. Na cadeia, ele entrou em greve de fome para protestar contra acondio de seu encarceramento e a de seus companheiros. Por complicaes decorrentes desse protesto, ele veioa falecer em 1974.11[...] s/he has to utilize her/his creative potential and social power in a responsible and future -oriented way, thatis, to work towards societal reform or even revolution.12Embora seu trabalho tenha a pretenso de ser mais abrangente, a autora acaba se focando em Fassbinder, em

    boa parte devido a sua ligao com o gnero. De fato, muitos trabalhos analisam como Fassbinder lidou com aquesto melodramtica, como Burns (1995). Alm disso, muitos dos filmes mais conhecidos do diretor se inseremnesse gnero, notadamente O Medo Consome a Alma [Angs Essen Seele auf](1974).13But in light of the various links (historical, scholarly, popular) among women, femininity, and the domestic

    sphere at the time, melodrama seemed an appropriate form with which to explore historical issues from female-centered perspectives and memory. Critics maintain it provided a way for womens voices and experience to speak;it could also be tied to an autobiographical impulse that their male counterparts left largely unexplored. Traduonossa.

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    em parte isso se deve prpria Guerra, pois, em uma sociedade em que os homes foram ao

    campo de batalha e muitos no voltaram, as mulheres se liberaram, em parte, do patriarcalismo.

    Assim, a ausncia de "pais" faz com que as "mes" sejam livres de suas limitaes de gnero,

    como muitos filmes do movimento nos mostram14. Porm, Flinn (2004) faz questo de notar

    que ainda assim, no que tange aos seus autores, o Cinema Novo Alemo ainda era uma

    instituio predominantemente masculina, em que os diretores homens tinham muito mais

    facilidade de financiar e distribuir seus filmes que as mulheres.

    Sobre a importncia de Rainer Fassbinder para o Cinema Novo Alemo, ela tamanha

    que Cnepa (2007) chega a considerar sua morte, em 1982, como o fim dessa cinematografia;

    isso porque sua morte se deu em um momento em que ele e seus filmes atingiam o pice de sua

    popularidade. Contrariamente a Cnepa (2007), Scharf (2008) no v o fim do Cinema NovoAlemo em 1982 com a morte de Fassbinder, mas sim em 1989. Para ela, tal data explicita

    melhor o fim de uma era artstica, j que se trata tambm de um marco histrico para a

    Alemanha, com a queda do muro de Berlim e a reunificao do pas.

    2.2 Rainer Fassbinder: vida e obra

    Ronald Hayman (1984) e Robert Katz (1992) foram apenas alguns dos autores a

    comentar sobre a conturbada relao entre Fassbinder e seus paisLiselotte Eder e HellmuthFassbinder. Hellmuth era um mdico com aspiraes artsticas, escritor nas horas vagas e que

    tinha seu consultrio na prpria residncia da famlialocalizada em um bairro bomio e centro

    de prostituio de Munique. L, ele costumava receber prostitutas que iam fazer seus exames

    obrigatrios; assim, desde cedo Rainer Werner Fassbinder passou a conviver com a

    prostituio, um dos motivos pelos quais durante toda sua vida ele encarou a profisso com

    naturalidade. Hayman (1984) e Katz (1992) tambm so bem incisivos ao marcar o fato de que

    nem Liselotte nem Hellmuth nutriam grande apreo por Rainer, que mais tarde afirmaria quesua infncia no fora ruim, mas simplesmente "inexistente".

    Katz (1992), cujo trabalho representa um esforo em biografar Fassbinder, traz-nos

    detalhes sobre sua vida pessoal. O autor, que foi roteirista de Kamikaze 89 (idem, Wolff

    Gremm, 1982), filme que tinha Fassbinder como protagonista, e portanto o conhecia

    pessoalmente, faz um esforo para rememorar passagens ou fatos pitorescos do comeo da vida

    do diretor, como, por exemplo, o fato de que seu nome foi dado em homenagem ao poeta

    14Um dos melhores exemplos talvez seja O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1979), deFassbinder, em que a personagem-ttulo tem de lidar com a incerteza sobre a volta ou no de seu marido do campode Guerra e, posteriormente, consegue viver uma vida independente e satisfatria.

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    austraco Rainer Maria Rilke (1875-1926)15. Alm disso, ele nos conta sobre a conturbada

    infncia de Fassbinder, que tinha um pai frio e distante e uma me ausente. Katz tambm traz

    tona episdios como o que Fassbinder, com quatro anos de idade, quebrou um boneco e desde

    ento no lhe foi mais permitido ter qualquer brinquedo.

    Com cinco anos, seus pais se divorciaram. A distncia emocional entre Rainer e

    Hellmuth passou ento a ser tambm geogrfica: vivendo em cidades diferentes, pai e filho

    mantiveram pouco contato. Rainer nunca conseguiu se fixar em nenhuma escola, sempre sendo

    expulso delas e sem conseguir boas notas, em grande parte devido a sua dificuldade em se

    concentrar. Quando ele tinha por volta de 8 anos, sua me contraiu tuberculose e teve de passar

    um ano em um sanatrio. Fassbinder, ento, ficou sozinho: Liselotte sublocou o flat em que

    viviam, ento o jovem nunca passou necessidade, mas ao mesmo tempo no teve quem cuidassedele ou fosse responsvel. Assim, Fassbinder comeou a passar boa parte do seu tempo ou nas

    ruas, ou no cinema, onde era capaz de ver at quatro filmes por dia. (HAYMAN, 1984)

    A relao conturbada de Fassbinder com sua me bastante notria. Como j dito,

    Liselotte sempre fora uma me ausente; a essa condio somaram-se episdios que fizeram com

    que a relao entre me e filho tenha sido conhecida por sua animosidade. Quando Rainer ainda

    era criana, sua me lhe contou que seguidamente sonhava que os dois se casavam; mais tarde,

    ela teria um namorado muito mais jovem, de 18 anos, que tentaria ser uma figura paterna paraRainer, que nunca aceitou o fato; por fim, o ltimo dos fatos mais notveis da relao dos dois

    foi quando Liselotte se casou com um homem mais velho, Sr. Eder. Eder nutria verdadeira

    abjeo por Fassbinder, proibindo que sua mulher se encontrasse com seu filho. Fassbinder se

    vingaria de sua me ao escal-la em seus filmes sempre em papeis desabonadores ou de

    submisso extremaem Berlin Alexanderplatz, ela aparece em poucas cenas como a mulher

    do chefe da gangue a que Franz Biberkopf se junta. Uma personagem bastante submissa, e at

    irrelevante, que s mostrada poucas vezes carregando bandejas para servir seu marido.Depois de largar a escola e se envolver como proxeneta de um amigo, Fassbinder tentou,

    sem sucesso, entrar para a escola de cinema; embora no tenha sido admitido, conseguiu

    produzir por conta prpria alguns curtas-metragem. Em Munique, atravs de uma amiga,

    acabou assistindo uma pea de um grupo teatral independente, oAction Theater16. Terminado

    o espetculo, ele se encontrou com os representantes do grupo, e em pouco tempo passou a

    fazer parte da trupe e a dirigir e escrever peas (KATZ, 1992). Shattuc (1995) coloca oAction

    15Hellmuth Fassbinder era um amante da literatura. Escritor nas horas vagas, foi ele quem escolheu o nome dofilho, em homenagem ao seu escritor preferido.16Teatro ao, em traduo livre.

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    Theater dentro de um contexto de insatisfao dos grupos teatrais com a centralidade do

    conceito do "autor". Foi da que surgiram grupos de teatro em toda Alemanha que buscavam a

    ao direta em detrimento do poder centralizado do diretor teatral, chegando inclusive a fazer

    suas peas em bares e nas ruas frequentadas pelas classes trabalhadoras, em uma tentativa de

    criar um teatro popular.

    Em 1968, o Action Theater foi rebatizado sob o nome de Antiteater17, agora sob o

    comando de Fassbinder. Tornou-se, assim, uma organizao mais tradicional, visto que agora

    havia uma liderana bem definida na figura do prprio Fassbinder. O ano de 1969 marcaria a

    sua estreia no cinema, o que no fez com que ele acabasse de pronto com sua experincia teatral,

    tendo levado as duas reas artsticas concomitantemente por um tempo, at que o cinema, por

    seu alcance e pelo sucesso que fizera, tomasse naturalmente a sua predileo. Logo com seusdois primeiros filmes18, Fassbinder passou a ter algum reconhecimento na mdia, dando vrias

    entrevistas para uma srie de jornais e revistas. Nelas, o nico membro do grupo a ser tratado

    como um indivduo era ele prprio, sendo os outros relegados "coletividade" (SHATTUC,

    1995; HAYMAN, 1984; Katz, 1992).

    Para Shattuc (1995), enquanto que, ao menos no comeo de sua carreira, os filmes de

    Fassbinder no tinham apelo popular atravs da utilizao de atores famosos, pois eram todos

    advindos de seu grupo teatral, isso era uma estratgia do diretor para que ele fosse o centro dasatenes, tornando-se o chamariz do filme. poca em que Fassbinder passou a ser tema da

    mdia, esta passou a retrat-lo como a anttese da figura usual do artista. Sua aparncia feia19, o

    fato de ter vindo de famlia de classe mdia, seu trabalho duro, so todos fatos que vo de

    encontro imagem do artista que no precisaria trabalhar, que tem fama por sua beleza ou que

    teve uma vida sofrida. A autora ressalva ainda que todas as primeiras aparies de Fassbinder

    na grande mdia eram no sentido de desbravar esse "homem comum".

    No que diz respeito questo da personificao acima mencionada, Shattuc (1995) fazum paralelo entre Andy Warhol e Fassbinder. A terica v semelhanas na medida em que

    ambos estabeleceram uma forma de trabalho parecida com a de uma indstria20; por isso, foram

    acusados de no serem artistas, mas apenas pessoas que souberam lidar com o sistema artstico

    17Anti-teatro, em traduo livre.18O Amor Mais Frio que a Morte (1969) eKatzelmacher (idem, 1969).19Katz (1992) nota que o prprio Fassbinder no tinha nenhuma iluso quanto a sua (falta de) beleza e, de fato,at mesmo cultivava sua feiura: se deixava gordo e se vestia desleixadamente. Tal estratgia era vista pelo diretor

    como forma de se fazer valer por outras formas que no a aparncia fsica.20Para a autora, tal caracterizao pode ser feita na medida em que Fassbinder produzia muitos filmes por ano,utilizando os mesmos atores e lidando com temticas parecidas. J Warhol tinha um processo de reproduo emsrie de suas obras artsticas.

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    vigente (personalista, que sempre busca uma estrela que possa ser foco das atenes) e

    capitalizaram em cima disso. A autora tambm v, nesse sentido, uma ligao entre Fassbinder

    e a contra-cultura alem da dcada de 1960, na medida em que tal movimento buscava romper

    com quaisquer padres estticos, algo que Fassbinder sempre buscou, tanto em seu grupo

    Antiteatercomo com seus primeiros filmes.

    Shattuc (1995) afirma que a parte relevante da biografia de um autor tendo em vista uma

    anlise de sua obra antes o discurso dele mesmo enquanto artista que sua biografia de vida

    propriamente dita. Porm, ela vai alm e diz que as anlises da biografia de Fassbinder no

    devem se deter em sua manipulao consciente de sua imagem pblica, devendo abarcar

    tambm os discursos competentes ao capitalismo estatal e cultura emergente na Alemanha

    Ocidental. Assim, para a autora, foram trs as foras que criaram a fama, a lenda, de Fassbinderenquanto um diretor ao mesmo tempo popular como de alto valor artstico: a indstria da

    televiso, a imprensa e o prprio Fassbinder.

    A autora ento situa Fassbinder em uma tenso entre dois discursos histricos distintos

    o auteure a Cultura Pop americana. Da surgiram dois gneros institucionais em sua obra: a

    adaptao de melodramas para a televiso da Alemanha Ocidental e o filme de arte confessional

    (ou melodrama confessional). A marca das adaptaes melodramticas seria o uso de

    personagens com caractersticas bem definidas, alm de um sistema temporal de narrativabastante ortodoxo e linear; por fim, a autora nota que nessa srie de trabalhos o diretor usou as

    cores saturadas repetidas vezes, assim como a msica como forma de subjetivao dos

    personagens, de externar seu "estado de esprito". J o filme de arte confessional trabalhava

    com uma viso modernista de realismo objetivo onde os eventos cotidianos crescem em

    importncia em relao ao realismo hollywoodiano em que uma srie de eventos acontece de

    forma linear e h uma preferncia por mostrar acontecimentos especiais ou notrios na vida dos

    personagens. Tal caracterstica fica explcita no fato de vrios filmes terem sido filmados emlugares onde Fassbinder de fato viveu, ou ento em bares, restaurantes e ruas que no eramsets

    controlados, alm do fato de ele empregar no-atores para papis principais e, por fim, de usar

    iluminao natural nas tomadas exteriores.

    Tanto Richard Figge (1979) quanto Katz (1992) ressaltam o fato de Fassbinder nunca

    ter frequentado nenhuma academia de ensino formal do cinema. O primeiro nos conta que ele

    era um vido frequentador de cinema desde os cinco anos de idade; mais tarde, falharia em

    entrar para a Academia de Cinema de Berlim, mas sua vontade de fazer cinema o fez aprender

    na prtica: em 1965, com 20 anos, Fassbinder fez seu primeiro curta-metragem, e estrearia nos

    longas em 1969 com O Amor mais Frio que a morte. Figge (1979) ainda aponta essa falta de

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    ensino formal como o fator responsvel pelos seus primeiros filmes parecerem estranhos ou

    ineptos no que tange tcnica cinematogrfica, ao mesmo tempo em que desmente aqueles que

    consideraram tal inaptido como uma escolha esttica consciente.

    Por outro lado, Figge (1979) percebe uma certa mudana de tom na obra do diretor:

    enquanto os primeiros filmes de Fassbinder denotavam um certo cinismo e desespero ante a

    inexorabilidade do destino, a partir de Beware of a Holy Whore(1971)21, filme que marcou o

    fim dos filmes do estilo Antiteater, o diretor passou a apostar em finais mais felizes e menos

    exasperantes. Isso, porm, no significa dizer que o autor se tornou um otimista, apenas que

    agora os problemas emocionais ou psicolgicos de seus personagens passaram a ter outras

    definies que no o final "triste".

    Um dos fatores decisivos para a produo frentica de Fassbinder estava no fato de que,ao escrever um roteiro, ele no especificava ngulos de cmera ou tomadas. Fazia parte do

    modus operandi do diretor no ter a "arquitetura" de uma cena pronta de antemo. Pelo

    contrrio, ele dava uma ideia do que queria para a cena aos seus produtores, e estes ento

    tentavam buscar a locao que mais se encaixava na descrio. Fassbinder fazia disso um

    processo criativo, j que acreditava que a improvisao e a falta de planejamento lhe

    providenciavam estmulo para que sua criatividade florescesse. Lidar com espaos apertados

    que forneciam poucas possibilidades estimulava sua criatividade de procurar fazer o melhorcom o pouco que tinha (FIGGE, 1979). Iluminao e esquema de cores tambm eram outros

    aspectos de um filme que o diretor no discutia ou planejava de antemo, deixando para que

    fossem resolvidos na hora. Essa predileo por no planejar se estendia tambm no tocante ao

    trato com atores. Por no gostar de dar instrues detalhadas do que queria em cada cena,

    Fassbinder escolhia atores que acreditava que intuitivamente saberiam o que ele queria.

    As escolhas de Fassbinder nem sempre eram pacficas dentro do set de filmagem.

    Hayman (1984) e Katz (1992) so bem incisivos ao notar que Fassbinder tinha de fato umapersonalidade centralizadora e eventualmente sdica. Ele gostava que os outros dependessem

    dele, algo que Katz (1992) aponta como outro motivo para sua produo desenfreadaperodos

    sem filmagem eram perodos em que ningum dependia dele, que, assim, no tinha como ser o

    centro das atenes. J Hayman (1984) diz que por vezes o diretor era capaz de xingar um ator

    ou outro membro da equipe de filmagem apenas para v-los chorar; uma vez que o fizessem,

    Fassbinder voltava a gostar deles, pois estavam chorando por causa dele, ou seja, dessa forma

    ele se tornava o centro da vida de todos.

    21 Cuidado com a Puta Sagrada, em traduo livre.

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    Essas relaes de dependncia chegam a seu nvel mximo quando se fala da relao de

    Fassbinder com Irm Hermann. Hermann era atriz e fazia parte da trupe teatral Action Teatre.

    Ambos passaram a ter um relacionamento ntimo, em que Hermann se tornou uma espcie de

    secretria no oficial e amante ocasional. Porm, a relao dos dois foi notadamente uma em

    que Rainer mostrava a todo o momento que tinha poder em relao a ela; enquanto ele

    frequentemente a escalava em seus filmes, o fazia em papis menores e humilhantes 22. Da

    mesma forma, Fassbinder gostava de humilh-la em pblico, chegando at a lhe espancar na

    frente dos colegas de teatro. Quando ela ameaava se matar, ele ria e dizia para ela ir em frente.

    Hermann tinha muitos cimes de outras atrizes como Hannah Schygulla, a quem Fassbinder

    dava papis melhores e parecia nutrir maior apreo; em contrapartida, Fassbinder gostava de

    faz-la sentir cimes e at mesmo encorajava os outros a tomar parte nas humilhaes aHermann: Ela no fazia nenhum segredo quanto a sua dependncia sexual dele, enquanto que

    Fassbinder adorava o poder que essa dependncia lhe fornecia (HAYMAN, 1984, p. 23,

    traduo nossa)23.

    Alguns atores escapavam do trato hostil de Fassbinder, como Barbara Sukowa (Mieze

    em Berlin Alexanderplatz) e Hannah Schygulla (a Eva em Berlin Alexanderplatz). Com a

    ltima, embora Fassbinder a conhecesse desde o comeo da sua carreira24, havia uma relao

    estritamente profissional: ambos sabiam intuitivamente que para manter a colaborao quetinham, no poderiam se ver fora do mbito profissional. De fato, pouco se viu Fassbinder

    gritando com ela nossetsde filmagemum feito e tanto se considerado o histrico do diretor25.

    Hayman (1984) nota tambm que a relao com Gnther Lamprecht, ator que faz o personagem

    principal em Berlin Alexanderplatz, era conturbada. Por mais que a deciso de escal-lo no

    papel tenha sido dele mesmo, Fassbinder nunca o perdoou por ter "roubado" o personagem que

    durante toda sua vida tinha considerado como uma espcie de extenso sua. Tal raiva se

    manifestava na medida em que Fassbinder deixava o som ligado o dia inteiro apenas para

    22EmBerlin Alexanderplatz, ela faz o papel de uma das amantes de Reinhold (Gottfried John). Em uma das poucascenas em que a personagem tem falas, ela expulsa de casa por Reinhold, aparentemente sem nenhum motivo.Quando ela afirma que o ama, ele responde com agresses fsicas e verbais. O fato de Fassbinder ter escolhidoesse papel para Hermann e ter dado tal tratamento personagem vai ao encontro do que caracterizamos aqui comorelao sdica com a atriz.23She made no secret of her sexual dependance on him, while he revelled in the power it gave him.24Schygulla, conta-nos Katz (1992), tornou-se atriz a pedido de Fassbinder. A colaborao comeou j no primeirofilme do diretor, O Amor mais frio que a Morte (1969), e se estendeu at a alguns dos principais filmes do diretor,como O Casamento de Maria Braun,Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) eAs Lgrimas Amargas de Petra von Kant

    (Die Bitteren Trnen der Petra von Kant, 1972).25Katz (1992) e Hayman (1984) notam, porm, que apesar da relao de admirao mtua entre ambos, quandoSchygulla solicitou mais dinheiro que o usual nas filmagens deEffi Briest(idem, 1974) Fassbinder se irritou e svoltou a cham-la para um papel em O Casamento de Maria Braun.

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    incomodar Lamprecht no camarim ao lado, e tambm no tratamento lacnico do diretor, que ao

    fim de cada tomada apenas falava, com desprezo, "obrigado, Gnther". Por fim, quando

    Lamprecht esteve doente, e pediu para filmar menos do que o programado para o dia, no foi

    atendido por Fassbinder.

    Apesar de ser homossexual assumido desde os 15 anos (KATZ, 1992), Fassbinder

    tambm se relacionou com mulheres, sendo inclusive casado duas vezes26. Seus casos amorosos

    acabam ganhando importncia na medida em que afetavam as rotinas de filmagem, conforme

    nos traz Katz (1992). Segundo ele, os dias em que Fassbinder era atendido sexualmente pelo

    seu parceiro da poca eram os dias em que todos ficavam felizes, pois, quando isso no

    acontecia, era de conhecimento geral que o diretor se tornaria bastante irascvel e praticamente

    impossvel de lidar. Vale aqui tambm citar o caso de O Medo Consome a Alma (Angst essenSeele auf, 1974), em que Fassbinder escalou seu amante El Hedi bem Salem, um imigrante

    marroquino que no sabia falar alemo corretamente, no papel principal como um ltimo favor

    a ele27.

    Elsaesser (1997) parte de uma perspectiva de descontruir Fassbinder e sua historicidade

    no contexto da Alemanha Ocidental em que ele surgiu como uma estrela. Para ele, mesmo se

    considerarmos apenas a Alemanha Ocidental, no podemos falar que Fassbinder a representava;

    nem mesmo, enquanto homossexual, poderia ele representar o movimento gay. No mximo,para o autor, pode-se dizer que o diretor, at certo ponto, representou o movimento de contra-

    cultura dos anos 70. Da mesma forma, Elsaesser (1997) tambm atesta que, na Alemanha ps-

    unificao, ao redefinir-se geograficamente o pas passou a redefinir tambm sua identidade

    nacional, dando menos valor s classes artsticas e intelectuais.

    Entre os diretores de sua gerao, Fassbinder, com suas razes regionais, seuamor pelo cinema de Hollywood, e sua crena nos filmes de gnero, no seencaixava em nenhuma das categorias [de representao da Alemanha]. Defato, ele parece ser o candidato menos bvio para representar a Alemanha,

    entendida a representao tanto no sentido de passar uma imagem, um mapaou um inventrio da Alemanha do ps-guerra ao tratar de questes sociais,quanto no de criar atravs de seus filmes mundos ficcionais nos quais osalemes podiam se reconhecer. (ELSAESSER, 1997, p. 16, traduo nossa)28

    26Irm Hermann chegou a acreditar que Rainer se casaria com ele, mas na ltima hora ele anunciou que se casariacom Ingrid Caven, tambm membro do grupo teatral.27Ben Salem amava Fassbinder, que se cansou dele, e por isso lhe deu o papel como uma espcie de prmio deconsolao. Mais tarde, ignorado por seu amante, o ator improvisado seria preso por ter esfaqueado um homem,notadamente com o intuito de chamar a ateno de Fassbinder (Katz, 1992; Hayman, 1984). Na priso, o imigrantemarroquino se suicidaria.28 Among the directors of this second generation, Fassbinder, with his strong regional roots, his love of the

    Hollywood cinema, and his belief in genre film did not fit any of the categories. In fact, he seemed the least obviouscandidate for 'representing Germany', either in the sense that his films gave an image, a descriptive map or aninventory of post-war Germany by treating social and political questions; or in the sense that his films createdfictional worlds in which Germans could or did recognize themselves.

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    Tambm dizer que Fassbinder interferiu na Alemanha Ocidental ao invs de t-la

    representado uma colocao que, para Elsaesser (1997), no se sustenta. Isso porque o termo

    interferiu adquire uma conotao de propagar polticas sem uso prtico e tornar os seus filmes

    apenas propagandas de tais polticas. S se pode dizer que o trabalho de Fassbinder poltico

    no sentido de que seus filmes representam mundos miditicoseles existem em torno de jornais

    revistas, filmes, msica popular etc. Visto como uma espcie de pria, nenhuma parte da

    Alemanha se reconhecia em Fassbinder [...] Na vida pblica alem, ele claramente no

    representa ningum: nem o establishment nem o burgus, a esquerda ou a direita, nem as

    minorias tnicas e sexuais.(ELSAESSER, 1997, p. 42)29.

    O espectador alemo nos anos 1970 era uma categoria com vrios problemas, a comear

    pela colonizao do cinema de Hollywood. Como grande parte dos filmes independentes daAlemanha Ocidental eram financiados pelo governoou seja, no dependiam diretamente da

    audinciaos diretores tinham pouca noo do que pensava seu pblico, com a exceo da

    imprensa, que geralmente lhes era hostil. Aos diretores, ento, como no existiam culturas nem

    de gnero cinematogrfico nem de estrelas, cabia encontrar outras formas de chegar ao grande

    pblico (ELSAESSER, 1997).

    Fassbinder era a exceo regra. Com o passar do tempo, ele formou um grupo de atores

    que formavam o elenco em grande parte de seus filmes, estabelecendo, dessa forma, umaespcie de prottipo de sistema de estrelas; alm disso, durante sua carreira ele experimentou

    os mais diversos tipos de gnero cinematogrfico. Nesse percurso, passando pelos melodramas,

    filmes de gngster, filmes para a televiso, sempre permaneceu a preocupao com a audincia.

    Em um filme hollywoodiano clssico, diz Elsaesser (1997), o espectador posto no

    centro de todos os acontecimentos de forma que a cmera subordinada a este, servindo a

    narrao, assim, de um guia que nos deve elucidar tudo e que ao mesmo tempo deve parecer

    invisvel, como se fosse algo natural. Por outro lado, em Fassbinder temos uma busca daimagem pela imagem, a imagem com fim em si mesmo. Uma cena tpica de Fassbinder, conta-

    nos o autor, fornece um ponto de vista de um espao atravs do uso de enquadramentos dentro

    do enquadramento da cmerafilmagens atravs de escadas, cortinas, corrimos, fechaduras

    etc. Enquanto forma modernista de desconstruo, isso chama a ateno para o artifcio da

    representao, ou comenta criticamente no mundo claustrofbico habitado por esses

    29Seen as akind of paria, no part ofor party in Gennany recognized themselves in Fassbinder,[] In Germanpublic life, he also clearly represented no-one: not the establishment nor the bourgeoisie, not the left nor the right,not the racial minorities nor the sexual minorities. Traduo nossa.

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    personagens. (ELSAESSER, 1997, p. 58, traduo nossa)30. Tambm em contraposio ao

    cinema hollywoodiano clssico, em que os personagens no olham para a cmera, no retornam

    o olhar que temos sob eles, Fassbinder nos deixa cientes do fato de que somos uma presena

    invisvel, que o enquadramento da cmera no uma janela para o mundo exterior. Da mesma

    forma o uso de espelhos e outros objetos que levem simetria ao quadro so artifcios usados

    pelo diretor alemo com este intuito de firmar uma relao entre os personagens e a fico

    uma relao em que um reflete o outro infinita e indefinidamente (ELSAESSER, 1997).

    Para Elsaesser (1997), apesar da obra de Fassbinder nos apresentar frequentemente

    personagens marginalizados pela sociedade, estes nunca se consideram enquanto tal; no

    ouvimos reclamaes ou queixas, eles nunca consideram outros responsveis por seu destino.

    Fassbinder acreditava que colocar algum em uma posio de vtima diminuir a complexidadedessa pessoa, pois a estereotipa; ao mesmo tempo, para o diretor representar vtimas e

    opressores de forma maniquesta um desservio alteridade, j que impede que o espectador

    crie empatia com a vtima representada. Isso porque o sentimento de pena uma forma de

    manter uma distncia perante ela: s sentimos compaixo a partir do momento em que nos

    sentimos confortveis com nossa posio. O que o diretor almejava, ento, era fazer com que o

    espectador se sentisse desconfortvel, pois esse sentimento que retira algum de sua

    individualidade e faz com que sintamos algo que possa ensejar mudanas na sociedade. importante notar aqui que a voz overno um artifcio recorrente nos filmes de

    Fassbinder. Autores como Hayman (1984) e Katz (1992), que traam um percurso histrico do

    trabalho do diretor, no citam em nenhum momento tal recurso. Este ltimo comentador divide

    a obra do cineasta dentro de estilos variados, dos quais se destacam o teatral, o barroco e o

    melodramtico. A primeira categoria diz respeito aos primeiros filmes, em que a esttica do

    teatro se mostrava mais evidente. Subsequente a esta, temos a fase barroca, na qual se

    evidenciam recursos mais exuberantes e chamativos, como emAs Lgrimas Amargas de Petravon Kant (1972). Por fim, a fase melodramtica, que teve seu pice com O Medo Consome a

    Alma (1973) se caracteriza por ser um cinema de gnero, em que a influncia do diretor

    alemo31Douglas Sirk bastante acentuada. O teatro uma mdia que no comporta a voz over,

    portanto, na primeira fase do diretor, o uso desse recurso ficava impossibilitado. Da mesma

    forma, tanto a exuberncia do barroco como a objetividade do melodrama tambm no

    comportavam essa tcnica, fazendo desse um recurso pouco utilizado por Fassbinder.

    30 As a modernist form of deconstruction, this draws a ttention to the artifice of representation, or criticallycomments on the claustrophobic, stifling and cluttered world in which these characters are at home [...].31Apesar de ter nascido na Alemanha, Sirk fez sua carreira toda nos Estados Unidos.

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    Foi quando estava no auge do sucesso que Fassbinder morreu. Katz (1992) conta-nos

    que, aps ganhar o Urso de Prata no festival de cinema de Berlim com O Desespero de Veronika

    Voss,o cineasta passou a ficar obcecado com a ideia de ganhar um Oscar. Com este objetivo

    em mente, aps filmar Querelle (1982), seu ltimo filme, ele j tinha mais quatro anos de

    filmagens programados, incluindo um filme que teria a atriz Jane Fonda como estrela. Porm,

    em meio a esses planejamentos, no dia 10 de Junho de 1982 Fassbinder foi encontrado morto

    em seu apartamento com apenas 37 anos e 41 filmes dirigidos. Aps investigaes, a causa da

    morte foi determinada como sendo uma overdose de cocana e barbitricos.

    2.3 Berlin Alexanderplatz

    Berlin Alexanderplatz foi coproduzido pela produtora Bavarian Atelier, televisoitaliana (RAI) e WDR32, principal financiador. Com um custo de 13 milhes de marcos (entre

    6 e 7 milhes de dlares), foi na poca o projeto mais caro da televiso alemembora o custo

    por minuto fosse menor que a mdia. Filmado em 35mm, as filmagens duraram de julho de

    1979 a abril de 1980relativamente pouco tempo para um filme de 15 horas; tal economia de

    tempo e dinheiro se deve ao fato de Fassbinder ter escrito um roteiro altamente detalhado,

    contrariando seus hbitos normais de trabalho, e de que quase todos os atores j tinham

    trabalhado com ele. Assim, grande parte das cenas foi filmada em apenas uma tomada.Inicialmente programado para passar no horrio das 20h15min, o mais nobre da televiso

    alem, Berlin Alexanderplatz foi realocado no das 21h30min devido a seu contedo sexual

    explcito e suas cenas de violncia. Foi comprado por vrios pases antes mesmo de ter

    terminado de passar na Alemanha.

    A transmisso deBerlin Alexanderplatzocorreu de outubro de 1980 a janeiro de 1981,

    e um considerada um fracasso da televiso alem. Se por um lado a respostas dos crticos foi

    amplamente positiva, a do pblico alternou-se entre descontentamento com a adaptao e friados setores mais conservadores pelo carter anrquico do filme. Parte da controvrsia, diz-nos

    Shattuc (1995), foi orquestrada, j que meses antes do lanamento na televiso, tabloides

    conservadores se insurgiram contra Fassbinder e o que chamaram de contedo "blasfemo" do

    filme. Da se seguiu tambm uma resposta da Igreja Catlica, que fez presso para que a

    exibio fosse cancelada.

    Houve tambm controvrsias na relao de Fassbinder com a WDR; o diretor reclamou

    contra a mudana de horrio deBerlin Alexanderplatz, ao que a emissora respondeu que o fizera

    32Westdeutscher Rundfunk, filial do consrcio das televises pblicas alems da cidade de Colnia.

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    para se adequar s leis que protegiam crianas de serem expostas a sexo e violncia. Fassbinder,

    porm, notou que as sries de mistrio, muito populares na Alemanha at hoje, eram igualmente

    violentas e explcitas quanto ao seu contedo sexual, mas eram transmitidas em horrio nobre.

    Shattuc (1995), no entanto, v na questo da mudana de horrio antes uma mudana de

    estratgia que forma de censura: WDR, a emissora produtora, tentou legitimara srie33e faz-

    la amplamente aceitvel dando status de arte, mudando seu horrio de exibio e, portanto, sua

    acessibilidade. (SHATTUC, 1995, p. 178, grifos meus, traduo nossa)34. Ao mesmo tempo,

    a crtica especializada no poupou elogios a Fassbinder, justificando a controvrsia em torno

    do filme como sendo inerente arte.

    Muito da fria nutrida contra o filme pelos setores mais conservadores teria sido o fato

    da publicao de que Fassbinder retrataria no eplogo a Sagrada Famlia nua, e os trs ReisMagos como ladresalgo que no condizia com a realidade. Houve, ento, uma enxurrada de

    cartas endereadas WDR protestando contra a exibio do filme, muitas das quais tinham seu

    texto pr-impresso, cabendo pessoa apenas assinar e enviar, um protesto organizado por

    setores da Igreja Catlica. A essas manifestaes a WDR respondeu reafirmando sua confiana

    em Fassbinder e atestando que o diretor fora fiel obra de Dblin, obra bastante importante

    para a literatura alem35(SHATTUC, 1995).

    Houve uma grande publicidade anterior ao lanamento, com a publicao de artigos ecobertura sobre as filmagens. Por isso, quando do lanamento, o filme alcanou um ndice de

    25% da audinciaum nmero muito expressivo para a faixa de horrio. Porm, no segundo

    episdio a taxa de audincia caiu, tendncia que se confirmou no terceiro episdio. A partir do

    quinto, a audincia voltou a aumentar, e se estabilizou, mas sem nunca voltar ao nvel da

    primeira exibio (SHATTUC, 1995). A isso se deve no s polmica em torno do contedo,

    mas tambm ao fato de que, passada a curiosidade inicial, muitos trabalhadores no podiam

    ficar at tarde assistindo a obra. Shattuc (1995) tambm traz outros dados sobre a recepo deBerlin Alexanderplatz: o estado da Rennia do Norte-Vestflia36, o mais liberal da Alemanha,

    teve a maior audincia; a Bavria, estado mais conservador, teve a menor. Diferentemente do

    33A autora uma das que classificam Berlin Alexanderplatzcomo uma srie. Apesar de no ser esse o preceitoque utilizamos neste trabalho, nas citaes deixamos a nomenclatura que seus respectivos autores usaram.34WDR, the producing station, attempted to legitimize the series and make it broadly acceptable bas ed on itsstatus as art while contradictorily changing its time slot and, therefore, its accessibility.35Alm de importante para a literatura alem por seu carter modernista, Berlin Alexanderplatzj fora adaptado

    para o cinema em 1931 por Piel Jutzi. Conforme Hayman (1984), Fassbinder no desgostou da primeira verso dofilme, apenas considerou que livro e filme no tinha nenhuma conexo um com o outro.36Curiosamenete, Oberhausen, cidade na qual foi lanado o manifesto inaugural do Cinema Novo Alemo, selocaliza nessa regio.

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    que se esperaria, a maior fatia do pblico tinha mais de 55 anos, contrariando a noo de que

    os filmes de arte de Fassbinder teriam mais alcance com os jovens que com os adultos.

    Conforme afirma Shattuc (1995), o financiamento deBerlin Alexanderplatzpela WDR

    no ocorreu de maneira fcil. Em 1972, houve atritos entre Fassbinder e a emissora quando esta

    decidiu que no produziria mais os captulos finais deEight Hours Are Not a Day(Acht Stunde

    sind keinen Tag, 1972)37, minissrie escrita e dirigida por Fassbinder que deveria ter oito

    captulos mas devido a esse corte s teve cinco produzidos. Alm disso, em 1976 a WDR

    tambm se recusou a fornecer o dinheiro para a adaptao de Soll und Haben, livro de Gustav

    Freytag, dando como motivo para tanto o teor antissemita do livro. Por fim, em 1978 a emissora

    prometeu financiar A Terceira Gerao (Die dritte Generation, 1979), filme sobre o grupo

    Baader-Meinhof, mas depois voltou atrs e negou a verba ao diretor.A autora ento se pergunta por que a televiso estatal arriscaria tamanha soma de

    dinheiro nas mos de um indivduo bastante controverso (ao menos para a poca): gay, usurio

    de drogas38, simpatizante de grupos terroristas da extrema esquerda. Para ela, a resposta a essa

    pergunta reside em trs fatores: as necessidades da televiso de mostrar seus princpios

    pluralistas e anti-fascistas; a possibilidade da emissora, enquanto monoplio estatal, controlar

    a repercusso do filme; por fim, o fato de que, no obstante sua persona controversa, os filmes

    de Fassbinder no costumavam s-lo.Hayman (1984), Katz (1992) e Shattuc (1995) so apenas alguns dos autores a notar a

    importncia que o livro Berlin Alexanderplatz teve na vida de Fassbinder39. Ao l-lo pela

    primeira vez com 14 anos, ele se identificou prontamente com a histria, e com a

    homossexualidade latente entre Franz e Reinhold. Segundo Hayman (1984), porm: no era

    apenas a homossexualidade latente que chamou a ateno do jovem Fassbinder, mas tambm a

    possibilidade de revelar histrias que se recusam a se desenrolar na maneira usual.

    (HAYMAN, 1984, p. 123). J Katz (1992) afirma que com 16 anos o ainda adolescenteFassbinder releu o livro e o sentimento de identificao perdurou; Fassbinder acreditava que o

    livro era uma repetio de sua vida, que tudo o que viveu era, na realidade, uma repetio do

    livrofantasia que levou por boa parte da sua vida. Hayman (1984) ainda nos conta que foi

    37 Figge (1979) afirma que o motivo alegado pela emissora para terminar a srie fora a falta de valor deentretenimento, enquanto que Elsaesser (1997) cita a temtica marxista da obra, que retrata a vida de empregadosem uma empresa, como o fato que desgradou os executivos da emissora.38De fato, Katz (1992), em sua biografia de Fassbinder, traz frequentemente o abuso de drogas por parte dele,

    usurio contumaz tanto de tranquilizantes/sonferos como de cocana, maconha e cigarros.39Shattuc (1995) traz como muito significativo um artigo que Fassbinder escreveu s vsperas do lanamento dofilme na televiso, em que ele cita a importncia do livro para sua carreira e para sua aceitao enquantohomossexual.

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    depois de ter feito 23 filmes, e t-los assistido em um perodo de 3 ou 4 dias, que Fassbinder se

    deu conta de que tinha inserido mais citaes ao livro em seus filmes do que lembrava ter feito40.

    Ele ento releu o livro e se deu conta o quanto ele tinha determinado sua vida e a forma com

    que trabalhava pelo livro de Dblin. O que achou impressionante foi a capacidade do autor de

    usar materiais banais e pouco usuais.

    Para Hayman (1984), Dblin encampou a tcnica da colagem, ligada s artes visuais.

    Assim, imiscuiu junto ao seu texto pedaos de frases que poderiam estar na cabea da infinidade

    de pessoas que circulam por Berlimsloganspublicitrios, fragmentos de canes populares,

    notcias, fofocas, resultadas da bolsa de valores, citaes da bblia etc. Isso tudo com o intuito

    de dar ao livro a sensao de se estar na metrpole, no meio da mirade de acontecimentos e

    aes. Temos de discordar de Hayman (1984), contudo, quando este diz que FassbinderestruturouBerlin Alexanderplatzda maneira mais usual possvel, deixando de lado a tcnica da

    colagem que Dblin usou. A prpria voz over, foco deste trabalho, parece ser justamente uma

    forma de reviver a colagem feita por Dblin, e a ela se somam o uso de imagens de arquivo, a

    msica diegtica etc. Da mesma forma, s pela sua durao de 15 horas, j no poderamos

    dizer que o filme estruturado de maneira usual; mas Berlin Alexanderplatzvai alm, e traa

    uma narrativa baseada na circularidade em que todos eventos tendem a se repetir mais tarde.

    Parece que o autor se focou demais na sinopse e menos na forma com que esta contada pelofilme. Elsaesser (1997) tambm coaduna com essa impresso. O que levou Franz a matar Ida?

    Porque Franz aceitou Reinhold de volta em sua vida? O que Franz fazia hora da morte de

    Mieze? Para Elsaesser (1997), fosseBerlinAlexanderplatzuma narrativa convencional, ela se

    focaria em responder a essas questes. Porm, na realidade elas ficam sem resposta durante

    todo o filmeno obstante sua importncia para a histria.

    Uma das cenas mais emblemticas do filme talvez a cena em que Franz mata Ida, a

    mulher de quem Franz era proxeneta, cena que repetida por diversas vezes ao longo da pelcula(so 6 repeties ao longo do filme). A cena fundamental para a histriaj que foi por matar

    Ida que Franz foi parar na cadeia, de onde saiu em busca de reabilitao , mas nunca a

    assistimos no presente flmico, dado que o filme comea com a sada de Franz da priso; o

    presente aqui substitudo pelo domnio do virtual, e dessa forma o evento se mantm

    multifacetado e aberto a transformaes atravs de suas repeties. Cada uma dessas repeties

    40Katz (1992) traz como exemplo disso o fato de que Fassbinder colocou o nome de Franz em 12 dos personagensque criou. Alm disso, no filme O Direito do Mais Forte liberdade (Faustrecht der Freiheit, 1975) ele atuoucomo protagonista, a quem deu o nome de Franz Biberkopf, exatamente o mesmo do personagem de Berlin

    Alexanderplatz.

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    acompanhada pela narrao em voz overde Fassbinder, sempre com um texto diferente sob

    um prisma diferente: narrativas bblicas, textos sobre leis da fsica, notcias do dia etc. Del Rio

    (2012) nos aponta que um dos usos para a narrao deBerlin Alexanderplatz justamente servir

    de fundo s muitas repeties do assassinato de Ida.

    A voz over, assim, cumpre a funo de transversalidade no que diz respeito histria de Franz Biberkopf, no sentido de que ela concentra domniosradicalmente heterogneos com o objetivo de preservar a complexidade eflexibilidade do evento. Essas no so repeties de um sujeito inconsciente ecompulsivamente atrado a revisitar um evento traumtico de uma formaesttica e improdutiva. Ao invs, as mltiplas repeties so feitas por umcrebro cinemtico que autocontido e auto afetado de forma a ser um conede um conjunto material e vivo. (DEL RIO, 2012, p. 274, traduo nossa)41

    Com isso, percebemos que no caso da cena repetida do assassinato, a narrao adquire

    um papel de reforar o carter determinante, multifacetado e, de certa forma, at mtico que o

    evento adquire na vida de Franz. Del Rio (2012), ento, vai alm, e insere a prpria narrao

    do filme como fator determinante para os mltiplos nveis de sentido que este pode formar. Isto

    devido a sua capacidade de imiscuir dentro de sua narrativa palavra escrita com imagens

    cinematogrficas.

    Esta capacidade aumentada do filme um efeito da mudana no s do textoescrito para um visual e multissensorial, mas tambm um efeito da mudanade uma narrao escrita para uma realizada pela voz de Fassbinder. Imagens

    e palavras entram em uma relao de afeio mtua e realce que vai alm desimples analogia ou mimese. A interioridade afetiva ativada em vrios nveissimultaneamente e junto com suas vrias interseces e concatenaes. Aprpria palavra falada consiste de duas facetas inter-relacionadas: um traomaterial de pura physisdo som, e um contedo semitico/semntico. (DELRIO, 2012, p. 276-277, traduo nossa)42

    Alm de Del Rio, Coates (2012) tambm teorizou sobre a narrao em Berlin

    Alexanderplatz.O autor investiga se h nas adaptaes de Fassbinder da literatura para o cinema

    um carter que tende a fazer concesses mxima de que um filme deve ser fiel obra literria

    original, mesmo se levarmos em considerao as diferenas bvias entre as duas mdias. O autornota certos aspectos em Berlin Alexanderplatz que nos levam a crer que tais concesses

    41The voiceover thus performs the function of transversality with regard to Franz Biberkopf s story, in the sensethat it summons radically heterogeneous domains with the aim of preserving the events complexity and flexibility.These are not the repetitions of a personal unconscious compulsively drawn to revisit a traumatic event in a static,unproductive fashion. Instead, the multiple repetitions are performed by a cinematic brain that is auto possessedand autoaffected as a protosubjectivity of material and living assemblages.42"This enhanced capacity of film is an effect of the shift not only from a written text to a visual and multisensorialone, but it is also an effect of the shift from w ritten narration to one recurrently delivered by Fassbinders voice.

    Images and words enter in a relation of mutual affection and enhancement beyond simple analogy or mimesis.Affective interiority is triggered on multiple levels simultaneously and along their various concatenations andintersections. The spoken word itself consists of two interrelated facets: a material trace or pure physis of sound,and a semiotic/semantic content."

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    existem, como o caso da prpria voz overque recita trechos do livro original; contudo, ele

    indaga at que ponto esses aspectos no so ilusrios quanto fidelidade obra original. A

    questo, ento, se torna como e por que aspectos que denotam fidelidade a um primeiro olhar

    na verdade expressam divergncias entre histrias. Embora prossiga sua anlise em chave

    diferente, Coates (2012) chega a uma concluso semelhante a de Del Rio (2012): a de que a

    narrao, advinda do texto original do romance no qual se baseia a obra cinematogrfica, cria

    sentidos diferentes ao estabelecer uma espcie de metalinguagem, a qual atinge significao

    distinta da do livro, e por esse motivo no se pode falar que a obra cinematogrfica fiel

    literria, ao menos no no sentido usual que a fidelidade em adaptaes para o cinema possui.

    De fato, Elsaesser (1997) e Shattuc (1995) atestam que, enquanto no livro o foco narrativo na

    cidade, e Biberkopf a lente atravs da qual temos acesso a ela, no filme de Fassbinder o foco todo em Franz Biberkopfuma mudana bem significativa em relao obra literria.

    De acordo com Shattuc (1995), Fassbinder utiliza no filme trs mtodos para trazer sua

    marca de autor: a voz over, osflashbacksda morte de Ida e, por fim, o eplogo. Para ela, isso

    demonstra como o diretor tenta imbricar vozes diferentes durante o filme, a sua prpria, a de

    Franz e a de Dblin. O resultado uma teia que mesmeriza o ritmo melodramtico clssico,

    Dblin e Fassbinder competem com suas intervenes modernistas e revelaes pessoais. A

    srie43

    chama ateno no s para o construto natural do trabalho, mas tambm para a questodo autor. (SHATTUC, 1995, p. 138, traduo nossa)44 A terica ainda v repeties nos

    enredos de cada episdio do filme, de uma maneira bem clssica: apresentao do problema,

    manifestaes desse problema e por ltimo sua resoluo. Da mesma forma, h um padro na

    apresentao dos personagens secundrios, na medida em que cada episdio se foca na relao

    de Franz com um deles, que sempre diferente do dos outros captulos; isso serve ao intuito de

    transmitir a multiplicidade de personalidades que existem na metrpole na qual filme e livro se

    passam. Enquanto que tal estrutura de alternar vozes narrativas possa parecer demasiadoelptica, para Elsaesser (1997), ela serve ao princpio caro a Fassbinder de, dentro da mirade

    de personagens, acontecimentos e situaes, deixar que a histria se resolva atravs do texto,

    em detrimento de tais personagens.

    A riqueza de material coletado por Dblin selecionado e subordinado aFassbinder em diferentes princpios organizacionais, de forma que o enredocomplexo e cheio de meandros deve ser visto como uma oposio entrenatureza simples e objetiva com a qual Franz carrega suas boas intenes

    43Como j citado aqui, a autora consideraBerlin Alexanderplatz uma srie, no um filme.44 The result is a mesmerizing ebb and flow of classical melodrama, Doblin's and Fassbinder's competingmodernist interjections, and personal confession. The series calls attention not only to the constructed nature ofthe work, but also specifically to the issue of Autor.

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