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Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar – modelo para pintura e caligrafia de livros manuscritos iluminados no século XVIII em Minas Gerais Márcia Almada Doutoranda – Universidade Federal de Minas Gerais A iluminação de livros ou manuscritos consiste na arte de adornar, por meio de pinturas de imagens, letras decoradas ou desenhos geométricos, em ouro e cores diver- sas, especialmente nas bordas da folha. A arte da iluminura desenvolveu-se durante o período medieval, e o próprio termo “manuscrito iluminado” indica a prática de ilumi- nar textos através do emprego de ouro e tintas brilhantes. Na maioria das sociedades setecentistas, era comum decorar documentos com caligrafia elaborada, grafismos fei- tos a pena e pinturas requintadas. Existem duas categorias de caligrafia: a cotidiana - dos escrivães, textos domésticos, estudantes e professores - e a elaborada, aquela cuja forma, a apresentação e a composição da escrita, mesclada a desenhos desenvolvidos a pena ou a pincel, tornam-se elemento de comunicação tanto quanto o texto escrito. Na Europa, a presença da tipografia não anulou a prática de produção de tex- tos manuscritos; pelo contrário, os manuais impressos contribuíram para o avanço e a propagação da arte da caligrafia em todo o mundo ocidental. Obras como The Universal Penman, de George Bickman, editada na Inglaterra em 1741, fizeram grande sucesso entre o público, ganhando diversas edições. Um manual comprovadamente utilizado por calígrafos e iluminuristas minei- ros foi Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar, de Manoel de Andrade Figueiredo, publicado em Lisboa, na tipografia de Bernardo da Costa de Carvalho, provavelmente em 1722 1 . Em Portugal, foi referência para obras posteriores, como 1 FIGUEIREDO, Manoel de Andrade. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar. Offerecida á Augusta Magestade do Senhor Dom João V. Rey de Portugal. Primeira Parte. Lisboa Occidental, na Officina de Bernardo da Costa de Carvalho, Impressor do Serenissimo Senhor Infante [1722]. Não há data na página de rosto da obra. As licenças do Santo Ofício, do Ordinário e do Paço são de 1719 e de 1722.

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Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar – modelo para pintura e caligrafia

de livros manuscritos iluminados no século XVIII em Minas Gerais

Márcia AlmadaDoutoranda – Universidade Federal de Minas Gerais

A iluminação de livros ou manuscritos consiste na arte de adornar, por meio de pinturas de imagens, letras decoradas ou desenhos geométricos, em ouro e cores diver-sas, especialmente nas bordas da folha. A arte da iluminura desenvolveu-se durante o período medieval, e o próprio termo “manuscrito iluminado” indica a prática de ilumi-nar textos através do emprego de ouro e tintas brilhantes. Na maioria das sociedades setecentistas, era comum decorar documentos com caligrafia elaborada, grafismos fei-tos a pena e pinturas requintadas. Existem duas categorias de caligrafia: a cotidiana - dos escrivães, textos domésticos, estudantes e professores - e a elaborada, aquela cuja forma, a apresentação e a composição da escrita, mesclada a desenhos desenvolvidos a pena ou a pincel, tornam-se elemento de comunicação tanto quanto o texto escrito.

Na Europa, a presença da tipografia não anulou a prática de produção de tex-tos manuscritos; pelo contrário, os manuais impressos contribuíram para o avanço e a propagação da arte da caligrafia em todo o mundo ocidental. Obras como The Universal Penman, de George Bickman, editada na Inglaterra em 1741, fizeram grande sucesso entre o público, ganhando diversas edições.

Um manual comprovadamente utilizado por calígrafos e iluminuristas minei-ros foi Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar, de Manoel de Andrade Figueiredo, publicado em Lisboa, na tipografia de Bernardo da Costa de Carvalho, provavelmente em 17221. Em Portugal, foi referência para obras posteriores, como

1 FIGUEIREDO, Manoel de Andrade. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar. Offerecida á Augusta Magestade do Senhor Dom João V. Rey de Portugal. Primeira Parte. Lisboa Occidental, na Officina de Bernardo da Costa de Carvalho, Impressor do Serenissimo Senhor Infante [1722]. Não há data na página de rosto da obra. As licenças do Santo Ofício, do Ordinário e do Paço são de 1719 e de 1722.

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Nova Arte de Escrever, de Antônio Jacinto de Araújo (1793), e Regras Metódicas, de Ventura da Silva (1803). Manoel de Figueiredo atingiu fama e reconhecimento, sendo seu nome lembrado por estudiosos de todas as áreas e épocas. Recentemen-te o designer português Dino dos Santos inspirou-se na obra Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar para criar uma nova letra, que nomeou Andrade, criando um elo entre a história da tipografia portuguesa e a tecnologia digital con-temporânea2.

Esta publicação serviu de inspiração a artistas mineiros que pintaram iluminu-ras e inscreveram letras belamente caligrafadas em diversos documentos, especial-mente nos livros de compromisso de irmandades durante todo o século XVIII3. Os Compromissos são os estatutos das agremiações leigas e, em geral, organizavam a vida social e religiosa das comunidades. Apresentam-se sob a forma de documentos manuscritos com caligrafia elaborada, encadernados com materiais nobres, geral-mente decorados com iluminuras coloridas, frontispícios4 com iconografia específica da devoção, capitulares5 e vinhetas� com ilustrações decorativas (FIG.1). A produção dos estatutos recebia tratamento de requinte na ornamentação e várias irmandades contratavam artistas renomados para sua execução,7 a exemplo de vários outros in-vestimentos privados na execução de bens artísticos. Como se sabe, as confrarias leigas eram grandes incentivadoras da produção artística e artesanal no Brasil colo-nial.8 O livro de compromisso era objeto de circulação restrita: somente os irmãos integrantes da Mesa Administrativa e as autoridades eclesiásticas responsáveis por sua aprovação tinham contato direto com ele. Ainda assim, mesmo entre irmandades mais pobres, percebe-se a preocupação com o embelezamento do documento com a organização visual da escrita, inserção de letras capitulares adornadas (ainda que em formas simples) e uso de materiais de boa qualidade. Um dos aspectos que se pode perceber através da análise deste objeto é o compartilhamento de ideais pelos

2 Cf. www.dstype.com.3 Com a identificação e classificação das letrascapitulares utilizadas nos documentos su-pracitados, constatamos que artistas que executaram trabalhos em Congonhas de Sabará, Bom Sucesso do Caeté, Santo Antônio do Rio Acima, Vila Real de Sabará, Vila Rica e Rio de Janeiro tiveram acesso à edição de Manoel de Andrade de Figueiredo. Destaca-se que a obra foi editada em 1722 e já em 1725 era utilizada em Minas Gerais como referência à decoração de manuscritos. Cf. ALMADA, Márcia. Livros manuscritos iluminados na era moderna: compromissos de irmandades mineiras. 4 Frontispício é a página de um livro na qual há estampa ou ilustração e se localiza à frente da página de rosto. Nos livros de compromisso, refere-se à pintura que apresenta o santo de devoção. 5 Capitular é a letra inicial do texto, colocada em destaque. Pode ser historiada, quando se refere a um fato ou descrição de cena; é ornamentada quando preenchida com elementos decorativos. � Vinhetas são elementos decorativos que finalizam uma passagem ou capítulo. 7 Cf. CAMPOS. Manoel da Costa Ataíde e a ilustração de livros confrariais. 8 Cf. ARAÚJO. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica Setecentista; CAMPOS. Varia História; RAMOS. Francisco Vieira Servas e o ofício da escultura na capi-tania das minas do ouro.

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diversos grupos sociais: tanto organizações de brancos quanto de negros investiam recursos na decoração de seus estatutos. A distinção da riqueza e da qualidade da ornamentação refere-se principalmente ao montante de recursos que a irmandade poderia pôr à disposição, independentemente do grupo ao qual estava vinculada.

Nos séculos XVII e XVIII, proliferam os impressos que relacionam os textos às imagens: missais, bíblias ilustradas, saltérios e livros de horas, popularizando a tradi-ção de ilustração gráfica. A imagem, que leva a possibilidades múltiplas de sentidos, apresenta-se como aspecto fundamental do discurso, pois a comunicação com o sagrado e o mistério apresentam-se possíveis pela subjetividade do entendimento. A imaginação e os valores incorporados pelo indivíduo e pela coletividade são essen-ciais na compreensão da mensagem. A imagem permite transformar em linguagem codificável os fenômenos de caráter transcendental. Segundo Cristina Ávila,9

ao traduzir em formas ou palavras coisas do mundo invisível – Milagres, Apa-rições, Morte e Ressurreição etc. – o artista é levado a conceber imagens que

9 ÁVILA. A palavra no espelho, p. 78.

FIGURA 1 – Termo de Abertura do Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica [1750]. Fonte: Arquivo da Paróquia do Pilar de Ouro Preto.

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traduzam um mundo de coisas não tácteis, tornando-as possíveis de serem imaginadas (quase palpáveis) para o homem comum.

Com a proibição da imprensa na América Portuguesa até 1808, os manuscritos eram um dos mecanismos de circulação de textos literários, poéticos, técnicos.10 A arte da caligrafia e da iluminação de livros está presente em Minas Gerais no sécu-lo XVIII. Cultivava-se a escrita como uma forma erudita de cultura, enquanto o desenho era uma possibilidade de comunicação para uma maioria de analfabetos textuais. A caligrafia se torna imagem em linhas que formam capitulares, vinhetas e inúmeros tipos de letras, conformando a mancha gráfica que privilegia a inserção dos elementos decorativos.

O planejamento visual da folha decorada assume função primordial no enten-dimento e compreensão da informação. Contudo, apresenta-se discreta ao leitor: raramente todos os detalhes do design são percebidos, mas, se o conjunto não é entendido, a decoração perde seu sentido. De uma forma geral, nos manuscritos adornados a organização espacial da mancha gráfica e das iluminuras configura um código visual que contribui para tornar a informação textual mais compreen-sível. Desde o século VII, surgem hierarquias dentro do texto, destacando-se as partes mais importantes, separando-se capítulos ou passagens específicas11. A permanência desta estrutura durante séculos indica o sucesso do planejamento visual da página e do livro como conceito, voltado para a compreensão e a ab-sorção da informação escrita e visual.

As letras capitulares em destaque surgiram lentamente no texto, visando a re-alçar o começo de uma passagem particular considerada significante. Posterior-mente, em certos casos toda a página era devotada à construção de um design que destacasse ou tornasse ímpar a letra inicial. A construção de textos em páginas com dimensões fora do usual, em formas que quebrassem a lógica da leitura oci-dental – em linhas, da esquerda para a direita –, e a inserção de elementos deco-rativos tornaram-se experimentações que, de certo modo, procuravam alinhar a informação do texto à informação visual, alterando o ritmo da leitura. Mas a linha permanece como elemento estrutural do texto e tem percorrido várias tradições; da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de cima para baixo ou em espiral, a linha facilita a compreensão da colocação seqüencial dos caracteres, privilegiando a interação da ordem e do significado.12

Entre os extremos de um texto sem quebras, característico dos primeiros co-dex, e de outro escondido por capitulares que ocupavam uma página inteira, as letras iniciais adornadas e as miniaturas foram paulatinamente sendo incorporadas

10 João Adolfo Hansen e Marcello Moreira têm desenvolvido estudos sobre textos de Gregó-rio de Matos Guerra e a cultura de circulação de manuscritos nos séculos XVI e XVII, sob o ponto de vista do valor da transmissão oral do conhecimento.11 Cf. ALEXANDER, Medieval illuminators and their methods of work e DIRINGER, The illu-minated book. 12 GOMBRICH, The sense of order, p. 14�.

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como prática comum, com o objetivo de dar ênfase, sugerir pontos de pausa, mar-car passagens no texto ou delimitar um espaço mental de repouso. Os elementos decorativos das cercaduras13 poderiam conter dicas para melhor compreensão do texto, mas freqüentemente serviam para identificar as páginas por meio de seus elementos gráficos. Eram recursos para evitar um efeito negativo do excesso de ordem e monotonia da página: a perda de atenção. Palavras idênticas, ou seqüên-cias de letras que se colocam ocasionalmente repetidas uma abaixo da outra por várias linhas em sucessão, poderiam resultar em uma configuração indesejável e desviar o olhar da seqüência correta. É o que acontecia freqüentemente com a re-produção manuscrita de textos, quando passagens inteiras tornavam-se ininteligí-veis, por omissão de linhas pelo calígrafo durante a cópia, confundido por linhas e letras exaustivamente semelhantes.

O design do livro manuscrito caminhou de uma concepção puramente textual para uma forma que agregava diferentes elementos, cuja função era proporcionar uma melhor compreensão e acessibilidade à informação. Se por um lado os elemen-tos decorativos da página eram considerados soluções práticas para os problemas da informação, por outro agregavam valor ao documento, que se tornava suporte para a prática artística, relacionando-se aos valores estéticos de um dado período. Os ele-mentos decorativos não são triviais. Manuscritos, seja livros, seja documentos, sem-pre foram itens de alto valor social. Representavam o poder do conhecimento e exi-giam o aporte de recursos financeiros e humanos custosos em sua produção. Eram considerados bens de prestígio e conferiam status a seus proprietários.

No embelezamento da letra que se torna ornamento, percebemos a expressão da exuberância do calígrafo, que mostra tanto o seu controle técnico, quanto sua criatividade na maestria nos movimentos regulares que desenham volutas, curvatu-ras, flores, pássaros, plumas. Manoel de Andrade de Figueiredo foi um grande mes-tre na arte da caligrafia. Nasceu na Capitania do Espírito Santo, foi aluno da Com-panhia de Jesus e exerceu suas atividades de poeta, educador e calígrafo na corte de Lisboa. Manoel de Andrade de Figueiredo estabelece um elo entre a arte da caligrafia, a poesia e a atividade de educador. É um homem das artes liberais e emprega suas habilidades para exaltação das virtudes do Rei e das qualidades do Reino de Portugal – considera sua obra o caminho para que todos saibam com perfeição a arte da escrita, com textos organizados harmonicamente, “para que as proezas de Sua Majestade Real a todos infundam a alma”14. Pela própria formação, concilia ideais humanísticos e religiosos. Entende que o ensino das letras consiste em fator fundamental para o progresso no futuro, tanto para as aplicações literárias quanto para as políticas, religiosas e mecânicas.

Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar foi publicada com objeti-vo didático, destinado a aprendizes e a escrivães experientes. É dividida em quatro tratados: o primeiro ensina o idioma português, com o objetivo de ler e escrever

13 Cercaduras ou bordaduras são as decorações que se encontram próximas às bordas do papel, emoldurando o texto. 14 FIGUEIREDO, M. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 3.

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perfeitamente; o segundo apresenta os diversos caracteres e tipos de letras que se usava com freqüência naquele momento; o terceiro fornece as regras da ortografia portuguesa; o quarto ensina as noções básicas de aritmética. Voltava-se à propa-gação, de forma simples, do conhecimento acumulado pelo autor, bem como à difusão de preceitos e concepções de sua época. O autor utiliza estilo coloquial e de fácil acesso, fugindo da linguagem erudita. Suas observações são pautadas no domínio absoluto da prática da caligrafia e do manejo dos instrumentos e materiais respectivos. Nas palavras introdutórias, Figueiredo apresenta sua obra como a pri-meira do gênero editada em Portugal, suprindo lacuna importante na difusão da caligrafia, da ortografia e da aritmética em manuais em língua portuguesa. Por suas características, deve ter-se tornado obra muito difundida em seu tempo, fazendo-se circular por todo o Reino de Portugal.

Nas apresentações da publicação encontramos diversas referências enaltece-doras à obra e ao autor. Nas palavras de Frei Lucas de Santa Catarina:15

Tão útil a obra, tão engenhosa a fábrica, e tão deleitável uma e outra, que se devia impor à imprensa (não desconhecendo a antiga indústria) que em lugar das de papel, admitisse as folhas, ou das palmas, em que se lhe adiantassem as coroas, ou dos cedros, em que se lhe eternizassem as estampas.

Nessa passagem, o eclesiástico demonstra admiração pelas habilidades de Fi-gueiredo para a escrita e a caligrafia. As alusões a materiais nobres (palmas e coro-as) e permanentes (cedro) projetam expectativas de vitória e de imortalidade ao autor. No trecho do poeta João Tavares Mascarenhas,1�

A mais pequena flor; de que se adorna;

Perpetua se divisa não durável,

De tal flor, por conseqüência certa

Fruto quase imortal deve esperar-te.

A obra de Figueiredo aproxima-se da eternidade tanto pela palavra, que é im-pressa, quanto pelas flores, apresentadas na forma de modelos decorativos, que se projetam para a imortalidade quando transpostas para o papel por diversos outros calígrafos.

No soneto de Francisco de Sousa de Almada17,

15 FIGUEIREDO, M. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 7-8. 1� FIGUEIREDO, M. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 15. Tradução livre do espanhol. 17 FIGUEIREDO, M. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 17.

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Jardim de frutos, Árvore de flores;

Onde o desejo em palmos dividido

O frutífero colhe entre o florido;

Acha o florente em frutos superiores;

Delicioso País de altos primores:

Em que a Pena dá glória ao sentido;

Porque assombrado fica o esclarecido

Sendo as sombras de uma Arte os resplendores.

Nova Escola te admire toda a idade,

Sendo em todos os tempos aplaudida

Tal Arte nas mais célebres memórias.

Pois produzir, é grande novidade:

Do jardim frutos, e das flores vida,

Das sombras luzes, e da Pena glórias.

A pena constitui instrumento do sentido, enquanto a forma das letras enobrece a palavra escrita. A beleza do discurso, escrita e suportes configura necessidade real e imprescindível ao deleite. A poesia barroca introduz o livro em exaltações de ami-gos e do próprio Manoel de Figueiredo, que assina dois poemas visuais (FIG. 2).

FIGURA 2 – Poema visual de Manoel de An-drade de Figueiredo. Fonte: FIGUEIREDO. Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar. Gravura n.19.

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Ao longo da obra, Manoel de Figueiredo apresenta, em 4� gravuras a buril, modelos de letras romanas, cursivas, grifas e antigas, ensinando como grafar cada uma, além de fornecer exercícios de caligrafia. Discorre sobre o uso de cada tipo de letra e sua função, de acordo com as características do documento. Apresenta quatro modelos diferentes de letras capitulares adornadas, das mais rebuscadas às mais simples. Fornece exemplos de vinhetas e cercaduras em florões, pássaros, animais, anjos e cavaleiros em desenhos figurativos ou caligráficos, compostos a partir do movimento da pena sobre o papel em riscos circulares entremeados. Dis-corre sobre as características dos suportes da escrita – principalmente o papel e o pergaminho – e fornece receitas de tintas para a escrita.

Na visão do autor, a letra consiste em um corpo com proporção, perfeito, igual nas alturas e nas distâncias. O fundamento principal de todas as letras consiste somente em uma linha reta e outra curva, podendo ser inclinada para a esquerda ou mais vertical, com curvas mais ovais ou em meio círculo. As capitulares e maiúsculas seguem regras de proporção e espessura. Para o curioso (escrivão), é difícil observar na prática essas regras, pela agilidade necessária ao seu ofício, acabando por criar vícios quase impos-síveis de ser corrigidos. Na arte da caligrafia, são necessários calígrafos bem educados e treinados. O aprendizado dos diversos tipos de letras depende do esforço inicial e da eficácia do método de ensino.

O papel é sutilmente marcado com pautas, regras, falsas regras e margens. Uti-liza-se o compasso, linhas e agulhas finas para fazer o enquadramento que determina a mancha da escrita (mancha tipográfica), posteriormente preenchido por linhas sim-ples, duplas ou decoradas. Marcadas as regras, risca-se a pauta sobre o papel ou pergaminho com lápis ou instrumento pontiagudo. Para garantir que o encontro entre as linhas fique junto ao risco da borda, utilizam-se incisões minúsculas no papel, feitas com uma agulha e dois pesos. Depois de marcadas as pautas, os furos são dis-farçados através do desgaste superficial do papel com o auxílio da pedra, em movi-mentos circulares suaves.18 Esse procedimento serve para os curiosos incluírem em um livro “impresso” (ou seja, já manuscrito) alguma folha ou observação extra, com a mesma letra e espaçamento entre linhas. A recomendação de Manoel de Figueire-do pode ser observada em vários livros de compromisso no qual foi necessária a in-serção de modificações no estatuto. Em geral, as intervenções tendem a respeitar a forma, a altura e a tipologia da letra original.

Nos casos dos livros de compromissos de irmandades, provavelmente a deco-ração a ser executada passaria pela aprovação de um esquema executivo prévio, com a especificação sobre o uso de folhas metálicas e de determinados pigmentos mais raros, como o azul ultramar, da mesma forma como acontecia com os contra-tos de execução de pintura em forros, escultura e talha.19 As exigências do contra-

18 FIGUEIREDO, M. Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, p. 35. 19 Cf. contratos estabelecidos entre Ataíde e a ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto para pintura de seis altares – CAMPOS. Manoel da Costa Ataíde: aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos, p. 187; ARAÚJO. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica setecentista.

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tante poderiam ser um dos meios de propagação de um estilo comum entre as irman-dades, que exigiriam a reprodução de modelos e padrões a partir de outros trabalhos já executados, a exemplo do que ocorria no período medieval. Se o artista prevê a repetição da mancha tipográfica, com a ocupação espacial regular de capitulares e texto, as folhas serão previamente marcadas com moldes. Tais procedimentos têm por objetivo principal a regularidade do conjunto escrito, criando tanto a fluidez da leitura, quanto o prazer visual diante da página. E, curioso, segundo o comentário de Manoel de Figueiredo, para que a letra manuscrita faça se parecer impressa.20

Identificação dos livros de Compromisso de irmandades mineiras realizados em padrões apresentados por Manoel de Andrade de Figueiredo

Referência diretas:

1. Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar das Congonhas de Sabará, 172521 - pictóricas e caligráficas

2. Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Matriz de Nossa Senhora do Pilar (Vila Rica), de 173522 esse e o anterior provavelmente foram realizados pelo mesmo artista (FIG. 3).

3. Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Caeté, de 174523 (FIG.4).

20 Acervo Arquivo Público Mineiro. 21 Acervo Arquivo Público Mineiro.22 Acervo Arquivo Eclesiástico da Paróquia do Pilar de Ouro Preto.23 Acervo Arquivo Público Mineiro.

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Referências indiretas:

1. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Vila Rica, executado em 1750.24

24 Acervo Arquivo Eclesiástico da Paróquia do Pilar de Ouro Preto.

FIGURA 3 – Capitular M do Compromisso da Irmandade de São Miguel e Almas da Matriz de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto) e modelo apresentado por Manoel de Andrade de Figueiredo. Fonte: Arquivo da Paróquia do Pilar de Ouro Preto e FIGUEIREDO. Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar, gravura n.41.

FIGURA 4 – Capitular C do Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Caeté e o modelo de Manoel de Andrade de Figueredo. Fonte: Acervo Arquivo Público Mineiro e FIGUEIREDO. Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar, gravura n.37.

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2. Compromisso da Irmandade do Rosário dos Pretos do Arraial de Santa Rita da freguesia de Santo Antônio do Rio Acima, na comarca de Sabará, realizado em 1784, por Francisco de Sales.25

3. Compromisso da Irmandade da Virgem Senhora do Rosário dos Pretos do Arraial do Morro Vermelho da Freguesia da Senhora do Bom Sucesso do Caeté, comarca de Sabará, realizado em 1790 por Francisco de Sales2� - este já é um exemplar do final do século XVIII e apresenta mudanças estilísticas na execução das caligrafias.

Referências a capitulares de clicheria impressas na edição:

1. Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Nossa Se-nhora do Pilar de Ouro Preto, 1738.27

Em 1979, padre Paulo Palú publicou na Revista Barroco28 um artigo a respeito da obra Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar em suas características físicas e textuais, descrevendo algumas gravuras e a estrutura dos capítulos. Identifi-cou algumas obras manuscritas que possivelmente teriam a influência deste manual: os Mapas Gerais dos Quintos, de autoria de João Gomes Baptista e os compromissos da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e da Ordem Terceira do Carmo de Mariana, ambas produzidas durante o século XVIII.

Existem exemplares desta publicação nas seguintes bibliotecas: Gabinete Portu-guês de Leitura do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Biblioteca do Santuário do Caraça, The British Library, Londres, Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Evora, Évora e na Biblioteca Nacional de Lisboa; esta última disponibiliza a obra digitalizada no site: <http: purl.pt/107/index-HTML/M_index.html>.

REFERÊNCIAS

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25 Acervo Museu Borba Gato, Sabará.2� Acervo Biblioteca Guita e José Mindlin.27 Acervo Arquivo Eclesiástico da Paróquia do Pilar de Ouro Preto.28 PALU, Pe. Lauro. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar (1722).

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