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Núcleo Rural Córrego do Arrozal, Sobradinho

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Desafios: região tem muitos setores carentes e em 83% dos lares a mulher é a única provedora

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uem chega ao simpático prédio depara de imediato com os fortes indícios da arte de cuidar. O primeiro surge em letras

coloridas logo no corredor da entrada: “Bem-vindos! A alegria da nossa escola é ter vocês aqui conosco!” O sorriso alegre no rosto das crianças ao passar pelos professores e pela equipe de apoio dá certeiras evidências de que as boas-vindas não se resumem a uma frase de efeito pintada na pare-de. Às que se aproximam da diretora com alguma pergunta, Joliene Dutra Martins para e responde, olhos nos olhos, citando o nome. Elas abrem mais ainda o sorriso e voltam para o pátio, felizes.

É assim, no dia a dia, com cada uma das 99 crianças do segundo período da educação infantil e do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental da Escola Classe Córrego do Arrozal, localizada em uma pequena comunidade próximo à BR 020, em Sobradinho, a cidade serrana de Brasília que cresce

Biblioteca Livros MágicosEscola Classe Córrego do Arrozal, Sobradinho

Com prioridade total para a leitura, foco na comunidade e aumento da auto-estima das

crianças, equipe pedagógica consegue vencer a defasagem idade/série. Antes, havia alunos

do quinto ano que ainda não sabiam ler[ ]Quem lhe ensinará o sorriso

E a graça de assim ficarCom as luzes do paraísoSustentadas no olhar?

(Retrato de uma criança com a flor na mão, Cecília Meireles)

A arte de

Q

cuidar

Carinho e atenção: acolhimento oferecido pela escola se reflete no comportamento dos alunos

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rente à estrada que segue em direção a Salvador e outros estados do Nor-deste. Joliene conhece bem cada um dos pequenos. “Sei o nome de todos eles, sem exceção”, orgulha-se. “E quando o nome é igual, sei distinguir cada um pelo nome completo e chamo pelo sobrenome também.”

O reconhecimento pessoal faz parte da estratégia de acolhimento que a diretora aprendeu em um curso de gestão. “Quando chamamos o aluno pelo nome ele se valoriza, se sente alguém ali dentro. Se você não acolhe bem a criança, não obtém o lado positivo dela.” Outra importante estratégia, o investimento na leitura torna-se evidente logo nos primeiros passos de quem entra. Frases do escritor Monteiro Lobato, que imortalizou as ricas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, chamam a atenção nas paredes: “Um país se faz com homens e livros”; “Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”.

“Todos têm que aprender a usar a própria cabeça e a leitura é o princípio de tudo. O livro tem que estar nas mãos deles todos os dias”, justifica Joliene, que esbarrou nesse grande desafio quando assumiu a direção da escola, em 2010, e encontrou alunos matriculados no quinto ano que ainda não sabiam ler. O primeiro passo para enfrentar o problema foi preparar um plano de ação, “numa construção coletiva de toda a equipe de servidores”, que con-cluiu pela necessidade de investir também na participação da comunidade.

Os quinze anos de atuação em gestão escolar ajudaram Joliene a reforçar a prioridade de envolver os familiares das crianças nesse processo. “Em cada uma dessas experiências aprendi que o mais importante em nossa missão de educar é conhecer o currículo oculto da comunidade.” Na prática, explica, significa conhecer o que o aluno traz de casa, ou seja, trabalhar a aprendi-zagem com base no contexto familiar e social, na vivência, nas necessidades e nas aspirações de cada um deles.

Sem desviar o olhar da realidade dos pequenos, o plano de trabalho foi sendo aperfeiçoado a cada ano letivo, com base em discussões coletivas sobre o que seria ainda preciso melhorar e acrescentar, quando se comparava o que havia sido planejado com o que foi realmente realizado e o que faltou fazer. Em 2013, a escola conquistou o primeiro lugar no Prêmio Gestão Es-colar, um concurso anual realizado pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), que rendeu à diretora uma bolsa para um curso de liderança na Inglaterra.

O segundo passo para acelerar e apoiar o aprendizado foi a criação da Biblioteca Livros Mágicos. Era a ferramenta que ainda precisava ser utili-zada para incentivar os alunos a adotar o hábito da leitura. “Quando fiquei sabendo da existência do projeto Bibliotecas do Saber, pensei: é isso que está faltando para o nosso trabalho, uma biblioteca! E fomos atrás para conseguir.

Deu tão certo que depois disso estou sempre pedindo à equipe do projeto alguma coisa que falta aqui”, brinca Joliene. “É a parceria do sonho coletivo.”

As medidas não demoraram a mostrar resultados. Apostando nos ins-trumentos básicos para alcançar a qualidade do ensino, a equipe da escola classe conseguiu derrubar os índices de defasagem entre a idade do aluno e a série cursada. O problema, registrado em todo o país, está associado a questões como a entrada tardia na escola e o abandono dos estudos, mas segundo o educador João Batista Araujo e Oliveira pode-se afirmar, “sem hesitação”, que a principal causa é a repetência.

O fenômeno não é novo e nos anos 1980 foi resumido nas palavras “cultura da repetência” pelo físico e pesquisador Sérgio Costa Ribeiro, em estudos para explicar como isso ocorre dentro das escolas. Quando o pro-blema não é resolvido, a conta é alta e recai nos ombros da sociedade. Sem auto-estima, o aluno se sente incapaz de vencer e não consegue reconhecer a escola como um porto seguro construído para ele.

A destruição do autoconceito da criança é a consequência mais grave, avalia Araujo e Oliveira. “A repetência não cria apenas um aluno fracassado: cria profissionais e cidadãos fracassados em todas as dimensões da cidadania, como eleitor, consumidor, contribuinte e ser produtivo.” No Córrego do Arrozal, os professores observam que a rotatividade dos alunos que vêm de assentamentos próximos dificulta a construção da identidade da comuni-dade escolar. A crianças, por sua própria condição de vida, já chegam com a auto-estima abalada.

Mesmo assim, o desafio imposto pela defasagem idade/série foi vencido, como destaca o projeto pedagógico da escola classe, sugestivamente batiza-do de Um convite à imaginação. “Temos apenas dois alunos com esse perfil, o que representa 2% do universo escolar. Mesmo assim, estamos aptos e em condições de recebê-los, caso ocorram matrículas no decorrer do ano letivo”, assegura o documento.

“Temos registrado avanços significativos no desempenho pedagógico de nossos alunos”, diz Joliene, que atribui o sucesso ao trabalho diário de fo-mentar o hábito da leitura e de estimular a descoberta de um mundo inteiro de oportunidades. Um dos pilares do projeto pedagógico é a prioridade total à leitura. “Para isso, é fundamental a existência da biblioteca. Ali temos a materialização dessas possibilidades”, explica. “Tanto que o nome de um dos projetos é Descobrindo um mundo mágico.”

O contato com os livros virou uma atividade diária, rotineira e perma-nente para as crianças. O tempo todo, os títulos coloridos estão por perto.

Todos têm que aprender a usar a própria cabeça e a leitura é o princípio de tudo. O livro tem que estar nas mãos deles todos os dias”, justifica a diretora

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Cada sala de aula ganhou um cantinho de leitura, bem criativo e atraente, com almofadas espalhadas pelo chão. “Multiplicamos a biblioteca como espaço físico. Os espaços têm que ser confortáveis, pois a atividade é regular, para instigar a curiosidade e formar o hábito, e assim foi feito em cada sala.”

O “saber ler” muda a vida das crianças, como aconteceu com o aluno João Vitor Gabriel, de dez anos de idade. O menino ainda não havia aprendido a ler quando fazia o segundo ano e sofria ao se comparar com os colegas que já dominavam a leitura. Foi salvo pelo próprio esforço de “juntar as letras” nos livros que passou a pegar na biblioteca. E pelo apoio da professora que se dedicou a ajudá-lo a formar palavras e frases e a chegar, assim, ao “dia mais legal” de sua vida, quando percebeu que lia, como ele conta no emocionado depoimento da página 188.

Com um grande barco pintado em uma das paredes convidando os alu-nos a viajar pelos livros, a biblioteca ajuda a introduzir valores e a superar desafios e conflitos. Enquanto assistem, no pátio, à apresentação da peça O casamento da bruxa Onilda, as meninas Kelyane e Adriele, do segundo ano, aguardam ansiosas o momento de apresentar o reconto de um livro da escri-tora Ana Maria Machado. A recontagem é uma das ferramentas usadas para estimular as crianças a interagir, vencer problemas como a timidez e a baixa auto-estima e desenvolver atitudes de respeito, solidariedade e cooperação.

“A Kelyane sofria bullying, era ‘a gordinha’. Agora, é ‘a contadora de his-tórias’. Sem livro não há aprendizagem, não há oportunidades como essa”, compara Joliene, antes de reforçar, pela última vez, o convite aos alunos para viajar ao mundo de Onilda. Na pele irreconhecível de uma das professoras, a bruxa entra de repente ao som de uma animada música, para deleite das crianças e dos servidores. O momento é de descontração e união. Toda a equipe está ali reunida e entra no clima da história da pobre bruxa que só pensava em se casar e, no dia em que finalmente consegue, o marido bebe uma poção mágica no lugar do champanhe e desaparece.

O plano de trabalho e a biblioteca fortalecem também a parceria com a comunidade, formada por moradores do Condomínio Nova Petrópolis, do Assentamento Renascer e do Núcleo Rural Córrego do Arrozal. Em 83% das casas, a mulher é a provedora. A região é pontuada por setores carentes e considerados de risco pela Defesa Civil, de acordo com levantamentos do projeto pedagógico elaborado pela equipe. Havia apenas uma sala de aula quando a escola começou a funcionar, improvisadamente, em 1994, na pequena igreja do núcleo, conhecido pelas fartas plantações de arroz que deram nome à região.

Com o crescimento da população ao redor, em 1999 as aulas foram trans-feridas para três salas cedidas pela associação comunitária local, destinadas a classes de educação infantil e ensino fundamental, até a quarta série. Até então as turmas eram uma espécie de anexo da Escola Classe Brochado da Rocha, de Sobradinho. A escola só ganhou autonomia em janeiro de 2002, reconhecida em uma portaria do governo e na entrega da sede própria construída em terreno doado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-cuária (Embrapa).

Apesar da localização e das atividades tipicamente rurais, a área foi classificada como urbana, no Plano de Desenvolvimento de Organização Territorial (PDOT) de 2008, para atender a uma das reivindicações de um abaixo-assinado apresentado pela comunidade ao Governo do Distrito Federal, no ano anterior. Os moradores acreditavam que a mudança seria acompanhada de melhorias para a região. Mas os serviços esperados não chegaram e a euforia inicial rapidamente se transformou em decepção. “A comunidade não tem a quem recorrer”, avalia Joliene.

A realidade local redobra o desafio da escola de fortalecer a parceria com a comunidade para atingir o objetivo de transformar os alunos em ci-dadãos críticos, autônomos e criativos, que se guiem por “princípios éticos e inovadores”. Faltam empregos. Grande parte das famílias é dependente de programas assistenciais. Muitas vêm de outras áreas e de conflitos sociais. A escola também enfrenta dificuldades, como a falta de pedagogo, e conta apenas com um, itinerante, que comparece uma vez por mês.

Mas com o esforço coletivo tudo pode mudar, acredita Joliene, que cita o seu livro preferido – O que o Brasil quer ser quando crescer?, de Gustavo Ioschpe – para explicar a razão do otimismo. “Vi esse livro na mão de um policial militar que atuava na escola e ele me disse: ‘Sugiro este para a se-nhora ler. É de um jornalista, é muito crítico e mostra caminhos, provoca o leitor para a vontade de melhorar o país’.”

As ações do plano de trabalho e da biblioteca forta-lecem também a parceria com a comunidade. Em 83% das casas, a mulher é a prove-dora. A região é pontuada por seto-res carentes e con-siderados de risco pela Defesa Civil”

Tem partida,tem viagemtem estrada,tem caminho,tem procura,tem destinolá dentro do livro.

(Ricardo Azevedo)

O que o Brasil quer ser?

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Na visão da equipe gestora da escola classe, esse caminho tem que ser pontilhado pela afetividade no ato de cuidar e pela relação de compromisso na delicada vivência aluno-professor-comunidade-mundo. O que move as ações é o princípio de que a educação não é obra apenas da inteligência e do pensamento, mas também do sentimento.

É como ensina o educador e filósofo Leonardo Boff em Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra: “Mitos antigos e pensadores con-temporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. (...) No cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações, um reto agir. (...) O cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade.” A leitura do sorriso no rosto dos pequenos diz tudo.

Se não era esses livros na escola, acho que eu não estava apren-dendo a ler, não. Pegava muito livro para tentar juntar e entender as pala-vras. E de repente eu consegui”

“Depoimento / João Vitor Gabriel, dez anos

O dia mais legal da minha vida

“Agora estou no quinto ano, mas quando eu já estava no segundo, ainda não sabia ler. Ficava vendo os outros meninos lendo na biblioteca e na sala, e aí ficava chorando em casa porque eu não conseguia. Falava com a minha mãe, pedia, mas ela não conseguia me ensinar. Eu tinha uma vontade de ler muito grande, porque via os meninos se desenvolvendo, menos eu. Eu ficava prestando atenção nas letras, nas figuras, ficava juntando uma letra com a outra. Aí a ‘tia’ me ensinou assim, tipo o ABC, começou a me ajudar. Aí eu juntei tudo do ABC e ficava lá, ficava tentando, soletrando. E a biblioteca me ajudou muito, muito mesmo, e eu agradeço mesmo, de coração. Se não era esses livros na escola, acho que eu não estava aprendendo a ler, não. Pegava muito livro para tentar juntar e entender as palavras. E de repente eu consegui. Na hora que eu vi que já sabia ler foi o dia mais legal da minha vida. Foi o mais feliz. Agora o que mais gosto de ler é história do Rei Artur e da Turma da Mônica. O autor que eu gosto é o Mauricio de Sousa. Queria ser igual a ele quando crescer. Foi ele que me inspirou.”

João Vitor: “Eu juntava tudo do ABC e ficava lá tentando, soletrando”

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Valores e atitudes: segundo Leonardo Boff, “o cuidado serve

de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade”

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192 193Vivência delicada: a educação é obra do

pensamento e também do sentimento