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NOTÍCIAS O DOUTOR UNIVERSAL ALÃO DE LILLE (Paris, 23-25 de Outubro de 2003) MÁRIO SANTIAGO DE CARVALHO No local e na data em epígrafe o Colégio Internacional de Filosofia e o Centro Cultural Irlandês acolheram o XI° Colóquio Anual da «Sociedade Internacional para o Estudo da Filosofia Medieval» (SIEPM), subordinado ao tema «Alain de Lille, Le Docteur Universel». Recordemos que a SIEPM, além de onze colóquios anuais', é também responsável por idêntico número de colóquios internacionais com periodicidade quinquenal (o último dos quais teve lugar no Porto em Agosto de 2002), contando-se estes últimos, quase sempre, inequivocamente, entre os maiores acontecimentos filosóficos de nível mundial'. Agora, a presença, numa 1 Listamos a seguir os títulos das Actas dos respectivos colóquios anuais, pela ordene da sua realização : HAMESSE, J. & FATTORI, M. (ed.), Rencontres de culture.s dons In plulo.sophie médié- vale. Traductions et traducteurs de I'Antiquité tardive au XIVe siècle [Junho 1989], Louvain-la-Neuve Cassino 1990; HAMESSE, J. (ed.), Méthodologies inforinatiques e7 ,ioureaus ltortzons dons les receberches médiévales [Setembro 1990], Turnhout 1992; SANTIAGO-OTERO, H. (ed.), Didlogofihn sóftco-religioso entre cristianismo , judaísmo e islami.smo durante la edad media en la Peninsula Ibérica [Junho 1991], Turnhout 1994; WLODEK, S. (ed.), Société et Église. Te.vtes et discus.sions dons les universités d'Europe centrale pendam le movem âge tardif [Junho 1993], Turnhout 1995; MARENBON, J. (ed.), Aristotle in Britain during lhe Middle Ages [Abril 1994], Turnhout 1996; BENAKIS, L.G. (ed.), Néoplatonisme el philosophie médievale [Outubro 1995], Turnhout 1997; BROWN, S.F. (ed.), Meeting the Minds.The Relations between Medieval and Classical Modera European Philosophv [Junho 1996]. Turnhout 1999; HAMESSE, J. (ed.), L'Élaboration du Vocabulaire Philosoplrique au Moven Age [Setembro 1998], Turnhout 2000; BOIADJIEV, T. (hrsg.), Die Diorntsius-Rezeption iam Mittelalter [Abril 1999], Turnhout 2000; FIORAVANTI, G. (cura), Il comrnento frlosofico nell'Occidente latino (secoli X111-XIV) [Outubro 2000], Turnhout 2002. Cf. http://www.hiw.kuleuven.ac.be/siepm 2 Listamos a seguir os títulos das Actas dos respectivos colóquios internacionais, pela ordem da sua realização : L'Homme et san destin d'après les penseurs du Moven Age [Agosto 1958], Leuven- Paris 1960; WILPERT, P. (hrsg.), Die Metaphv.sik im Mittelalter [Agosto 1961]. Berlin 1963; La Filosofia deliu Natura nel Medioevo [Agosto 1964], Milano 1966; Aris libéraux et Philosop/rie au Moven Age [Agosto 1967], Montréal 1969; Encuentro de culturas en la jilosojía medieval [Setembro 1972], Madrid 1979; ZIMMERMANN, A. (hrsg.), Sprache und Erkenntnis im Mittelalter[Agosto 1977], Berlin New York 1981; WENIN, Ch. (ed.), L'Homme et .san Univers ao Moven Age [Setembro Revista Filosófica de Coimbra - n.° 25 (2004) pp. 271-283

NOTÍCIAS ODOUTORUNIVERSALALÃODELILLE (Paris, 23-25 … · dianus), nomeadamente no campo da angelologia, da ontologia e da cosmologia (criação e causalidade), sem, ... perceber

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NOTÍCIAS

O DOUTOR UNIVERSAL ALÃO DE LILLE(Paris, 23-25 de Outubro de 2003)

MÁRIO SANTIAGO DE CARVALHO

No local e na data em epígrafe o Colégio Internacional de Filosofia e o CentroCultural Irlandês acolheram o XI° Colóquio Anual da «Sociedade Internacionalpara o Estudo da Filosofia Medieval» (SIEPM), subordinado ao tema «Alain deLille, Le Docteur Universel». Recordemos que a SIEPM, além de onze colóquiosanuais', é também responsável por idêntico número de colóquios internacionaiscom periodicidade quinquenal (o último dos quais teve lugar no Porto em Agostode 2002), contando-se estes últimos, quase sempre, inequivocamente, entre osmaiores acontecimentos filosóficos de nível mundial'. Agora, a presença, numa

1 Listamos a seguir os títulos das Actas dos respectivos colóquios anuais, pela ordene da suarealização : HAMESSE, J. & FATTORI, M. (ed.), Rencontres de culture.s dons In plulo.sophie médié-vale. Traductions et traducteurs de I'Antiquité tardive au XIVe siècle [Junho 1989], Louvain-la-NeuveCassino 1990; HAMESSE, J. (ed.), Méthodologies inforinatiques e7 ,ioureaus ltortzons dons lesreceberches médiévales [Setembro 1990], Turnhout 1992; SANTIAGO-OTERO, H. (ed.), Didlogofihnsóftco-religioso entre cristianismo , judaísmo e islami.smo durante la edad media en la Peninsula Ibérica[Junho 1991], Turnhout 1994; WLODEK, S. (ed.), Société et Église. Te.vtes et discus.sions dons lesuniversités d'Europe centrale pendam le movem âge tardif [Junho 1993], Turnhout 1995; MARENBON,J. (ed.), Aristotle in Britain during lhe Middle Ages [Abril 1994], Turnhout 1996; BENAKIS, L.G. (ed.),Néoplatonisme el philosophie médievale [Outubro 1995], Turnhout 1997; BROWN, S.F. (ed.), Meetingthe Minds.The Relations between Medieval and Classical Modera European Philosophv [Junho 1996].Turnhout 1999; HAMESSE, J. (ed.), L'Élaboration du Vocabulaire Philosoplrique au Moven Age[Setembro 1998], Turnhout 2000; BOIADJIEV, T. (hrsg.), Die Diorntsius-Rezeption iam Mittelalter [Abril1999], Turnhout 2000; FIORAVANTI, G. (cura), Il comrnento frlosofico nell'Occidente latino (secoliX111-XIV) [Outubro 2000], Turnhout 2002. Cf. http://www.hiw.kuleuven.ac.be/siepm

2 Listamos a seguir os títulos das Actas dos respectivos colóquios internacionais, pela ordem dasua realização : L'Homme et san destin d'après les penseurs du Moven Age [Agosto 1958], Leuven-Paris 1960; WILPERT, P. (hrsg.), Die Metaphv.sik im Mittelalter [Agosto 1961]. Berlin 1963; LaFilosofia deliu Natura nel Medioevo [Agosto 1964], Milano 1966; Aris libéraux et Philosop/rie auMoven Age [Agosto 1967], Montréal 1969; Encuentro de culturas en la jilosojía medieval [Setembro1972], Madrid 1979; ZIMMERMANN, A. (hrsg.), Sprache und Erkenntnis im Mittelalter[Agosto1977], Berlin New York 1981; WENIN, Ch. (ed.), L'Homme et .san Univers ao Moven Age [Setembro

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 25 (2004) pp. 271-283

272 Mário Santiago de Carvalho

das cidades que outrora foi um dos maiores pólos universitários medievais, de

quase um centena de participantes (oriundos sobretudo da França. da Alemanha,

da Suiça, da Bélgica, da Itália, dos Estados Unidos da América, da Espanha etambém de Portugal), entre os quais se contavam muitos jovens investigadores,

permite-nos apostar tranquilamente na continuidade dos estudos sobre a filosofia

do século XII e sobre Alão de Lille em particular, autor de uma obra vasta (adiante

referida), que aguarda tradução entre nós, e cuja Ars praedicandi deve ter sido

muito bem conhecida (e usada) em Portugal'.

São escassas as informações biográficas sobre Alão de Lilie e apenas quatro

as datas que lhe diziam respeito° . Vejamos, v.g., o que dele nos informa Benoil

Patar no seu recente dicionário5. Nascido em Lille em 1117 de família escocesa,

humanista e teólogo formado por Gilberto de Poitiers, autor do Pranto da Natir

reza e do Anticlaudianus entre outros títulos mais, o filósofo de Lille teria estan-

ciado em Paris e Montpellier, antes de terminar os seus dias em Cister.

Alargando as suas descobertas publicadas em 1995 (in Règles de Théologie,suivi du Sermon sur Ia sphère intelligible) Françoise HUDRY pôde, logo no

primeiro dia do Colóquio («Mais qui était donc Alain de Lille'?»), divulgar conclu-

sões mais recentes, nada incontroversas, expressas na sua última publicação (Paris

2003), Alain de Lille: Lettres familières (1167-1170). Baseada em dezassete cartasde um manuscrito de Paris que editou, Hudry aponta circa 1120 como a data donascimento para um certo Alão de Cantuária-Tewkesburv, na Flandres, e 7 deMaio de 1202, a sua morte em Cister. Entre elas precisa os estudos em São Victor

de Paris (1148-1155), a estância em Cantuária (1155-1166). na abadia de du Becna Normandia (1166/1167), depois em Wearmouth (Durham 1167-1171/3), onoviciado em Christchurch na Cantuária (1174-1179), seguido do priorado nomesmo local e sede (1179-1186), e, finalmente , do abaciado em Tewkesburv

(1186/7-1202). Se aceitássemos este contributo teríamos uma nova cronologia dasobras alânicas ( igualmente frágil): em Cantuária 1155-66, a composição de Devirtutibus et vitiis e da Sununa ' Quoniant Homines'; do período de Le Bec, acomposição da Ecplanatio prophetiae Merlini; de Wearmouth, Brutus. Elucidaria

1982], Louvain - la-Neuve 1986 ; KNUUTTILA , S. (ed.), Knowledge and Me Scienceç til MedievalPhilosophy [ Agosto 19871 , Helsinki 1990 ; BAZÁN , B.C. (ed .), Les philosophies niorales et politiquesau Moven Age [ Agosto 1992 ], New York Ottawa 1995 ; AERTSEN, J. & SPEER , A. (hrsg.), Wts is!Philosophie im Minelalrer ? [ Agosto 1997]. Berlin New York 1998.

3 Cf. CARVALHO, 1.de, «Os Sermões de Gil Vicente e a arte de pregar» [1948 1 in Joaquim deCarvalho . Obra Completa IV, Lisboa 1983, 55 , n. l l: SAUL, A.G., «Três Bibliotecas particulares naCoimbra de Trezentos » Revista de História das Ideias 24 (2003) 48, que publica documento que refereos «tres cadernos do Allano» que o deão da Sé de Coimbra deixa (1404) em legado testamental; parao período português em causa, vd. MEIRINHOS , 1.F., ., «A filosofia no século X11 ( 2) em Portugal:os Mosteiros e a cultura que vem da Europa» Mirandum 10 (2000 ) 39-58-

1 Para uma acessível introdução ao século XII, vd. PACHECO , M'C.daC . R.M, Rario e Sapientia.Ensaios de Filosofia Medieval, Porto 1985, 55 sg . MACEDO . 1.M.daC ., « Alano de Lille » in Logos.Enciclopédia Luso - Brasileira de Filosofia 1, Lisboa 1989 , 103-4. Sobre este período da história cul-tural ocidental , tomado embora sob uma variedade de perspectivas vd. o ponto mais recente in CONS-TABLE, G. et al . ( a cura di ), 11 .çecolo XII: Ia ' renovatio' dell'£uropa cristiana , Bologna 2003.

s PATAR , B., Dictionrwire Abrégé des Philosopheç Médiéraux . Québec 2000 . 25-26; sobre estaobra vd . a nossa recensão in Revista Filosófica de Coimbra 12 (2003) 499-500.

pp. 271 -2 83 Revista Filoso4ica de Coimbra - n ." 25 (20(41

Notícias 273

in Cantica Canticorum, De planctu Naturae (notável prosímetro que celebra osuperlativo poder de Deus e a positividade do Homem ao mesmo tempo quelamenta a aberração sodomista) e as Epistulae familiares; e nos dois períodos deCantuária, respectivamente, a edição das Epistulae Cantuariensis, a Vita S. Tho-mae, e Anticlaudianus (a que voltaremos mais adiante), os Serntones, e as Epis-tulae atribuídas a Alão de Cantuária; por fim, datariam do período de Tewkesbury,as Distinctiones, Contra haereticos, Ars praedicandi, Liber penitentialis, Regulaetheologicae e, obviamente (dada a redução de três autores a um só), as Epistulaee os Serniones até agora atribuídos a Alão de Tewkesbury. Independentemente dasreservas com que esta tese tem sido recebida, um seu aspecto provocador residiriano paralelo possível do biografado com uni outro eminente filósofo contem-porâneo, muito mais conhecido e controverso na sua vida e intervenção, PedroAbelardo6 (no círculo de Tomás Beckett e dos seus discípulos, como o célebreJoão de Salisbúria, Alão teria sofrido as humilhações, perseguições e calúniaspolíticas e ideológica, acabando os seus dias como abade de Tewkesbury, no queseria um retrocesso relativamente ao seu lugar prévio em Cantuária). Todavia,estas audaciosas propostas estão longe de evitar a crítica e entre as suas maioresfragilidades contam-se algumas dificuldades e perplexidades com a mencionadareordenação cronológica das obras.

No que concerne às heranças doutrinais de Alão de Lille, ocuparam-se logono primeiro dia Andreas Niederberger (Francoforte), Christophc Erisniann(Lausanne), Michel Lemoine (Paris) e Dominique Poirel (Paris). A. NIEDER-BERGER (« Les écrits dionysiens et le néoplatonisme d'Alain de Lille») estudou,antes de mais, as citações explícitas do Pseudo-Dionísio Areopagita (mormenteda Hierarquia Celeste IV-XV)7 a fim de fazer sobressair a análise sistemática dapresença deste enigmático monge sírio na obra de Alão (De Planctu e Anticlau-dianus), nomeadamente no campo da angelologia, da ontologia e da cosmologia(criação e causalidade), sem, no entanto, deixar de sublinhar, no caso da causa-lidade, uma mudança de linguagem que assinala a evolução do autor, nessa maté-ria, em obras como as Regulae e Contra haereticos. Apesar desta evolução doutri-nal, Niederberger considerou a versão da teologia negativa em Alão como anó-mala no seu século; acresce que, sendo certo que Dionísio foi um factor detransformação da filosofia dos séculos XII/XIII, o neoplatonismo de Alão podeser explicado sem invocar a presença directa do sírio.

O carácter aparentemente negativo desta comunicação, que contribuiu parase precisar com maior objectividade os contornos do neoplatonismo alânico, pôdedepois ser regulada quando, partindo da presença literal de Hugo na obra de Alão(Didascalicon vs. Regulae), D. POIREL perguntou sobre «Alain de Lille, heritierde l'École de saint-Victor?» Passando em revista alguns temas comuns aos doisautores (as cinco potências da alma, as quatro fontes do conhecimento de Deus,o tema das hierarquias, etc.), a análise feita às fontes, mas sobretudo o estudo

Vd. o nosso livrinho Lógica e Paixão. Abelardo e os Universais, Coimbra 2001.Para uma introdução a este autor, vd. o nosso «Estudo Complementar» a Pseudo-Dionísio

Areopagita. Teologia Mística, Porto 1996.

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274 Mário Santiago de Carvalho

realizado em torno das formas literárias, evidenciando óbvias diferenças , permitiu

matizar uma eventual influência de Hugo em Alão. Afastada a ideia de urna

`filiação ', a comunicação patenteou o resultado mais positivo do estudo compa-

rativo que se propunha : perceber o caminho da teologia numa época inter-

geracional (em que o optimismo de Hugo se reconhece na proposta de síntese

teológica e o pessimismo de Alão na distinção da teologia), a saber, o da crescente

tomada de consciência da impossibilidade de unia ciência universal.

A presença de inúmeras citações do Periplpvseon de João Escoto Eriúgena na

obra de Alão, estudadas em «Alain de Lille et Ia métaphysique é rigéniennc» por

Cli. ERISMANN , permitiram uni tratamento formalmente original . Começando

por contrastar o particularismo do teólogo de Lille com o universal isnio do

irlandês ( Escoto rejeita o particularismo substancial da ousia em 703AB, 49I AB,

472A ou 492C , entre outros passos mais do Periphvseon )8, que justificou pela

adopção da «metafísica do concreto » de Gilberto de Poitiers9, avançou - se unia

imagem de Alão de Lille como não tradicionalista - como ainda o eram Thierry

de Chartres (« una natura una et eadem sit humanitas in omnibus » Ia de Trin. 1

8) ou Clarembaldo de Arras - ao romper com o realismo . Foi a adopção doporretanismo que condicionou a presença do eriugenismo no alânico. Apesar de

estarmos perante uma estratégia sincrética ( evidenciada no uso que faz dos

conceitos dionisíaco-eriugenistas ) Alão aparece - nos de novo como um autor de

fronteira , cuja inovação se pode medir na perspectiva adoptada de tratar o

problema sob o ponto de vista da terminologia lógica da individuação , aquela,

precisamente , que acabará por vingar.Faltava evidenciar mais uma outra fonte, tarefa desenvolvida por M. LE-

MOINE («Alain de Lille et l'École de Chartres »), primeiro tratando dos laçoshistóricos de Alão com o «neoplatonismo coerente» dos chartrenses (os laçosdoutrinais com Bernardo de Chartres , Thierry de Chartres , Guilherme de Conchessão patentes10 ), mas privilegiando a influência maior de Gilberto de Poitiers oua presença da Cosntographia de Bernardo Silveste no Anticlaudianus , relaçõesestas que devem ser finalmente perspectivadas sob o prisma de um regresso deAlão de Lille a Boécio.

Este «regresso » a Boécio foi ainda explorado por Luigi CATALANI ( Nápoles)mediante o estudo da relação de Alão com o porretano («Modelli di conoscenzatra Gilberto Porreta e Alano di Lille»). Começando por questionar o que se deveentender por `escola ' porretana ( o mesmo aliás se deveria ter feito quanto à

R Uma citação indicativa do universalismo (Periphyseon 492C); «... toca enim simul et semperin suis subdiuisionibus aeternaliter et incommutabiliter subsistit omnesque subdiuisiones sui simulac semper in se ipsa unum sunt.»

Y A expressão entre aspas é de MAIOLI, B., Gilberto Porretano. Dulia granunatica speculativaalia metafisica dei concreto (Roma 1979), amplamente citada no meu estudo A Novidade do Mundo:Henrique de Gand e a Metafísica da Temporalidade no Século XIII, Lisboa 2001; veja-se sobre otema ibidem 307-14 e 319-27.

111 De referir que existe tradução portuguesa da capítulo XX11 do livro 1 de Philosophia Mundide Guilherme de Conches, por Armando MARTINS e Cláudia TEIXEIRA in Diana. Revista doDepartamento de Linguística e Literaturas (Univ. de Évora) 3-4 (2002) 209-16.

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Notícias 275

`escola' chartrense, mas naquele caso Gilberto compartilharia do universo declassificação epistemológica boeciano), tratando nomeadamente de alguns dosseus membros, como Guilherme de Luca, v.g., o alegado «regresso» foi provadono tratamento que Alão deu à ratio ou na leitura da estrutura cosmo-ontológica,na sua relação com a epistemologia, nos seus vários níveis, mormente a episte-mologia dos opuscula sacra, e ainda muito em particular a teoria das faculdadese respectivos objectos do conhecimento (de Trinitate). Teria faltado, porém, desta-car as diferenças existentes entre os dois autores, e semelhante procedimentodiferencial foi talvez o ponto mais débil de todas as comunicações anteriores.

Não foi só a questão das fontes que ocupou os interesses do colóquio de Paris.Várias obras de Alão de Lille foram merecedoras de comunicações exaustivas emais ou menos bem conseguidas, também sob prismas diversos. Comecemos pelaabordagem lexicográfica de Jacqueline HAMESSE (Lovaina-a-Nova), «Le `Liberin distinctionibus dictionum theologicalium' d'Alain de Lille: sources, diffusionet influence». O leitor terá identificado tratar-se das Distinctiones, um dicionáriode termos, sobretudo bíblicos, que foi objecto de outras comunicações, mas que,neste caso particular, ficou prejudicada por se basear na edição deficiente daPatrologia. Relativizando o papel de Alão como lexicógrafo (aquém de Papias,mas também de Raul de Longo Campo cujas Distinctiones tratou), e tendo porbase o chamado segundo prólogo do dicionário («eiusdem prolugus alter»), anovel Presidente da SIEPM começou por falar da evolução do estilo literário emcausa, da finalidade da prática sermonária, passando de seguida ao conteúdo dasDistinctiones de Alão (400 colunas da edição PL e 1200 lemas ordenadosalfabeticamente), às fontes principais (Asclepius, Isidoro, gramáticos, Bíblia,neoplatónicos como Gilberto de Poitiers ou Pedro Cantor etc.), concluindo comanálises mais pormenorizadas, como a do caso do tema «Judaeus» que, de acordocom Hamesse, aparece mais de 2000 vezes, e num tom agressivo ou negativo,na esteira do Contra Haereticos. Nas discussões orais após a comunicação, vivascomo sempre, começou-se por apontar a incompatibilidade desta última propostacom a cronologia das obras avançada por Hudry, mas, sobretudo, verificou-se

aquilo que sempre temos vindo a dizer, com muitos mais, que os estudos apoiadosna PL devem ser cuidadosos nas suas conclusões. De facto, como de imediatose dirá, outras comunicações do Colóquio contrariaram radicalmente o anti--judaísmo de Alão (na entrada que lhe dedicou no Dictionnaire des Philosophes

de D. Huisman Libera ainda considera Alão como um encarniçado adversário dejudeus e muçumanos), também situando a obra para o campo da exegese (no queseria uma espécie de crítica à exegese bíblica judaica), e Gilbert Dahan, neste

particular, informou que, ao contrário do texto que se lê em PL, o manuscrito é

muito mais ordenado e coerente, refutando dessa forma as conclusões apressadas

de Hamesse, quanto a nós muito mais convincente no tratamento que deu a duas

entradas de Raul de Longo Campo, «ratio» e «spiritus», evidenciando o tom

pedagógico deste último que não cita Alão de Lille.

Preparando a edição crítica do De fede catholica, Joseph H. PEARSON (Nova

Iorque), datando aquela obra circa 1175, antecipando muito a cronologia de

Hudry, também abordou o tema do anti-judaismo («The anti-Jewish Polemic of

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 25 (2004) pp. 271-283

276 Mário Santiago de Carvalho

Alain de Lille») com uma competência impoluta. Situando a obra no contexto

sócio- religioso do midi occitano , no qual , com base em manuscritos inéditos, se

propõe explicar a biografia de Alão, o contraste com a interpretação de Hamesse

e a vulgarização de Libera não podia ser mais vincado . Assim, Alão de Lille

aparece-nos mais longe do tema anti -judaico e mais afim à polémica anti-herética,

tendo Alão usado cerca de sessenta por cento de material original , havendo

Pearson adjectivado mesmo o traço anti judaeus de Alão como «suave», por visar

sobretudo a elucidação dos cristãos, evitando que caiam no judaísmo.

Tanlhénl a comunicação de Gilhcrt DAHAN (Paris ), com a competência na

história da exegese que se lhe reconhece , ao tratar de «Alain de Lillc et Ia Bihlc»,

alinhou por este diapasão ( abordando o lugar da heresia na pregação, mas também

os nomes hebraicos , as concordâncias e disctinctiones ). Embora tivesse demorado

mais no exame dos sentidos da Escritura , no vocabulário exegético, na análise

teológica, na prática exegética , na particular significação de res ( em cuja estrutura

física assenta uma leitura moral , patente no comentário ao Cântico dos Cânticos),

Dahan ajudou a precisar de maneira renovada o lugar de Alão na história da

exegese bíblica.

Continuando o género literário da polémica , Mechtild DREYER (Mainz) fez

incidir formalmente a sua comunicação («'... rationabiliter infirmare et (...)

rationes quibus fides [ innititur ] in publicum deducere. Alain de Lille et le conflit

aves les adversaires ») sobre o campo, mais moderno , do diálogo das religiões.

Começando por estabelecer um contraste entre as posições de Bernardo deClaraval, Pedro o Venerável e Alão de Lille, considerando embora o estilo de Alãopara com os adversários mais «despojado » do que o de Pedro o Venerável, não

deixou de marcar o facto de não se poder situar Alão no horizonte de um diálogode religiões , sendo por isso o seu contributo ponderável antes na aposta que fazno critério da racionalidade . No horizonte hermenêutico em que Dreyer secolocou, a palavra de ordem seria assim a de que a filosofia é a condição dodiscurso das (duas ) religiões em diálogo.

Sob um prisma distinto, mais histórico, a questão da heresia recebeu umtratamento muito original e competentíssimo por parte de Paolo LUCENTINI(Nápoles), em «Dialettica, teologia, eresia : Alano di Lille e Amalrico di Bène».Partindo da leitura do principal testemunho dos amalricanos (o Contra Amau-rianos de Gualter de Rochefort, 1210), e evidenciando os pontos que eventual-mente este foi beber à Summa 'Quoniam Homines' de Alão de Lille (lugar, tempo,mal, etc .), Lucentini pôde avançar com a tese de que aqueles pontos teóricos naSumma reflectem debates juvenis do próprio Amalrico de Bène . Escusado serásublinhar a novidade desta interpretação, não só por causa das escassas informa-ções de que dispomos sobre Amalrico, não só por causa da abertura que concedeà pesquisa de novas fontes , tudo isto apoiado numa coerente leitura que evidenciaos pressupostos gramaticais de uma discussão escolar contemporânea do alânicoe a aplicação hermêutica que deles foi feita no sentido de um materialismoteológico; é o caso em que os pressupostos gramaticais da univocação (sununiu)lbonuni = id quod est sunimum bonuni ), em conformidade com os quais os predi-cados do mundo finito aplicados a Deus, servem à refutação da transcendência e

pp. 271- 283 Revista Filo.cn¡ica de Coimbra - n." 25 (2004)

Notícias 277

à propagação do programa do triunfo da consciência humana, da leituramaterialmente antropológica da encarnação (Cristo é cada Homem). Sabe-se queGilberto de Poitiers havia distinguido o esse do id quod est, no sentido em queeste provém daquele, o efeito deriva do princípio, mas a leitura de Gualter ia nosentido de que os amalricanos identificavam os dois termos. A identificação entreunivocidade do ser e univocidade de predicação comportaria assim uni alcanceateológico evidenciado num programa de imanentização divina.

Que aquela identidade comporta outros alcances lógico-teológicos provou-omuito bem Luisa VALENTE (Roma) em «Alain de Lille et Prévostin de Crémonesur Ia question du discours théologique». Se Alão é defensor da tese da equivo-

cidade e Prevostino, da tese da univocidade, o que Valente provou pormenori-

zadamente com duas questões (surpreendentemente divididas na forma escolar do

século XIII) daquele (de innominabilitate Dei e de attributione alicuius nominis

unica sui prolatione creatori et creature) e unia questão deste (de univocatione

dictoruni de Deo et de creatura), foi a existência de uma problemática de fronteira

na história da teologia (a teoria da linguagem sobre equivocidade e univocidade

visa nos dois casos de forma distinta não comprometer o nosso discurso sobre

Deus), configurada também pela diferença entre sentidos da teologia (dictiones

ideo invente sunt ad significandunt naturalia; postea ad theologiam tran.clate) e

sentidos da exegese (Deus inproprie dicitur esse iustos, sed proprie est iustos).

De notar que esta tensão entre as teorias lógico-gramaticais dos dois autores,

recusando Prevostino a transferência de sentidos (translatio) sem apresentar

qualquer solução (quod vocabula que clicutttur de deo secundam assentiam dicat

de creaturis eadem essentiam significent), só será superada no século XIII com

a teoria da analogia.

Como já se compreende nesta ocasião, a teologia foi tema capital neste

colóquio. Abordada de formas e perspectivas muitas diferentes, quase todas

trouxeram à luz o movimento epistcmologicamente seguinte: scientia > philo-

sophia > theorica > theologia > rationalis > apothetica e vpothetica. Com a

devida vénia, a seguir, atrevemo-nos a reproduzir o quadro conjectura) proposto

por d'Onofrio (a) ilustrativo deste movimento e, bem assim, e agora sobretudo

tendo em vista os nossos docentes de Filosofia do Ensino Secundário confrontados

com o ensino da obrinha de Boaventural1, Recondução das Ciências à Teologia,

também o útil plano (b) em que Poirel baseou a sua intervenção.

11 Cf. o nosso estudo Boaventnra. Recondução das Ciências à Teologia, Porto 1996. O Quadro

(b) justifica -se, como se lê neste nosso estudo , pelo facto de ser a partir de Hugo de São Victor que

Boaventura define a sua enciclopédia ou epistema.

Revista Filo sófica de Coimbra - a.° 25 (2004) pp. 271-283

278

(a)

Mário Santiago de Carvalho

Mechanica

Poesis

Eloquentia

Scicntia Naturalis

Mathematica

Teologia Teologia Scientia

Theorica Ralionalis Apothetica Ariicutorum

(scientia de supcrcaelesli. (quae

divinis ) ( de deo ) expediunt)

teologia scientia

haeresum

(quae

impediunt )

Philosophia

Teologia

Ypotetica

Subcaelestis

(de angelis

et de animis)

Teologia de virtutibus

moralis ( de quibus

expediunt)

de vitiis (de

quibus

impediunt)

pp. 271-283 Rerisla Filnsnjica de Coinnhra - n." 25 (2004)

Notícias

(b)

279

Hugo de São Alão de Lille,

Vietor, Didas- Regulae theo-calicon logiae

Gramm ti G iLogica^

a ca

Sophistica

rammat ca

Dissertiva

Probabilis -^-

Dialectica-

rhetorica

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Ph sica Ph sicay y

Aritmetica Aritmetica

Th i iM h iM M ieor ca at emat ca - caus us ca

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Alessandro MUSCO (Palermo), «Alano di Lille tra assiomi dei pensarc e

fondazione delia teologia», deu conta do seu recente estudo de introdução à

tradução italiana das Regras do Direito Celeste12. Tratou-se de uma impressiva

apresentação da compatibilidade sincrónica do platonismo com o aristotelismo no

século XII (em vez do paradigma da aproximação deste com perda de influência

daquele) em que o lugar de Alão de Lille é o de um inovador, obcecado pela

linguagem, desejoso de utilizar uma semântica nova num novo cenário de com-

plexidade. Em conformidade, as regulae, uma autêntica axiomatização da teologia,

assentes num regresso aos gramáticos mais antigos seriam a prova daquela

diacronia de charneira.

12 Afano di Lille. Le Regale dei diritto celeste . Introd ., trad . e note a cura di C. CHIURCO.

Saggio introduttivo de A.MUSCO, Palermo 2002, pp. XXI-XXXVI.

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Menos viva, mas mais segura, esteve a lição de Giulio d'ONOFRIO (Salerno),

«Alano di Lille e Ia teologia», estudioso que coordenou uma recente história da

teologia medieval na qual Alão de Lille aparece como o «anel de uma cadeia»

patente na tentativa de ou para a maturação do ideal da teologia como ciência:

«Lego (sc.: philosophiam) ut intelligas» é a palavra-programa que se lê na Sununa

'Quoniam Homines13. Vários textos e índices o comprovariam. Enumeremos

alguns: o reconhecimento de que as ciências humanas não se anulam, mas

adquirem uni outro nível de compreensão (Anticlaudianus V 83); uni novo

inlelli,'ere (Quid sit (ides p. 336); o nascimento de uni novo discurso teológico,

v.g., sobre a Trindade (Sunnna Quoniam Hotnines' 1 4Y), a Transubstanciação

(Regulae coelestis iuris CVII); enfim, a possibilidade de se atingir a extasis

superior da teologia a partir da regula fidei, numa autêntica metamorfose do

espírito, plano onde se jogam, quer a linguagem do conhecimento, quer asfaculdades do conhecimento. É o programa hermenêutico da circularidade que se

lê no De planciu VI: «seio ut credam (...) credit ut sciat».Em «'Unitas', aequalitas', connexio'. Alain de Lille dans Ia tradition dos

analogies trinitaires arithmétiques» Christian TROTTMANN (Tours) pegou numtema teológico preciso, abordado sob o prisma 'matemático', para o tratar de umaforma histórica: a herança chratrense, o recurso de Alão àquele tipo de analogiasna Suntma 'Quoniam Homines' e nas Regulae, finalmente a fortuna da tríade

indicada em Nicolau de Cusala. Foi analisado uni extenso dossier literário (deThierry de Chartres, quanto aos chartrenses e de De docta ignorantia e De PaceFidei no que concerne ao Cusano15), e, não obstante alguma falta de acribia. foidevidamente vincada a diferença no uso teológico-apologético das tríades em Alãoe Nicolau de Cusa.

Embora não podendo estar presente, Jean LONGÈRE (Paris) fez divulgar aversão policopiada da sua comunicação «L'écriture sainte dans les 'Sermonesuarii' d'Alain de Lille». A entidade «sermones varii» (distinta da recolha siste-mática do Liber sermonum) corresponde a um conjunto artificial de cerca decinquenta sermões ordenados alfabeticamente, cujo estudo permitiu captar uniperfil de Alão até aqui não tratado no colóquio: o de alguém que escreve outrabalha a sermonária com sistematicidade, adaptando-a à realidade pastoral,aprofundando o conhecimento das fontes e os instrumentos de trabalho.

Referimo-nos acima à relação entre Alão de Lille e o seu discípulo Raul deLongo Campo. Irène CAIAZZO (Paris) estudou-as num sector preciso, típico da'escola' de D. Jacquart: «Les quatro éléments selon Alain de Lille et Raoul deLongchamp». Partindo da criação do honro novos no Anticlaudianus, cujohorizonte moral se inscreve numa cosmologia, viu-se o pretexto para que, no seucomentário àquela obra, Raúl introduzisse uma teoria ou filosofia da natureza,

13 D'ONOFRIO , G. (ed.), Storia della teologia nel Medioevo, Casale Monferrato 1996.14 Sobre o autor , cm português , vd. ANDRÉ , 1.M., Sentido , .simbolismo e interpretando no

discurso filosófico de Nicolau de Cuca , Coimbra 1997.11 Há tradução portuguesa destes dois títulos cusanos , por 1 . M' André : A Paz da Fé. Coimbra

2002; A Douto ignorância , Lisboa 2003.

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designadamente dos elementos. Estamos portanto perante uma contribuição inéditapara a história do aristotelismo em ambiente platónico (de notar que os trintaprimeiros anos do século XIII são-nos bastante desconhecidos sob este ponto devista). Não sendo possível afirmar se Raúl leu Aristóteles directamente, que aliáso cita mal, quiçá a partir da tradução de Burgúndio de Pisa, lêem-se os mesmostemas nos mestres de Salerno (Ugo, Mauro, Bartolomeu) e em Raúl, enquanto'comentadores' de Aristóteles (De generatione et Corruptione) no que respeitaao entendimento dos «verdadeiros elementos» (aqui esteve em causa a diferençaentre 'elementum' e 'elementatum' mas dever-se-ia saber que este último vocábulo

se encontra já nas traduções latinas de De divinis Nominibus do Pseudo-Dionísio)

e do seu lugar.

Duas contribuições distintas incidiram sobre a mesma obra anónima, asGlosae super Trimegistuni, existentes num só manuscrito incompleto (até cap. IV).Como se sabe, Alão de Lille é um excelente leitor do 4sclepius, justificandoimediatamente o interesse pelo estudo da literatura hermética, a qual só virá aser de novo superiormente reabilitada no Renascimento. As Glosae aparecem

assim como uma tentativa de resgatar o Asclepius de uni qualquer perigoso paga-nismo e (acrescentamos nós) vale a pena assinalar a contribuição dos jesuítas

portugueses para desfazer esta leitura concordista. Vera RODRIGUES (Paris/Porto) ajudou-nos, de modo original, a avaliar melhor a philosopltia naturoli.e no

século XII. Em «Nature et connaissance de Ia nature dans Ic 'Sermo de sphacra

intelligibili' et dans les 'Glosae (anonymcs) super Trimegistum'» a nossa

compatriota incidiu a sua atenção sobretudo no conhecimento da natureza, nas

'imagens' das verdadeiras formas, que são, no comentario ao Asclepias (conser-

vado no ms. Vat. Ottoboniano lat. 811), os objectos da pltysica, tendo igualmente

atendido à conceopção de uma cognitio imaginaria do mundo físico. Convirí

talvez informar o leitor português menos atento que Vera Rodrigues é membro

do Gabinete de Filosofia Medieval da Universidade do Porto (e doutoranda na

IVs secção da École Pratique des Hautes Étudcs sob co-orientação de D.Jacquart

e Ma C. Pacheco) contando já, entre as suas publicações, relevantes estudos sobre

Thierry de Chartresl6.

Ilaria PARRI (Nápoles) dedicou-se à mesmas Glosas, mas numa dimensão

teológica: «L'immortalità dell'anima nelle 'Glosae super Trimegistum'». O resgate

acima indicado é aqui mais óbvio (remetendo-se v.g. o 'erro' da transmigração

para Pitágoras) e diz respeito a domínios tão polémicos ou controversos como:

imortalidade da alma em sede da teologia natural ou o tema trinitário.

Além dos problemas lógicos, da questão teológica e do tema controversialista,

outras comunicações, além da de V. Rodrigues e da de L. Catalani, estudaram,

sob prismas sempre diversos, a problemática do conhecimento. Aqui, falta-nos

ie Ei-los: «La conception de Ia Philosophie chez Thierry de Chartres» Mediaecalia. 7e.vtos e

Estudos 11-12 (1997), 119-37; «Thierry de Chartres: profil philosophique d'un maitrc chartrain» in

Roma, Magistra mundi. Itineraria culturae mediaevalis, Louvain-ia-Neuve 1998, 317-28; «Thierry

de Chartres, lecteur du 'De Trinitate' de Boèce», in GALONNIER, A. (ed.), Boèce ou Ia chaine de.c

sas'uirs, Louvain Paris 2003, 649-63. Desejo agradecer a V. Rodrigues a leitura prévia desta notícia.

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indicar tão-só a de Moufida AMRI-KILANI ( Paris ), «Connaissance sensitive et

rhétorique chez Alain de Lille» que se ateve a evidenciar o «classicismo» de Alão

em matéria do conhecimento sensível , cuja teoria é fundada por uma psicologia

tradicional. Diria porém que Amri-Kilani poderia ter ido mais longe no exame

da retórica , uma das matérias mais injustamente silenciadas neste colóquio (haja

em vista que Alão de Lille foi uma humanista de craveira) não fosse a lição de

Jolivet referida a seguir. Por outro lado, dever-se-ia ter avaliado o alegado «classi-

cismo » do autor o qual , no seu século XII, é de uma insofismável importância e

actualidade.

Encerrando os trabalhos de elevadíssima qualidade , tivemos a honra deassistir à lição de um verdadeiro mestre do século XII, Jean JOLIVET (Paris),que, numa nada circunstancial apologia da vida , abordou de uma maneira erudita«La figure de 'Natura' dans le 'De planctu' d'Alain de Lille». O tema, centralna obra, justifica - se por si só, havendo a posição mediadora da «natureza» sidodestacada na sua complexidade retórica , no seu horizonte interpretativo e histo-rico-filosófico, no seu espectro literário sempre apelativo de novas e recorrentesinterpretações.

Indiscutivelmente , o colóquio de Paris que noticiámos passará a constituir um

ponto de viragem na nossa percepção da filosofia do século XII. Isso será

facilmente patente se tomarmos em considerção que, v.g., na História de referênciaque Peter Dronke dedicou àquele período17 - e em que os chamados «inovadores»

se restringem a Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo, Guilherme de Conches,Gilberto de Poitiers, Thierry de Chartres e Hermann de Carinthia - a Alão de Lillesão dadas menos que umas escassas trinta páginas. Assim, estamos agora em con-dições de situar Alão de Lille na filosofia ocidental sem falsos pudores (veja-se

a reserva de B.Patar a propósito do alânico: «n'est pas à proprement parler unphilosophe»), mas não podíamos terminar sem dizer que muito resta ainda porfazer no que a Alão de Lille concerne. Sem sermos especialista nem no séculonem no autor, atrevernos-ía-mos contudo a apontar a menos duas direcções porvir, não sem antes desejarmos que se venha ainda a apurar com maior amplitudee sistematicidade a recepção lusitana do alano. Pode ser que se venha a descobrirque esta excedeu o âmbito das artes praedicandi e seria extraordinariamentesoberbo se se descortinassem em Portugal traços da tese alânica da regeneraçãoda natureza humana ( daquilo que temos vindo a chamar alhures o tema do'Homem superior' na Idade Média e que em Alão é um Homem-Deus) desen-volvida, v.g., nessa obra prima de poesia filosófica e impressionante epopeiaalegórica da racionalidade que é o Anticlaudianus (ed. R. Bossuat, Paris 1955);João de Meun no Romance da Rosa e Dante servem-se daquela obra de Alão de

17 DRONKE, P. ( ed.), A History of Twelfth- Century Western Philosophy , Cambridge New York1988.

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Lille18. Ali lemos (1236, 239) que esse «diuinus homo», humano na terra, divinono céu (iii astris) - também denominado `beatus homo' (IX 388) ou ainda 'novushomo' (VII 74) - criado pela Natura sem as debilidades da natureza humanadecaída está destinado a reinar a Terra numa nova Idade de Ouro. Após consultarRatio e Concordia, Natura resolve enviar Prudencia (a capacidade humana dasabedoria ou Phronesis, também chamada Sophia) para que solicite a Deus uniaalma para este honro novus. Num carro construído pelas sete artes liberais(Gramática, Lógica, Retórica, Aritmética, Música, Geometria e Astronomia),puxado pelos cinco sentidos e guiado pela Razão, Prudência remonta ao cosmosem cujas fronteiras do mais extremo universo abandona tudo excepto o sentidoda audição e, guiada pela rainha `puella poli' (vd. V 83 sg.), que lhe confere oconhecimento teológico, sobe à presença de Deus Pai que aquiesce ao seu pedido.É assim criado o Homem novo destinado a reinar após a derrota que, juntamentocom as Virtudes, há-de infligir ao exército dos Víciost9.

A primeira direcção por vir, pois, diz respeito à necessária e sempre urgentecontinuidade a dar ao e reforço do estabelecimento de edições o mais críticaspossíveis; só elas nos possibilitarão apurar com o rigor necessário o contributodo autor na sua época e anular definitivamente a proposta de Hudry. Neste sentido(e passamos à segunda ), haverá que apostar não no «ar de família» (dimensãoque apesar de tudo ainda dominou em algumas apresentações deste colóquio), masno discernimento da individualidade autoral . Só deste modo se conseguirá restituirsem encómios de iniciados a alegada universalidade do chamado Doutor Universal

Alão de Lille.

11 Como esclarecimento, refira- se apenas que o título bizarro, Aruiclaudinaus, pode traduzir apretensão de replicar ao poema de Claudiano (confundido com Cláudio Mamerto), In Ru/multi, cujapersonagem , justamente o aquitano Rufino, o todo poderoso ministro de Teodósio, protótipo damaldade diabólica , foi criada nos Vícios, sendo por isso o anti-tipo do lwnm noras (um Antirufinus)de Alão de Lille.

i< Que este brevíssimo resumo sirva para excitar um programa ou plano de versão portuguesado Anticlaudianus e, ao mesmo tempo, para lamentar a inexistência de qualquer estudo, no nosso oleio,sobre esse poema e/ou o seu vigoroso autor. Dele e do Anticlaudianus disse nos anos quarenta doséculo passado CURTIUS, E.R. (La littérature européenne ei le Movera Age Latiu 1, trad., Paris 1986,208) que «hoje em dia o Doctor Universalis não receberia o imprimatur da Igreja».

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