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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ O PRESENTE DE DAVID FOSTER WALLACE ANÁLISE E TRADUÇÃO DE “THE SOUL IS NOT A SMITHYCURITIBA 2012

O PRESENTE DE DAVID FOSTER WALLACE · realização, dentro do período de um ano, coincide com o meu primeiro ano de casada. Sou ... Por que estudar David Foster Wallace, esse estranho

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

O PRESENTE DE DAVID FOSTER WALLACE

ANÁLISE E TRADUÇÃO DE “THE SOUL IS NOT A SMITHY”

CURITIBA

2012

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SARA GRÜNHAGEN MARTINS

O PRESENTE DE DAVID FOSTER WALLACE

ANÁLISE E TRADUÇÃO DE “THE SOUL IS NOT A SMITHY”

Monografia apresentada à disciplina Orientação

Monográfica em Estudos da Tradução II, do Curso

de Letras da Universidade Federal do Paraná, co-

mo requisito parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Letras com habilitação em Português

e Inglês e ênfase nos Estudos da Tradução.

Orientador: Prof. Dr. Caetano Waldrigues Galindo.

CURITIBA

2012

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Para o Luiz Paulo, pela nossa doce vida a dois.

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AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa foi possível graças à ajuda de pessoas muito especiais. Primeiro que sua

realização, dentro do período de um ano, coincide com o meu primeiro ano de casada. Sou

muito grata, portanto, ao meu marido e melhor amigo Luiz Paulo, pelo incentivo, pelo apoio e

pela inspiração em todo esse processo. Por tudo o que temos aprendido juntos, obrigada!

Agradeço à minha mãe, que me ensinou a ler e escrever, e ao meu pai, que em todos

os aniversários de que me lembro me deu livros. Pelo exemplo, pela dedicação e pelo amor,

obrigada!

Minha gratidão ao meu orientador, professor Caetano Galindo. Sua leitura cuidadosa e

suas dicas preciosas foram imprescindíveis para o desenvolvimento desta pesquisa. Muitas

das soluções em trechos complicados da tradução não são minhas, e foi um privilégio apren-

der a ler/traduzir com o professor. Obrigada!

Agradeço à professora Luci Collin, por ser uma grande incentivadora da literatura e

por ter me apresentado a tantos autores da língua inglesa. Pelo incentivo, pelas palavras ami-

gas e pelos conselhos, obrigada!

Outros professores e colegas marcaram minha trajetória no curso de Letras da UFPR e

já comecei a sentir um pouco de saudades neste último semestre. Aos que fizeram parte dessa

caminhada, obrigada!

Agradeço, por fim, àqueles autores que se dedicaram a passar o presente da literatura

adiante, mesmo em condições nada propícias, mesmo com um público leitor mais do que li-

mitado. Ainda hoje há quem acredite na arte, e por esses corajosos que fingem no papel por

nós, obrigada!

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RESUMO

Esta pesquisa procura fazer uma breve análise da obra de David Foster Wallace, tomando

como ponto de partida o ensaio “E Unibus Pluram” para destacar algumas de suas principais

características e uma certa proposta do autor para a ficção, especialmente no que se refere à

recusa à ironia e à busca por sinceridade. As características destacadas servirão para embasar

a análise do conto “The soul is not a smithy”, para o qual se propõe uma tradução ao final do

trabalho. No processo de análise e tradução, a presente pesquisa apresenta ainda a ideia da

arte como aquela que entrega um presente, proposta por Lewis Hyde e reconhecida por David

Foster Wallace, e defende que a tradução de um autor como Wallace especialmente também

se insere no ciclo do presente artístico.

Palavras-chave: David Foster Wallace; ironia; sinceridade; Lewis Hyde; tradução.

ABSTRACT

This research aims to make a brief analysis of the work of David Foster Wallace, taking as a

point of departure the essay “E Unibus Pluram” in order to highlight some of its main charac-

teristics and a certain project for fiction by the author, especially with regard to the refusal of

irony and the search for sincerity. The highlighted characteristics will then serve as a basis to

the analysis of the short story “The soul is not a smithy”, to which a translation is presented at

the end of this work. In the process of analysis and translating, this research presents also the

idea of art as something that delivers a gift, proposed by Lewis Hyde and recognized by Da-

vid Foster Wallace, and suggests that the translation especially of an author such as Wallace is

also part of the artistic gift cycle.

Keywords: David Foster Wallace; irony; sincerity; Lewis Hyde; translation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 7

1. Por que estudar David Foster Wallace, esse estranho no ninho....................................... 9

2. “The soul is not a smithy”: um conto que tanto conta...................................................... 16

2.1 Um narrador sem nome e com muita história.......................................................... 16

2.2 Em busca da sinceridade.......................................................................................... 32

3. O presente da arte, o presente da tradução....................................................................... 44

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 48

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 53

ANEXO.................................................................................................................................. 56

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INTRODUÇÃO

Se de fato há algo de místico na literatura, talvez pelo seu próprio mistério não seja

possível ter certeza. Mas ela continua mexendo com seus leitores, continua incomodando, ora

por seus excessos, ora por seus silêncios. Ela continua deixando aquela sensação de que en-

trega algo que vale muito mais que o valor pago pelo livro, ou, melhor, que a moeda corrente

em casos assim não se aplica, que seu valor é incomensurável. Ela continua sendo um presen-

te, daqueles que não se espera receber, daqueles que quando recebidos provocam um desejo

de passá-lo adiante, porque aquilo é nosso e não é.

A ideia de presente, e da arte como um presente, parece deslocada na atual economia

em que praticamente tudo se transforma em mercadoria, mas também não é de todo estranha –

não é de hoje que os poetas confessam seu débito em relação à inspiração recebida como um

presente e passada adiante. Quer pela musa, quer pelos deuses, quer pela comunidade, o artis-

ta em geral não tem dificuldade em afirmar que recebeu algo, que é trabalhado para então se

transformar em um novo presente assim que é entregue. Nesse sentido, o presente é do artista

e não é. E nesse ciclo do presente surge mais uma figura: a do tradutor, esse leitor ambicioso

que recebe o presente e, apropriando-se dele, também quer passá-lo adiante. Pois, novamente,

o presente é do tradutor e não é.

Foi essa ambição de leitora encantada com o presente recebido o gérmen desta pesqui-

sa. O que me moveu foi um desejo pessoal por entender Wallace, traduzindo-o. Ou por tradu-

zi-lo, entendendo-o. E meu desejo é passar esse presente adiante, ainda que com a sensação de

que talvez eu não esteja à altura da tarefa (e do presente!).

Esta pesquisa, portanto, apresenta um pouco da minha caminhada com Wallace nessa

busca por compreendê-lo, partindo do conto “The soul is not a smithy”. No primeiro capítulo,

faço uma introdução do autor, sua obra, seu pensamento, sua importância. Depois, parto para

uma análise do conto escolhido, destacando principalmente o papel do narrador e a forma

como a narrativa é construída, além de algumas das temáticas que chamam atenção e são re-

correntes na obra do autor. O terceiro capítulo tratará mais especificamente sobre o presente

da arte e o presente da tradução, procurando demonstrar que ambos os presentes se aplicam

no caso de um autor como Wallace. As considerações finais, por fim, retomarão alguns aspec-

tos da discussão feita no decorrer da pesquisa e também servirão como introdução à tradução

do conto, apresentada como anexo, destacando algumas das dificuldades e justificando certas

escolhas. Para a análise de alguns trechos do conto, optei por citar o original em inglês, de

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maneira a facilitar a busca pela referência e a evitar quaisquer confusões que a tradução pro-

posta ao final poderia gerar.

A leitura de “The soul is not a smithy” revela que as possibilidades de análise são mui-

tas; só de personagens, temos mais de 50! Não será possível, portanto, esgotar essa análise na

presente pesquisa, e seria até pretensão desejar isso, na medida em que cada leitura caracteriza

uma nova construção e que cada olhar pode trazer novas possibilidades ao texto. Além disso,

acredito que a ideia de esgotar a análise é tão ingênua quanto a de esgotar as possibilidades de

tradução. Mas nem por isso a análise precisa ser superficial, e a tradução, uma traição neces-

sária – mesmo que limitadas na sua expressão, como o é qualquer comunicação pela lingua-

gem. As ressalvas, porém, são importantes para destacar a perspectiva que orientou tanto a

análise quanto a tradução do conto: em ambos os casos estou fazendo uma leitura, uma leitura

entre muitas possíveis. Sendo assim, a análise das características destacadas aqui não se pre-

tende universal no que concerne à obra de Wallace, nem a um novo tipo de literatura (ou a

uma nova tendência literária) do qual Wallace é uma das principais figuras. A minha preten-

são aqui é destacar alguns dos aspectos que fazem esse conto especificamente merecedor de

tradução e, portanto, de leitura. E, mais ainda, minha pretensão é que essa leitura/tradução

apresentada seja capaz de transmitir o presente que enxergo em Wallace, o presente que rece-

bo deste mistério encantador que é a literatura.

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1. Por que estudar David Foster Wallace, esse estranho no ninho

David Foster Wallace, também conhecido como DFW e em alguns momentos assim

chamado na presente pesquisa, é um autor que vem incomodando há algum tempo o que se

poderia chamar de meio literário. Nestes tempos em que nada parece novo, ou tudo que é no-

vo parece velho, o destaque que esse autor recebeu foi impressionante. Nos EUA especial-

mente, passou-se a falar em uma nova geração, uma nova proposta, uma nova ficção, um no-

vo realismo, uma nova sinceridade1. Influenciado por escritores como Thomas Pynchon e

Don DeLillo, Wallace é muitas vezes colocado ao lado deles, e o próprio já passou a ser con-

siderado uma influência para outros jovens escritores, como Dave Eggers e Jonathan Safran

Foer2. Sua fama veio realmente com a publicação de “Infinite Jest”, em 1996, um livro que

com suas mil e tantas páginas retrata uma sociedade (em um futuro próximo, provavelmente

2009) afogada em vícios, inclusive e principalmente no vício do entretenimento. Em “Infinite

Jest”, abundam personagens, histórias e notas de rodapé. Também chama a atenção a forma

como as narrativas são construídas, em que, nas palavras do crítico James Wood, o “persona-

gem é tudo”3; em discurso indireto livre, exploram-se as linguagens dos próprios personagens

retratados, e isso resulta em uma profusão de gírias, termos técnicos, vocabulário farmacoló-

gico, esportivo, cinematográfico e por aí vai. O recurso do discurso indireto livre é muito uti-

lizado e, por que não, aprofundado por Wallace. Nesta pesquisa procurarei demonstrar um

pouco desse aspecto no conto estudado, mas cabe ressaltar que se trata de algo recorrente em

seus livros, um elemento que certamente merece mais atenção e mais, muitos, futuros estudos.

Mas voltemos à apresentação do autor, que deve servir para esclarecer por que a ideia

de novidade, essa coisa tão estranha em literatura no século XXI, parece se aplicar a Wallace,

e só por isso já teríamos uma boa justificava para estudá-lo. Antes, porém, é importante uma

ressalva sobre o elefante branco que naturalmente surge quando o assunto David Foster Wal-

lace vem à tona. “O maior e o mais desavergonhado dos humanistas da literatura contemporâ-

nea”4 suicidou-se em 2008, deixando confusa e assustada uma legião de fãs. Uma pesquisa

simples no Google vai mostrar que a maioria dos artigos que tratam do autor – de blogs pes-

soais a jornais conhecidos, como The New York Times – faz alguma menção a isso, recorren-

1 É interessante a análise que Charles Foran faz dessa nova geração, tratando, principalmente, de Wallace, Jona-

than Franzen, Rick Moody e Jonathan Lethem (FORAN, 3/07). 2 WEBER, 14/9/08.

3 WOOD, 2008, p. 34. Esta e outras citações são traduções minhas, mas as referências remetem ao original em

inglês. 4 GALINDO, 5/4/11.

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do à malfadada comparação entre esse triste acontecimento e algum aspecto da obra de Wal-

lace. Talvez seja natural essa busca por tentar entender o que levaria Wallace a desistir da

vida, sendo ele um autor que tanto ambicionou em termos de buscar valorizar o outro, o hu-

mano, em termos de ser sincero, de combater a ironia. Mas tirar conclusões a esse respeito,

como se fosse possível, de fato, demonstrar que sua obra já previa algo assim, parece um tanto

problemático. Wallace repudiou esse tipo específico de comparação5, e por mais tentador que

seja fazer relações dessa natureza, não nos cabe recorrer a esse procedimento aqui. O conto

traduzido revela uma melancolia, uma tristeza própria6, e isso poderia favorecer uma relação

com a biografia do autor7, mas não vou levar adiante uma tal leitura e me limito a esta ressal-

va aqui. “Que a obra de Wallace se sustente e seja lida por si própria”8.

E essa obra não foi assim tão grande em termos de quantidade de livros publicados.

Mas foi o suficiente para chamar bastante atenção, principalmente depois do catatau que é

“Infinite Jest”. Antes dele, Wallace já havia publicado o romance “The Broom of the System”

(1987). O livro teve alguma repercussão na época em que foi lançado, o que não aconteceu

novamente com “Girl with Curious Hair” (1989), sua primeira coleção de contos publicada.

Na década seguinte veio “Infinite Jest”, culminando no reconhecimento do autor por uma

parcela bem maior de leitores, especialmente norte-americanos. Em 1999, saiu “Brief inter-

views with hideous men”, o único livro de Wallace com tradução publicada no Brasil até ago-

ra, pela Companhia das Letras9. Essa coletânea de contos foi em geral muito bem recebida

pela crítica, consagrando Wallace não só como um romancista primoroso, mas também como

um grande contista.

Em 2004 temos o último livro de ficção publicado enquanto Wallace ainda estava vi-

vo: “Oblivion”. O título tem oito contos, entre os quais “The soul is not a smithy”. O conto

“Incarnations of burned children” já tem uma tradução em português publicada por Galindo10

,

que também disponibilizou na internet sua tradução de “Philosophy and the mirror of na-

5 Sua resenha sobre a biografia de Borges talvez seja o melhor exemplo desse repúdio de Wallace à postura de

colocar o autor em um “divã” e tirar conclusões sobre ele com base em sua ficção (WALLACE, 7/11/04). 6 Fui buscar essa ideia em um artigo publicado por Galindo (2008), que por sua vez recorreu ao texto de Charles

Foran previamente citado. 7 No final de agosto de 2012, foi lançada a biografia de Wallace feita por D. T. Max: “Every Love Story is a

Ghost Story: A Life of David Foster Wallace”, em que, segundo Michiko Kakutani, o biógrafo faz uma “busca

pelas cinzas de uma vida destruída” (KAKUTANI, 22/8/12). Como o lançamento do livro foi muito recente, não

foi possível aproveitá-lo nesta monografia, nem aprofundar a relação vida e obra do autor, feita na biografia. 8 GALINDO, 2008, p. 126.

9 E ao menos em uma nota tenho de expressar minha gratidão por ser orientada pelo tradutor dos próximos ro-

mances de Wallace a serem publicados no Brasil: “Infinite Jest” e “The Pale King”, também pela Companhia das

Letras. Que privilégio! 10

GALINDO, 2008, p. 135-7.

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ture”11

. O restante, porém, permanece inédito no Brasil12

. “Oblivion” foi considerado um “Li-

vro Notável do Ano” na seção Book Review de The New York Times, ganhou muitas resenhas

em diversos outros jornais e sites dedicados à literatura e em geral foi muito bem recebido.

Não que não tenha havido uma boa leva de críticas negativas também – e isso em cada uma

das publicações do autor –, que acabam por revelar uma desconfiança em relação a autores

contemporâneos. E no caso de Wallace especialmente, temos um autor que choca, a começar

por trazer para a ficção linguagens nada “cultas”, enredos e personagens provocativos, narra-

tivas não necessariamente lineares. “The Suffering Channel”, por exemplo, o último e mais

longo conto de “Oblivion”, começa com um “But they’re shit” e apresenta as peripécias de

jornalistas (especialmente as do responsável pelo artigo sobre um homem que faz cocô “artis-

ticamente”) de uma revista de moda sediada no falecido World Trade Center. A crítica Mi-

chiko Kakutani, por exemplo, não poupou adjetivos ao descrever a repulsa que sentiu lendo

tal conto:

É algo doente, e o Sr. Wallace não mediu esforços em tornar as coisas ainda

mais doentes ao ficar aludindo repetidamente aos ataques terroristas de 11 de

setembro, nos lembrando que este e aquele personagem tinha “10 semanas

de vida”, ou se referindo à “tragédia que faria com que a Style entrasse para

a história dali a dois meses”. O resultado não é humor negro, mas uma histó-

ria que consegue ser ao mesmo tempo extremamente imatura e moralmente

repugnante.13

Talvez Michiko Kakutani não seja o melhor exemplo quando se trata de crítica literá-

ria14

, mas sua postura exemplifica bem o ardor das discussões em torno de Wallace, que vai

dos fãs e suas defesas acaloradas (não são poucos os blogs e as postagens sobre Wallace na

internet) aos resenhistas e suas críticas ora mais, ora menos revoltadas, com trocadilhos do

tipo “chatice infinita”, “incompreensão sem fim”, “mente infinitamente limitada” etc. Mesmo

assim, Wallace é muitas vezes citado como ícone de uma geração com uma “nova”, ou dife-

rente, proposta.

11

GALINDO, 26/9/05. 12

Inédito em termos de publicação em livro; há um blog particular disponibilizando traduções para o português

de “Oblivion”, e a ideia parece ser traduzir o livro todo. Até o término desta monografia, dois contos haviam

sido postados: “Encarnações de Crianças Queimadas” e “Bom e Velho Neon” (SOUZA, 16/8/12). 13

KAKUTANI, 1/6/04. 14

Vale lembrar que, entre outros insatisfeitos com as resenhas ferozes de Michiko, o escritor Jonathan Franzen

foi curto e grosso ao expressar sua própria repulsa à atitude recorrente dela, chamando-a de “a pessoa mais estú-

pida de Nova Iorque” (YABROFF, 26/8/10). Além de anedóticas, essas discussões são interessantes pelo menos

porque têm o potencial de gerar curiosidade suficiente nos leitores de periódicos como The New York Times a

ponto de levá-los a ler os autores e tomar partido (ou não). Nesse sentido, briga sobre literatura parece ser uma

coisa boa!

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Mas o que poderia haver de novo ou diferente na obra de Wallace? Ou na literatura de

qualquer autor “pós-moderno”? Como argumenta Adam Kelly, é consenso geral, é quase um

clichê que o ponto crucial da obra – e da vida – de Wallace é a busca pela sinceridade15

. E

falar em sinceridade é algo um tanto quanto complicado, a começar pela dificuldade que surge

quando se pensa em uma definição. Adam Kelly aprofunda esse problema de definição reto-

mando o crítico Lionel Trilling e a diferenciação que este faz entre sinceridade e autenticida-

de; a primeira tem que ver com a intersubjetividade, privilegiando a comunicação com o ou-

tro, enquanto a segunda estaria mais voltada à expressão interior, pessoal. A sinceridade então

corresponderia à harmonia entre um sentimento verdadeiro e sua expressão, tão desejada no

humanismo renascentista. Já a autenticidade seria a forma preferida pelos modernistas, preo-

cupados mais em expressar o que sentiam do que com a recepção daquela expressão.16

Talvez

as fronteiras entre sinceridade e autenticidade não sejam assim tão definidas, mas essa noção

de sinceridade como algo que envolve uma preocupação com o interlocutor/ouvinte/leitor

parece válida. O problema é que essa preocupação acaba culminando em uma manipulação

no sentido de procurar causar no leitor, por exemplo, o efeito desejado, de fazer com que o

leitor entenda que aquilo que está sendo dito é algo sincero. É inevitável! E Wallace sabia

disso, como aponta Kelly:

Em uma entrevista, ele [Wallace] faz um contraste entre “uma transação ar-

tística, que na minha opinião envolve um presente” e “uma transação eco-

nômica, que eu considero algo frio” (Entrevista, Bookworm, 2000). No en-

tanto, Wallace também admite que nenhum presente artístico pode existir

sem economia, e colocou isso em termos de sinceridade: “Há, na escrita,

uma certa mistura de sinceridade e manipulação, de sempre tentar medir o

efeito específico que algo vai ter” (citado em Lipsky).17

Em outras palavras, a sinceridade é praticamente impossível. E talvez o que Wallace e

outros tenham feito para procurar torná-la minimamente possível foi tentar somar autenticida-

de e sinceridade. A busca pela sinceridade permanece, mas há também uma preocupação ex-

pressa sobre como, por que, quando expressar essa sinceridade. Essa soma, portanto, tem que

ver com uma autoconsciência que é bem característica do pós-modernismo:

O que havia de mais interessante no pós-modernismo é que foi o primeiro

texto altamente autoconsciente, autoconsciente de si mesmo como texto, au-

toconsciente do escritor como persona, autoconsciente dos efeitos que a nar-

15

KELLY, 2010, p. 131. 16

Id., p. 132. 17

Id., p. 140.

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rativa provocava nos leitores e do fato de que os leitores provavelmente sa-

biam disso.18

Mas a autoconsciência não dá conta da sinceridade necessariamente. Ela pode ser só

mais um meio de forjar sinceridade. E talvez de fato a sinceridade, como é comumente enten-

dida, não seja possível; afinal, quem consegue saber realmente o que o outro quer (dizer?)

mesmo quando diz o que quer? É a ideia do presente, na citação de Wallace. Nem que seja

para deixar o outro feliz, o presente (artístico ou não), a comunicação, infere e antecipa uma

reação, uma resposta. Essa ideia de troca é típica das relações humanas, e não há novidade

nisso. Onde está o problema, portanto, e por que essa tentativa de voltar à sinceridade? Que

ingênuo...

Talvez o maior empecilho ao tratar de sinceridade seja justamente ter de lidar com a

reação de recusa (quase) inevitável quando um tema assim surge hoje em dia: “um bocejo, um

virar de olhos, um sorrisinho indiferente, uma cutucada de ‘fala sério’, uma paródia de ironis-

tas talentosos, um ‘ai, que banal’”19

. O mundo é da ironia, do duplo sentido, do entender a

piada e não falar mais sobre isso. E nesse mundo a sinceridade está ultrapassada, é desneces-

sária. Wallace enxerga nisso um problema porque a ironia muitas vezes é usada como um

meio de se eximir de críticas, de ter a palavra final. Antes um recurso que denunciava hipocri-

sia, a ironia perdeu qualquer função de demonstrar incoerências, impondo-se como a única

voz aceitável.

Em seu ensaio “E Unibus Pluram”20

, Wallace identifica esse prestígio da ironia na

relação que a sociedade passou a ter com o universo televisivo. A ideia de falar uma coisa e

mostrar/revelar outra, a base da ironia, é um grande mérito da televisão e foi importante em

termos de denúncia quando, no exemplo de Wallace, em certa entrevista em 1974 um empre-

sário da United Fruit, uma companhia que comercializava frutas de países do terceiro mundo

(especialmente bananas), diz que não conhecia ninguém que era oprimido e que isso não pas-

sava de invenção jornalística, fala esta que é intercalada com imagens de crianças em favelas

da Guatemala e representantes sindicais assassinados21

. A ironia era grande demais para não

ser notada, e a TV, graças a revelações desse tipo, passou a ser vista como aquela que mostra-

va a realidade por trás das coisas. O problema é que a ironia é tão viciante quanto a própria

18

WALLACE apud KELLY, 2010, p. 134. 19

WALLACE, 1997, p. 81. 20

Há dois livros de ensaios do autor publicados: “A supposedly fun thing I’ll never do again” (WALLACE,

1997), no qual consta “E Unibus Pluram”, e “Consider the lobster” (WALLACE, 2005). Uma seleção de ensaios

desses dois livros está prevista para o segundo semestre de 2012 no Brasil, pela Companhia das Letras, com

tradução de Daniel Pellizzari e Daniel Galera. O ensaio abordado aqui infelizmente não estará na antologia. 21

WALLACE, 1997, p. 35-6.

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televisão, tornando-se um fim em si mesma. Usada em comerciais, seriados, reportagens, en-

fim, em praticamente todos os tipos de programas que a televisão oferece, a ironia faz com

que qualquer nova crítica pareça ultrapassada, inconveniente, já que supostamente uma auto-

crítica já foi feita. Tudo é passível de ironia (até a ironia), mas como fugir desse círculo vicio-

so? Por que fugir? Wallace enfatiza que o grande problema da TV – e da ironia da TV – é que

em geral as pessoas gastam muito tempo diante dessa peça de mobília22

, e o que absorvem

certamente influencia a forma como enxergam o mundo, os outros e a si mesmos. Wallace

argumenta que, com a TV, a principal referência em comum da sociedade passou a ser a mí-

dia23

. Trata-se de uma mudança e tanto. E essa mudança, naturalmente, influenciou a ficção,

como demonstra Wallace em seu longo ensaio. Mas a pergunta volta: por que a ironia é um

problema?

O que incomoda Wallace, o que move toda sua diatribe contra este modo es-

pecífico da ironia não é, no entanto, sua existência, mas o fato de que ela,

por sua mesma existência, parece acarretar uma postura ética de uma deter-

minada natureza. Não mais instrumento (lembre-se aquela afirmação: a lite-

ratura havia muito se exercitava nos campos da ironia), ela agora se trans-

forma em uma imposição e, daí, em uma ferramenta que não apenas delimita

leituras mas, diretamente, limita leituras e, no extremo, impossibilita contes-

tações. [...] Nas palavras de Lewis Hyde, citado no mesmo ensaio de Walla-

ce, a ironia tende efetivamente a se transformar no canto do prisioneiro que

passou a gostar das grades da prisão.24

É dessa imposição da ironia, portanto, que Wallace quer fugir. Dessa postura de deli-

mitação de leitura (e escritura) que a ironia impõe. E o final do ensaio é promissor no sentido

de revelar a alternativa que o autor acredita ser possível para uma literatura não irônica: a sin-

ceridade, de que falávamos antes. Para ele, essa sinceridade pode ser inclusive uma manifes-

tação rebelde contra os rebeldes da ironia:

Os próximos “rebeldes” literários deste país podem muito bem aparecer co-

mo um bando esquisito de antirrebeldes, observadores natos que de alguma

maneira ousam se afastar da observação irônica [...] Que tratam de proble-

mas e sentimentos humanos óbvios, antigos e fora de moda com reverência e

convicção. [...] Estes antirrebeldes estariam ultrapassados, sem dúvida, antes

mesmo de começarem. Mortos no papel. Sinceros demais. Certamente re-

22

Apesar de este ensaio ser datado – escrito em 1990 e publicado em 1993 e 1997 –, falo no presente porque

esse é o tempo verbal do texto original. Talvez, porém, a discussão não seja tão datada assim, e a situação não

tenha mudado tanto de lá pra cá, e dos EUA para o Brasil. A internet é agora a grande mídia, mas a ironia ainda é

muito utilizada. Acredito, assim, que a discussão sobre a ironia permanece pertinente e, por que não, atual. 23

WALLACE, 1997, p. 42. 24

GALINDO, 2008, p. 128.

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primidos. Retrógrados, excêntricos, ingênuos, anacrônicos. Talvez seja essa

a questão. Talvez seja por isso que eles se tornem os próximos rebeldes.25

Wallace praticamente antecipou as críticas que ele mesmo, entre os “jovens escritores”

de que tanto fala em seu ensaio26

, receberia. Quando criticam o uso que ele faz do indireto

livre, com personagens que têm mais voz do que o narrador, quando reclamam que o autor

conta demais, revela demais, insiste demais, James Wood e Michiko Kakutani, com mais ou

menos ardor na crítica, fazem o que Wallace previu. Partem de uma outra perspectiva, aquela

que já está acostumada com a ironia e que a deseja, para criticar uma sinceridade que incomo-

da. Partindo do mesmo conto “The suffering channel”, Wood27

e Kakutani28

revelam seu in-

cômodo com 1) a linguagem obscena/exagerada, 2) a tensão máxima que é criada, 3) a supos-

ta tautologia/redundância presente e 4) o elemento paródico do conto. Wood cunhou a expres-

são “realismo histérico”, inicialmente aplicada à escritora Zadie Smith, para descrever esse

tipo de literatura, com a qual não consegue simpatizar. Wood fala em um “medo do silêncio”

do tal realismo histérico, medo este que seria o culpado pelo excesso de personagens e histó-

rias e pela velocidade da narrativa.29

Nessa recusa por algo diferente do realismo de Flaubert, analisado e louvado em “How

fiction works”, Wood especialmente deixa de notar a genialidade wallaciana no próprio uso

daquele recurso de que tanto gosta: o indireto livre. Como pretendo aprofundar no próximo

capítulo, a construção da narrativa é bastante complexa e até inovadora em Wallace. Mais

ainda, vai ao encontro daquilo que o autor defendia e almejava: uma sinceridade em oposição

à ironia ditadora. O personagem é tudo por um motivo, assim como a chamada tautologia tem

uma razão de ser. Nesse sentido, avaliar o autor segundo os moldes do conhecido, do reco-

nhecível, do que já se tornou cânone não parece ser a melhor opção. E mesmo no campo do

conhecido, a exemplo do uso do indireto livre, Wallace ganha destaque. Partir da proposta do

autor para perceber como ela se apresenta em sua obra parece, portanto, ser uma opção mais

viável, e é com essa perspectiva que a análise do conto será feita.

25

WALLACE, 1997, p. 81. 26

E o uso do pronome “nós”, em “E Unibus Pluram”, é bem importante. Wallace coloca-se não só como parte

dessa geração de “rebeldes”, mas também entre aqueles que não podem negar (e não precisam) a influência que

sofreram da televisão. McLaughlin (2008, p. 112) contrasta essa atitude com a de Jonathan Franzen, que geral-

mente se considera acima disso. Comparações entre Franzen e Wallace têm sido feitas já há algum tempo, e não

raro os dois são vistos como rivais e opostos em sua literatura. Ao menos no que se refere à perspectiva da tele-

visão com um dos maiores desafios para a relevância da ficção contemporânea na sociedade atual os dois con-

cordam, cada um com suas alternativas. 27

WOOD, 2008, p. 30-3. 28

KAKUTANI, 1/6/04. 29

WOOD, 6/10/01.

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16

2. “The soul is not a smithy”: um conto que tanto conta

2.1 Um narrador sem nome e com muita história

Antes de percorrer a trajetória narrativa do conto, aprofundando suas temáticas e veri-

ficando em que medida elas correspondem à proposta de Wallace para a ficção, vou destacar

dois elementos essenciais na construção dessa narrativa: o narrador e o discurso indireto livre

– não necessariamente nessa ordem, não necessariamente separados. A importância do narra-

dor em “The soul is not a smithy” está não na sua onisciência – que é questionada no decorrer

do conto –, mas no fato de ele dar voz a seus próprios personagens e, de forma elaborada, a si

mesmo quando criança. É o discurso indireto livre que permite essa mistura ou interferência

de vozes, e para podermos verificar como isso se dá na narrativa uma breve definição é apre-

sentada a seguir.

Em “How Fiction Works”, o crítico James Wood discute o uso deste recurso que con-

sidera elementar e característico de uma literatura que funcione: o discurso indireto livre, ou

DIL. Trata-se de um recurso muito rico que foi bastante utilizado e aprofundado especialmen-

te nos séculos XIX e XX. Dostoiévski, Flaubert e Joyce são grandes exemplos de autores que

usaram, reinventaram e inovaram apropriando-se de – e (re)criando – tal recurso, a seu tempo

e a seu modo30

. Não há dúvida de que todos são geniais e únicos em suas particularidades na

utilização desse e de outros recursos. No caso de Wallace, porém, tratando-se de um autor

relativamente novo, cabe demonstrar, dentro dos limites desta pesquisa, por que ele pode en-

trar nessa lista e o que o diferencia. Para tanto, já na tentativa de apresentar uma definição

para esse tipo de discurso, vou recorrer a exemplos do próprio conto sendo estudado.

Segundo Wood, o discurso indireto livre permite que se tire a “bandeira de autor” de

um discurso ou pensamento sendo representado, e isso resulta em uma grande contribuição

para a narrativa em termos de flexibilidade. É como se o tom de autoridade autoral da narrati-

va se diluísse, incorporando o discurso, o jeito, as características do próprio personagem. Esse

tipo de discurso apresenta-se também de outras formas, a exemplo do fluxo de consciência,

tão característico do modernismo, e até dos solilóquios, comuns em romances dos séculos

XVIII e XIX31

.

30

Tais autores são alguns exemplos entre muitos outros que fizeram uso deste recurso, e podemos lembrar ainda

de Jane Austen, Henry James e, no Brasil, Graciliano Ramos. Seus nomes, porém, foram destacados aqui especi-

almente porque as obras usadas nesta pesquisa para apresentar o indireto livre partem de tais autores em sua

análise (Dostoiévski é analisado por Bakhtin e Volochínov, e Flaubert e James Joyce, por Wood). 31

WOOD, 2008, p. 9.

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17

Porém, conforme argumenta Volochínov, o DIL não é simplesmente um discurso indi-

reto com apropriação das palavras do personagem, do vocabulário, do estilo, do tom que lhe

seriam característicos, nem é uma mistura de discurso indireto e discurso direto. É, antes, um

recurso que revela “uma tendência completamente nova, positiva, na apreensão ativa da enun-

ciação de outrem, de uma orientação particular da interação do discurso narrativo e do discur-

so citado”32

. Sua riqueza está justamente na forma como é construído, sem se delimitar de

quem é o discurso. Conforme destaca Volochínov, “o que faz dela uma forma específica é o

fato de o herói e o autor exprimirem-se conjuntamente, de, nos limites de uma mesma e única

construção, ouvirem-se ressoar as entoações de duas vozes diferentes”33

. Temos com isso a

interferência de vozes, de discursos:

Cada palavra dessa narrativa pertence simultaneamente, do ponto de vista da

sua expressividade, da sua tonalidade emocional, do seu relevo na frase, a

dois contextos que se entrecruzam, a dois discursos: o discurso do autor-

narrador [...] e o da personagem34

.

No discurso indireto livre, portanto, as palavras são, ao mesmo tempo, do narra-

dor/autor e do personagem/herói. E a princípio isso pode gerar confusão, pois, segundo Volo-

chínov, estamos tratando de um fenômeno extralinguístico. Isso porque “do ponto de vista

estritamente gramatical, trata-se do discurso do autor; conforme o sentido, é o do herói. Mas

esse ‘conforme o sentido’ não é representado por nenhum signo linguístico particular”35

. Tal

ideia reforça, portanto, a noção de que a voz autoral se dilui, encontrando-se e muitas vezes

confundindo-se com a voz do personagem. Sendo assim, segundo Wood, é quando está prati-

camente invisível ou inaudível que o discurso indireto livre realmente faz efeito, realmente

funciona na narrativa.36

Vejamos como isso acontece no e a partir do conto:

We have already seen that the puppy was only one year old; the father had

brought him home from the A.S.P.C.A. as a surprise on the previous Good

Friday, and had allowed Ruth to bring Cuffie along to Easter services at St.

32

VOLOCHÍNOV, 1995, p. 175 (grifos do original). Como a análise dos textos bakhtinianos não é o foco desta

pesquisa, não vou me deter para além desta nota no problema da autoria de “Marxismo e filosofia da lingua-

gem”, geralmente atribuída a Bakhtin. Cito Volochínov como autor desse texto tendo como referência a discus-

são sobre o tema feita por Carlos Alberto Faraco (2003). Cabe ainda ressaltar que Volochínov está fazendo uma

análise histórica das formas da enunciação nas construções sintáticas, apresentando primeiro o discurso indireto,

o discurso direto e suas variantes para então analisar o discurso indireto livre em francês, alemão e russo, e é

nesse contexto que ele introduz tal recurso como “uma tendência completamente nova”. 33

Id., p. 177. 34

Id., p. 169. 35

Id., p. 178 36

WOOD, 2008, p. 10.

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Anthony’s Catholic Church (they were Roman Catholics, as poor people in

Columbus often were) in a small wicker basket covered with a checkered

cloth from which only the dog’s wet, inquisitive little nose had shown, and

he had been every bit as quiet as Ruth’s mother had said he better be or else

they were all going to have to get up and leave even if it was right in the

middle of the services, which for Roman Catholics would have been a terri-

ble sin.37

Antes de analisar o exemplo em si, cabe fazer uma retomada do contexto. Aqui o nar-

rador está contando uma parte da história que ele mesmo criou quando era criança, no fatídico

dia do trauma na sala de Educação Cívica. Segundo o narrador, essas invenções de história

eram frequentes; distraindo-se, ele voltava sua atenção para a tela cheia de quadrados que

cobria a janela da sala e a partir de algum elemento (como um cachorro que surgia na paisa-

gem) ele inventava toda uma história, com novos personagens e novas aventuras, e os quadra-

dos funcionavam como os quadros de histórias em quadrinhos. Temos no conto, portanto,

uma história dentro de outra história. A essa altura da segunda história já sabemos que o ca-

chorrinho de Ruth fugiu, meteu-se em uma enrascada e está bastante arrependido. E em uma

de suas tantas digressões, o narrador quer contar como foi que Cuffie chegou àquela família,

então começa retomando um dado que supostamente já havia mencionado antes, de que o

filhote só tinha um ano. A princípio ele está fazendo uma referência, uma citação indireta, a si

mesmo. O problema é que esse dado não apareceu antes, e até então só sabíamos que se trata-

va de um filhote. Erro do narrador? Talvez seja um “erro” que funcione no sentido de caracte-

rizar o próprio narrador dessa história dentro de outra história. Em diversos momentos do con-

to, o narrador fala sobre como era difícil guardar na memória todos aqueles quadrados da ja-

nela preenchidos com narrativas. Então ele se confundia, naturalmente. Mas continuemos.

No trecho em destaque, temos um exemplo a princípio de discurso indireto, já que a

citação, ou a representação do discurso, é indicada por um verbo, mas não é citada ipsis litte-

ris: “as Ruth’s mother had said”. Mas essa representação se aproxima do discurso indireto

livre por causa da contaminação da narrativa com a “fala” da personagem: “and he had been

every bit as quiet as Ruth’s mother had said he better be”. Esse “era bom mesmo que ele fi-

casse quieto” representa bem aquilo que a mãe de Ruth falaria e ajuda a construir e a reforçar

a imagem que o leitor cria dela, na medida em que a escolha da expressão e a forma de apre-

sentar a fala da personagem Marjorie permitem que o leitor praticamente visualize a cena:

uma mãe pouco paciente, irritada, ameaçando e prevendo o pior. O pior, no caso, seria ter de

sair da igreja no meio da missa, “which for Roman Catholics would have been a terrible sin”.

37

WALLACE, 2004, p. 82-3.

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O forte adjetivo “terrible” já entra no campo do discurso indireto livre, pois aqui se confun-

dem as vozes de Marjorie e do narrador; é algo que a personagem expressaria, ou pelo menos

teria em mente, ou pelo menos influenciaria suas ações (e seus discursos) inconscientemente,

mas também é uma quase hipérbole do narrador, que está sempre enfatizando e dramatizando

as ações dos personagens envolvidos – “reais” ou não, por ele inventados ou não, por mais

que nem sempre seja possível definir exatamente qual é o caso.

Há um outro detalhe importante nessa primeira citação, que traz um procedimento um

tanto anedótico e bastante recorrente em todo o conto e também revela uma voz infantil que

merece destaque. Entre parênteses apresenta-se um novo dado, este sim exposto como novo: a

família de Ruth era católica, como a maioria dos pobres de Columbus. Estamos dentro da his-

tória que o narrador criou no dia fatídico, durante o desenrolar da história principal do conto,

e para recontar tal narrativa o narrador recorre a uma mudança de registro, revelando a voz de

uma criança – a sua própria voz de quando era criança – em comentários desse tipo, anedóti-

cos, com uma pitada de senso comum, enfim, infantis. Paralelamente a um comentário assim,

que identifica os pobres como sendo católicos, também temos no conto a perspectiva dos não

tão pobres, a exemplo da família do narrador, como protestantes38

. O narrador, adulto, que

começa retomando a história, voltando ao passado, passa agora a contar o que aconteceu com

uma voz de criança, repercutindo, sem marcá-las, suas observações infantis sobre o mundo.

Reforçam essa ideia outros comentários semelhantes com o mesmo tom. Logo depois do tre-

cho destacado, o narrador comenta, por exemplo, sobre a relação que é padrão entre cegos e

cachorros: “as a rule, the blind have a natural affinity for dogs, whose eyesight is not very

good either”39

. De maneira parecida, mais tarde, também entre parênteses, o narrador faz ou-

tra assertiva, desta vez sobre um som característico dos surdos-mudos: “those deaf people

who are not mute tend to produce a hooting sound”40

. Comentários desse tipo não são espera-

dos de um narrador adulto, mas não são estranhos na voz de uma criança. Essa transição, po-

rém, não está marcada, mas não chega a causar estranhamento; naturalmente a história passa

da voz do narrador que reconta no presente sua história para a voz infantil desse mesmo nar-

rador, que observa o mundo com olhos curiosos e observações mais curiosas ainda, quando

não cômicas. Mas voltemos ao uso do DIL no conto.

Uma boa parte dos trechos do conto que poderiam ser considerados exemplos de dis-

curso indireto livre apresenta aquele detalhe já destacado: um verbo marcando a fala, anunci-

38

Id., p. 77. 39

Id., p. 83. 40

Id., p. 93.

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ando uma citação – e, portanto, teríamos só um discurso indireto. Contudo, mesmo nesses

casos Wallace explora o indireto livre, e a própria indicação da fala é proposital e provocativa,

na medida em que há a interferência de vozes própria do DIL, mas também há um “signo lin-

guístico particular” que a princípio indicaria a exclusividade de uma das vozes. Para Wood,

Wallace quer levar esta tensão [voz do narrador x voz do personagem] ao

limite. Ele escreve partindo da voz dos seus personagens e ao mesmo tempo

sobrepondo-se a elas, obliterando-as a fim de explorar questões maiores,

quando não mais abstratas, de linguagem. [...] Este é um dos exemplos [um

trecho de The Suffering Channel] do que chamo de “discurso indireto livre

não identificável”.41

Em Wallace, portanto, temos um uso um tanto diferente do indireto livre, com essa

sobreposição da voz do narrador pela do personagem e vice-versa. No entanto, Wood vê esse

uso do indireto livre como algo negativo: “no caso de Wallace, a linguagem de sua narração

não identificável é bastante feia, e um pouco dolorida por mais de uma página ou duas”42

. A

análise de Wood sobre a sobreposição de vozes parece adequada e concernente também ao

caso de “The soul is not a smithy”, mas no que tange à perspectiva dolorosa do conto, em

função desse uso particular do indireto livre, há que se discordar. Incomoda Wood a forte e

marcada presença da linguagem própria do personagem ou do grupo do qual o personagem

faz parte, que tiraria em alguma medida a credibilidade do autor43

– e no caso de Wallace, em

que esse uso da linguagem é explorado aos limites, o autor de fato estaria totalmente desacre-

ditado. Mas podemos encontrar um porquê nos supostos excessos de Wallace; seja para mar-

car a presença autoconsciente do narrador/autor, que não quer se esconder, que se assume

enquanto narrador/autor – e aqui percebemos a soma de autenticidade e sinceridade previa-

mente discutida, própria dessa nova geração de que Wallace faz parte –, seja para provocar

um elemento cômico, a forma de narrar com um uso próprio do indireto livre e uma lingua-

gem também própria revela-se, ao fim e ao cabo, pertinente para a história sendo contada e

mesmo para aquilo que o autor defendia, pensando na mencionada sinceridade. Em dado tre-

cho em que descreve a sala de Educação Cívica e detalhes relacionados, por exemplo, diz o

narrador:

I was in the second to last desk in the easternmost row, which was a logisti-

cal error that Mrs. Roseman would never have allowed, as I was classified as

41

WOOD, 2008, p. 30-1. 42

Id., p. 32. 43

Id., p. 16.

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unsatisfactory in Listening Skills as well as its associated category, Follow-

ing Directions, and every full-time teacher in the first several grades at R. B.

Hayes knew that I was a pupil whose assigned seat should be as far away

from windows and other sources of possible distraction as possible.44

Aqui temos a típica linguagem de escola em que os alunos são rapidamente classifica-

dos (quando não rotulados) e as habilidades de aprendizado, facilmente nomeadas. Há uma

indicação clara de que esse discurso não é do narrador, mas dos professores, que tinham con-

vicção de que o aluno tinha problemas de atenção e, portanto, deveria sentar o mais longe

possível de janelas e outras fontes de possíveis distrações. Mas o narrador assume esse discur-

so, que reaparece no decorrer da história em sua constante defesa de que não estava simples-

mente “sonhando acordado” em sala de aula ou era incapaz de prestar atenção em coisa algu-

ma. O narrador responde a esse discurso, mas também se apropria dele, como se percebe nesta

afirmação que aparece não muito depois: “Obviously, this intense preoccupation was lethal in

terms of my Listening Skills during second period Civics”45

. Além disso, no próprio trecho

inicialmente destacado, o “erro logístico” de que fala o narrador é uma fala tão sua quanto dos

professores, assim como o são outros momentos do conto em que esse uso peculiar do indire-

to livre se revela nessa sobreposição de vozes ora mais, ora menos evidente. Tanto nos casos

em que há ou não algum “signo linguístico particular” indicando de quem é o discurso, o lei-

tor precisa inferir isso, e o faz naturalmente. O DIL, portanto, está praticamente invisível. E,

levando em consideração a perspectiva do próprio Wood, é muito bem-sucedido.

O resultado de um tal uso do DIL também é engraçado, porque temos aqui uma voz de

criança citando os termos de avaliação dos professores – caracterizando uma daquelas insis-

tentes linguagens particulares de grupo que incomodam Wood –, com iniciais maiúsculas que

transmitem a tentativa de seriedade por parte desses mesmos professores, seriedade esta que

se perde na voz da criança que revela a injustiça dos rótulos e sua austeridade ridícula só por

nomeá-los. A sobreposição das vozes, portanto, é bastante pertinente porque provocativa, e

nisso encontramos ao menos uma razão para os excessos de Wallace e seu narrador, que tanto

insiste em situações assim, que tanto descreve a sala e tudo que lhe está relacionado, que, pela

via de uma mera simplificação, é tautológico.

Cabe ressaltar que há também no conto o uso típico ou mais reconhecível do DIL. Em

trechos com a história do irmão do narrador sobre a rara mesa de jantar da família, por exem-

plo, podemos perceber esse uso mais tradicional do indireto livre:

44

WALLACE, 2004, p. 70. 45

Id., p. 71 (grifo meu).

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According to my older brother, we had had a dog for a short period when I

would have been too young to remember, which had chewed on the base of

the piano and the legs of a spectacular 16th century antique Queen Elizabeth

dining room table our mother had discovered at a rummage sale, which was

worth over one million dollars when appraised and caused the family dog to

have disappeared one day when my brother came home from nursery school

and found both the dog and the table missing, adding that my parents had

been very upset about the whole business and that if I ever brought the dog

up or asked our mother about it and upset her he would put my fingers in the

hinge of the foyer closet and lean with all his weight on the door until all my

fingers were so mangled they would have to be amputated and I would be

even more hopeless at the piano than I already was.46

Ao descrever a mesa como “spectacular”, o narrador está indiretamente citando e mar-

cando a fala de deslumbramento do irmão, até porque ele era novo demais para guardar algu-

ma lembrança dessa história. Mas o adjetivo também poderia ser do narrador, sutilmente iro-

nizando a história imaginada ou enfeitada pelo irmão. O trecho todo tem esse ruído caracterís-

tico do DIL, em que não se sabe exatamente de quem é o discurso sobre a mesa que valia um

milhão de dólares, sobre o pobre cachorro e seu sumiço, sobre a chateação dos pais, sobre a

consequência dramática de qualquer menção ao assunto. A ideia de que o narrador ficaria

“even more hopeless at the piano”, por exemplo, pode ser tanto uma ameaça literal e grosseira

do irmão do narrador, que levava jeito para o piano, quanto uma imagem amarga que o narra-

dor tinha sobre si mesmo. E essa história reaparece no conto, com repetições, com a inserção

de novos elementos:

According to my brother’s own flights of fancy in childhood, the antique ta-

ble we had possessed before I was old enough to be aware of anything that

was going on had been burled walnut, with a large number of diamonds,

sapphires, and rhinestones inset in the top in the likeness of the face of

Queen Elizabeth I of England (1533–1603) as seen from the right side, and

that the disappointment of its loss was part of the reason our father often

looked so dispirited on coming home at the end of the day.47

Novamente é mencionado o fato de que o narrador não poderia se lembrar da história,

já que era novo demais: “when I would have been too young to remember”, no primeiro tre-

cho, e “before I was old enough to be aware of anything that was going on”, no segundo. Esse

discurso pode ser tanto do irmão – temos um “According to my (older) brother” nos dois ca-

sos –, que portanto não poderia ter sua história desacreditada pelo narrador, quanto do narra-

dor, que não só faz questão de dizer que era mais novo e não teria como endossar essa versão

46

Id., p. 73-4. 47

Id., p. 76-7.

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da história como também ironiza a insistência do irmão. A interpretação de que o desânimo

do pai no fim do dia, depois de voltar do trabalho, era em função da perda dessa mesa também

pode ser tanto do irmão quanto do narrador. Sendo a história da mesa inventada/enfeitada pelo

irmão, a princípio essa interpretação parece ser sua. No entanto, a ênfase de tentar entender o

pai e sua rotina tediosa é própria do narrador, é constantemente retomada e parece que não por

acaso é colocada aqui também. Aqui o uso do indireto livre serve para reforçar essa incom-

preensão do pai que é tanto do narrador quanto do seu irmão, serve para aprofundar a dificul-

dade de comunicação daquela família, que é, talvez, uma dificuldade de qualquer família ou

relacionamento, o que provavelmente contribui para tornar o conto tão triste.

No entanto, temos também elementos cômicos no conto, a começar por um peculiar

uso do DIL: sobrepõem-se as vozes do narrador e de cachorros. Apesar de o narrador deixar

claro que Cuffie, por exemplo, “didn’t have thought-bubbles as you or I do”48

, a descrição de

alguns quadros da história da janela revela uma personificação desses animais:

Cuffie’s collar and vaccination tags have gotten torn off as he wriggles under

the Simmons family’s yard’s fence in excitement over seeing the two stray

dogs, one black and dun and the other predominantly piebald, that have

loped up to the cheap wire fence and urged Cuffie to come join them in some

freely roaming dog adventures, the dark one, who in the panel has angled

eyebrows and a sinister pencil mustache, crossing his heart over the promise

that they won’t go far at all and will be sure and show the trusting Cuffie the

way back home again.49

A expressão “freely roaming dog adventures” pode revelar tanto a perspectiva do nar-

rador que, menino, reconhece a diversão de cachorros em suas aventuras, quanto a imagem de

cachorrinhos balançando o rabo diante da possibilidade de qualquer passeio, sem coleira, li-

vremente. A personificação dos cachorros, que insistiram para que Cuffie fosse com eles

(“urged Cuffie”), revela-se especialmente na promessa de um deles: “the dark one [...] cross-

ing his heart over the promise that they won’t go far at all and will be sure and show the trust-

ing Cuffie the way back home again”. Mas ao mesmo tempo em que a voz aqui é canina, ela

também é do narrador, que com sua imaginação retrata comicamente o diálogo dos cachorros

e sua personalidade, especialmente com a descrição “the trusting Cuffie”. Os outros trechos

que revelam o DIL e essa mistura da voz do narrador com as vozes caninas já são um pouco

mais dramáticos, quando não trágicos:

48

Id., p. 83. 49

Id., p. 79.

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The smaller, subordinate feral dog, with the sore, whose name was Scraps,

and had run away from home because of the way its owner mistreated it

when the tedium and despair of his lower level administrative job made him

come home empty-eyed and angry and drink several highballs without any

ice or even a lime, and later always found some excuse to be cruel to Scraps,

who had waited alone at home all day and only wanted some petting or af-

fection or to play tug of war with a rag or dog toy in order to take its mind

off of its own bored loneliness, and whose life had been so awful that the

backstory cut off abruptly after the second time the man kicked Scraps in the

stomach so hard that Scraps couldn’t stop coughing and yet still tried to lick

the man’s hand when he picked Scraps up and threw him in the cold garage

and locked him in there all night, where Scraps lay alone in a tight ball on

the cement floor coughing as quietly as he could.50

Temos aqui pela primeira vez a imagem do homem massacrado pelo tédio tomando

uísque com soda. Mais tarde, é o pai do narrador que chega em casa depois de um trabalho

terrivelmente tedioso e tem sua própria dose de uísque com soda51

. Essa repetição de detalhes

e imagens é constante em todo o conto. Importa ressaltar que no trecho em questão o DIL está

presente já na descrição do dono do cachorro e seu trabalho enfadonho: “the tedium and des-

pair of his lower level administrative job made him come home empty-eyed and angry”. Os

adjetivos marcam esse discurso e podem ser tanto do personagem-dono que vê com desespero

sua própria realidade quanto do narrador que em alguma medida vê em seu personagem a

imagem de seu próprio pai. Nesse trecho também a voz de Scraps aparece em conjunto com a

do narrador: “Scraps, who [...] only wanted some petting or affection or to play tug of war

with a rag or dog toy in order to take its mind off of its own bored loneliness”. Scraps é per-

sonificado na medida em que sente tédio e tem desejos, e sua voz aparece especialmente nessa

ânsia tipicamente canina por brincar ou fazer qualquer coisa contanto que receba alguma

atenção. A voz do narrador aparece, interfere, no sentimento de pena transmitido em toda a

situação, talvez porque esse tédio também é dele (o narrador fala no conto de sua própria

“childhood boredom”52

), e na descrição do dono cruel em oposição ao pobre cachorro.

Há ainda um terceiro trecho que merece destaque nesse uso do DIL com a presença de

uma voz não humana: “the dominant rottweiler [...] exhorting the defenseless, long suffering

whelp to sit still and endure it or else something really terrible would happen”53

. Esse trecho

lembra o do primeiro exemplo de DIL destacado neste capítulo, com a ameaça da mãe sobre o

comportamento de Cuffie: “he better be or else”. Semelhantemente, temos o adjetivo “terri-

50

Id., p. 90. 51

Id., p. 103. 52

Id., p. 105. 53

Id., p. 99.

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ble” nos dois casos, que reforça aquele tom dramático que é tanto do narrador quanto de seus

personagens.

Tal uso do DIL é bastante curioso e provocativo especialmente ao revelar a voz de um

cachorro em um conto que não se propõe fantástico, em que a realidade apresentada não nos é

estranha. Mas, graças a esse narrador que volta ao passado e à sua voz infantil, mesmo essa

personificação dos cachorros não causa grande estranheza, mesmo a indicação das vozes do

discurso e a concomitante sobreposição dessas vozes não cria grandes problemas, não preju-

dica a narrativa – pelo contrário, aprofunda-a, enriquece-a, como é próprio do indireto livre.

Essa voz infantil, previamente destacada, é outro elemento que tem grande importân-

cia na construção da narrativa. No conto percebem-se duas vozes narrativas, ou duas repre-

sentações de vozes, que ora se intercalam, ora se sobrepõem. Em alguns trechos é possível

perceber uma variação relevante no que se refere ao tom da voz, ao vocabulário, ao uso desse

vocabulário, enfim, ao jeito de contar, falar, descrever. Em outras partes do conto, parece ha-

ver uma mistura desses jeitos de contar; um registro bem informal é seguido por um formal,

um comentário mais infantil, talvez pela simplicidade – e de maneira alguma coloco isso em

termos negativos –, é acompanhado por uma observação que não parece condizer com o dis-

curso de uma criança:

The dog’s illustrated facial expression said it all. It conveyed that Cuffie was

very frightened and unhappy and wishing only to be back in the fenced yard

wagging its brindle tail and waiting for the tap, tap sound of Ruth’s minia-

ture white cane coming up the sidewalk to greet Cuffie and bring him in to

rub his stomach and whisper to him over and over how beautiful he was and

how wonderful his ears and little soft paws smelled, and how lucky they all

were to have him, as the black dog leapt easily up onto the lip of the trickling

culvert behind Cuffie and, with an ominous look to either side, disappeared

into the round black mouth of the pipe, completing the horizontal row.54

Nesse exemplo temos não só a presença destas vozes narrativas, mas também o uso do

indireto livre, tanto em relação a Cuffie, com um olhar que diz tudo – seu medo e seu desejo

de só voltar para casa balançando o rabinho –, quanto em relação a Ruth e sua fala doce e

carinhosa para o cachorrinho. A situação toda é típica de filmes com cachorro, e a separação

entre o dono e o cachorro é quase um clichê. O relato, graças ao indireto livre, revela a voz

infantil de Ruth e a voz canina de Cuffie, mas também revela a voz infantil do narrador que

inventou essa história quando criança – e que portanto não é uma história estranha, em que os

clichês são um problema, estando na voz de uma criança. Assim, comentários como o do

54

Id., p. 83-4.

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26

olhar do cachorro que diz tudo e descrições de detalhes como a minúscula bengala branca de

Ruth (assim como, em outro momento, seus “tiny dark glasses”55

) revelam essa presença in-

fantil que quase toma conta da narrativa em trechos assim, especialmente quando se trata da

história na janela. Mas a voz adulta do narrador, recuperando essa história do passado, não se

dilui totalmente; termos como “conveyed”, “culvert” e “ominous”, por exemplo, e a descrição

do cachorro olhando para os dois lados e sumindo na metafórica “round black mouth of the

pipe” não são muito comuns na boca de uma criança de nove anos. O desenrolar trágico da

história da janela também parece um pouco dramático demais para a imaginação de uma cri-

ança, e o próprio narrador comenta isso: “While compelling and diverting, few of the win-

dow’s narratives were ever gruesome or unpleasant. Most had upbeat – if somewhat naïve and

childish – themes”56

. Mas o conto resolve esse impasse com a influência dos trágicos aconte-

cimentos em sala de aula: “I believe that the atmosphere of the classroom may have subcon-

sciously influenced the unhappy events of the period’s window’s mesh’s narrative fantasy”57

.

A presença dessas duas vozes, portanto, enriquece o conto ao trazer mais possibilida-

des de percepção sobre os acontecimentos; o olhar da criança sendo traumatizada às margens

de sua consciência é tocante, e o conto permite que acompanhemos o processo conforme a

história da janela vai ficando mais e mais trágica. Da mesma forma, a perspectiva do adulto

que volta para o passado e tenta elaborar seus sentimentos em relação ao pai também é pro-

funda e constitui talvez o ponto central do conto que pode levar a uma catarse por parte do

leitor, que permite a identificação diante da tragédia humana moderna, que não tem tanto que

ver com mortes trágicas, mas com vidas trágicas – vazias, tediosas, solitárias mesmo quando

vividas com outros. As duas vozes são essenciais e cada uma delas desempenha um papel

fundamental no conto. Na próxima parte desta pesquisa analisamos mais detidamente os te-

mas que estão relacionados à figura do narrador adulto, e por ora cabe fazer mais algumas

observações sobre o papel desempenhado pela voz desse mesmo narrador quando com voz de

criança.

Essa voz infantil ou essa mudança de registro aparece, como foi dito, especialmente na

narração da história na janela, mas também na descrição dos colegas, da sala de aula e dos

acontecimentos relacionados ao dia fatídico, conforme pode ser visto nos exemplos do uso de

DIL já apresentados. Seja citando, com iniciais maiúsculas, os termos de avaliação dos pro-

fessores, seja relatando a história da mesa e a imaginação fértil de seu irmão, seja descrevendo

55

Id., p. 81. 56

Id., p. 88. 57

Id., p. 92.

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a animação dos cachorros e seus diálogos, o narrador faz isso sem impor a autoridade autoral

típica do narrador onisciente, sem impor aquela ironia de chacota sobre os acontecimentos,

mas inserindo-se neles, tornando-se parte daquilo. Mesmo nos casos que podem ser interpre-

tados como ironia, como no relato da história da mesa, temos algo sutil, não uma crítica debo-

chada, como se o narrador estivesse em posição superior, como se, por exemplo, a imaginação

fértil não fosse sua também. Na verdade, é a presença dessa voz infantil que abre espaço para

a discussão sobre a ironia em “The soul is not a smithy”, como veremos mais adiante. É tam-

bém essa voz que potencializa o drama do trauma, já que nós, leitores, vivenciamos o trauma

com o narrador aos poucos, vamos seguindo seus passos, vamos acompanhando suas digres-

sões. E falar em fluxo de consciência também faria bastante sentido aqui. Porém, o destaque

que quero dar é o de que, quando a história na janela é contada e quando os pormenores da

sala de aula e de tudo que está relacionado ao evento traumático são descritos, surge essa se-

gunda voz, que, reitero, não está demarcada no texto, não é evidente, mas sussurra em alguns

momentos e fala bem alto em outros. Talvez a análise de mais alguns exemplos do conto pos-

sa evidenciar melhor essa presença de vozes narrativas que se intercalam e falam ao mesmo

tempo:

At least, many classmates later reported this as a puzzlement because of the

way, even though the sub was facing the chalkboard and thus had his back to

the class, his head was now cocked curiously over to the side, not unlike a

dog’s when it hears a certain type of high sound, and he remained that way

for a moment before shaking his head slightly as if shaking off some confu-

sion and, using the board’s eraser to erase the KILL of law, replaced it with

the correct of law.58

É a partir dessa parte do conto que o desenrolar do evento traumático na sala de Edu-

cação Cívica aparece com mais detalhes, já que até então tínhamos descrições um tanto soltas,

intercaladas com memórias da infância do narrador, descrições da sala de aula, dos colegas e

da vida escolar e a narração da história inventada na janela. Essa demora em tratar do que

realmente aconteceu parece ser proposital, na medida em que não só revela uma certa dificul-

dade do narrador em lidar com aquilo, mas também cria um certo suspense, provoca a curio-

sidade do leitor. E, ainda, reforça a ideia de fluxo de consciência da narrativa, quase como se

o narrador estivesse, em ambiente de análise, fazendo associação livre.

No que se refere à narração propriamente, é curioso que no trecho em questão o narra-

dor menciona os vários colegas que estavam de fato presentes e conscientes quando dessa

58

Id., p. 86.

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situação traumática para então dizer que a observação deles, de que o professor parecia per-

plexo, era um pouco estranha, já que ele estava virado para o quadro. Cabe reforçar que o

narrador deixa claro que depende das versões que seus colegas contaram do trauma, pois até

certo momento ele mesmo não estava prestando atenção: “according to Ellen Morrison and

every other pupil taking notes”, “According to Mandy Blemm”, “What most credible witness-

es seemed to recall most vividly”59

etc. Tendo comentado essa estranheza, o narrador parte

para a descrição da posição do professor, que estava com a cabeça inclinada para o lado, pare-

cendo um cachorro escutando um certo tipo de som agudo. E aqui temos um bom exemplo

dessa voz infantil, dessa mudança de registro da narração adulta para uma infantil, mais ade-

quada à narração do acontecimento vivido pelo menino de nove anos. A comparação do pro-

fessor a um cachorro, que se repete em outros momentos60

, é própria desse menino, tão afei-

çoado a esses animais de estimação e tendo Cuffie como um dos protagonistas de sua história

na janela. A descrição em si da posição do professor também é bem própria de uma criança,

que destaca o movimento de chacoalhar a cabeça – algo tipicamente canino – e recorre ao

informal “cocked” (em vez de “inclined”, por exemplo) para descrever a posição da cabeça do

professor. Essa descrição, que seria estranha na boca de um adulto, permite que a cena se tor-

ne em alguma medida mais visível para o leitor, de maneira que é praticamente possível visua-

lizar a cena da criança impressionada e ao mesmo tempo assustada com aquela estranha posi-

ção do professor, e que para explicá-la precisa recorrer a algo do seu mundo, a algo que lhe é

reconhecível: a imagem de um cachorrinho com a cabeça virada para o lado. Essa comparação

e a forma de expressar a comparação são infantis, mas, novamente, não excluem o narrador

adulto; quer nos termos (como “puzzlement” e “chalkboard”), quer nas construções que dão

ritmo ao texto – pela repetição “eraser to erase”, por exemplo –, ele está presente, a história

continua sendo a dele, mas ele recorre à sua voz infantil para potencializar a narração, para

torná-la mais real, para aumentar seu efeito.

Outra parte do relato dos eventos na sala de aula também indica a presença da voz

infantil desse narrador, tão desatento, mas tão capaz de descrever o que acontece:

And not seeming to realize what he was doing or stopping to give any kind

of explanation but only cocking his already oddly cocked head further and

further over to the side, like somebody struggling might and main against

some terrible type of evil or alien force that had ahold of him at the chalk-

59

Id., p. 87 e 92. 60

“His head again cocked to the side as if he were having trouble hearing or understanding something” (Id., p.

87), “cocking his already oddly cocked head further and further over to the side” (Id., p. 91) e “at the back of Mr.

Johnson’s head as it cocked further and further to the side” (Id., p. 92).

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board and was compelling his hand to write things against his will, and mak-

ing (I was not conscious of hearing this at the time) a strange, highpitched

vocal noise that was something like a scream or moan of effort, except that it

was evidently just one note or pitch maintained throughout, and stayed that

way, with the sound coming out for much longer than anyone can normally

even hold their breath.61

O período no qual esse trecho se insere é bastante longo, como vários outros do conto,

e tem um ritmo rápido, com orações que emendam umas nas outras, com poucas pausas, co-

mo se o narrador quase não parasse para respirar enquanto está contando a história ou como

se os acontecimentos estivessem acontecendo naquele momento, diante dele e do leitor que

acompanha seu olhar, tão rapidamente que mal é possível pensar muito a respeito do que se

passa. Mas há tempo suficiente para comparações curiosas e, por que não, infantis. Na visão

da criança que assiste aquilo, o professor não consegue se controlar, e é como se ele estivesse

lutando contra uma força maligna ou alienígena que o forçasse a fazer movimentos estranhos

contra sua própria vontade. Ele está possuído, portanto, mas aqui essa expressão, tão forte,

não é usada62

. Aqui a comparação tem que ver com aqueles personagens de quadrinhos e fil-

mes de que o narrador, quando menino, tanto gostava e que serviram de inspiração para tantas

narrativas na janela63

. Aqui a linguagem reflete essa voz infantil em “cocking his already odd-

ly cocked head” e “vocal noise that was something like a scream or moan of effort”. No en-

tanto, esses mesmos trechos também revelam a voz do narrador já adulto, especialmente por

causa do uso de “cock” e de “moan”, que têm uma conotação sexual, adulta. E é na possibili-

dade dessa dupla conotação que encontro a importância de considerar a presença de duas vo-

zes. Se não houvesse qualquer perspectiva de uma criança que fala, de uma voz infantil que

ressoa no texto, este e outros trechos poderiam ser lidos de maneira bem diferente, com um

peso excessivamente irônico, pejorativo até, que não combinaria muito com a proposta de

Wallace. Não que uma leitura psicanalítica, por exemplo, que enxergue em termos desse tipo

e também na relação problemática do narrador com o pai uma questão de ordem sexual, não

faça sentido. É bem possível ler nessa narração que vai emendando memórias, relatos difusos

(e às vezes confusos) e detalhes aparentemente sem importância um processo da já menciona-

da associação livre, que em ambiente de análise serve para proporcionar, em alguma medida,

a expressão de conteúdos inconscientes. Nesse caso, porém, não haveria conflito com a pro-

61

Id., p. 91-2. 62

Ela é usada, contudo, na manchete do Dispatch que é citada em discurso direto, com destaque em itálico (Id.,

p. 100), e em uma nova descrição do narrador sobre a posição do professor, antecedida e seguida por comentá-

rios característicos da voz infantil, que se manifesta explicitamente nesses parênteses (Id., p. 101). 63

Id., p. 71-2.

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blemática ironia criticada por Wallace, com a ironia intencional e tão presente, da qual é qua-

se impossível ou inevitável fugir. Quase.

E é nesse ponto que pretendo chegar, relacionando tanto a presença da voz infantil

quanto o uso do DIL com a proposta de Wallace para a ficção. Mas ressalto que essa relação

se aplica especificamente a “The soul is not a smithy”; cada conto e cada livro (e talvez cada

capítulo de “Infinite Jest”, por exemplo) de Wallace é um universo especial e merece um

olhar atento, que reconheça suas particularidades. Wallace desistia de suas fórmulas quando

elas viravam fórmulas! Acredito que o uso de alguns recursos é recorrente na obra dele – co-

mo o DIL –, mas não pretendo, com a análise que tenho feito, propor generalizações. A dis-

tinção entre vozes pode ser um caso particular do conto em questão, e a relação que isso tem

com a busca por uma não ironia também é uma leitura que, reforço, faço em “The soul is not a

smithy”. Talvez outra pesquisa dê conta de verificar se em alguma medida o narrador e a pró-

pria forma narrativa escolhidos por Wallace em outros casos também reflete algo da proposta

do autor para a ficção, aquela que identifica no uso da ironia um problema social.

Os exemplos já citados da presença da voz infantil assim como os exemplos em que se

misturam a voz do narrador e a dos personagens no uso do DIL servem para ilustrar essa rela-

ção que vejo entre a forma de narrar e uma busca por fugir de uma ironia que se tornou banal,

a que muitas vezes se recorre para criar um distanciamento entre autor/narrador e persona-

gem. Com o discurso indireto livre, as vozes se sobrepõem, e, como já foi dito no início, isso

pode permitir que a narrativa perca aquele tom autoral e decisivo, em que os personagens são

meramente citados de maneira a deixar claro que o discurso é só dos personagens e que o nar-

rador/autor é o crítico irônico por trás de tudo. Mas, quando deixa seu personagem falar sem

ironizar sua fala e sem se distanciar dela, o autor abre mão da sua própria elegância estilísti-

ca64

. Da mesma forma, a voz infantil não é a da ironia adulta; ela permite que se fuja da atitu-

de de crítica autoral ao que está sendo narrado. Se não houvesse essa voz infantil, observações

sobre a família de Ruth ser católica, sobre o método de avaliação dos professores e sobre as

trágicas atitudes do professor, por exemplo, teriam um peso bastante irônico e crítico. Se não

houvesse essa perspectiva de uma história sendo contada pelos olhos de uma criança, trechos

assim poderiam ser lidos, por exemplo, como uma crítica à religião católica, já que os pobres

são sempre católicos e têm atitudes exageradas – em oposição aos protestantes, como no caso

da família do narrador –, ou talvez como uma crítica à instituição de ensino, a seus métodos

que rotulam mais do que ensinam, que traumatizam (professores e alunos) mais do que esti-

64

WOOD, 2008, p. 16. Ou, poderíamos argumentar também, cria uma elegância toda sua.

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mulam uma vida de estudos saudável. O conto pode ser uma crítica a tudo isso também, mas,

como percebemos a voz de uma criança, essa leitura irônica não é a primeira que fazemos. Há

vários outros trechos que revelam essa dupla possibilidade de leitura, uma adulta e irônica e

outra infantil (e muitas vezes cômica):

The easternmost row’s second to last desk had a deep stick figure with a

cowboy hat and much oversized six-shooter gouged deeply into it and col-

ored in with ink from some previous 4th grader, obviously the product of

much slow, patient effort over the course of that previous academic year.65

Ao falar que o desenho entalhado profundamente em sua mesa foi o produto de muito

esforço, o narrador quer dizer isso mesmo! Afinal, ao longo do conto ele insiste em defender

que sua própria atividade “extracurricular” feita em sala não era nada simples e exigia muita

concentração e que ele era incompreendido pela direção e pelos seus próprios pais. Tal obser-

vação, portanto, é própria do menino que viveu aquilo e que é recuperado pelo narrador, mas

também pertence ao narrador já adulto, especialmente por causa de termos mais formais como

“course” e “previous”. A presença da primeira voz é o que causa riso – a criança realmente

admira o esforço do colega –, e a da segunda é o que dá margem para ironia; grande “esforço”

este o de não prestar atenção nas aulas e ainda estragar a carteira. Contudo, levando em consi-

deração o conto como um todo, a leitura não irônica é a que predomina, já que a narrativa vai

na direção contrária da crítica ao sonhar acordado, ao não prestar atenção em sala de aula66

.

Mas a leitura irônica não deixa de estar presente – na voz do narrador enquanto adulto, na

leitura que, nós, adultos, fazemos dessa voz.

Portanto, seja colocando uma voz infantil, seja misturando a voz do narrador com a

dos personagens, supostamente tirando a credibilidade desse narrador e a autoridade autoral,

seja recorrendo ao DIL de maneira diferente, marcando o personagem como enunciador do

discurso e ao mesmo tempo misturando a voz do narrador, Wallace mostra-se bastante inova-

dor. No caso do DIL especialmente, é curioso que Wallace recorra a esse recurso; afinal, esse

tipo de discurso é associado à ironia dramática67

e foi um dos elementos que deram grande

destaque a autores tidos como essencialmente irônicos, a exemplo de Flaubert e Joyce. Talvez

65

WALLACE, 2004, p. 77. 66

Especialmente no trecho em que o narrador fala sobre testes que revelam que as crianças não são necessaria-

mente incapazes de prestar atenção, mas sua dificuldade tem que ver com o foco de atenção (Id., p. 97). Wallace

fez uma reflexão sobre o ensino que aponta nessa direção, retomando o jargão de “ensinar a pensar”, em uma

solenidade de formatura da Kenyon College, em 2005. Esse discurso foi publicado posteriormente (WALLACE,

2009), e sua menção aqui é bastante válida para reforçar essa relação entre o que o autor defendia e suas narrati-

vas. 67

WOOD, 2008, p. 11.

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ele tenha recorrido ao DIL, à sua própria maneira, para justamente mostrar que é possível ao

menos tentar uma literatura diferente, que consegue usar um mesmo recurso para mostrar a

ironia e ao mesmo tempo refutá-la, tirando-a de seu lugar de imposição que delimita e limita

leituras. Se de fato há uma intenção nesse sentido por parte do autor, talvez não seja possível

saber com certeza. Ainda assim é possível visualizar em toda essa análise uma correspondên-

cia entre aquilo que o autor propunha para a ficção, o seu projeto ideológico, e aquilo que ele

efetivamente faz. Do que não tenho dúvida é que em todo esse processo de construção narra-

tiva se revela a genialidade de um autor que correu o risco de se expor a críticas como as de

James Wood, que arriscou tentar ser sincero e perder a tal credibilidade de autor. Que sorte a

nossa!

2.2 Em busca da sinceridade

“The soul is not a smithy” abre com um tom oficial, que pode servir para aguçar a cu-

riosidade do leitor. O conto começa anunciando, sem rodeios, que história vai contar: “This is

the story of how Frank Caldwell, Chris DeMatteis, Mandy Blemm, and I became, in the city

newspaper’s words, the 4 Unwitting Hostages”68

. Ou seja, leitor, é disso que o conto trata, é

isso que você deve esperar. E essa introdução parece ser fidedigna; afinal, o que vai ser con-

tado teve repercussão no jornal da cidade, em um veículo de comunicação oficial e, diga-se de

passagem, real – o Dispatch existe de fato, e é um dos principais jornais da cidade de Colum-

bus, que também é real e que completou 200 anos em 201269

. Até o início do segundo pará-

grafo, a forma narrativa é quase jornalística, impessoal/distante (apesar do uso da primeira

pessoa do plural), adulta: é disso que este texto trata, a fonte é (supostamente) confiável, foi

essa a repercussão, são esses os fatos.

A primeira frase do conto já anuncia um narrador em primeira pessoa, mas a princípio

sua voz não é tão alta, a princípio ele não dá a impressão de que vai interferir muito; só está

apresentando os fatos de uma história que aconteceu com ele. A não ser pelos pronomes, a

narração parece ser em terceira pessoa, a forma que geralmente é considerada mais confiá-

vel70

. Até os primeiros comentários sobre os tais fatos não são do narrador propriamente: “It

was a time that is now often referred to as a somewhat more innocent time”. As pessoas di-

68

WALLACE, 2004, p. 67. 69

DISPATCH, 2012. 70

WOOD, 2008, p. 3.

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zem isso, não eu, necessariamente. A situação muda um pouco quando comentários não muito

relevantes para os fatos da história começam a se insinuar: “I had fashioned the Doric col-

umns of the Judicial Branch out of the cardboard cylinders inside rolls of Coronet paper tow-

els, which was our mother’s preferred brand”71

. Para um conto que começou tão preocupado

em ser direto, essa interferência pode parecer estranha. Mas talvez ainda seja possível confiar

nele; continuemos. Em seguida ficamos sabendo que o professor da sala onde o evento trau-

mático anunciado se deu era um mero substituto e que a disposição das carteiras na sala de

aula era bem rigorosa, em conformidade com aquele espírito de disciplina característico de

1960 que o narrador vai mencionar logo em seguida72

. Somos informados sobre coisas não

tão importantes, talvez, como a gravidez da Sra. Roseman e os materiais que eram guardados

dentro das carteiras, e há até informações repetidas: em dois parágrafos seguidos, por duas

vezes o narrador menciona o fato de que as carteiras e cadeiras eram firmemente parafusadas

no chão e organizadas em fileiras73

. Estranho. Mesmo assim, até então parece que prevalecem

os supostos fatos às experiências e impressões pessoais.

Mas chega um ponto em que o tom quase jornalístico de que falávamos antes se dilui

nos comentários do narrador, que parece desistir daquela proposta inicial, direta, factual. Ou é

forçado a desistir. E o que se apresenta de início como mero comentário toma conta da narra-

tiva primeira, daquela sobre o trauma e sua repercussão na vida dos envolvidos. A mera des-

crição da sala e seu contexto acaba por trazer outras lembranças, tão sutis, tão periféricas: o

jeito que as linhas do papel deixavam tudo o que se escrevia meio manchado, os detalhes do

local reservado para os alunos colocarem galochas e casacos de inverno74

, a escola do outro

lado da rua que parecia tão adulta diante da escola onde o trauma aconteceu75

. E o narrador

percebe, de repente, que está se perdendo no meio do caminho e admite isso e tenta retomar as

rédeas de sua história: “None of this is directly relevant to the story [...], except perhaps for

the fact that Art and Civics were the only two classes for which we left our homeroom”76

.

Preste atenção, leitor, meus devaneios fazem algum sentido no fim das contas. Mas é difícil

manter a linearidade, e logo voltamos às lembranças avessas a qualquer narração direta, tanto

em termos de abordagem narrativa (contar diretamente, sem devaneios) quanto no que se re-

71

WALLACE, 2004, p. 68 (grifo meu). 72

Id., p. 69. 73

“All of us had assigned desks, which were bolted to the floor in orderly rows” (Id., p. 67) e “The Civics class-

room at R. B. Hayes consisted of six rows of five desks each. The desks and chairs were bolted securely to each

other and to the floor” (Id., p. 68). 74

Id., p. 68. 75

Id., p. 69. 76

Id., p. 69.

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fere à relação (direta) com a história sendo contada, à relevância para essa história. Surge,

assim, o primeiro parêntese – que, aos poucos descobrimos, é típico do conto e revela uma

voz infantil – com detalhes anedóticos e nada relevantes para aquela primeira narrativa:

and caused several of the class’s children (one of whom was Terence Velan,

who was perhaps somewhat effete for a boy of that era, and sometimes wore

sandals and leather shorts, but was extremely good at soccer, and had a fa-

ther who was a hydraulic engineer from West Germany who had attained

American citizenship, and could also roll his eyelids up in such a way as to

disclose the mucous membranes of their insides and then walk around the

playground like that, which lent him a certain cachet) to transfer out of

Hayes Primary for good77

.

Terence Velan não é um dos quatro reféns que ficaram para trás na sala de aula e seu

papel na história é só o de ser mais um entre vários alunos assustados e traumatizados com o

ocorrido. Qualquer informação mais específica sobre o personagem não parece ser muito ne-

cessária para aquela história anunciada, muito menos algo tão nojentinho. Um parêntese as-

sim, recorrente no conto, revela a dificuldade do narrador em se concentrar na sua história. A

partir desse ponto, comentários desse tipo, sobre detalhes não relacionados diretamente à his-

tória do trauma, começam a aparecer cada vez mais, desenvolvendo-se em outras histórias. O

conto deixa de ser sobre aquele dia fatídico. Mas eventualmente o narrador luta para voltar à

narrativa linear, logicamente organizada daquele dia; seja nas entradas com função um tanto

obscura, em que geralmente algum tipo de conclusão sobre a história é tirada, seja nas inter-

venções que buscam retomar a história principal, a impressão que se tem é de que de repente

o narrador lembra sobre o que é o conto (ou sobre o que ele disse que seria o conto). A dinâ-

mica da lembrança inverte-se, portanto – a princípio a história sobre o trauma trazia à memó-

ria detalhes, anedotas, outros acontecimentos, mas depois são esses outros acontecimentos

que fazem o narrador se lembrar daquela primeira história. Isso pode ser percebido, por

exemplo, em:

These imagined constructions, which often took up the entire window, were

difficult and concentrated work; the truth is that they bore little resemblance

to what Mrs. Claymore, Mrs. Taylor, Miss Vlastos, or my parents called

daydreaming. At the time of the inciting trauma, I was still nine years old;

my tenth birthday would be April 8. Ages seven to nearly ten were also the

troubling and upsetting period (particularly for my parents) when I could

not, in any strictly accepted sense, read.78

77

Id., p. 69. 78

Id., p. 72.

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Pouco antes desse trecho, o narrador tinha gastado algum tempo falando das possibili-

dades de construção de histórias na janela, e ainda deu um exemplo desse tipo de história.

Esse contexto o leva a enfatizar o esforço que tal invenção exigia, esforço este não reconheci-

do pelos professores e pelos seus pais. Retomando a época do chamado “sonhar acordado”,

ele então lembra do trauma e da idade que tinha quando do ocorrido. E isso o faz lembrar da

dificuldade com leitura. O trecho que segue passa então, até o final do parágrafo, a detalhar

esse problema de leitura e como ele influenciava no desempenho do narrador. O trauma em si,

portanto, é tão somente lembrado aqui, em meio a relatos sobre outras coisas, mas que em

alguma medida estão relacionadas ao trauma.

Essa mudança de foco na narração é, talvez, a principal constante do conto. Mais do

que uma história principal, que ligaria todas as narrativas, “The soul is not a smithy” tem a

dificuldade de manter o foco em uma só história. Em alguns trechos a mudança na narrativa

chega a ser brusca; o narrador está contando sobre a história da janela, desta vez falando da

triste experiência dos cachorros, e de repente comenta sobre o silêncio da sala: “as for several

consecutive panels there are depictions of the cement exterior of the pipe but no visible activi-

ty or anything exiting the pipe at either end except for the ominous orange trickle into the riv-

er. The whole Civics classroom had become very quiet”79

. Em outros momentos, uma lem-

brança se interpõe sem explicação entre duas outras, como quando o narrador está falando da

descrição do professor Johnson feita pelo Dispatch que ficou gravada em sua memória, para

no parágrafo seguinte, sem aviso, falar do relato imaginativo do irmão sobre a mesa antiga da

família com o rosto da Rainha Elizabeth gravado em pedras preciosas, parágrafo este que é

seguido pela descrição da mesa da quarta série com um desenho entalhado pelo aluno do ano

anterior80

. E o narrador, tomando o leitor pela mão, o leva a se perder junto com ele.

Com esses exemplos quero destacar que o trauma deixa de ser o foco principal do con-

to, conforme se anunciara no início. O conto conta a história do trauma, mas o conto não é,

em essência, a história do trauma. Esse evento fatídico abre espaço para muitas outras histó-

rias (ora fatídicas, ora não), que assumem, cada uma na sua vez, o papel de narrativa principal

enquanto são contadas. Uma lembrança puxa outra, tornando difícil precisar sobre o que exa-

tamente é o conto. São tantas histórias! E isso culmina em muitos personagens e muitos te-

mas, entre eles o da própria memória. Esse movimento do texto, que vai de uma lembrança à

outra, misturando-as e confundindo-as, é mais do que uma representação da dinâmica do pen-

79

Id., p. 88. 80

Id., p. 76-7.

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36

samento no estilo fluxo de consciência; é, também, a representação do anseio por sinceridade,

por revelar tudo o que vem à mente para tentar descobrir, reconstruir, elaborar a memória,

concebida como algo que se tenta organizar e que por isso mesmo pode parecer confusa, já

que é sempre uma reconstrução, uma releitura, nunca tão somente é. Nesse relembrar o narra-

dor se perde, esquece do que está falando e se confunde, e esse esquecimento, essa confusão

tem que ver com a sinceridade de que Wallace tanto fala. A sinceridade aparece marcada na

voz infantil do narrador já analisado, um narrador confusamente traumatizado, que apreende

melhor os detalhes periféricos do que os principais acontecimentos. O conto, portanto, não só

tematiza a memória enquanto reelaboração, mas procura representá-la em todo esse movimen-

to de passar de uma lembrança à outra.

Para o narrador de “The soul is not a smithy”, as lembranças são periféricas, e ao

mesmo tempo em que expressa tal perspectiva ele a exemplifica:

As if the fragment were not done with you yet, in much the same way that

now, so very much later, the most persistent memories of early childhood

consist of these flashes, peripheral tableaux – my father slowly shaving as I

pass my parents’ bathroom on the way downstairs, our mother on her knees

in a kerchief and gloves by a rosebush out the kitchen’s east window as I fill

a water glass, my brother breaking his wrist in a fall off of the jungle gym

and the far-off sound of his cries as I drew in the sand with a stick. The pi-

ano’s casters in their small protective sleeves; his face in the foyer coming

home.81

Esse caráter periférico da memória é bastante recorrente no conto, e, assim como acon-

tece no processo de lembrar explicado pelo narrador, na própria narrativa detalhes a princípio

não tão relevantes ganham uma importância considerável e recebem uma grande atenção. É

importante, por exemplo, o foco do narrador nas narinas do psicólogo que o entrevistou para

tratar do trauma na sala de aula: “Such is adult memory’s strangeness, though, that I can still

recall in great detail the sight of Dr. Biron-Maint’s nostrils, which were of noticeably different

shapes and size”82

. E esse detalhe foi tão significativo que “To be frank, the consensus was

that Dr. Biron-Maint gave many of us the willies even more than Mr. Johnson”83

. Ou seja, a

aparência do psicólogo, que deveria ajudar os alunos a lidar com o trauma, causava mais cala-

frios do que o trauma em si! Um detalhe como esse passa a ser tão significativo a ponto de se

tornar uma das principais recordações que o narrador tem da época. Isso porque ele consegue

descrever minuciosamente as lembranças periféricas, como as narinas do psicólogo e sua pró-

81

Id., p. 94 (grifo meu). 82

Id., p. 85. 83

Id., p. 85.

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37

pria imaginação sobre o que poderia ter acontecido para que o homem tivesse uma tal aparên-

cia, mas não é capaz de ter certeza sobre o evento traumático. Essa ideia pode ser reforçada

também na narração do trauma em si, em que o narrador dá mais ênfase à história da janela do

que aos acontecimentos da sala. E o que faz voltar sua atenção para a sala não é qualquer es-

tranheza com a postura do professor ou dos alunos, mas o vômito de um colega84

– um deta-

lhe entre tantos outros, que nem de longe é o principal detalhe do trauma. É importante refor-

çar, assim, que o que há de mais interessante nessa ênfase do processo de lembrar não é só o

que narrador comenta sobre isso, mas a forma como a narrativa representa esse processo.

Nesse processo de lembrar, também chama atenção o foco sobre as diferentes percep-

ções de um determinado acontecimento, reforçando a ideia da lembrança enquanto reelabora-

ção como algo essencialmente pessoal, a ponto de a comunicação com os outros, em um nível

realmente profundo – que foge à irreverência e à ironia, portanto –, ser difícil:

We often can remember the details and subjective associations far more viv-

idly than the event itself. This explains the frequent tip-of-the-tongue feeling

when trying to convey what is important about some memory or occurrence.

Similarly, it is often what makes it so difficult to communicate meaningfully

with others in later life.85

E, novamente, o conto não só comenta essa dificuldade de se comunicar com os ou-

tros, mas apresenta isso nas relações dos personagens. O principal exemplo do conto nesse

sentido talvez seja o da percepção do narrador e sua futura esposa sobre o filme “O Exorcis-

ta”; em um primeiro momento, há um pleno consenso entre os dois sobre o quanto o filme era

repulsivo, a ponto de a situação toda caracterizar “the first moment of what I would consider

true affinity and concord that Miranda and I experienced”86

. No entanto, quando recordam o

filme, as opiniões dos dois divergem, e o detalhe periférico que se tornou o momento mais

significativo do filme para o narrador passou despercebido para Miranda, que, na perspectiva

do primeiro, faz pouco caso da forte impressão que ele teve87

. Ou seja, nem com a pessoa

mais amada, mais próxima, aquela comunicação significativa de que fala o narrador é sempre

possível, ou chega a ser possível, já que a percepção de algo e a lembrança que fica daquilo é

tão pessoal. O problema da comunicação nas relações humanas aparece de várias maneiras no

conto, seja na incompreensão do narrador por seus pais e professores, seja na expressão do

84

Id., p. 101. 85

Id., p. 97. 86

Id., p. 95. 87

Id., p. 97.

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narrador sobre a impossibilidade de contar seus sonhos, suas impressões sobre a vida adulta,

para seus pais, seja nas histórias breves dos colegas de sala de aula, também incompreendidos,

a exemplo de Mandy Blemm e suas dificuldades de leitura88

. O exemplo da relação do narra-

dor com seu pai também é bastante marcante ao revelar essa dificuldade comunicativa:

Sadder still was trying to imagine what he thought about as he sat there, [...]

but the truth is that I have no idea what he thought about, what his internal

life might have been like. And that were he alive I still would not know. Or

trying (which Miranda feels was saddest of all) to image what words he

might have used to describe his job and the square and two trees to my

mother. I knew my father well enough to know it could not have been direct

– I am certain he never sat down or lay beside her and spoke as such.89

Miranda achava que o mais triste de tudo isso seria a transmissão sutil de impressões

do pai do narrador sobre seu trabalho, tão depressivamente caracterizado no conto. E o narra-

dor também expressa uma profunda tristeza naquilo que conta, nas impressões que ele tinha

do pai e na impossibilidade de se comunicar com, de se conectar a alguém a princípio tão

próximo. A autoconsciência e a sinceridade do narrador são marcantes nessa história sobre o

pai, sobre o muro invisível entre eles que impedia a desejável comunicação significativa. O

narrador expõe a si mesmo ao falar sobre o pai, não se esconde, mas conta sua própria histó-

ria, revela seu próprio desespero. E ele não recorre à irreverência e à ironia para fazer isso,

maquiando o problema ou simplesmente brincando com ele; sua opção é pela sinceridade au-

toconsciente para tratar de temas delicados, tão sofridamente humanos. Wallace, portanto, faz

nesse conto o que ambiciona em “E Unibus Pluram”, e é ousado ao fazê-lo, sujeitando-se às

interpretações de que é ultrapassado, sincero demais, ingênuo.

Os muros das relações humanas são recorrentes em Wallace, que problematiza isso

pela via de uma sinceridade incômoda e insistente. Vemos o drama da vida adulta presente em

outros contos e no romance “The Pale King”, do qual “The soul is not a smithy” muito se

aproxima. O tema central de “The Pale King”, que o autor deixou incompleto e que foi publi-

cado depois de sua morte, é o tédio, representado no ambiente corporativo, e antes de seu lan-

çamento muito se falou sobre a possibilidade de os contos “The soul is not a smithy” e “In-

carnations of burned children”, ambos de “Oblivion”, serem capítulos desse romance90

. Po-

rém, na versão publicada, organizada por Michael Pietsch, eles não apareceram. De qualquer

maneira, a aproximação temática com “The soul is not a smithy” é evidente, em especial pela

88

Id., p. 86-7. 89

Id., p. 107. 90

FITZPATRICK, 30/12/09.

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caracterização do tedioso trabalho corporativo feita no conto e no romance. Nessa caracteriza-

ção, em ambos os casos há um destaque para a frieza desse sistema de trabalho que nem de

longe privilegia as relações humanas, mas, pelo contrário, cria um ambiente opressivo e im-

pessoal, quase desumano. Exemplifica isso a tragicômica e curta notícia de jornal apresentada

no §4 de “The Pale King”, relatando que certo funcionário sofreu um infarto (a “coronary”,

mesmo termo usado para falar da morte do pai do narrador de “The soul is not a smithy”) no

ambiente de trabalho e só depois de quatro dias um outro funcionário se deu conta de que ele

estava morto!91

Menos trágica mas igualmente triste é a realidade do pai do narrador em “The

soul is not a smithy”:

I do not believe I knew or could even imagine, as a child, that for almost 30

years of 51 weeks a year my father sat all day at a metal desk in a silent, flu-

orescent lit room, reading forms and making calculations and filling out fur-

ther forms on the results of those calculations, breaking only occasionally to

answer his telephone or meet with other actuaries in other bright, quiet

rooms. With only a small and sunless north window that looked out on other

small office windows in other grey buildings. […] I knew that he liked to

have music or a lively radio program on and audible all of the time at home,

or to hear my brother practicing while he read the Dispatch before dinner,

but I am certain I did not then connect this with the overwhelming silence he

sat in all day.92

Nesse contexto, o silêncio passa a ser a presença mais marcante do trabalho, realizado

em um ambiente cinza, sem cor, sem vida. O pai do narrador eventualmente se reúne com

outros de sua área, mas ainda assim as salas de reunião são marcadas pelo silêncio esmagador

que o rodeava o dia todo, em 51 semanas por ano (e o ano tem 52 semanas!), durante quase 30

anos. Sendo o silêncio a principal companhia do pai do narrador, não é de se estranhar que a

comunicação seja um problema, que a sutileza das impressões do pai sobre o trabalho comu-

nicadas à mãe seja tão triste. Também não é de se estranhar o desespero do narrador ao sonhar

com o trabalho do pai, um trabalho que, para o narrador, eliminava a humanidade e personali-

dade do indivíduo: “Part of the terror of the dream’s wide angle perspective was that the men

in the room appeared as both individuals and a great anonymous mass.”93

O silêncio esmaga-

dor, que não significa necessariamente a falta de barulho, mas sim a falta de comunicação

humana e real, significativa, é tão angustiante que até aquilo que individualizaria os funcioná-

rios passa a ser triste:

91

WALLACE, 2011, p. 29-30. 92

WALLACE, 2004, p. 105-6 (grifo meu). 93

Id., p. 108.

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A few of the chairs’ seat portions had cushions made of corduroy or serge,

one or two of them brightly colored and edged with fringe in such a way that

you could tell they had been handmade by a loved one and given as a gift,

perhaps for a birthday, and for some reason this detail was the worst of all.94

O detalhe que traz resquícios de relações humanas não é suficiente para dar conta da

opressão do trabalho, que é a principal atividade da vida desses funcionários-máquinas. No

entanto, a problematização aqui não é simplesmente do trabalho corporativo, da função tedi-

osa de um securitário ou de um fiscal de imposto, como no caso de “The Pale King”. Nessas

narrativas, importa mais o silêncio que domina mesmo no contexto de relações humanas, em

que a comunicação em um nível mais profundo por algum motivo é impedida. Em uma das

chamadas entrevistas de “Brief interviews with hideous men”95

, por exemplo, um homem

descreve o trabalho peculiar de seu pai, que tinha de se fazer invisivelmente presente para

poder servir bem:

Os suaves sons de ‘ploft’. Os fracos sons de gases. Os gemidinhos involuntá-

rios. O suspiro particular de um senhor mais velho no mictório, o jeito que

ele se coloca ali e firma os pés e mira e então solta um longo suspiro do qual

você sabe que ele não se dá conta. Era este o ambiente dele. Seis dias por

semana ele ficava ali. Jornada dupla aos sábados. [...] O dia todo. Nove horas

por dia. De pé ali no Bom Humor branco. [...] Seu trabalho é ficar ali como

se não estivesse ali. Mais ou menos. Há um segredo nisso. Um nada peculiar

estampado na cara. [...] Imagine não existir até que um homem precise de

você. Ficar ali e ao mesmo tempo não estar ali. Uma translucidez por vonta-

de própria. Estar ali contingente e provisionalmente. Os antigos diziam Viver

para o trabalho. Sua carreira. Seu ganha-pão.96

A profissão desse personagem é basicamente servir em um banheiro de luxo, seguran-

do casacos, oferecendo toalhas, ajudando da maneira que for requisitado. Mas para não causar

nenhum incômodo na privacidade de quem vai ao banheiro, ele precisa não chamar qualquer

atenção para si, ele precisa antecipar o que os outros querem e servi-los sem alarde. Quanto

mais invisível, melhor. Breadwinner é o termo utilizado tanto no original desta entrevista

quanto em “The soul is not a smithy” para designar o trabalho dos pais dos narradores. O ter-

94

Id., p. 109. 95

Este livro é, como coloca Galindo, provavelmente um dos mais experimentais de Wallace (2011, p. 6), e as

entrevistas que dão nome ao livro são um bom exemplo dessa experimentação do autor. Isso porque não temos

transcrições de entrevistas nos moldes tradicionais, com pergunta e resposta; o entrevistador não aparece senão

por um “Q.” que intercala algumas falas ora mais, ora menos organizadas. No caso da entrevista aqui citada (de

número 42), o texto é praticamente linear no sentido de que não dialoga tanto com a presença marcada do inter-

locutor, e por isso podemos considerar o entrevistado um narrador, já que ele conta uma história quase sem de-

pender dessa outra presença, que inevitavelmente acaba sendo a do próprio leitor. 96

WALLACE, 2000, p. 86, 87 e 90.

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mo, conforme destacado no conto, tem conotações competitivas97

, revela algo de nobre sobre

os trabalhadores que, cada um na sua função, ganham o pão e o leite das crianças a duras pe-

nas. O silêncio de um e a invisibilidade de outro são as marcas do seu ganha-pão que ambos

os trabalhadores inevitavelmente levam para casa, afetando aqueles que supostamente lhes

são próximos. No caso do narrador do conto, o jeito do olhar do pai quando ele voltava para

casa do trabalho no fim do dia deixava-o transtornado e influenciava terrivelmente seus pesa-

delos98

. E ele sabia que seu pai tentava recuperar algo de si no seu tempo de folga, mas não

era bem assim que funcionava: “He often had to work at the office six days a week, and he

liked to call Sunday his day to try to glue what was left of his nerves back together. But that

was not how it worked.”99

No caso do narrador da entrevista, a influência da vida do pai tam-

bém se faz presente, mas o que mais se destacam são as perguntas que ele faz para si, para o

entrevistador, para o leitor:

Não uso nada que seja branco. Eu te garanto que eu não uso nada mesmo. Eu

evacuo totalmente em silêncio ou nem um pouco. Eu dou gorjeta. Eu nunca

esqueço que alguém está ali. Pois é, e eu admiro a fortitude deste trabalhador

dos mais humildes? O estoicismo? [...] Ou, você se pergunta, eu o desprezo,

sinto nojo, desdém por qualquer homem que fique apagado naquele miasma

distribuindo toalhas por moedas?

Perguntas assim não estão tão diretamente colocadas em “The soul is not a smithy”,

mas a interlocução com o leitor também se faz presente na medida em que, em ambos os tex-

tos, as histórias não respondem a todas as perguntas que fazem, não se pretendem conclusivas,

incomodam porque supostamente estão incompletas.

Além disso, o grande drama desses personagens não está tanto na sua condição de tra-

balhador; está, principalmente, na representação das barreiras que se interpõem nas relações

humanas, entre indivíduos que estão fisicamente muito próximos, seja passando o dia todo na

mesma sala e fazendo a mesma coisa, seja estando no mesmo banheiro, em situações bem

íntimas, digamos assim. E por que tais barreiras se fazem tão presentes? Se pela via de uma

crítica marxista, elas podem estar totalmente relacionadas ao sistema de trabalho explorador,

mas talvez também sejam, por exemplo, frutos de uma cultura que deixou de privilegiar o

contato humano, e nisso voltamos às ideias de Wallace em “E Unibus Pluram”.

97

WALLACE, 2004, p. 105. 98

Id., p. 103. 99

Id., p. 77-8.

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Não é à toa que o autor problematiza tanto essa barreira comunicativa, essa dificuldade

de se relacionar; como se pode notar, a questão é recorrente e dramaticamente colocada em

contos e romances. E o que de conclusão poderíamos tirar dessa recorrente problematização

não tem tanto que ver com uma solução para o problema, mas com a insistência em sua ex-

pressão sincera. Em vez de ironizar o problema ou louvá-lo, Wallace prefere recorrer à sua

dramatização, mesmo que para tanto acabe expondo a si mesmo em seus personagens, que

não têm nada daqueles adorados super-heróis norte-americanos (mesmo que queiram ter, co-

mo no caso do narrador do conto e seu “markedly familiar looking Robin”100

). São demasia-

damente humanos, e esse fato não tenta ser suprimido.

Nessa busca constante por uma expressão sincera, inevitavelmente o uso de artifícios

se faz necessário, como bem demonstra Galindo em “A voz de David Foster Wallace em seu

Octeto: ou como ser sincero pode ter de passar por artifícios”101

. No caso de “The soul is not a

smithy”, é possível perceber artifícios no próprio uso do DIL, na construção de histórias por

vezes paródicas, na expressão autoconsciente da tristeza daquilo que se está contando. A difi-

culdade na busca por sinceridade não é pouca, a começar porque alguma manipulação do efei-

to desejado, da qual Wallace é bem consciente, conforme demonstrado no primeiro capítulo

desta pesquisa, é inevitavelmente parte do processo de escritura e poderia, portanto, resultar

na perspectiva de que a sinceridade expressa é forjada. E como isso incomodava Wallace! O

conto “The Devil is a Busy Man” (o segundo de dois com o mesmo título), por exemplo, tam-

bém de “Brief interviews with hideous men”, brinca com a ideia de querer ser bom sem pare-

cer bom ou sem que os outros saibam que eu sou bom; em seu desejo incontrolável por ser

uma boa pessoa, o protagonista tenta esconder uma boa ação que fez, mas não consegue e

ainda fica se sentindo péssimo por ter obtido exatamente aquilo que queria: ser uma boa pes-

soa para os outros!102

Para Wallace, a transação artística envolveria um presente, e, ao entre-

gá-lo com o desejo (por vezes expresso) de que ele transmita sinceridade, o autor sofre com a

possibilidade da reação – inevitável, talvez – de que essa sinceridade não é realmente sincera!

Essa confusão toda está relacionada ao problema da ironia enquanto imposição e às

dificuldades de se chegar ao outro, de se comunicar de maneira significativa; afinal, em uma

cultura em que o duplo sentido é a regra, querer dizer algo realmente parece meio impossível

e improvável. Ainda assim Wallace não deixou de tentar, e “The soul is not a smithy” é uma

boa amostra dessa busca por sinceridade, seja na postura de dar voz aos personagens e à ver-

100

WALLACE, 2005, p. 72. 101

GALINDO, 2011. 102

WALLACE, 2000, p. 190-3.

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são infantil do narrador – e essa voz às vezes é “feia” e “chata”, como reclama Wood103

–,

seja na abordagem de histórias tristes, com personagens que são fracos, confusos, esquecidos

e tão sofridamente humanos.

Ainda, é nessa abordagem do humano, pela via da sinceridade, que Wallace procura se

opor a Joyce, um autor reconhecidamente irônico. O título do conto joga com o final de A

portrait of the artist as a young man: “Welcome, O life, I go to encounter for the millionth

time the reality of experience and to forge in the smithy of my soul the uncreated conscience

of my race”104

. Aqui, Stephen Dedalus parece bem otimista, crente de que sua alma é, sim,

uma forja, uma oficina capaz de moldar, no caso, a consciência do povo irlandês. Wallace,

por sua vez, declara que não, a alma não é uma forja; ela é passiva, não ativa, como em Joyce.

E o enredo do conto reforça essa ideia, na medida em que os acontecimentos sobrevêm, os

traumas são inevitáveis, a vida passa sem grandes conquistas para o pai que trabalha 51 sema-

nas por ano, para a família que simplesmente não consegue se comunicar, para os alunos

traumatizados que, quando adultos, têm empregos medianos. A imagem de uma alma-forja,

de uma força no interior do homem que permite que algo seja moldado, é bela, mas não mais

possível para Wallace, que provoca na própria questão da consciência patriótica, com alunos

representando os Pais Fundadores sem muita ideia do que estão fazendo, confusamente parti-

cipando só de mais um evento da escola, que acaba sendo engraçado e divertido justamente

porque os envolvidos não representaram bem seus papéis105

.

Joyce reflete uma época em que a ironia talvez fosse a melhor ferramenta para provo-

car nem que seja uma reflexão sobre a ideia do romance enquanto convenção, em que a pro-

vocação das convenções era mais do que necessária. Wallace, porém, representa uma outra

época, a nossa época, já saturada de provocações e talvez precisando de outra abordagem –

pela sinceridade, pelo reconhecimento de que somos mais passíveis de ser forjados (pela tele-

visão inclusive) do que o contrário e de que não somos nem anti-heróis (quanto mais super-

heróis), pela tentativa de ressaltar que o problema da comunicação é, de fato, um problema

que nos distancia e nos impede de chegar ao outro de maneira significativa, e é na representa-

ção dessa busca por um jeito diferente de expressar tais problemas que talvez esteja o maior

mérito de Wallace.

103

WOOD, 2008, p. 32 e 34. 104

JOYCE, 1991, p. 257 (grifo meu). 105

WALLACE, 2004, p. 112-3.

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3. O presente da arte, o presente da tradução

A ideia da transação artística como algo que envolve um presente, citada no primeiro

capítulo, é de Wallace, que a recebeu de Lewis Hyde, também brevemente citado. Hyde, por

sua vez, foi buscar essa ideia em estudos antropológicos, em mitos e na literatura, especial-

mente em Whitman e Ezra Pound.

Em seu livro “The Gift”, publicado pela primeira vez em 1983 e já na sua vigésima

quinta edição, Hyde defende que o que diferencia a arte de uma outra mercadoria qualquer –

inclusive de um best seller – é a presença de um presente, de algo recebido e passado adiante.

Seja como um dom, um talento, uma habilidade, o artista recebe um gift, e a partir dele traba-

lha, age como um artesão criando algo. Depois de concluída, a criação em si também se torna

um presente quando é passada adiante – o presente é algo dinâmico, e morreria se ficasse en-

gavetado. A obra de arte carrega um presente na medida em que aquele que se vê diante dela

sente que o recebe. Diante de uma pintura, durante um concerto, no decorrer de uma leitura, o

sujeito sente que recebe algo, sente-se tocado. Sente que aquilo que ele recebe vale muito

mais que o preço do ingresso do museu ou do concerto, vale muito mais que o preço de capa

do livro – aqui, essa lógica do mercado parece não se aplicar mais. Mas uma das perguntas

que move o estudo de Hyde é justamente como a arte pode sobreviver em um contexto em

que o lucro, e não a dádiva, é a regra? Como colocar um preço na arte? E se a arte não tem

preço, como o artista vai sobreviver?

“The Gift” não se propõe a responder a todas essas perguntas, mas é ousado ao fazê-

las e continua sendo aclamado por artistas pela reflexão que propõe. E entre os fãs de Hyde

temos David Foster Wallace, cujo elogio consta de algumas das edições do livro:

“The Gift” actually deserves the hyperbolic praise that in most blurbs is so

empty. It is the sort of book that you remember where you were and even

what you were wearing when you first picked it up. The sort that you hector

friends about until they read it too. This is not just formulaic blurbspeak; it is

the truth. No one who is invested in any kind of art, in questions of what real

art does and doesn’t have to do with money, spirituality, ego, love, ugliness,

sales, politics, morality, marketing, and whatever you call ‘value’, can read

“The Gift” and remain unchanged.106

Aquilo que Wallace admira em Hyde é um pouco do que ele procura tratar em sua

própria obra: o papel da arte, o eu, o amor, o valor das coisas. E fica claro na fala de Wallace

106

HYDE, 2007.

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que ele foi mudado por “The Gift”, que ele também recebeu esse presente, e, portanto, como

artista ele também quer entregar algo. Pode-se dizer que o presente de Wallace se reflete, por

exemplo, em sua busca por sinceridade e autenticidade, em não manipular o leitor, em não

enganar a si mesmo.

Curiosamente, tanto Lewis Hyde quanto Wallace não estão longe do mercado, aquele

mesmo que privilegia o lucro de um em detrimento do presente de vários. Os livros de ambos

viraram best sellers! Não é a pobreza econômica do artista, então, que mede a grandeza de sua

arte – apesar de, infelizmente, não serem poucos os casos desse tipo, e Ezra Pound, como de-

monstra Hyde, foi um dos que muito se incomodaram com isso; afinal, como é possível que

Joyce não tenha sapatos?107

O que esse sucesso de vendas de autores como Hyde e Wallace

pode revelar é que há talvez algum espaço para artistas assim. Revela que mesmo hoje artistas

que acreditam no presente da arte não precisam morrer de fome, nem se perder na busca por

lucro acima de tudo, escrevendo o que os leitores querem ler, massageando o ego do públi-

co108

, inserindo-se na economia de mero entretenimento.

O presente, portanto, exige primeiramente algo como uma honestidade do artista para

consigo mesmo, e não uma manipulação que vise tão somente vendas/lucros e que aja em

detrimento do dom do próprio artista. Nesse sentido o presente tem mais relação com a auten-

ticidade do artista, com uma fidelidade a si mesmo, do que com uma preocupação com o lei-

tor – o presente entregue nem sempre é apreciado, e geralmente não pela geração do artista.

Ao mesmo tempo, porém, o artista que quer entregar um presente também o faz para em al-

guma medida agradar seu leitor/espectador; o presente que é dado a outro considera esse ou-

tro, também é feito para ele. E a ideia de manipulação retorna aqui, aquela mesma que Walla-

ce disse ser por vezes inevitável, já que, no caso dele, almejar sinceridade pode significar for-

çar uma sinceridade com fins nada sinceros, digamos assim – mostrar-se original, mostrar

virtuosismo, enfim, atrair o leitor. Fica evidente, assim, que não estão muito bem definidos os

limites entre uma obra de arte que traz um presente realmente artístico e uma outra que almeje

vender mais do que expressar o dom do artista, mais do que transmitir seu presente. O objeti-

vo de Hyde ao tratar do presente da arte não é estabelecer tais limites, mas mostrar que o pre-

sente da arte não segue a lógica do mercado, mesmo quando está inserido nele.

Mas o que tudo isso tem que ver com tradução? O tradutor é muito provavelmente

aquele leitor que sente que recebeu algo, seja de um poema, de um conto, de um romance. O 107

Id., p. 252. 108

E o próprio Wallace reflete sobre isso em um ensaio sobre o diretor David Lynch, cujos filmes provocam por

justamente não afirmarem ou massagearem, por exemplo, aquelas certezas sobre bem e mal a que estamos tão

acostumados (WALLACE, 1997, p. 209-12).

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tradutor recebeu o presente da arte, e como esse presente é dinâmico ele quer passá-lo adiante.

Em alguma medida o leitor que não traduz literalmente também quer e faz isso, a começar

por, nas palavras de Wallace como leitor de Hyde, insistir com todos os seus amigos para que

leiam e também recebam aquele presente. O acúmulo é para o lucro o que a doação é para o

presente. Mas por que esse desejo de dividir, estranho em tempos de capitalismo? Porque,

como anunciei na introdução, o presente é e não é nosso. E essa lógica se expressa bem na

figura do tradutor, que tem com o original uma relação de dívida e pertencimento. O original

deu-lhe algo, e ao ser traduzido ele passa a ser do tradutor também. Mas o tradutor não traduz

para si – isso pode acontecer, mas em geral não é o caso –, pois ele também quer um leitor

que receba seu presente, um presente que ele recebeu, com o qual ele trabalhou e que final-

mente é entregue em uma nova embalagem. Pensando em termos de tradução, o ciclo do pre-

sente passa a ser menos metafórico, graças à presença desse original real, materializado em

papel. Mas esse papel está morto quando não é lido, o presente que ele carrega inexiste en-

quanto não for aberto. A leitura e a tradução dão vida a esse presente, recriam-no, reinventam-

no, transformam-no e ainda o transmitem novamente. Talvez seja esse processo que dê aquela

aura mágica à arte, talvez seja essa presença do contato com o outro refletida na figura do

presente que a torne tão incrível, tão possível de se tornar infinita.

O tradutor coloca-se como parte deste ciclo do presente, recebendo-o e passando adi-

ante. Ele faz isso quando está consciente desse presente, quando reconhece a arte do que tra-

duz. Mas ele também pode se perder na lógica do lucro, traduzindo a toque de caixa – quase

sempre para sobreviver, como pode acontecer com o artista também –, e por vezes interferin-

do conscientemente para transformar a tradução do original em algo que o público queira, em

algo que, acima de tudo, seja um sucesso de vendas. Assim como o artista, o tradutor pode

acabar recorrendo à manipulação da lógica do mercado, descaracterizando o presente da arte.

A fidelidade à tradução envolvida aqui é uma fidelidade ao presente. É também uma fidelida-

de do próprio tradutor para consigo mesmo, pois ele, como o artista, também recebeu um pre-

sente e trabalha para transmiti-lo, com sua linguagem, com sua experiência, com sua arte. O

tradutor também precisa ser autêntico, e os problemas de tradução surgem quando se exclui

esse papel de artesão do tradutor, quando o tradutor se transforma em mero transmissor, como

se isso de fato fosse possível.

Assim como a linguagem, o presente traz consigo a ideia de dinamicidade; ele está

morto se não é passado adiante. A tradução dá vida ao original, à língua, ao presente da arte,

tornando-se um presente também. Ela é possível porque o original só traz algo na medida em

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que ele é lido – o presente está em quem o recebe, e não necessariamente no objeto da arte. O

presente estava no processo de criação do autor, que também recebeu algo, mas o que ele en-

trega se transforma a cada leitura. Assim, por mais subjetivo que isto seja, o presente tem que

ver com uma atitude de doação e seu valor está mais no efeito provocado do que no objeto

que resulta da criação. O presente precisa ser recebido para se tornar um presente.

Tudo isso torna difícil a identificação deste presente que diferenciaria uma obra de arte

de outra qualquer, e não foi desta vez, com Lewis Hyde, que recebemos a definição definitiva

sobre o que é literatura, ou a arte em geral. O que se pode concluir, talvez, é que o presente é

dinâmico, e a arte envolve essa dinamicidade na busca por entender o outro, por comunicar.

Ao desejar ser parte disso, o tradutor faz o presente reviver e o torna acessível a outros.

A ideia de presente permeou esta pesquisa, um presente desejado e, acredito, transmi-

tido por Wallace. A tradução apresentada aqui também almejou dar contar deste presente,

retransmiti-lo. Para que isso fosse possível, foi importante procurar entender um pouco me-

lhor o presente do autor identificando algumas das características de sua obra, de sua propos-

ta, apresentadas brevemente no primeiro capítulo. Podemos falar em termos de presente espe-

cificamente no caso de Wallace, que acreditava nisso, mas talvez essa perspectiva não se apli-

que a todos os autores. Da mesma forma, é difícil falar que toda tradução considera esse pre-

sente e se torna um presente – aliás, o tornar-se um presente tem que ver muito mais com os

leitores desse novo texto do que com a tradução em si. Mas, novamente, no caso de Wallace a

ideia de presente está presente, e por isso cabe à tradução considerá-la. Das poucas certezas

que se pode ter sobre a tradução, uma delas é que não há muito espaço para generalizações.

Assim, defendo a ideia do presente da tradução de Wallace, um presente que pode ser visto na

busca do autor em, na contramão da lógica do mercado (e da literatura irônica da moda), so-

mar sinceridade e autenticidade e misturar sua voz à dos personagens, com linguagens por

vezes feias e grosseiras. A tradução procurou dar conta especialmente dessas características

do presente, mas há outras, sem dúvida. Novas leituras expressas em traduções serão sempre

bem-vindas, e espero que outros também reconheçam o presente de Wallace e queiram passá-

lo adiante.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que pode haver ainda de considerações finais nesta pesquisa está relacionado à tra-

dução apresentada como anexo. Foi ao redor dela que a pesquisa se desenvolveu, servindo

quase como uma introdução. Mas, preciso admitir, foi com ela que comecei a pesquisa – foi a

tradução que permitiu a leitura necessária para a análise do próprio conto sendo traduzido.

O desafio de traduzir David Foster Wallace, ainda que somente um conto, não foi pe-

queno para mim, mas acredito que serviu a seus propósitos – procurar entender mais o autor,

aprender sobre tradução, aprender sobre literatura. Não é sempre que projetos pessoais de

tradução, e não aqueles encomendados, são possíveis, e só por ter permitido essa realização

acredito que a pesquisa foi muito proveitosa. Acredito também que o resultado da pesquisa

que envolveu o indireto livre, a crítica ainda reduzida sobre a obra de Wallace, a leitura de

outros textos do autor e a análise propriamente do conto também foi relevante para dar desta-

que a um autor contemporâneo nosso, um que acreditava no presente da literatura e tinha ide-

ais talvez bobos para a nossa época, mas que, conforme a presente pesquisa almejou demons-

trar, procurava efetivamente realizar em sua obra aquilo em que acreditava, especialmente no

que tange à expressão da sinceridade e ao desejo por se comunicar com o outro, um outro tão

obscuro quanto evidente – um leitor tão desconhecido, mas que se torna tão próximo graças a

esse contato mediado por papel.

Esta pesquisa também procurou revelar a importância de Wallace para o cenário con-

temporâneo da ficção ao apresentar o problema de uma herança midiática e literária de ironia,

um recurso que passou a incomodar sobremaneira por ter se tornado a regra, não só limitando

leituras e escrituras, mas, pior, nos levando a gostar dessas limitações. Uma das respostas de

Wallace a essa gaiola foi a tão mencionada sinceridade, que, mesmo sujeita a manipulações,

revela um dos presentes do autor para seus leitores. Essa sinceridade, por sua vez, tem que ver

com o também enfatizado desejo por se comunicar significativamente, um desejo expresso de

Wallace, mas que também se revela no artista, no leitor e no tradutor que buscam na arte a

expressão do que há de mais humano: a linguagem, esse eterno mistério. E é no campo da

tradução que esta pesquisa mais expressa esse desejo que se relaciona com o original e com

um novo leitor de um novo texto. Cabe ainda fazer, portanto, algumas observações sobre a

tradução, dialogando com esse original e pensando nesse novo leitor.

A tradução feita para esta pesquisa não apresenta notas de rodapé com informações

que poderiam ajudar na compreensão do texto, que serviriam para explicar trechos difíceis,

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que funcionariam, enfim, no sentido de justificar as escolhas feitas. Esse procedimento foi

considerado – e há trechos que talvez precisem de explicações e justificativas –, mas optamos,

meu orientador e eu, por uma versão limpa, sem essas interferências. Talvez pudéssemos op-

tar por elas com menos culpa tratando-se do conto de um autor como Wallace, que realmente

gostava de notas de rodapé; em “Infinite Jest”, por exemplo, é famosa a nota com a filmogra-

fia do personagem James Incandenza, ocupando quase nove páginas. Ainda assim, a ausência

de notas nesta tradução se justifica porque em alguma medida o texto dá conta dele mesmo e

porque talvez quase todos os casos a que caberiam notas também precisariam dessas explica-

ções no original. Mas neste conto especificamente não há notas do autor109

, e em geral as refe-

rências presentes no texto, como nomes de personagens de filmes/séries, não chegam a ser

mais distantes para um leitor brasileiro do que para um norte-americano. Além disso, como há

este espaço fora da tradução para explicações adicionais, notas que interfeririam no movimen-

to do conto foram consideradas dispensáveis.

Outro procedimento importante a ser destacado aqui tem que ver com a correção de

erros do original. Erros evidentes de ortografia costumam ser corrigidos quando da edição dos

textos a serem publicados no Brasil, mas mesmo em casos assim não optamos pela correção.

No conto traduzido, há um caso de provável erro de ortografia, mas a correção poderia acabar

marcando um outro possível erro. No trecho “Llewellyn said the sub looked like he was

scared of his own shadow, like Miles O’Keefe or Gunsmoke’s Festus”110

, o nome Miles

O’Keefe aparece com um só “f”. A referência parece sugerir o ator Miles O’Keeffe (com dois

efes), que fez o papel de Tarzan no filme “Tarzan, the Ape Man”, de 1981. O filme propõe-se

a apresentar a história de Tarzan segundo a personagem Jane Porter, em uma versão bem ero-

tizada e talvez não muito recomendável para crianças de nove anos, como o narrador do conto

e seus colegas – aliás, a crítica em geral não recomenda o filme a ninguém. O mais estranho,

porém, é que a história do conto aconteceu em 1960, e o filme é de 1981! Os dados não ba-

tem, e talvez a referência seja a algum outro Miles O’Keefe da época. Nesse sentido, a corre-

ção da grafia poderia provocar outro erro, no caso de haver um Miles O’Keefe com um só “f”,

ou colocar como definitivo o erro sobre a unidade do texto diante do problema de datas.

O caso da grafia de Miles O’Keefe não é o único exemplo do conto com o problema de

um suposto erro. No trecho “an interval of backstory had shown Father Karras’ mother forc-

ing some kind of unpleasant medicine down his throat with a steel spoon as a child, as well as 109

Vale ressaltar que em todo o livro “Oblivion” as notas são uma exceção, e não encontramos nada parecido

com as longas notas de “Infinite Jest”. Como já foi dito anteriormente, Wallace não deixava suas supostas fórmu-

las se transformarem em cacoetes. 110

WALLACE, 2004, p. 76.

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berating him in Italian for causing her to worry”111

, o narrador está dando detalhes, entre pa-

rênteses112

, sobre o filme “O Exorcista”, especificamente sobre os sentimentos de culpa do

padre Karras. Mas nessa descrição da mãe do religioso brigando com ele em italiano temos o

problema de que os personagens são claramente de origem grega. Além disso, esta cena não

aparece no filme, e o retrato da mãe um tanto malvada do padre Karras parece ser uma leitura

bem própria do narrador do conto. Sendo assim, talvez estes supostos erros são propositais; o

retrato distorcido dessa mãe pode refletir os conflitos do próprio narrador com seus pais, as-

sim como a confusão sobre a origem italiana/grega pode refletir o estereótipo de quem recorre

a estereótipos – no caso, da mãe italiana severa, falando alto e xingando. Vale lembrar que um

dos temas do conto é a memória, ou a confusão que é a memória; um evento, um filme, um

trauma é percebido de maneira diferente por cada pessoa, e não raro lembramos de algo que

não aconteceu de fato ou que não temos certeza se aconteceu – como é o caso do rápido flash

de uma face demoníaca do filme “O Exorcista” que tanto atormentava o narrador113

.

Sendo assim, a correção destes supostos erros é que seria um erro, e foi pensando nis-

so também que optamos por não colocar notas de rodapé dando destaque a questões que Wal-

lace provavelmente deixou para cada leitor resolver ou perceber. Nesse sentido, o conto é

extremamente rico e traz quebra-cabeças sutilmente construídos, e esta pesquisa não pôde dar

conta de todos eles. Temos, por exemplo, personagens da vida real e da história inventada do

narrador que se espelham, como o pai do narrador e o vilão da história na janela que bate no

cachorro, ambos com empregos administrativos tediosos e gosto por uísque com soda114

. No

conto, a repetição também é uma constante marcante, em descrições como a das carteiras pa-

rafusadas da sala115

, em objetos como a mesa da casa sonhada por Marjorie e a mesa elisabe-

tana da história do irmão do narrador116

, e em construções que poderiam ser consideradas re-

dundantes, mas que enriquecem o ritmo do texto: “It was 1960, a time of fervent and some-

111

Id., p. 96. 112

Uma outra versão das notas de rodapé, talvez? Além do uso constante de parênteses, o conto tem outra pecu-

liaridade interessante: “intertítulos” ou “chamadas” que se intercalam no texto e que geralmente funcionam no

sentido de complementar ou enriquecer a história. Em alguma medida, portanto, funcionam como estes parênte-

ses também. 113

No conto, o narrador diz que tal flash apresenta a face terrivelmente transtornada do padre Karras. Contudo,

ao cotejar o filme com a descrição feita pelo narrador, percebe-se que, de fato, esta face demoníaca aparece, mas

provavelmente ela não é do padre Karras. O rápido flash aparece mais de uma vez no decorrer do filme, e na

primeira vez, logo depois dos primeiros 30 minutos, não tem relação alguma com o padre Karras, mas com a

menina possessa. Pode haver várias interpretações para esta face demoníaca, mas o filme como um todo parece

indicar que tal flash retrata o demônio que atormenta a menina e, indiretamente, o padre Karras. Isso tudo reforça

a ideia da confusão da memória abordada no conto e muito bem representada nas retrospectivas e descrições do

narrador. 114

Id., p. 90 e 103. 115

Id., p. 67, 68, 70, 92 e 102. 116

Em ambos os casos, as mesas são de “walnut” (Id., p. 76 e 81)

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what unreflective patriotism. It was a time that is now often referred to as a somewhat more

innocent time.”117

Um dos quebra-cabeças mais curiosos, talvez, seja a aparição de uma certa

Ruth Simmons na última página do conto, apresentada como uma colega do narrador que par-

ticipou da peça da escola jogando raios de cartolina no palco118

. Aqui, o palco é o ambiente

perfeito para misturar as histórias do narrador, e já não sabemos mais o que é inventado e o

que não é na medida em que Ruth Simmons aparece duplamente como personagem. Mas a

menção é sutil e pode passar em branco, e talvez chamar isso de quebra-cabeça não seja apro-

priado, pois as peças do conto não chegam a formar um todo coeso. Ainda assim, são peças

que servem ao menos para reforçar a ideia de memória confusa e pouco confiável, tão presen-

te no conto. A análise do conto não contemplou todas estas peças, mas a tradução pode servir,

talvez, para cobrir esta falta. A tradução permitiu essa leitura atenta, pois ela precisa passar

por cada palavra, cada metáfora, cada repetição. Certamente há arbitrariedade no processo de

traduzir, e a tradução apresentada aqui se propõe como uma das leituras possíveis. Tomaram-

se os cuidados mencionados para evitar interferências mais diretas, como notas e correções ao

texto, mas, sabemos, a interferência do tradutor é inevitável. Talvez essa interferência seja

desejável se considerarmos a dinâmica do presente previamente discutida, que para continuar

existindo precisa sempre dessas novas leituras, desses novos olhares.

Ainda sobre os procedimentos de tradução, em alguns casos optou-se por adaptações

que levassem em conta o contexto do leitor do texto em português. Uma adaptação foi feita,

por exemplo, em “The temperature outside was an estimated 45 degrees”119

. Apesar de o ori-

ginal não trazer a unidade de medida, podemos supor que se trata de Fahrenheit, o padrão nos

EUA. Contudo, manter a mesma numeração ficaria bastante estranho em português, já que no

Brasil estamos acostumados com a escala Celsius. O contexto do conto deixa claro que se está

tratando de um clima frio, e um leitor brasileiro acharia bastante incoerente essa ideia ao ima-

ginar 45°C. Assim, a conversão foi feita considerando o contexto do leitor, sem ser necessário

acrescentar a unidade de medida: “A temperatura externa era de aproximadamente 7 graus”.

Outra adaptação foi feita no trecho “the father had brought him home from the

A.S.P.C.A. as a surprise on the previous Good Friday”120

, em que a sigla significa “American

Society for the Prevention of Cruelty to Animals”, um tipo de órgão que recolhe animais e se

sustenta com doações. Em vez de traduzir a sigla americana, a opção foi por colocar “Socie-

dade Protetora dos Animais”, indicando um órgão semelhante e bastante comum no Brasil. 117

Id., p. 67-8 [grifo meu). 118

Id., p. 113. 119

Id., p. 81. 120

Id., p. 83.

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Em um dos casos de adaptação foi necessário modificar uma palavra inventada que

misturava duas línguas. Em “Terence Velan was calling for his Stepmutti”121

, temos a mistura

de “stepmother” (madrasta) e “mutti”, que seria algo como mamãe, em alemão. Logo no iní-

cio do conto consta a informação de que tal personagem é filho de um alemão122

, e não é de se

estranhar que em um momento de tensão o menino faça um uso marcado de seu idioleto, de

sua linguagem própria do dia a dia. Como a relação de parentesco em si não parece importar

tanto aqui, mas sim o fato de o menino estar feito um bebê pedindo o cuidado de um adulto, e

fazendo isso naturalmente, com seu dialeto característico, na tradução optei por deixar somen-

te “mutti”, termo mais facilmente identificável para o leitor em português, em oposição ao

original, que misturava alemão e inglês. A opção muda a relação de parentesco, mas mantém

a ideia de que o personagem é descendente de alemão.

Trechos assim exigiram escolhas que podem ser consideradas perdas em relação ao

original. Há outro caso em que a solução provavelmente foi menos satisfatória do que a ante-

rior: “the peripheral tableaux of little Ruth Simmons gazing blindly upwards while a circle of

peers castigates her for the Plato figurine”123

. Nesse trecho o autor/narrador parece fazer uma

brincadeira com a pronúncia de “Playdoh” e “Plato”, que é muito parecida no inglês america-

no, sendo a segunda opção a forma “errada”, apresentada naquele discurso indireto livre não

identificável de Wallace em que o termo pode estar na boca de Ruth, dos coleguinhas de Ruth,

do narrador quando criança criando sua história ou mesmo do narrador adulto relembrando e

ironizando a história na janela. Na tradução, portanto, tentei marcar um “erro” em português:

“os quadros periféricos com a pequena Ruth Simmons olhando cegamente para cima enquan-

to uma roda de colegas como ela a castiga pela estatueta de massinhazinha”. O “erro” em por-

tuguês não chega a corresponder ao “erro” em inglês (pronúncias quase iguais), mas funciona

talvez no sentido de causar algum ruído, aquele próprio do indireto livre em que não se sabe

ao certo de quem é o termo.

Fica claro, assim, que nesse processo há perdas. Medir em termos de equivalência é

difícil, e talvez seja mais difícil ainda definir se as transformações resultantes vêm para o bem

ou para o mal. O que se apresenta é uma tradução concluída, sentenciada em papel. Contudo,

não se trata de um texto fechado, e a tradução precisa de outros olhares que resultem em críti-

cas e novas possibilidades. A tradução precisa de leitores, e eu só posso agradecer aos que se

arriscam na empreitada.

121

Id., p. 92. 122

Id., p. 69. 123

Id., p. 98.

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Burstyn, Linda Blair, Jason Miller, Max von Sydow e outros. Roteiro: William Peter Blatt.

Música: Jack Nitzsche. Burbank, Califórnia: Warner Brothers, 1973. 1 DVD (122 min).

Widescreen, color. Baseado no romance “The Exorcist”, de William Peter Blatty.

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ANEXO

A alma não é uma forja

TERENCE VELAN VIRIA A SER MAIS TARDE CONDECORADO EM COMBA-

TE NA GUERRA EM INDOCHINA, E SUA FOTOGRAFIA E UMA HISTÓRIA

DRAMÁTICA E ELOGIOSA APARECERAM NO DISPATCH, MAS NINGUÉM

QUE EU OU MIRANDA CONHECÍAMOS FICOU SABENDO DO SEU PARA-

DEIRO DEPOIS DE ELE TER SIDO DISPENSADO E VOLTADO À AMÉRICA.

Esta é a história de como Frank Caldwell, Chris DeMatteis, Mandy Blemm e eu nos torna-

mos, nas palavras do jornal da cidade, os 4 Reféns Desprevenidos, e de como nossa aliança

estranha e especial e o trauma relacionado à sua origem se refletiram em nossas vidas dali pra

frente e em nossas carreiras depois, como adultos. O que se repetia constantemente nos arti-

gos do Dispatch é que fomos nós quatro, todos considerados alunos lentos ou com problemas,

que não tivemos a presença de espírito de fugir da sala de Educação Cívica com as outras cri-

anças, criando-se assim a condição de reféns que justificou a execução.

O lugar do trauma original foi a sala de Educação Cívica do 4.º ano, segunda aula, na

Escola Primária R. B. Hayes, aqui em Columbus. A sala tinha um mapa prescrito de assentos,

e cada um de nós tinha carteiras definidas, parafusadas no chão e organizadas em fileiras. Era

1960, época de patriotismo fervoroso e um tanto irrefletido. Hoje em dia costuma-se fazer

referência a essa época como sendo, de certa maneira, uma época mais inocente. A Educação

Cívica era uma disciplina exigida pela Constituição, pelos presidentes dos Estados Unidos e

pelos poderes do governo. No segundo trimestre tínhamos inclusive feito maquetes em papel

machê dos poderes do governo, com diversos caminhos e trilhas entre eles, para ilustrar o

equilíbrio de forças que os Pais Fundadores tinham constituído no sistema federal. Eu fiz as

colunas dóricas do Poder Judiciário com cilindros de cartolina dentro de rolos de papel toalha

Coronet, que era a marca preferida da nossa mãe. Foi em março, durante o período frio e apa-

rentemente interminável em que nossa professora de Educação Cívica estava ausente, que

vimos a unidade sobre a nossa Constituição e examinamos a Constituição Americana e seus

vários projetos e emendas sob a supervisão do Sr. Richard A. Johnson, um substituto de longo

prazo. Não havia um termo próprio para licença-maternidade na época, embora a gravidez da

Sra. Roseman fosse evidente pelo menos desde o feriado de Ação de Graças.

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A sala de Educação Cívica da R. B. Hayes tinha seis fileiras com cinco carteiras cada.

As carteiras e cadeiras eram firmemente parafusadas umas às outras e ao chão e tinham mesas

articuladas que se abriam, conforme o padrão das carteiras de salas do primário daquela épo-

ca, antes das mochilas e bolsas pra livros. Era dentro de sua respectiva mesa que você guarda-

va os lápis n.º 2, o papel com pauta, a cola e outros materiais essenciais da educação escolar

primária. Era ali também que você deveria guardar o livro-texto, longe da vista, durante os

testes feitos em sala. Lembro que o papel com pauta daquela época era cinza-claro, macio e

escorregadio, com linhas muito amplas em azul pontilhado; todas as tarefas feitas nesse papel

ficavam parecendo um pouco manchadas.

Em Columbus, até o 6.º ano o aluno tinha uma sala principal. Era uma sala específica

onde você guardava o casaco de inverno e as galochas em um gancho e um retângulo de jor-

nal, respectivamente, ao longo da parede, um gancho específico para cada aluno indicado com

um pedaço de cartolina colorida com o primeiro nome e a inicial do último sobrenome escri-

tos com pincel atômico. Era debaixo da tampa da sua carteira da sala principal que ficava o

esconderijo mais importante de materiais escolares. Naquela época, a coisa mais adulta na

Escola Secundária Fishinger, do outro lado da rua, parecia ser o fato de que os alunos mais

velhos de lá não tinham uma sala principal, mas iam de uma sala a outra para assistir às aulas

e guardavam os materiais em um armário com uma fechadura de combinação, que você preci-

sava decorar para depois destruir o papel recebido com a combinação, pra que ninguém pu-

desse arrombar seu armário. Nada disso é diretamente relevante para a história de como o

improvável quarteto formado por mim, Chris DeMatteis, Frankie Caldwell e a estranha e per-

turbada Mandy Blemm foi levado pelas circunstâncias a se juntar no que ficou conhecido

mais informalmente como Os 4, exceto talvez pelo fato de que Artes e Educação Cívica eram

as únicas duas aulas que exigiam que saíssemos de nossa sala principal. Essas aulas utiliza-

vam recursos e materiais especiais, então tinham suas próprias instalações e professores espe-

cialmente treinados, e os alunos iam até elas de suas respectivas salas principais em determi-

nadas aulas. No nosso caso, era a segunda aula. A fila única que tínhamos de fazer pra sair da

sala principal até as salas de Artes e Educação Cívica da Sra. Barrie e da Sra. Roseman, res-

pectivamente, era silenciosa, em ordem alfabética e supervisionada de perto. O finalzinho dos

anos 50 e início dos anos 60 não era uma época de disciplina frouxa ou desordem, o que tor-

nou o acontecimento na aula de Educação Cívica no dia em questão ainda mais traumático,

fazendo com que várias das crianças da turma (entre elas Terence Velan, que era talvez um

tanto efeminado para um garoto daquela época e que às vezes usava sandálias e calções de

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couro, mas que era muito bom mesmo no futebol, e o pai dele era um engenheiro hidráulico

da Alemanha Ocidental que tinha conseguido cidadania americana, e ele também conseguia

revirar as pálpebras de um jeito que revelava a parte de dentro das membranas mucosas e de-

pois saía assim pelo pátio, o que lhe dava um certo crédito) se transferissem de vez da Escola

Primária Hayes, já que só estar de volta ao prédio provocava lembranças e emoções traumáti-

cas que não desapareciam.

Só bem mais tarde é que eu iria me dar conta de que o incidente no quadro-negro da

sala de Educação Cívica seria provavelmente a situação mais dramática e emocionante que eu

enfrentaria na minha vida. Como no caso do meu pai, acho que no fim das contas fico feliz

por não estar ciente disso na época.

MEU LUGAR ATUAL ERA, E A SRA. ROSEMAN FICARIA BASTANTE CON-

TRARIADA SE SOUBESSE DISSO, PERTO DA JANELA.

A sala de Educação Cívica da Sra. Roseman, com retratos de todos os 34 presidentes

dos Estados Unidos dispostos igualmente perto do teto por todas as quatro paredes, além de

mapas de relevo pendurados das treze colônias originais, da União e dos Estados Confedera-

dos por volta de 1861 e dos Estados Unidos atualmente, incluindo as ilhas havaianas, e armá-

rios de aço cheios de materiais extras de tudo que é tipo, continha principalmente uma mesa

de professor, grande e de metal, uma lousa escura de ardósia na parte da frente e um total de

30 carteiras e cadeiras parafusadas onde nós, os alunos do 4.º ano da sala principal da Srta.

Vlastos, éramos colocados em ordem alfabética em seis fileiras com cinco alunos cada. Como

o Sr. Johnson era um substituto, aproveitamos para modificar o mapa de assentos padrão da

Sra. Roseman, invertendo nossas fileiras com lugares pré-definidos e organizados da direita

para a esquerda na sala, ficando Rosemary Ahearn e Emily-Ann Barr nas primeiras carteiras

da fileira mais próxima dos ganchos para casacos (que estavam sempre vazios, já que a sala

de Educação Cívica da Sra. Roseman não era a sala principal de ninguém) e da porta da sala,

na parede esquerda, e a segunda das gêmeas Swearingen na frente da última fileira, perto da

primeira das duas grandes janelas da parede direita, que tinham cortinas pesadas usadas quan-

do víamos curtas ou o ocasional filme histórico. Eu estava na penúltima carteira da última

fileira, a mais perto da parede direita, e isso era um erro de logística que a Sra. Roseman nun-

ca teria permitido, já que eu era considerado um aluno insatisfatório nas Habilidades de Com-

preensão Auditiva, assim como na sua subcategoria Obedecer Instruções, e qualquer professor

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de tempo integral dos primeiros anos da R. B. Hayes sabia que eu era um aluno que deveria

sentar o mais longe possível de janelas e outras fontes de possíveis distrações. Todas as jane-

las do prédio da escola tinham uma tela protetora de arame colocada diretamente sobre o vi-

dro pra diminuir a chance de elas quebrarem com alguma bola perdida de queimada ou algu-

ma pedra atirada por vândalos. Além disso, o aluno imediatamente à minha esquerda na fileira

seguinte era Sanjay Rabindranath, que estudava loucamente o tempo todo, e ainda tinha uma

caligrafia exemplar, e que talvez fosse o único melhor aluno de toda a R. B. Hayes pra se sen-

tar perto durante as provas. A tela de arame, que se dividia em 84 quadrados pequenos com

uma fileira adicional com 12 retângulos estreitos, sendo que a primeira linha vertical da tela

quase que encostava na borda direita da janela, foi projetada em parte para tornar as janelas

menos atrativas e diminuir as chances de um aluno se distrair ou se demorar demais contem-

plando a paisagem lá fora, que na aula de Educação Cívica consistia basicamente de céu nu-

blado, carcaças de árvores desfolhadas e as beiradas destruídas dos campos de futebol e o

campo de beisebol sem cerca, onde aconteceu a Little League de 21 de maio a 4 de agosto.

Atrás, e bem reduzido – um pouco escondido pela Avenida Taft e ocupando somente três

quadrados do canto inferior esquerdo da janela –, ficava o campo de beisebol da Escola Se-

cundária Fishinger, com cerca e dimensões oficiais, onde os meninos grandes jogavam beise-

bol no nível da American Legion para se manter na melhor forma possível para a temporada

do Colegial. A cada primavera, vândalos quebravam um punhado das janelas da nossa escola;

havia várias pedras à mostra nos campos de futebol, e do lugar onde eu estava era possível ver

perfeitamente metade ou mais delas sem precisar fazer qualquer movimento perceptível com a

cabeça. Com um ou dois ajustes sutis eu também conseguia ver quase todo o campo vazio e

abandonado de beisebol, que ficava cheio de lama quando não havia neve. Eu sou do tipo que

sempre teve uma boa visão periférica, e na maior parte das três semanas em que vimos a

Constituição dos EUA com o Sr. Johnson eu estava só de corpo presente, com minha real

atenção voltada perifericamente aos campos e à rua, que por causa da tela da janela se dividi-

am em pequenos quadrados, bem parecidos com as sequências de quadros que formam histó-

rias em quadrinhos, storyboards, Histórias de Mistério de Alfred Hitchcock e afins. Certamen-

te, essa atenção intensa era crucial no que se refere às minhas Habilidades de Compreensão

Auditiva durante a segunda aula, de Educação Cívica, na medida em que eu não só ficava

distraído à toa, mas me esforçava imaginando histórias lineares e relativamente organizadas,

muitas das quais se desdobravam em detalhes consideráveis. Sendo assim, qualquer coisa lá

fora que por algum motivo chamasse atenção – como um pouco de lixo extravagante rolando

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de um quadrado de arame ao outro, ou um ônibus de linha vindo impassível da direita para a

esquerda pelas três colunas horizontais e inferiores de quadrados – servia de estímulo para a

criação de storyboards particulares e imaginados de filmes ou quadrinhos, e cada um dos qua-

drados restantes da tela de arame da janela podia ser usado para continuar e aprofundar a nar-

rativa dos quadros – o típico ônibus público na verdade controlado pelo então arqui-inimigo

de Batman, o Comando Vermelho, que, em uma perspectiva interna em quadrados consecuti-

vos, mantém reféns como a Srta. Vlastos, várias crianças cegas da Escola Estadual de Cegos e

Surdos e meu apavorado irmão mais velho e sua professora de piano, a Sra. Doudna, até o

ônibus em movimento ser invadido por Batman e (por trás de sua pequena máscara caracterís-

tica) um Robin bastante familiar com uma série de acrobacias com corda e gancho, cada ma-

nobra preenchendo um quadrado da janela que era então congelado em um quadro, conforme

minha atenção se movia para a ação seguinte, e assim por diante. Essas construções imaginá-

rias, que às vezes preenchiam a janela toda, exigiam muita concentração; a verdade é que não

tinham quase nada a ver com o que a Sra. Claymore, a Sra. Taylor, a Srta. Vlastos ou os meus

pais chamavam de sonhar acordado. Na época do evento traumático eu só tinha nove anos de

idade; completaria dez no dia 8 de abril. A fase dos sete até quase dez anos também compre-

endeu o período problemático e desconcertante (especialmente para os meus pais) em que eu

não conseguia, em qualquer sentido estritamente aceito, ler. Com isso eu quero dizer que eu

conseguia passar os olhos por uma página de De Mar a Mar: A História da América em Pala-

vras e Imagens (que era o livro obrigatório para todas as turmas primárias de Educação Cívica

das escolas estaduais na época) e apreender certa quantidade específica de informação, como

o número exato de palavras por página, o número exato de palavras de cada linha, e não raro a

palavra e até a letra com o maior ou menor número de ocorrências em determinada página,

por exemplo, assim como a quantidade de vezes que cada palavra aparecia, muitas vezes re-

tendo essa informação por um bom tempo depois de a página ter sido lida, e ainda assim eu

não conseguia, na maioria das vezes, internalizar ou comunicar de qualquer maneira suficien-

temente satisfatória o que as palavras e suas várias combinações queriam dizer (de qualquer

forma, é isso o que eu lembro daquela época), e o resultado disso era que eu tinha um desem-

penho bem abaixo da média quando passava por testes de assimilação da tarefa de casa e de

compreensão de texto. Para alívio de todos, o problema de leitura reverteu-se, quase tão mis-

teriosamente quanto seu aparecimento inicial, por volta do meu décimo aniversário.

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MAIS TARDE FICAMOS SABENDO QUE O SR. JOHNSON, NATURAL DA VI-

ZINHA URBANCREST, NÃO TINHA NENHUM HISTÓRICO DE DISTÚRBIO

MENTAL OU DE COMPORTAMENTO CRIMINOSO, CONFORME RELATOS

DA IMPRENSA.

A última vez que nevou tinha sido no começo de março. Em outras palavras, da janela

da sala a visão mais à direita consistia de lama e neve suja. O céu que havia era uma coisa

sem cor e com nuvens baixas, como algo que está saturado e muito cansado. O campo de bei-

sebol era só lama, com algum vestígio de neve somente na área do arremessador. Geralmente,

durante toda a segunda aula o único movimento que se via da janela era de algum lixo ou veí-

culo na Taft, com exceção do dia do trauma, em que apareceram os cachorros. Antes isso ha-

via acontecido uma única vez, no início da unidade sobre a Constituição, mas o episódio não

tinha se repetido até então. Os dois cachorros apareceram na grade superior direita da janela,

saindo de um bosque a nordeste, e foram descendo em diagonal em direção à área norte do

gol dos campos de futebol. Eles então começaram a se mover um na direção do outro, em

círculos que iam diminuindo gradualmente, aparentemente se preparando para copular. Uma

cena semelhante havia se desenrolado uma vez antes, mas depois os cachorros não reaparece-

ram por algumas semanas. Suas ações pareciam corresponder às de acasalamento. O maior

dos dois cachorros montou nas costas do outro vindo por trás e com as patas dianteiras envol-

veu o corpo de pelagem tigrada do cachorro, fazendo movimentos repetidos e forçados e dan-

do uma série de pequenos passos com as pernas traseiras conforme o outro cachorro tentava

escapar. Isso ocupou pouco mais do que um quadrado da tela de arame da janela. A impressão

que aquilo dava era a de um cachorro grande e de anatomia complexa tendo uma série de

convulsões. Não era uma visão muito bonita, mas era chamativa e fascinante. Um dos animais

era maior e preto, com uma mancha marrom, possivelmente uma mistura de rottweiler, embo-

ra ele não tivesse a largura da cabeça de um rottweiler puro. Era impossível identificar a raça

do cachorro menor. De acordo com meu irmão mais velho, nós tivemos um cachorro por um

curto período, quando eu era pequeno demais para me lembrar, e ele tinha roído o pé do piano

e as pernas de uma mesa de jantar espetacular do século XVI, uma antiguidade da Rainha

Elizabeth que fora descoberta por nossa mãe em um bazar, e que havia sido avaliada em mais

de um milhão de dólares, fazendo com que o cachorro da família desaparecesse certo dia

quando meu irmão voltou pra casa do jardim de infância e percebeu que tanto o cachorro

quanto a mesa tinham sumido, e ele ainda disse que meus pais ficaram tão chateados com

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tudo isso que se alguma vez eu falasse ou perguntasse à minha mãe sobre o cachorro e chate-

asse ela com isso ele iria pôr os meus dedos na trinca do armário da entrada e empurrá-lo

usando todo o seu peso até meus dedos ficarem tão mutilados que teriam de ser amputados, e

eu teria menos jeito ainda no piano do que já tinha. Na época tanto meu irmão quanto eu par-

ticipamos de intensivos de aulas de piano e recitais, mas só ele demonstrou ter potencial e

continuou duas vezes por semana com a Sra. Doudna até suas próprias dificuldades começa-

rem a aparecer tão dramaticamente no início da adolescência. Os cachorros, ligados, estavam

longe demais pra eu conseguir verificar se eles tinham coleiras ou plaquinhas, mas perto o

suficiente pra que eu pudesse adivinhar a expressão do cachorro dominante, em cima do ou-

tro. Era vazia e ao mesmo tempo ardente – a mesma expressão que você vê no rosto de uma

pessoa quando ela está fazendo algo que é forçosamente levada a fazer e ao mesmo tempo não

sabe por que quer fazer aquilo. Em vez de acasalamento, aquilo poderia ter sido apenas um

cachorro afirmando seu domínio sobre outro, algo que mais tarde eu descobri ser comum.

Aquilo pareceu demorar bastante, e nesse meio tempo o cachorro que estava embaixo, sofren-

do, deu vários passinhos vacilantes, fazendo com que os dois animais atravessassem quatro

quadros diferentes descendo a partir da quarta fileira, complicando a ação da storyboard em

ambos os lados. Coleira e plaquinhas são um bom sinal no sentido de indicar que o cachorro

tem um lar e um dono e não é um animal de rua, algo que poderia ser um problema, conforme

explicou na nossa sala principal um palestrante convidado do Departamento de Saúde Pública.

Isso se aplicava especialmente no caso da plaquinha de vacinação antirrábica exigida no de-

creto do Condado de Franklin, por razões óbvias. Era mais difícil caracterizar a expressão

infeliz, mas estoica do cachorro de pelagem tigrada que estava embaixo. Talvez ela estivesse

menos visível, ou obscurecida pela tela protetora da janela. Certa vez nossa mãe descreveu a

expressão da nossa tia Tina, que tinha sérios problemas físicos, assim: muito sofrida.

MARY UNTERBRUNNER, TAMBÉM CHAMADA DE BIG BERTHA PELA

TURMA DO OEHMKE E DO LLEWELLYN, NO PÁTIO DO RECREIO, ERA A

ÚNICA OUTRA MENINA QUE CHEGOU A BRINCAR ALGUMAS VEZES COM

A MANDY BLEMM DEPOIS DA ESCOLA. MEU IRMÃO, QUE ESTUDAVA

COM A BRANDY, A IRMÃ MAIS VELHA DE BLEMM, DISSE QUE OS BLEMM

ERAM BEM CONHECIDOS COMO UMA FAMÍLIA PERTURBADA, COM UM

PAI QUE FICAVA EM CASA O DIA TODO USANDO SOMENTE ROUPA DE

BAIXO E UM QUINTAL QUE PARECIA UM LIXÃO, E O PASTOR ALEMÃO

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DELES TENTARIA TE MATAR SE VOCÊ SÓ CHEGASSE PERTO DA CERCA

DOS BLEMM, E DIZEM QUE UMA VEZ, EM QUE A BRANDY NÃO JUNTOU O

COCÔ DO CACHORRO, APARENTEMENTE UMA OBRIGAÇÃO DELA, O PAI

VEIO CAMBALEANDO COM RAIVA E FEZ COM QUE ELA DEITASSE NO

CHÃO COLOCANDO A CARA DELA NO COCÔ; MEU IRMÃO DISSE QUE

DOIS ALUNOS DIFERENTES DA 7.ª SÉRIE TINHAM VISTO ISSO, E ERA POR

ISSO QUE A BRANDY BLEMM (QUE TAMBÉM ERA UM TANTO LENTA)

ERA CONHECIDA NA ESCOLA SECUNDÁRIA FISHINGER COMO A GAROTA

DA MERDA, ALGO QUE CERTAMENTE NÃO DEVE TER SIDO AGRADÁVEL

PRA UMA MENINA COM SEUS DEZ ANOS, NÃO IMPORTA O QUANTO ELA

ESTIVESSE OU NÃO ENVOLVIDA COM AQUILO.

A única outra vez em que o Sr. Johnson tinha substituído um professor titular em todas

as minhas aulas foi durante duas semanas na 2.ª série, quando a Sra. Claymore, nossa profes-

sora principal, sofreu um acidente de trânsito e voltou com um enorme aparelho branco de

metal e lona em volta do pescoço, pro qual ninguém podia apontar, e ficou sem poder virar a

cabeça pra ambos os lados até o término do ano letivo, e depois disso ela se mudou para a

Flórida por conta própria. A lembrança que eu tenho do Sr. Johnson é de alguém de estatura

média para um adulto, com o cabelo cortado à escovinha, o terno e a gravata padrão, usando

óculos com a armação preta escolar que qualquer um com a idade dele que precisasse de ócu-

los naquela época usaria. Sem dúvida ele também foi substituto em várias outras séries e tur-

mas na R. B. Hayes. A única vez que alguém chegou a vê-lo fora da escola foi certa vez em

que Denise Kone e sua mãe viram o Sr. Johnson na A&P, e Denise disse que o carrinho dele

estava cheio de comida congelada, levando sua mãe a associar isso com o fato de ele não ser

casado. Não me lembro de ter reparado se o Sr. Johnson usava ou não uma aliança de casa-

mento, mas mais tarde os artigos do Dispatch não fizeram menção de ele ter deixado alguma

esposa viúva depois de as autoridades terem invadido a sala de aula. Também não me lembro

do seu rosto exceto pela imagem da foto que apareceu depois no Dispatch, que certamente

saíra de um dos anuários escolares dele de muitos anos antes. A não ser por alguma caracterís-

tica ou problema óbvio, na maior parte dos casos não era fácil pra mim naquela idade prestar

muita atenção no rosto dos adultos – o próprio fato de serem adultos obscurecia todas as ou-

tras características. Se bem me lembro, o rosto do Sr. Johnson era um rosto que só chamava

atenção porque parecia ligeiramente inclinado ou angulado pra cima com a cabeça virada pra

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frente. Não era algo excessivo, mas uma inclinação de um ou dois graus – imagine segurar

uma máscara ou retrato de frente pra você e nisso erguê-lo um ou dois graus fora do centro

normal. Em outras palavras, era como se suas órbitas estivessem ligeiramente voltadas pra

cima. E isso, somado ao que podia ser tanto má-postura quanto algum problema no pescoço,

como no caso da Sra. Claymore, dava a impressão de que o Sr. Johnson estava se retraindo ou

voltando um pouco atrás do que quer que estivesse dizendo. Não era algo grosseiro ou eviden-

te, mas Caldwell e Todd Llewellyn também repararam na característica de se retrair do Sr.

Johnson e a comentaram. Llewellyn disse que o prof. substituto parecia estar com medo da

sua própria sombra, como o Miles O’Keefe ou o Festus do seriado Gunsmoke (que todo mun-

do odiava – ninguém queria ser o Festus quando a gente brincava de Gunsmoke). No seu pri-

meiro dia como substituto da Sra. Roseman, ele se apresentou a nós como Sr. Johnson, escre-

vendo seu nome no quadro-negro usando a caligrafia Palmer, como faziam todos os professo-

res daquela época; mas como seu nome completo apareceu tantas vezes no Dispatch durante

várias semanas depois do incidente, costumo me lembrar melhor dele como Richard Allen

Johnson, 31 anos, natural de Urbancrest, que é uma pequena cidade-dormitório fora dos limi-

tes de Columbus.

De acordo com meu irmão e sua própria imaginação, a mesa de antiguidade que tive-

mos antes de eu ter idade suficiente pra me dar conta do que quer que fosse era de nogueira,

com uma grande quantidade de diamantes, safiras e strass no topo formando o rosto da Rainha

Elizabeth I da Inglaterra (1533–1603) quando se olhava do lado direito, e a decepção com sua

perda era parte do motivo de nosso pai geralmente parecer tão desanimado em voltar para

casa no fim do dia.

A penúltima carteira da última fileira, a mais próxima da parede direita, tinha um bo-

neco palito fundo com um chapéu de caubói e um revólver de seis tiros bem desproporcional,

tudo entalhado profundamente e colorido com a tinta de caneta de algum antigo aluno da 4.ª

série, certamente o resultado de muito esforço em um trabalho demorado e paciente ao longo

do ano escolar anterior. Logo na minha frente estavam o pescoço grosso, as vértebras toráci-

cas superiores e a ponta do cabelo bem curto de Mary Unterbrunner, que tinha sardas claras e

espalhadas que eu fiquei analisando por quase dois anos, já que Mary Unterbrunner (que mais

tarde se tornaria secretária administrativa no grande centro de detenção de mulheres de Par-

ma) também tinha feito a 3.ª série na sala principal da Sra. Taylor, que lia histórias de terror

pra turma e sabia tocar uquelele e era muito divertida como professora principal desde que

você não se metesse com ela em um mau dia. Certa vez a Sra. Taylor bateu nas costas da mão

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de Caldwell com uma régua, que ela carregava no grande bolso tipo canguru do guarda-pó,

com tanta força que a mão inchou quase como se fosse de desenho animado, e a Sra. Caldwell

(que lutava judô e que por seu temperamento também não deveria ser provocada, segundo

Caldwell) foi até a escola para reclamar para o diretor. O que os professores e a administração

daquela época pareciam não entender era que o esforço mental do que eles chamavam sonhar

acordado geralmente era maior e exigia mais concentração do que se fosse pra simplesmente

prestar atenção na aula. Não é uma questão de ter preguiça. Só não era o esforço que a admi-

nistração exigia. Quem me dera poder dizer, pelo bem do interesse visual da narrativa naquele

dia, que cada quadro da história originada da visão pela janela dos dois cachorros se acasalan-

do ou lutando por domínio permaneceu animado, de maneira que até o final da aula todos os

quadrados da tela de arame estivessem preenchidos com quadros narrativos como as janelas

ilustradas e coloridas da Igreja Metodista de Riverside, aonde meu irmão, minha mãe e eu

íamos todo culto de domingo, junto com meu pai quando ele tinha disposição pra acordar ce-

do o suficiente. Ele geralmente tinha de trabalhar no escritório seis dias por semana, e gostava

de dizer que domingo era o seu dia pra tentar juntar o que tinha sobrado dos seus nervos. Mas

não era bem assim. Seria necessário algum tipo de proeza mental pra conseguir guardar na

memória cada quadrado ilustrado durante toda a narrativa na janela, algo não muito diferente

daquele jogo próprio pra passar o tempo em viagens em que você e mais alguém fingem que

estão planejando um piquenique, e a outra pessoa diz uma das coisas que vai levar, e você

repete isso e acrescenta mais alguma coisa, e ela repete as duas coisas já ditas e acrescenta

uma terceira, e você repete e então acrescenta uma quarta coisa que a outra pessoa precisa

memorizar e repetir, e assim por diante, até o ponto em que cada um de vocês está tentando

guardar na memória uma sequência com 30 coisas ou mais enquanto ambos continuam acres-

centando itens a essa lista, cada um na sua vez. Eu nunca fui muito bom nesse jogo, mas meu

irmão às vezes demonstrava uma capacidade de memorizar fantástica que deixava meus pais

impressionados e talvez até um pouco assustados, considerando o que ele acabou se tornando

(nosso pai frequentemente se referia a ele como o cérebro da turma). Cada quadrado da tela

da janela era preenchido e contava sua parte da história da pobre e infeliz dona do cachorro de

pelagem tigrada somente enquanto a história estivesse relacionada àquele quadrado específi-

co; o quadrado voltava ao seu estado inicial de transparência assim que toda a ação do quadro

se desenvolvesse e a história passasse para o quadrado seguinte da tela, em que a garotinha

que era dona de Cuffie, o ingênuo filhote de pelagem tigrada que tinha cavado por baixo da

cerca gasta do quintal e escapado, descendo até a margem do Rio Scioto, estava sentada, com

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um avental verde-limão, uma fita rosa no cabelo e um lustroso sapato preto de couro com fi-

velas polidas, na sala de Artes da 4.ª série fazendo uma estatueta de Cuffie, seu cachorro, com

massinha de modelar, só com o tato, na Escola Estadual de Cegos e Surdos na Rodovia Mor-

se. Ela era cega e se chamava Ruth, mas a mãe e o pai dela a chamavam de Ruthinha e suas

duas irmãs mais velhas, que tocavam fagote, a chamavam de Ruthinha Dentucinha porque

estavam tentando convencê-la – vemos isso em três quadros consecutivos em que as irmãs,

que são mais velhas e tem expressões desagradáveis e ficam com as mãos na cintura como

fazem as pessoas cruéis de desenhos animados – de que ela era terrivelmente feia por causa de

seus grandes dentes da frente, que todo mundo podia ver menos ela, e há quase uma fileira

horizontal completa de quadros mostrando Ruth com óculos escuros e as mãos escondendo o

rosto, chorando por causa dos comentários de suas irmãs mais velhas e sua musiquinha Ruthi-

nha Dentucinha, seu cachorro é um mariquinha, enquanto o pobre mas bondoso pai da meni-

na, que trabalha como zelador de um homem rico com um aparelho branco de metal e lona

que é dono de uma mansão luxuosa em Blacklick Estates com um portão de ferro forjado e

uma entrada curva que tem mais de um quilômetro e meio de extensão depois de Amberly,

está dirigindo lentamente o carro velho e acabado da família dando voltas pelas ruas geladas

da vizinhança pobre, chamando por Cuffie com a janela do carro aberta e balançando a coleira

e as plaquinhas do cachorro de pelagem tigrada. Uma sequência de quadros na fileira do topo

dos quadrados da tela, que geralmente é reservada para flashbacks e elementos da história de

fundo que ajudam a preencher as lacunas da ação se desenvolvendo na janela, revela que a

coleira e as plaquinhas de vacinação de Cuffie se soltaram enquanto ele estava se espremendo

pra passar por baixo da cerca do quintal da família Simmons, animado por ter visto os dois

cachorros de rua, um preto e marrom e o outro todo malhado, que tinham ido até a cerca de

arame barata e insistido que Cuffie fosse com eles pra alguma aventura de cachorros vagando

livremente por aí, o mais escuro dos dois, que aparece no quadro com sobrancelhas angulosas

e um fino bigodinho sinistro, cruzando os dedos e prometendo que eles não iriam muito longe

mesmo e não correriam perigo e mostrariam ao ingênuo Cuffie o caminho de volta pra casa.

Muito da storyboard daquele dia específico, que se estende como braços ou como aquelas

linhas radiais que você vê ao redor de um sol de desenho animado, envolve a narrativa dividi-

da da pequena, fraca e cega Ruth Simmons (que não é nem um pouco dentuça, mas, compre-

ensivelmente, não é lá muito boa como escultora de massinha de modelar) sentada na sala de

Artes na aula para Cegos desejando desesperadamente saber se seu pai teve ou não sucesso na

busca por seu cachorro Cuffie, que é o fiel companheiro canino de Ruth Simmons e que nunca

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roeu nada ou causou qualquer problema pra família e que costuma sentar devotamente debai-

xo da pequena escrivaninha bamba que o pai havia encontrado no lixo do rico fabricante pra

quem ele trabalha, e ele a tinha levado pra casa e pregado carretéis vazios nas gavetas pra

servir de puxadores, e Cuffie geralmente senta ali embaixo descansando o focinho nos sapatos

de couro envernizado de Ruth Simmons enquanto ela fica no seu quarto escuro (para as pes-

soas cegas não faz diferença se a luz está acesa ou não) sentada na escrivaninha fazendo sua

tarefa em braile, enquanto suas irmãs estudam fagote ou ficam deitadas no tapete peludo do

quarto delas com a luz acesa falando inutilmente sobre garotos ou sobre os Everly Brothers no

telefone de princesa, quase sempre penduradas no telefone por horas a fio, enquanto o pai faz

um bico no seu trabalho noturno de carregador levantando sozinho engradados pesados para a

carroceria de caminhões de entrega, e a mãe da família, uma revendedora da Avon que nunca

teve sucesso em vender um só produto da linha doméstica da Avon, passa todas as noites dei-

tada esparramada e semiconsciente no sofá da sala, que está com um pé faltando e fica apoia-

do sem muita firmeza em uma lista telefônica até o pai conseguir catar no lixo o tipo certo de

madeira para servir de pé, sendo que o Sr. Simmons é o tipo de pai pobre mas honesto que

ganha a vida fazendo trabalho braçal em vez de ficar o dia todo debruçado sobre números. Na

fileira do topo, a história de fundo do grande cão preto e marrom da janela é um tanto vaga e

consiste de alguns quadros rapidamente esboçados que envolvem um edifício de concreto

baixo cheio de cachorros latindo em gaiolas, um beco em um bairro decadente com vários

latões de lixo derrubados e um homem com um avental manchado que está com os punhos

cerrados pra algo que não dá pra ver. Depois, na fileira principal, vemos o pai da família rece-

bendo uma ligação com um pedido insistente do dono rico da mansão, dizendo pra ele voltar

pra lá e começar a preparar o grande e caro soprador de neve industrial a gasolina para a longa

entrada da mansão, que tem fios com pequenas luzes coloridas por toda a sua extensão como

uma passarela, pois o meteorologista particular do dono disse que estava prestes a nevar de

novo e aquilo ia virar um verdadeiro inferno. Vemos então a mãe de Ruth Simmons – que já

vimos, em outra fileira de história de fundo, tomar o dia todo vários comprimidos de um fras-

co de remédio marrom com tarja vermelha guardado na bolsa – se revezando com o pai e diri-

gindo sem rumo o carro acabado da família, dando voltas pelas ruas da vizinhança desleixada,

bem devagar e fazendo um pouco de zigue-zague, enquanto uma neve densa e persistente co-

meça a cair e as luzes da rua começam a embaçar e a luz do painel fica cinza e triste, do jeito

que a luz sempre parece triste no fim de tarde do inverno de Columbus.

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BASICAMENTE, EU NÃO FAZIA IDEIA DO QUE ESTAVA ACONTECENDO.

Eu não saberia dizer quais aspectos específicos da Declaração dos Direitos dos Esta-

dos Unidos estavam sendo abordados pelo Sr. Johnson enquanto esta história sobre Ruth

Simmons e seu Cuffie perdido enchia a janela quadro após quadro, já que àquela altura faz

sentido dizer que eu estava ausente tanto de mente quanto de espírito. Isso tendia a acontecer

durante todo aquele período. Pra ser sincero, foi essa a razão que levou a Sra. Roseman e a

administração a fazer de tudo pra me manter longe de qualquer tipo de distração – proibindo o

Caldwell e eu de sentar perto, por exemplo. Não me lembro nem de ter percebido o momento

exato em que os cachorros lá fora romperam sua ligação inicial e começaram a se mover em

círculos de tamanhos um tanto diferentes, farejando o chão e a lama do campo de beisebol. A

temperatura externa era de aproximadamente 7 graus; aquela penúltima neve do inverno esta-

va derretendo. Do que eu não esqueço é que nevou muito no dia seguinte, dia 15 de março, e,

como a escola estava fechada no dia após o trauma, nós tivemos como andar de trenó depois

de várias entrevistas com a Polícia Estadual de Ohio e um psicólogo especial da Unidade 4

chamado Dr. Biron-Maint, que tinha um nariz de feitio estranho e um cheiro que lembrava

vagamente o cheiro de mofo, e que mais tarde naquele mesmo dia o trenó de Chris DeMatteis

tombou de lado e bateu em uma árvore, e a testa dele ficou cheia de sangue e todos nós fica-

mos assistindo enquanto ele ficava pondo a mão na testa e chorava de medo diante da realida-

de do seu próprio sangue. Não lembro o que fizeram para ajudá-lo; acho que todos nós ainda

estávamos em estado de choque. A mãe de Ruth Simmons, que se chamava Marjorie e que

cresceu se admirando no espelho com vestidos diferentes e treinando dizer “Como vai?” e

“Nossa, mas como você é engraçado e divertido!” e sonhando em se casar com um médico

rico e fazer festas com jantares elaborados em sua casa recebendo médicos e suas respectivas

esposas com tiaras de diamante e xales de pele de raposa na linda mesa de jantar de nogueira

de sua mansão, e ali ela parecia quase uma princesa de conto de fadas sob as luzes do lustre,

agora, como adulta, tinha uma aparência inchada e sem graça e uma boca sempre caída en-

quanto dirigia o carro acabado. Ela estava fumando um Viceroy com as janelas fechadas e

nem ficou baixando a janela pra gritar “Cuffie!” como o gentil e tão sofrido pai tinha feito

antes. Havia história de fundo em cima, em que a criancinha cega Ruth Simmons estava dei-

tada em seu berço com seus minúsculos óculos escuros esticando os braços e chorando pela

mãe, enquanto a mãe ficava parada com um copo com uma azeitona em um palito de dente e

olhando pro bebê cego com a boca caída e então se virando e se olhando no antigo espelho

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quebrado do quarto e treinando uma mesura sutil e sarcástica sem derramar a bebida. Na mai-

oria das vezes o bebê acabava desistindo e parava de chorar depois de um tempo e ficava só

choramingando baixinho (isso ocupou só dois ou três quadros). Enquanto isso, sem que Ruth

Simmons soubesse, a estatueta de massinha de modelar estava praticamente desfigurada, pa-

recendo mais um orangotango ou um hominídeo que foi atropelado por um caminhão do que

um cachorro. Seu lindo rostinho branco de neve, com seus óculos escuros e uma fita no cabe-

lo, aparece inclinado em vários graus enquanto ela faz orações inocentes e infantis de criança

pedindo pelo retorno seguro de Cuffie, rezando pra que quem sabe seu pai visse Cuffie enco-

lhido dentro de um pneu em algum dos jardins malcuidados dos seus vizinhos desleixados ou

visse Cuffie correndinho inocente ao longo da Rodovia Maryville e parasse o carro no meio

do tráfego da avenida movimentada e se ajoelhasse na beira da estrada de braços abertos para

que o cachorro fosse correndo alegremente até ele, tais fantasias cegas em balões de pensa-

mento ocupando vários quadros que foram precedidos pela cena real mostrando um Cuffie

assustado e mancando sendo atormentado pelos dois cachorros adultos frios e ferozes ao lon-

go da decadente costa leste do Rio Scioto, que já em 1960 estava começado a cheirar mal

acima da Represa Griggs e tinha latas enferrujadas e calotas abandonadas ao longo da mar-

gem leste pela Rodovia Maryville, e meu pai disse que se lembrava de ter pescado bem ali

com linha e alfinete de segurança por volta de 1935, de calça curta e chapéu de palha, com

seus pais também de chapéu de palha fazendo um piquenique atrás dele e seu irmão (que mais

tarde seria ferido em Salerno, na Itália, na Segunda Guerra Mundial, e que tinha uma prótese

de madeira no pé que ele conseguia soltar e tirar usando o sapato especial sob medida que ele

recebeu pelo GI Bill, de maneira que o sapato nunca ficava vazio mesmo quando estava guar-

dado no armário e ele ia dormir, e ele trabalhou em Kettering em uma fábrica de divisórias de

papelão usadas em diferentes tipos de contêineres) à sombra das várias faias e castanheiras

que havia ao longo do Scioto antes de a Universidade influenciar fortemente os líderes da

cidade a construir a estrada suburbana Maryville para ligar de maneira mais conveniente a

cidade Upper Arlington à West Side de Columbus. Com os olhos castanhos cheios de pesar

por ter saído do quintal, o fiel Cuffie estava com medo, pois o jovem cachorrinho estava bem

longe de casa, mais longe do que jamais esteve. Já vimos antes que o filhotinho só tinha um

ano; o pai tinha trazido Cuffie de um abrigo da Sociedade Protetora dos Animais e o levado

pra casa pra fazer uma surpresa na última Sexta-feira Santa, e tinha deixado Ruth levar Cuffie

com ela na missa de Páscoa na Igreja Católica de Santo Antônio (eles eram católicos roma-

nos, como a maioria dos pobres de Columbus) em uma pequena cesta de vime coberta com

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um pano xadrez que deixava aparecer somente o focinho úmido e curioso do cachorro, e ele

tinha ficado bem quietinho enquanto a mãe de Ruth falava que era bom mesmo que ele ficasse

ou eles todos iam ter de se levantar e sair mesmo que fosse no meio da missa, algo que pros

católicos romanos seria um pecado terrível, mesmo com uma das irmãs mais velhas de Ruth

disfarçadamente cutucando uma das patas do filhotinho com um alfinete tentando fazer Cuffie

ganir, o que ele não fez, e Ruth não fazia a menor ideia de que isso estava acontecendo senta-

da no banco duro de madeira com seus óculos escuros, segurando a cesta no colo e balançan-

do as perninhas com gratidão e alegria por ter um filhotinho pra lhe fazer companhia (via de

regra, os cegos têm uma afinidade natural com os cachorros, que também não têm uma visão

muito boa). E os dois cachorros ferozes (que estavam com o pelo emaranhado e tinham ossos

saltados, sendo que o cachorro malhado tinha uma grande ferida esverdeada perto da base do

rabo) eram frios e cruéis e mostravam os dentes pra Cuffie toda vez que ele hesitava, mesmo

quando eles passaram por poças de lama e esgoto semicongelado que caía no rio pela boca de

tubos de concreto enormes que tinham palavrões pichados com tinta em spray, e, apesar de

Cuffie ser só um cachorro e não ter balões de pensamento como eu e você, o olhar de seus

doces olhos castanhos dizia tudo ao ver o cachorro malhado subir de repente em um destes

tubos enormes e a cabeça e o rabo ferido dele sumirem, e o cachorro maior e preto começou a

rosnar pra que Cuffie entrasse também no tubo, que não estava jorrando mas tinha algo laran-

ja-escuro com um cheiro terrível (mesmo pra um cachorro) escorrendo, e no quadrado seguin-

te Cuffie é forçado a colocar as patinhas dianteiras na ponta do tubo de concreto tentando se

apoiar e subir com o traseiro enquanto atrás dele o cachorro preto rosnava e mordia suas pati-

nhas. O olhar do cachorro sendo mostrado dizia tudo. Revelava que Cuffie estava bem assus-

tado e infeliz e só desejando estar de volta ao quintal cercado balançando o rabo listrado e

esperando pelo som de tap tap da minúscula bengala branca de Ruth vindo pela calçada para

saudar Cuffie e levá-lo pra dentro e coçar sua barriga e sussurrar repetidas vezes o quanto ele

era lindo e tinha orelhas maravilhosas e patinhas fofas e cheirosas e o quanto eles tinham sorte

por tê-lo, enquanto o cachorro preto saltava com facilidade atrás de Cuffie no bueiro que va-

zava e, olhando ameaçador pros dois lados, desaparecia dentro da boca escura do tubo, com-

pletando-se a fileira horizontal.

Enquanto isso, no início do verdadeiro incidente, o Sr. Johnson tinha acabado de es-

crever MATAR no quadro-negro. A falha mais evidente da minha memória do incidente como

um todo é que a maior parte desse início do trauma aconteceu sem que eu me desse conta, de

tão concentrado que eu estava na tela de quadrados da janela, que eu estava preenchendo com

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a narrativa em uma nova fileira de quadros com a infeliz Sra. Simmons, a mãe, ziguezaguean-

do lentamente com o carro da família pelas ruas cheias de neve da vizinhança enquanto arran-

cava com uma pinça vários cabelos brancos que encontrava olhando no espelho retrovisor,

tentando mantê-los sob controle, e também com cenas do pai, do lado de fora sob a neve que

caía, operando um aparelho grande a gasolina que lembra um pouco um cortador de grama

mas é maior e tem o dobro de lâminas rotativas, estando com o laranja brilhante inconfundível

que esportistas e caçadores costumam usar, que é a cor da marca da empresa do dono rico da

mansão e que também é a cor das calças especiais pra neve que o dono fazia o estoico e resig-

nado pai vestir, começando a empurrar a máquina pela densa e molhada neve da entrada da

mansão. A entrada é tão comprida que assim que o pai termina de limpar a neve até o final ele

tem de voltar pro início e começar de novo, já que a neve (que pode ser vista nos fundos da

Escola Estadual de Cegos e Surdos através da tela da janela, mas a pequena Ruthinha certa-

mente não sabe disso) está caindo mais forte e se transformando em uma verdadeira tempes-

tade de neve, e no balão de pensamento do pai em um quadro está escrito: “Bem, não é tão

ruim assim, pelo menos tenho a sorte de ter um trabalho, e tenho certeza de que a boa e velha

Marjorie vai encontrar Cuffie em tempo pra levar nosso bichinho de estimação pra casa antes

que a Ruthinha volte da escola!”, e o pai tem uma expressão paciente e resignada no rosto

enquanto a máquina barulhenta e pesada (que foi patenteada pelo dono da mansão e é fabrica-

da por sua empresa, e é por isso que ele faz o Sr. Simmons vestir aquela calça laranja humi-

lhante) apaga a brancura da entrada como um quadro-negro que é apagado com papel-toalha

umedecido por alguém que está cumprindo pena de detenção administrativa. Foi assim que eu

literalmente não vi ou percebi o que estava começando a se passar na sala de Educação Cívi-

ca, embora a história toda tenha me sido contada tantas vezes por colegas e autoridades e pelo

Dispatch que na minha cabeça é quase como se eu tivesse realmente testemunhado tudo desde

o início. O Dr. Biron-Maint, o psicólogo administrativo, deu sua opinião profissional de que

eu fui uma testemunha ocular, mas estava traumatizado demais (em estado de choque foi o

termo que ele utilizou; os pais de cada criança receberam uma cópia da avaliação dele) para

ser capaz de processar tal lembrança. Mesmo tendo alguma lembrança confusa ou equivoca-

da, meu papel em todos os procedimentos legais posteriores ao incidente acabou sendo limi-

tado pelo diagnóstico do Dr. Biron-Maint, com o qual meus pais concordaram por escrito. No

entanto, a estranheza da memória adulta é tal que ainda recordo em detalhes o aspecto das

narinas do Dr. Biron-Maint, que tinham formas e um tamanho visivelmente diferentes, e lem-

bro de ter tentado imaginar várias coisas que poderiam ter acontecido ao nariz dele, na sua

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vida ou até mesmo no estômago da sua mãe quando ele era bebê, pra ficar com uma anomalia

tão marcante. O psicólogo era muito alto, mesmo para os padrões adultos, e eu passei boa

parte da entrevista obrigatória olhando pra cima e vendo suas narinas e sua mandíbula. Ele

também tinha um cheiro tipo de tapete molhado, mas na época eu não fiz essa relação. Since-

ramente, pra muitos de nós foi consenso que o Dr. Biron-Maint nos deu até mais calafrios do

que o Sr. Johnson, embora ter de presenciar aquele tipo de coisa certamente seria traumático

pra qualquer um, especialmente pra crianças.

TEMPOS DEPOIS, O SR. DEMATTEIS FOI FORÇADO A SAIR DO NEGÓCIO

DE ENTREGA DE JORNAL POR CAUSA DO QUE CHRIS DEMATTEIS DISSE

SEREM ELEMENTOS DE CRIME ORGANIZADO QUE COMEÇARAM EM

CLEVELAND E ESTAVAM SE ESPALHANDO NO ESTADO PRA TODOS OS

JORNAIS E PRO NEGÓCIO DE MÁQUINA DE VENDA AUTOMÁTICA COM

MOEDA, FORÇANDO O SR. DEMATTEIS A PEGAR UM TRABALHO DE DES-

PACHANTE DE TÁXI, MAS PELO MENOS CHRIS NÃO PRECISOU MAIS

ACORDAR TÃO CEDO A PONTO DE NÃO CONSEGUIR FICAR ACORDADO

NAS AULAS, E MAIS TARDE DESCOBRIU UM TALENTO NATURAL PRA

OPERAR MÁQUINAS MANUAIS NA AULA DE ARTES INDUSTRIAIS DO SR.

VAUGHAN, EM FISHINGER, E AGORA É UM REPRESENTANTE SINDICAL

NA PRECISION TOOL & DIE, A POUCAS QUADRAS DO ESCRITÓRIO DA

EMPRESA EM QUE EU MESMO TRABALHO.

No meio do que estava escrevendo no quadro-negro, ilustrando que a expressão devido

processo da lei aparecia de forma idêntica tanto na 5.ª quanto na 14.ª Emenda, o Sr. Richard

Allen Johnson inadvertidamente acrescentou ainda algo mais na frase – a palavra MATAR em

maiúsculas. Ellen Morrison, Sanjay Rabindranath e alguns outros alunos mais aplicados da

turma, copiando o que o Sr. Johnson estava colocando no quadro palavra por palavra, perce-

beram que haviam escrito devido processo MATAR da lei e que era aquilo mesmo que estava

escrito no quadro, e viram que o Sr. Johnson tinha dado um ou dois passos pra trás e estava

olhando em evidente perplexidade para aquilo que estava escrito ali. Em todo caso, muitos

colegas depois relataram isso como perplexidade por causa do jeito dele, apesar de o prof.

substituto estar virado para o quadro e portanto de costas para a turma, sua cabeça estava ago-

ra curiosamente inclinada para o lado, semelhante a um cachorro quando escuta um certo tipo

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de som agudo, e ele ficou desse jeito por um tempo até chacoalhar a cabeça como se estivesse

tentando pôr ordem em alguma confusão e usar o apagador do quadro pra apagar o MATAR

da lei e substituir pelo correto da lei. Como de costume, Chris DeMatteis estava dormindo na

segunda fileira com a cabeça apoiada na mesa, pois seu pai e seus irmãos mais velhos dirigi-

am um serviço de entrega de jornal para bancas e vendedores cobrindo mais de um terço da

cidade cedo pela manhã, e geralmente faziam DeMatteis acordar às 3h da madrugada pra dar

uma mãozinha, mesmo em dia de semana, e DeMatteis geralmente pegava no sono durante as

aulas, especialmente se era aula de prof. substituto. Mandy Blemm, que era bem pouco co-

nhecida pela maioria das crianças da R. B. Hayes em termos da sua verdadeira história e vida

pessoal (tanto eu quanto Tim Applewhite tínhamos sido colocados com a Blemm na sala de

leitores lentos da Srta. Clennon, na 3.ª série, mas depois Applewhite acabou sendo mandado

para uma escola especial em Minerva Park, já que ele simplesmente não conseguia ler nada –

ele era literalmente um leitor lento, e esse não era o meu caso ou o da Blemm), raramente

pegava o livro ou mesmo os lápis durante a aula e sempre ficava sentada olhando pra mesa de

um jeito distante ou taciturno, e nunca prestava atenção ou fazia qualquer tarefa, até a direção

da escola ficar preocupada a ponto de começar a fazer planos de transferir Blemm pra Miner-

va Park também, e foi então que de uma hora pra outra ela começou a fazer suas tarefas e par-

ticipar da aula. Nisso, logo que a tempestade da direção passou, ela novamente voltou a ficar a

aula toda sentada só encarando sua mesa ou roendo lentamente a pele morta do polegar. Ela

também era conhecida por comer cola. Todo mundo tinha um pouco de medo dela. Ao mesmo

tempo, Frankie Caldwell, que atualmente trabalha em Dayton como inspetor de controle de

qualidade na Uniroyal, estava concentrado e de cabeça baixa desenhando intensamente algu-

ma coisa no papel com pauta. Alison Standish (que mais tarde se mudou) tinha faltado de no-

vo. Enquanto isso, a 10.ª Emenda (as nove primeiras Emendas constituem a conhecida Decla-

ração dos Direitos, embora a 10.ª Emenda tenha sido ratificada simultaneamente, em 1791),

que contém a frase Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por

ela negados aos Estados, e assim por diante, foi escrita no quadro pelo Sr. Johnson, de acordo

com Ellen Morrison e todos os outros alunos que estavam fazendo anotações, da seguinte ma-

neira: Os poderes não delegados MATAR aos Estados Unidos pela TODOS Constituição, nem

por ela negados MATAR TODOS aos Estados, e naquele momento evidentemente outro longo

silêncio tomou conta da turma, e nesse ínterim os alunos começaram a olhar uns pros outros

enquanto o Sr. Johnson ficou parado diante do quadro de costas pra turma, segurando o giz

amarelo com a mão pendendo ao seu lado e a cabeça novamente inclinada como se ele esti-

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vesse com dificuldade de escutar ou entender alguma coisa, sem se virar ou dizer nada, até ele

pegar outra vez o apagador do quadro e tentar continuar a lição sobre a 10.ª e 13.ª Emenda

como se nada de estranho tivesse acontecido. De acordo com Mandy Blemm, a essa altura a

sala estava em um silêncio mortal, e vários alunos revelavam uma expressão inquieta no rosto

enquanto obedientemente riscavam o TODOS e o MATAR TODOS que o Sr. Johnson havia

inserido inicialmente na citação. Ao mesmo tempo, na janela, uma série de acontecimentos

terríveis sobrevinha ao pai de Ruth Simmons, que em uma série diagonal de quadros na tela

protetora aparecia limpando estoicamente e sem reclamar a neve da longa entrada preta com o

enorme equipamento da marca Garoto da Neve que os engenheiros da empresa do dono ti-

nham inventado nos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento dele, e era por isso que agora

ele era tão rico. Era só o começo da era de cortadores de grama e limpa-neves a gasolina para

consumidores comuns. Enquanto isso, o carro da Sra. Marjorie Simmons estava preso na neve

densa da rua e ficou parado com as janelas tão embaçadas que um observador não teria a me-

nor ideia do que ela estaria fazendo ali, e presume-se que Cuffie e os cachorros ferozes e im-

placáveis ainda estavam atravessando o longo tubo industrial que ia do Rio Scioto até uma

grande fábrica de produtos químicos na Rodovia do Rio Olentangy, pois em vários quadros

consecutivos aparecem imagens do concreto exterior do tubo sem nenhuma atividade visível

nem nada saindo de qualquer uma de suas extremidades, com exceção do líquido desagradá-

vel de cor laranja caindo no rio. A sala inteira de Educação Cívica tinha ficado muito quieta.

O número total de palavras no quadro-negro após as apagadas do professor era 104 ou 121,

dependendo se os numerais romanos fossem ou não considerados na contagem de palavras. Se

me perguntassem, eu provavelmente saberia dizer o número total de letras, as letras usadas

mais ou menos vezes (“tie”, no último caso), assim como várias funções estatísticas diferentes

por meio das quais a frequência relativa de aparição das diferentes letras pudesse ser quantifi-

cada, mas eu não cheguei a considerar os dados dessa forma e muito menos sabia que podia

fazer isso. Os fatos sobre as palavras simplesmente estavam ali, mais ou menos como o co-

nhecimento que se tem sobre como anda seu estômago ou a posição em que seu braço está

independentemente de você prestar ou não atenção nessas partes. Eles simplesmente eram

parte de todo o ambiente periférico da minha cadeira. Contudo, eu tinha consciência sim de

que estava ficando cada vez mais perturbado pela narrativa gráfica se desenvolvendo, quadra-

do por quadrado, na janela. Embora atrativas e divertidas, poucas narrativas da janela chega-

vam a ficar horríveis ou desagradáveis. A maioria tinha temas alegres – quando não ingênuos

ou infantis. E somente nos dias em que havia tempo suficiente antes do sinal tocar avisando o

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final da aula de Educação Cívica que eu conseguia ver como elas terminavam. Algumas con-

tinuavam a história do dia anterior, mas na prática isso era raro, já que era difícil guardar na

memória por tanto tempo todos os detalhes que foram aparecendo.

NA INFÂNCIA, EU NÃO TINHA A MENOR IDEIA DO QUE SE PASSAVA NA

CABEÇA DO MEU PAI OU DE COMO ELE SE SENTIA, BEM NO FUNDO,

TENDO DE FAZER O QUE ELE FAZIA SENTADO EM SUA ESCRIVANINHA O

DIA TODO. A ESSE RESPEITO, SÓ MUITOS ANOS DEPOIS DE SUA MORTE É

QUE EU SENTI QUE REALMENTE O CONHECIA.

No que se refere à ordem exata dos acontecimentos na sala de Educação Cívica, algo

estava claramente errado com a cara e a expressão do Sr. Johnson conforme a aula continua-

va, abordando agora a 13.ª Emenda. Nesse mesmo intervalo, em uma série de quadros várias

fileiras abaixo, o enorme equipamento laranja a gasolina da marca Garoto da Neve, que re-

move a neve de calçadas por meio de um sistema de lâminas rotativas que transforma a neve

em pequenas partículas e de um soprador potente que aumenta o vácuo de rotação das lâmi-

nas, jogando a neve em um arco a cinco, oito ou dez metros de distância do homem que opera

o equipamento (a distância do arco pode ser controlada ajustando-se o ângulo do tubo de saída

por meio de três cavilhas e aberturas pré-instaladas, semelhante à artilharia do morteiro versão

Mark IV utilizado na Coreia e em outros lugares), enguiçou. Certamente a neve da nevasca

estava tão densa e molhada que entupiu o sistema de rotação com oito lâminas bem afiadas, e

o dispositivo de autoproteção do Garoto da Neve travou o motor (com uma turbina que tam-

bém servia de pistão das lâminas) pra impedir que seus cilindros superaquecessem e derretes-

sem os pistões, arruinando o caro equipamento. Nesse sentido, o Garoto da Neve não era mui-

to diferente de um cortador de grama a gasolina modificado, sendo que nosso vizinho, o Sr.

Snead, foi orgulhosamente o primeiro da nossa rua a adquirir um cortador de grama a gasoli-

na, e ele deixou a criançada da vizinhança inspecioná-lo depois de ter desativado as velas de

ignição – ele enfatizou várias vezes que é necessário desativar as velas de ignição do cortador

de grama se você fosse colocar qualquer pedaço da mão perto das lâminas, já que elas gira-

vam, segundo ele, a mais de 360 rpm de torque e cortariam a mão de um homem em um pis-

car de olhos –, e o quadro esquemático das partes internas do Garoto da Neve, na janela, foi

fortemente baseado na explicação do Sr. Snead sobre como seu cortador de grama a gasolina

foi elaborado para cumprir sua função só com um toque de leve nos controles. (O Sr. Snead

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vivia com um casaco de tricô bege, e por trás de sua aparência bondosa ele parecia profunda-

mente triste, e nossa mãe disse que ele era tão amigável com a criançada da vizinhança e in-

clusive deu um presente de Natal pra cada um de nós por vários anos porque ele e a Sra. Sne-

ad não podiam ter filhos, o que eu achei triste, e meu irmão me confidenciou que eles não

podiam ter filhos por causa de um aborto clandestino que a Sra. Snead fez quando era uma

adolescente piranha, algo que na época eu provavelmente não entendi direito pra sentir qual-

quer coisa além de pena pelo Sr. e Sra. Snead, de quem eu gostava.) Pelo que me lembro ago-

ra, o cortador de grama dos Snead também era laranja e bem maior que seus descendentes

modernos. Mas a princípio eu não lembrava se a narrativa da janela incluía qualquer explica-

ção sobre o que levou o cachorro feroz menor e subordinado, com a ferida, àquela situação;

ele se chamava Scraps e tinha fugido de casa por causa do jeito que seu dono o tratava quando

o tédio e o desespero de seu emprego administrativo de baixo nível o afetavam demais, dei-

xando-o bravo e com um olhar vazio e fazendo-o beber vários copos de uísque com soda sem

gelo nem um limãozinho sequer, e depois disso ele sempre encontrava alguma desculpa pra

ser cruel com Scraps, que tinha ficado o dia todo esperando sozinho em casa e só queria um

pouco de atenção ou um carinho ou então brincar de cabo de guerra com um trapo ou um

brinquedo pra cachorro pra poder dissipar sua própria solidão entediante, e sua vida tinha sido

tão horrível que a história de fundo é interrompida abruptamente depois da segunda vez que o

homem chuta Scraps no estômago, tão forte que o cachorro não conseguia parar de tossir e

ainda assim tentava lamber a mão do homem enquanto este pegava Scraps e o jogava na gara-

gem gelada, trancando-o aí a noite toda, e Scraps ficou deitado sozinho no chão de concreto,

enroscado e tentando fazer o mínimo barulho possível ao tossir. Enquanto isso, na fileira prin-

cipal da narrativa, o Sr. Simmons – distraído pela preocupação com a tristeza de sua filha ce-

ga e esperançoso de que estivesse tudo bem com sua esposa Marjorie dirigindo na nevasca

enquanto procurava por Cuffie –, depois de facilmente virar de lado o equipamento Garoto da

Neve com sua força de trabalhador braçal, alcança o sistema de lâminas e a parte interna do

tubo de saída pra limpar a neve molhada e acumulada que se juntou ali, emperrando a máqui-

na. Normalmente um trabalhador cuidadoso que prestava bastante atenção e seguia instruções,

desta vez o Sr. Simmons estava tão distraído que esqueceu de desativar as velas de ignição

antes de mexer ali, e nesse momento o quadro esquemático aparecia com uma seta e uma li-

nha pontilhada indicando as velas de ignição. Assim, logo que uma quantidade de neve sufici-

ente foi removida permitindo que o pistão funcionasse livremente, o Garoto da Neve, virado

de lado, ganhou vida enquanto a mão do pai de Ruth Simmons estava bem no fundo do tubo

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de saída, cortando não só a mão do Sr. Simmons mas também boa parte do antebraço e ainda

estraçalhando gravemente todo o osso do antebraço até a medula óssea, lançando no ar com

toda a força um jato vermelho assustador de neve e matéria humana (como o Garoto da Neve

estava de lado, o tubo de saída ficou virado pra cima em linha reta), deixando o Sr. Simmons,

que estava com a cara bem em cima do tubo de saída, completamente cego. O choque e o sus-

to que eu levei diante do que estava acontecendo com o pai de Ruth Simmons, de quem eu

gostava e por quem me importava, criaram uma sensação de choque e torpor que me distanci-

ou um pouco da cena dos quadros, e lembro de estar distante o suficiente pra de alguma ma-

neira perceber que a sala de Educação Cívica parecia estranhamente quieta, e não se ouviam

nem os cochichos e as tosses que geralmente caracterizam o som do ambiente quando o pro-

fessor está escrevendo no quadro-negro. O único som, com exceção dos molares posteriores

de Chris DeMatteis rangendo e batendo enquanto ele dormia, era o de Richard A. Johnson

escrevendo no quadro, aparentemente sobre a abolição da escravatura da 13.ª Emenda, mas

acontece que o que ele estava realmente escrevendo no quadro é (conforme eu iria registrar

com meus próprios olhos momentos depois) MATAR TODOS ELES MATAR TODOS ELES

de novo e de novo em letras maiúsculas que iam ficando cada vez maiores e cada vez menos

parecidas com a letra fluida normal do prof. substituto e cada vez mais assustadoras e por fim

nem humanas mais pareciam, e nisso tudo ele não parecia se dar conta do que estava fazendo

nem parou para dar qualquer tipo de explicação, mas ficou só inclinando cada vez mais a ca-

beça já estranhamente inclinada pro lado, como alguém que estivesse lutando com todas as

suas forças contra algum tipo de força maligna ou alienígena terrível que o possuíra no quadro

e estava forçando sua mão a escrever coisas contra sua vontade, e ele estava fazendo (na hora

eu não estava consciente de que ouvia isto) um estranho som estridente, que era como se fosse

um grito ou gemido de esforço, exceto pelo fato de que se tratava certamente de uma só nota

aguda mantida do começo ao fim, e ele ficou desse jeito, fazendo aquele som por muito mais

tempo do que qualquer pessoa normalmente consegue prender a respiração que seja, enquanto

continuava virado para o quadro-negro de maneira que ninguém conseguia ver sua expressão,

escrevendo sem parar MATAR MATAR MATAR TODOS ELES MATAR TODOS FAÇA ISSO

AGORA MATAR TODOS, a letra no quadro ficando cada vez mais tremida e gigante e torta,

com uma parte do quadro já totalmente preenchida com a frase repetitiva. Nesse ponto, do que

as testemunhas de confiança pareciam se lembrar melhor era a resultante confusão e o conse-

quente medo da turma – Emily-Ann Barr e Elizabeth Frazier estavam chorando agarradas uma

à outra, Danny Ellsberg, Raymond Gillies, Yolanda Maldonado, Jan e Erin Swearingen e vá-

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rios outros alunos estavam se balançando pra frente e pra trás nos seus assentos parafusados,

Philip Finkelpearl estava se preparando para vomitar (algo que, naquela época, caracterizava

sua reação a qualquer estímulo forte), Terence Velan estava chamando por sua mutti e Mandy

Blemm estava sentada imóvel e ereta na cadeira encarando a parte de trás da cabeça do Sr.

Johnson com uma expressão de intensa concentração conforme a cabeça dele se virava mais e

mais para o lado até estar claramente tocando o ombro, já com o braço esquerdo esticado pro

lado e a mão formando meio que uma espécie de garra. E apesar de eu não estar consciente ou

atento a nada disso – exceto talvez ao fato de a parte de trás do pescoço sardento de Unter-

brunner, na carteira à minha frente, no lado esquerdo da minha visão periférica, ter ficado

branco e pálido e de sua cabeça estar totalmente tesa e imóvel –, em retrospecto, acredito que

a atmosfera da sala possa ter inconscientemente influenciado os acontecimentos infelizes da

narrativa fantasiosa da vez na tela da janela, que agora mais parecia um pesadelo e que estava

se desenrolando de uma só vez partindo do centro para várias fileiras e linhas diagonais de

quadros, o que, para manter, exigia uma tremenda energia e concentração. Tanto as crianças

surdas da turma de Artes quanto as cegas (estas últimas não poderiam ver a estatueta, mas,

tendo o sentido do tato bastante apurado, podiam, de certa maneira, ver com as mãos, e passa-

ram a estatueta deformada de mão em mão) estavam zombando da estatueta de Cuffie e rindo

de Ruth Simmons, as cruéis crianças cegas rindo de maneira normal, enquanto a risada das

cruéis crianças surdas era como um guincho de macaco (as pessoas surdas que não são mudas

tendem a produzir um som de guincho – eu não sei o porquê disso, mas quando eu era bem

pequeno um dos garotos que morava na nossa rua era surdo, e meu irmão mais velho brincava

com ele e às vezes os dois tinham brigas de socos terríveis, até que sua casa pegou fogo no

meio da noite, e vários da família sofreram queimaduras leves e inalaram fumaça, e eles se

mudaram mesmo com o seguro pagando todas as despesas e reparos, e esse garoto muitas

vezes fazia os sons característicos de guincho) ou então uma mímica muda e esquisita dos

gestos e das expressões da risada normal, enquanto a professora de Artes da escola, que era

surda e cega, sorria de maneira idiota sentada à sua mesa na frente da turma, sem saber que

Ruth Simmons estava chorando no centro de uma roda de crianças surdas e cegas rindo, zom-

bando, guinchando e balançando as bengalas, sendo que uma das crianças ficou jogando a

estatueta de Ruth no ar e batendo nela com sua fina bengala branca como um treinador da

American Legion jogando bolas de beisebol pra cima em treinos (mas sem dúvida com muito

menos êxito); enquanto, em outra série de quadros mais abaixo, o carro parado da Sra. Marge

Simmons era agora só um enorme monte de neve tremendo com uma vaga forma de carro e

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uma tonalidade cinzenta peculiar, como resultado do acúmulo de neve da tempestade que obs-

truiu a saída do escapamento do carro velho e desviou o gás de escape para o interior do carro,

dentro do qual, em uma perspectiva interna, estava sentada a falecida Marjorie Simmons, ain-

da atrás do volante, com a boca e o queixo todo lambuzado de vermelho, pois ela estava pas-

sando o batom Pôr do Sol em Acapulco da Avon quando o monóxido de carbono do escape

começou a atacar, deixando sua mão em forma de garra e manchando de batom toda a parte

inferior do seu rosto conforme ela ofegava e se arranhava com falta de ar, sentada ereta e pá-

lida e com o olhar vazio no espelho retrovisor, enquanto, fora do monte de neve parado, mu-

lheres tão agasalhadas que mal conseguiam se curvar começavam a usar pás para liberar a

entrada para seus maridos que voltavam para casa, e os sons distantes de sirenes de emergên-

cia e ambulâncias começavam a se aproximar da cena. Ao mesmo tempo, um único quadro

traumaticamente abrupto apareceu mostrando Scraps, o cão feroz malhado e subordinado,

com a ferida, sendo atacado no túnel industrial por enxames que poderiam ser tanto de peque-

nos ratos sem rabo ou de gigantes baratas atômicas mutantes, enquanto, ali perto, Cuffie fica

paralisado com as patas sobre os olhos em estado de choque e terror instintivos, até que o ca-

chorro feroz e dominante, mais experiente e resistente, que era mistura de rottweiler, salva a

vida de Cuffie arrastando-o pelo cachaço até um túnel menor que servia como saída de emer-

gência e levava mais na direção da área da Escola Primária R. B. Hayes e do campo de golfe

Fairhaven Knolls, que fica logo depois do bosque no horizonte da janela, atrás e à direita. O

quadro, que se completava com a boca aberta do infeliz cão malhado agonizando e um abdô-

men de rato ou barata mutante saindo do buraco do seu olho enquanto a outra metade do pre-

dador consumia o olho e o cérebro dele, era tão traumático que essa linha narrativa foi imedia-

tamente interrompida e substituída por uma imagem neutra da parte externa do tubo. Como

resultado, o quadro isolado e saindo de um pesadelo aparecia na janela só como um instantâ-

neo periférico e momentâneo ou um flash de uma cena medonha, não muito diferente daque-

les flashes isolados e horríveis que muitas vezes aparecem em sonhos ruins – de certa manei-

ra, a velocidade com que aparecem e desaparecem e a falta de tempo para captar o mínimo do

que você está vendo ou para digerir ou encaixar isso na narrativa do sonho como um todo

torna aquilo ainda pior, e muitas vezes um flash rápido e periférico de algo horroroso e fora

do contexto acaba sendo a pior parte do pesadelo e a parte que você lembra melhor e que fica

aparecendo do nada na sua cabeça em momentos nada a ver, como quando você está escovan-

do os dentes ou pegando uma caixa de cereais do armário da cozinha para fazer uma boqui-

nha, e te dando arrepios cada vez que acontece, talvez porque o próprio fato de ser instantâneo

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no sonho significa que sua mente precisa ficar voltando para aquilo de maneira subconsciente

para processar ou incorporar tal coisa. Como se o fragmento ainda não estivesse bem resolvi-

do na sua cabeça, da mesma maneira que, nos dias atuais, depois de tanto tempo, as lembran-

ças mais persistentes dos primeiros anos da infância consistem destes quadros periféricos de

flashes – meu pai se barbeando lentamente enquanto passo pelo banheiro dos meus pais indo

descer as escadas, nossa mãe de joelhos com um lenço de cabeça e luvas diante de uma rosei-

ra lá fora, vista pela janela direita da cozinha enquanto encho um copo d’água, meu irmão

quebrando o pulso ao cair do trepa-trepa e os sons distantes dos gritos dele enquanto eu dese-

nhava na areia com um graveto. As rodinhas do piano dentro de pequenas capas protetoras; a

cara dele entrando em casa. Mais tarde, quando eu tinha meus vinte anos e estava cortejando

minha esposa, foi lançado o traumático filme O Exorcista, um filme controverso que tanto eu

quanto ela achamos perturbador – e não perturbador de maneira artística ou instigante, mas

ofensiva mesmo – e saímos juntos bem no ponto em que a menininha estava mutilando suas

partes íntimas com um crucifixo parecido na forma e no tamanho com o que os pais de Mi-

randa tinham na parede da sala de estar deles, logo na entrada da casa. Na verdade, pra mim o

primeiro momento de verdadeira afinidade e concordância que Miranda e eu tivemos foi, se-

gundo me lembro, no carro enquanto voltávamos para casa depois de ter saído no meio desse

filme, algo que fizemos juntos, só com um olhar de relance no cinema confirmando que está-

vamos de pleno acordo sobre nossa aversão e rejeição ao filme, com uma sensação estranha

de que aquele momento de mutualidade tinha um quê de sexual, embora no contexto dos te-

mas do filme a resposta ao sexual era ao mesmo tempo perturbadora e inesquecível. Basta

dizer que nunca mais assistimos ao filme. E no entanto, o único momento de O Exorcista que

ficou tão fortemente gravado na minha memória ao longo dos anos consistia apenas de algu-

mas imagens e tinha justamente essa característica de ser rápido e periférico, e desde então

invade minha mente em momentos nada a ver. No filme, a mãe do padre Karras morre, e pra

afogar as mágoas e a culpa ele bebe um pouco além da conta (“Eu devia ter ficado com ela, eu

devia ter ficado com ela” é o que ele fica repetindo pro outro jesuíta, o padre Dyer, que está

tirando os sapatos dele e o ajudando a deitar na cama), e tem um sonho ruim, que o diretor do

filme retrata com uma intensidade e habilidade assustadoras. Aquele foi um dos nossos pri-

meiros encontros sem alguém de vela, não muito tempo depois de eu ter entrado na empresa

em que até hoje eu trabalho – e mesmo assim, ainda hoje, o intervalo dessa sequência de so-

nho permanece nítido na minha memória em praticamente todos os detalhes. A mãe do padre

Karras, pálida e vestida de preto fúnebre, aparece saindo de uma estação subterrânea de metrô

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enquanto o padre Karras acena desesperadamente para ela do outro lado da rua, tentando

chamar sua atenção, mas ela não o vê ou o reconhece e vira de costas – movendo-se daquele

jeito terrível e implacável que outras pessoas têm nos sonhos – e desce de volta pela escada da

estação do metrô, implacavelmente sumindo de vista. Não há som, apesar de ser uma rua bem

movimentada, e a ausência de som é ao mesmo tempo assustadora e realista – a recordação

que muitas pessoas têm de seus pesadelos é de não terem som, com alguma sugestão de cacos

de vidro grosso ou de cachoeira e esse tipo de efeito sonoro de mídia. O padre Karras é um

ator que, até onde eu sei, não aparece em nenhum outro filme da época, com um aspecto me-

diterrâneo inquieto nas suas feições, sendo comparado com Sal Mineo por outro personagem

do filme. A sequência de sonho inclui também uma parte longa em câmera lenta que mostra

uma medalha católica romana caindo pelo ar, como se de uma grande altura, com sua fina

corrente de prata ondulando em formas complexas enquanto a medalha gira caindo lentamen-

te. A iconografia da medalha caindo não é complicada, conforme Miranda apontou quando

discutimos o filme e os motivos por que saímos antes do exorcismo propriamente dito. Sim-

boliza os sentimentos de impotência e culpa do padre Karras em relação à morte de sua mãe

(ela morreu sozinha em seu apartamento, e passaram-se três dias até que alguém a encontras-

se; esse tipo de situação faria qualquer um se sentir culpado) e o abalo na fé do padre Karras

em si mesmo como filho e padre, um golpe à sua vocação, que deve estar baseada não só na fé

em um deus mas na crença de que uma pessoa com a vocação poderia fazer algum tipo de

diferença e ajudar a aliviar o sofrimento e a solidão humana, algo que, nesse caso, ele desca-

radamente falhou em fazer com sua própria mãe. Sem contar o clássico problema de como um

deus supostamente amoroso poderia permitir esse fim terrível, um problema que sempre surge

quando pessoas ligadas a nós sofrem ou morrem (bem como a reação secundária de culpa pela

hostilidade secreta que muitas vezes sentimos em relação à memória de pais que morreram –

um intervalo com história de fundo tinha mostrado a mãe do padre Karras empurrando gar-

ganta abaixo algum tipo de remédio desagradável com uma colher de aço quando ele era cri-

ança, e também brigando com ele em italiano por tê-la deixado preocupada, e em certa ocasi-

ão passando silenciosamente pela janela depois de ele ter caído de patins e esfolado os joelhos

e ter ficado chorando pedindo que ela fosse até a calçada ajudá-lo). Tais reações são comuns a

ponto de serem praticamente universais, e tudo isso é representado pela lenta medalha caindo

do sonho, que no final da sequência para em uma pedra chata que poderia ser tanto de um

cemitério quanto de um jardim abandonado, cheio de musgo e mato espinhoso. Apesar do

cenário bucólico, o ar em que a medalha cai é abafado e preto, o preto extremo do nada, mes-

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mo quando a medalha e a corrente repousam sobre a pedra; assim como não há som, não há

fundo. Mas inserido muito rápido na sequência aparece um flash breve da cara do padre Kar-

ras, terrivelmente transformada. Os olhos brancos e malignos, as salientes maçãs do rosto e a

palidez de raiz da cara eram claramente demoníacos – era a face do mal. Esse flash da cara é

muitíssimo breve, provavelmente só com quadros suficientes pra ser captado pelo olho huma-

no, e não tem qualquer som ou fundo, e já desaparece sendo imediatamente substituído pela

medalha católica que ainda cai. O próprio fato de ser breve serve para ficar gravado na cons-

ciência de quem está assistindo. Minha esposa, no fim das contas, nem mesmo viu o rápido

momento da cara – talvez ela tenha espirrado ou desviado o olhar da tela por um instante. Sua

interpretação foi de que mesmo que a imagem rápida e periférica tivesse realmente aparecido

no filme e não na minha imaginação, poderia ser facilmente interpretada como uma represen-

tação do padre Karras inconscientemente se vendo como uma pessoa demoníaca ou má por ter

permitido que sua mãe (conforme ele via) morresse sozinha. Contudo, eu jamais esqueci esses

quadros – e mesmo assim, embora no íntimo eu tenha discordado da rápida explicação de

Miranda, ainda estou longe de saber realmente o que o rápido flash da cara transfigurada do

padre queria dizer e por que ele permanece tão nítido na lembrança que eu tenho do nosso

namoro. Acho que só pode ser sua característica incongruente de quase instantaneidade na

aparição, o fato de ser absolutamente periférico. Pois a verdade é que os acontecimentos mais

marcantes e permanentes da nossa vida quase sempre são aqueles que acontecem na periferia

de nossa consciência. Sua importância para a história de como aqueles de nós que não fugi-

mos em pânico da sala de Educação Cívica nos tornamos conhecidos como os 4 Reféns Des-

prevenidos é bastante óbvia. Em testes, muitas crianças rotuladas como hiperativas ou com

déficit de atenção na escola revelam não ser tão incapazes assim de prestar atenção, mas antes

têm mais dificuldade em exercer controle sobre ou escolher o que vai ser seu foco de atenção.

E no entanto, praticamente a mesma coisa acontece na vida adulta – conforme se envelhece,

muitas pessoas percebem uma mudança nos objetos de suas recordações. Por vezes conse-

guimos lembrar muito melhor os detalhes e as associações subjetivas do que o acontecimento

em si. Isso explica a sensação frequente de que o que é importante sobre certa lembrança ou

determinado acontecimento está na ponta da língua quando se está tentando relatar tal coisa.

Da mesma forma, é isso que torna tão difícil se comunicar de maneira significativa com ou-

tros ao longo da vida. Muitas vezes, as coisas lembradas e sentidas de maneira mais intensa

serão, na melhor das hipóteses, superficiais para outra pessoa – como o cheiro que saía dos

calções de couro de Velan quando ele corria pelo corredor, ou a perfeita prega dupla na parte

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de cima da lancheira marrom do meu pai, ou mesmo os quadros periféricos com a pequena

Ruth Simmons olhando cegamente para cima enquanto uma roda de colegas como ela a casti-

ga pela estatueta de massinhazinha e – de forma contígua na janela, mas em outro lugar na

atual narrativa –, no bosque ao longo da entrada da propriedade do rico fabricante, com o Sr.

Simmons, seu pai, cambaleando cegamente ora aparecendo ora não e segurando o coto da

mão decepada, gemendo e pedindo ajuda enquanto corria em sua chamativa roupa para neve,

quase sempre esbarrando nas árvores do bosque, cego por seu próprio sangue jorrando e por

sua própria carne estraçalhada, e todo o quadro extremamente rápido é granulado e difícil de

ver por causa de todas as árvores e do mato espinhoso e da forte nevasca e dos enormes mon-

tes de neve carregados pelo vento, e o Sr. Simmons por fim bate a cabeça com tudo em uma

árvore e cai de cabeça em um deles, um enorme monte de neve, desaparecendo até ficarem só

suas botas, uma delas se mexendo convulsivamente conforme ele luta tentando firmar os pés,

sem nem saber em seu choque, dor, perda de sangue e cegueira que está de ponta-cabeça, en-

quanto, ao mesmo tempo, descendo em diagonal, um técnico do Departamento de Polícia de

Columbus está ajoelhado no banco da frente acabado do carro da família Simmons fazendo o

contorno do corpo no lugar atrás do volante onde a equipe de resgate encontrou o corpo to-

talmente sem cor de Marjorie Simmons, cujas frustrações e decepções agora estão todas no

fim, com seu corpo agora – ainda segurando o batom, formando uma pequena saliência pon-

tuda no lençol branco que o cobria – sendo carregado na nevasca em uma grande maca de

ambulância por dois enfermeiros de batas brancas enquanto um detetive do Departamento de

Polícia de Columbus com neve no quepe conversa com as esposas muito agasalhadas que até

então estavam limpando as entradas de suas casas e estão agora cansadas se apoiando em suas

pás e conversando com o detetive, que faz anotações em um pequeno caderno com um lápis

muito grosso, e suas unhas também já estão ficando um pouco sem cor naquele frio, e a neve

que continuava caindo deixa todo mundo com os cílios brancos, e os dois funcionários com

grandes botas amarelas do Departamento de Obras Públicas de Columbus que tinham tirado a

neve que formou quase um iglu em volta do carro da Sra. Simmons estavam agora juntos per-

to de um carro-guincho, bafejando as mãos em concha e pulandinho no mesmo lugar, do jeito

que as pessoas que estão com frio e tédio geralmente fazem, de costas para a rua e para o len-

çol na maca com a saliência e só duas botinhas com uma borda em pele falsa nos calcanhares

à mostra, e a casa que os dois funcionários entediados (um deles usando um gorro de esqui

vermelho e prata da Universidade Estadual de Ohio com um pompom na ponta) estão vendo

sem realmente enxergar é uma daquelas casas que têm quintais (este tem um balanço com

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balanços carregados de neve acumulada formando enormes blocos em forma de tijolo) que

vão dar no bosque de olmos e pinheiros na ponta do Fairhaven Knolls, bosque este que divide

as casas da vizinhança e o campo de beisebol da Escola R. B. Hayes onde o rottweiler domi-

nante ainda está novamente tentando montar no cachorro perdido dos Simmons, no campo

real pela janela da sala, fazendo a posição e as expressões de acasalamento, forçando o tão

sofrido filhote a se submeter e suportar aquilo senão algo realmente terrível aconteceria.

À LUZ DA SITUAÇÃO POLÍTICA DO FINAL DA NOSSA ADOLESCÊNCIA,

UM DOS ASPECTOS MAIS PROBLEMÁTICOS E TÃO DISCUTIDOS DO

TRAUMA PARA AQUELES DE NÓS QUE FORMÁVAMOS OS 4 ERA QUE O

SENHOR JOHNSON NÃO PARECEU CONFRONTAR, RESISTIR OU AMEAÇAR

OS POLICIAIS ARMADOS QUE ENTRARAM COM TUDO NA SALA PELA

PORTA E PELAS JANELAS DA PAREDE DIREITA, MAS SIMPLESMENTE

CONTINUOU A ESCREVER SEM PARAR MATAR NO QUADRO-NEGRO, QUE

JÁ ESTAVA TÃO CHEIO QUE OS NOVOS MATAR, MATAR TODOS SOBREPU-

NHAM E QUASE SEMPRE OBSCURECIAM SUAS EXORTAÇÕES ANTERIO-

RES, RESULTANDO POR FIM EM POUCO MAIS QUE UMA MISTURA ABS-

TRATA DE LETRAS NO QUADRO. EMBORA O PEDAÇO PONTIAGUDO DE

GIZ, OS GESTOS DO BRAÇO ESTICADO E A PROXIMIDADE DO SR. JOHN-

SON DA SUA PASTA NA MESA TENHAM SIDO CITADOS COMO A APAREN-

TE AMEAÇA À SEGURANÇA DOS REFÉNS, JUSTIFICANDO O FATO DE ATI-

RAREM AOS OLHOS DA COMISSÃO DE INQUÉRITO DO DEPARTAMENTO

DE POLÍCIA DE COLUMBUS, A VERDADE É QUE SEM DÚVIDA FORAM A

EXPRESSÃO FACIAL E O SOM AGUDO CONTÍNUO DO SR. JOHNSON, BEM

COMO SUA TOTAL INDIFERENÇA ÀS ORDENS DOS POLICIAIS PARA SOL-

TAR O GIZ E SE AFASTAR COM AS DUAS MÃOS PARA CIMA ENQUANTO

ELE COPIAVA A SI MESMO COM UMA INTENSIDADE CADA VEZ MAIOR

NO CAOS VERBAL DO QUADRO, QUE OS LEVARAM A ABRIR FOGO. ESTA

É A ÚNICA VERDADE DE FATO: ELES FICARAM COM MEDO.

Dos chamados 4 Reféns, só Mandy Blemm e Frank Caldwell (que mais tarde, na Esco-

la Secundária Fishinger, foram juntos como um casal tanto no baile do segundo ano quanto no

baile de formatura, mantendo um relacionamento estável de namoro durante todos aqueles

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anos apesar da reputação de Blemm, e depois disso Caldwell se alistou na Marinha dos EUA e

acabou servindo também no exterior) estavam suficientemente atentos e alertas durante toda a

primeira parte do incidente para descrever depois pro DeMatteis e pra mim quanto tempo o

Sr. Johnson ficou virado para o quadro-negro escrevendo com a letra tremida e fazendo o som

agudo e atonal enquanto a turma às suas costas ficava em um pandemônio de terror surreal e

assustador cada vez maior, com algumas crianças chorando e algumas delas (Blemm as iden-

tificou depois) reproduzindo, sob a tensão, alguns mecanismos de enfrentamento dos primei-

ros anos da infância, como chupar o dedo, fazer xixi nas calças e balançar-se lentamente nas

carteiras cantarolando pra si mesmas trechos desconexos de várias canções de ninar, e Finkel-

pearl se curvou sobre a mesa e vomitou, e a maioria dos alunos perto dele parecia estar tão

hipnotizada pelo medo que nem percebeu. Foi nesse intervalo que a minha própria atenção

finalmente deixou a tela da janela e voltou para a sala de Educação Cívica, e se bem me lem-

bro isso aconteceu logo depois de o giz na mão do Sr. Johnson ter quebrado fazendo um baru-

lho alto, e de ele ficar duro com os dois braços esticados e a cabeça virada pro lado, o som

que ele fazia ficando mais e mais agudo enquanto ele se virava bem lentamente para encarar a

turma, seu corpo todo tremendo em eletricidade e seu rosto... o jeito e a expressão do rosto do

Sr. Johnson eram impossíveis de descrever. Eu jamais vou esquecer aquilo. Essa foi a primei-

ra parte que vi por inteiro do incidente que o Dispatch chamou de Terror na Sala do Substitu-

to Enlouquecido – Professor Mentalmente Desequilibrado tem um Ataque no Quadro-Negro,

Aparenta estar “Possesso”, Ameaça Assassinato em Massa, Vários Alunos Hospitalizados,

Conselho da Unidade 4 Convoca para Reunião de Emergência, Bainbridge sob Pressão (na

época, o Dr. Bainbridge era o Superintendente das Escolas da Unidade 4). O vômito de Philip

Finkelpearl também foi um fator. Alguma coisa acontece que é só alguém em qualquer lugar

vomitar perto do campo de audição de uma criança para chamar e prender sua atenção quase

que instantaneamente, e, mesmo depois de eu ter voltado a estar totalmente consciente para o

que acontecia na sala, lembro que foi o vômito de Finkelpearl e os sons e cheiros relacionados

que me chocaram por primeiro. O quadro final de que me lembro consistia da revelação em

pleno ar, em um close-up de um stop motion ridículo, em que o objeto aparecia de ponta a

ponta no ar e o garoto malvado preparava-se para rebatê-lo com sua bengala, de que a forma

que a estatueta de massinha de Ruth Simmons realmente tinha era, na verdade, a de um ser

humano, no qual Ruth, distraída em seu abalo, colocou quatro pernas em vez de duas, além de

feições humanas grosseiras, criando meio que uma criatura monstruosa ou irreal saindo de um

mito grego ou de A ilha do Dr. Moreau. Eu não lembro da importância desse detalhe, embora

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consiga recordar o detalhe em si com muita nitidez. Eu também não lembro por quanto tempo

a sala de Educação Cívica ficou daquele jeito, com o Sr. Johnson in extremis no quadro-negro

com os dois braços estendidos (ficar extremamente absorto e depois voltar ao que está real-

mente acontecendo ao seu redor é mais ou menos como sair do cinema à tarde, quando a luz

do sol e a sensação de pressa da movimentação na rua te deixam praticamente tonto), pare-

cendo ao mesmo tempo eletrocutado e possuído por demônios (não há outra maneira de des-

crever a maneira com que seu rosto voltado para cima se transformou, com um olhar que pa-

recia tanto de sofrimento quanto de exultação medonha, ou talvez seja o caso de as duas dife-

rentes expressões se alternarem tão rapidamente no seu rosto inclinado que a impressão que se

tinha é de que se tornaram uma só), e fazendo aquele barulho, e parecia, segundo Ahearn,

Ellsberg e outros da primeira fileira, que cada fio de cabelo da cabeça, do pescoço, dos braços

e das mãos do Sr. Johnson estava em pé, e as crianças na sala sentadas eretas, muitas delas

com os olhos esbugalhados se revirando mais e mais na cabeça como olhos de personagens de

desenho animado, em puro terror. Foi no meio dessa cena que Chris DeMatteis acordou atrás

de sua fileira com um gritinho queixoso – que era como ele às vezes acordava quando tinha

caído no sono na escola. Em retrospecto, a impressão que tenho é que foi o grito de pânico

inconsciente de Chris acordando que fez com que os outros alunos da turma gritassem aber-

tamente e levantassem de suas carteiras dando início a um histérico êxodo em massa da sala

de Educação Cívica (semelhante a um tiro isolado disparado por um soldado de infantaria que

precipita o início de uma batalha quando, até aquele ponto, só havia dois exércitos tensos e a

postos um diante do outro com armas em posição mas sem terem sido disparadas ainda), e o

que desviou minha atenção da visão do vômito de Philip Finkelpearl escorrendo e coalhando

ao lado de sua carteira parafusada foi o repentino e simultâneo movimento em massa dos alu-

nos da turma, em que todos exceto Chris DeMatteis, Frank Caldwell, Mandy Blemm e eu

começaram a correr para a porta da sala, que infelizmente estava fechada, e a massa de crian-

ças atrás de Emily-Ann Barr, do rápido Raymond Gillies (um negro) e dos outros que tinham

alcançado a porta primeiro e estavam agarrando histericamente a maçaneta da porta empurrou

as primeiras crianças contra a porta com tanta força que se ouviu um som horrível da cara ou

da cabeça de alguém batendo no vidro grosso e fosco da parte de cima da porta; e, como a

porta (do mesmo modo que todas as portas de sala de aula daquela época) abria pra dentro e

havia uma massa cada vez maior de crianças em pânico no caminho, pareceu demorar um

bom tempo até a porta ser arrombada por alguém corpulento o suficiente – pensando bem,

acho que quem fez isso foi o Gregory Oehmke, que com dez anos já pesava bem mais de 50

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quilos e tinha um pescoço da mesma largura dos ombros, e que também acabaria servindo no

exterior, embora eu ache isso não por ter realmente visto Oehmke arrombando a porta mas só

por ter reparado na selvageria brutal com que ela foi aberta, batendo e raspando em várias

crianças com a ponta da pesada porta quando arrombada e fazendo com que uma das altas

irmãs Swearingen que estava quase no meio da multidão perdesse o equilíbrio e desaparecesse

e é provável que tenha sido gravemente pisada no êxodo que se seguiu, pois, quando o baru-

lho das crianças gritando já estava sumindo ao norte do corredor e a porta lentamente se fe-

chava graças às suas dobradiças pneumáticas, e dois pares de mãos não identificadas rapida-

mente apareceram para agarrar os calcanhares de Jan Swearingen e puxá-la para fora da sala

de Educação Cívica, ela não se mexeu ou deu qualquer sinal de vida enquanto era arrastada de

bruços no piso xadrez, deixando um rastro comprido de seu próprio sangue ou do sangue de

outra pessoa que já estava no chão por causa de algum outro acidente na porta, as longas tran-

ças com as quais as duas irmãs Swearingen costumavam brincar e que até mastigavam quando

distraídas ou tensas se arrastando por último e por alguns centímetros quase ficando presas na

fresta da porta que lentamente se fechava.

NESTAS DISCUSSÕES POSTERIORES, TAMBÉM VEIO À TONA QUE FRAN-

KIE CALDWELL CHEGOU A HIPERVENTILAR DE TERROR E FICOU IN-

CONSCIENTE POR UM CURTO PERÍODO DE TEMPO DURANTE O ÊXODO

EM MASSA. DOS 4 REFÉNS DESPREVENIDOS, SÓ OS OUTROS TRÊS DE NÓS

ERAM CLASSIFICADOS PELA ADMINISTRAÇÃO DA ESCOLA COMO PRO-

BLEMÁTICOS OU LENTOS. O FATO DE FRANKIE NUNCA TER PROTESTA-

DO CONTRA O ERRO DA IMPRENSA É PROVA DA PROFUNDA VERGONHA

QUE ELE TAMBÉM DEVE TER SENTIDO POR TER FICADO COM TANTO

MEDO.

De minha parte, comecei a ter pesadelos sobre a realidade da vida adulta bem cedo, lá

pelos sete anos. Eu sabia, já naquela época, que os sonhos tinham relação com a vida e o tra-

balho do meu pai e com o jeito do olhar dele quando ele voltava para casa do trabalho no fim

do dia. Ele chegava sempre entre 17h42 e 17h45, e era eu que geralmente o via primeiro en-

trando pela porta da frente. Os acontecimentos de sua rotina eram quase que coreográficos.

Ele chegava já se virando para empurrar a porta atrás dele. Tirava o chapéu e o sobretudo e

pendurava o casaco no armário da entrada; afrouxava a gravata usando dois dedos, arrancava

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o elástico verde em volta do Dispatch, entrava na sala, cumprimentava meu irmão e sentava

com o jornal no colo, esperando minha mãe lhe trazer um uísque com soda. Os pesadelos em

si sempre começavam com uma visão ampla de vários homens em escrivaninhas enfileiradas

em uma sala ou em um saguão grande e bem iluminado. As escrivaninhas estavam dispostas

em fileiras e colunas perfeitas, como as carteiras de uma sala de aula da R. B. Hayes, mas elas

eram mais parecidas com as mesas grandes, cinzas e de aço dos professores, na frente da sala,

e havia muitas, mas muitas mesas, talvez 100 ou mais, cada uma ocupada por um homem de

terno e gravata. Se havia janelas, não me lembro de ter reparado nelas. Alguns dos homens

eram mais velhos que os outros, mas todos eles eram adultos, obviamente – pessoas que diri-

gem, que fazem seguro, que tomam uísque com soda enquanto leem o jornal antes do jantar.

A sala do pesadelo era pelo menos do tamanho de um campo de futebol ou de futebol de ban-

deira; era totalmente silenciosa e tinha um grande relógio em cada parede. Também era muito

iluminada. Na entrada, enquanto meu pai passava pela porta da frente e levantava a mão es-

querda para tirar o chapéu, seus olhos pareciam sem luz e mortos, sem nada daquilo que asso-

ciávamos à sua verdadeira persona. Ele era um homem gentil, decente e de aparência comum.

Sua voz tinha um tom grave, mas não ressonante. De fala mansa, ele tinha um senso de humor

que fazia com que seu lado naturalmente reservado não parecesse distante ou indiferente.

Mesmo quando éramos pequenos, meu irmão e eu tínhamos consciência de que ele passava

mais tempo com a gente e se dava ao trabalho de mostrar que éramos importantes para ele

bem mais do que a maioria dos pais daquela época. (Isso muitos anos antes de eu ter qualquer

noção de como a nossa mãe se sentia em relação a ele.) A entrada era colada à sala, onde fica-

va o piano, e naquela época eu geralmente lia ou brincava com meus caminhões fora do al-

cance de chutes embaixo do piano, enquanto meu irmão praticava seus exercícios de Hanon, e

eu geralmente era o primeiro a perceber o som da chave do meu pai na porta da frente. Eram

necessários só quatro passos e uma rápida escorregadinha de meia até a entrada para vê-lo

primeiro, trazendo uma onda do ar lá de fora. Lembro que a entrada era escura e fria e tinha o

cheiro do armário, a maior parte dele com os diferentes casacos e as luvas combinando da

minha mãe. A porta da frente era pesada e difícil de abrir e fechar, como se a entrada fosse de

alguma forma pressurizada. A porta tinha no meio uma pequena janela em forma de diamante,

mas depois nos mudamos antes de eu ter altura suficiente para enxergar por ela. Ele tinha de

empurrar um pouco a porta de lado pra que ela fechasse totalmente, e eu só via seu rosto de-

pois de ele se virar para tirar o chapéu e o casaco, mas lembro que a posição dos ombros

quando ele encostava na porta tinha a mesma característica dos olhos. Não conseguiria expli-

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car essa característica agora e certamente não teria conseguido na época, mas sei que ela aju-

dou a dar forma aos pesadelos. Seu rosto não tinha nada disso em fins de semana de folga. É

em retrospectiva que eu acredito que os sonhos tratavam da vida adulta. Na época, eu só sabia

do terror que provocavam – boa parte da dificuldade de que eles se queixavam em me mandar

pra cama e me fazer dormir à noite era por causa desses sonhos. E também não é possível que

sempre já estivesse escurecendo às 17h42, embora seja assim que eu me lembre, e que a inva-

são do ar de fora que vinha com ele fosse gelado e cheirasse a folhas queimadas e carregasse

o aroma triste que a rua exalava ao entardecer, quando todas as casas ficavam da mesma cor e

as luzes de varanda surgiam como baluartes de defesa contra algo sem nome. Seus olhos não

me assustavam quando ele se virava da porta, mas o sentimento tinha algo relacionado a estar

com medo. Na maioria das vezes eu ainda estava com um caminhão na mão. O chapéu ia para

o porta-chapéus, o casaco escorregava dos ombros, depois ele dobrava o casaco sobre o braço

esquerdo, abria o armário com a mão direita, transferia o casaco para aquela mão enquanto,

com a mão esquerda, tirava o terceiro cabide de madeira da esquerda para a direita. Havia

algo relacionado a essa rotina que bem lá no fundo me assombrava, em partes a que eu mes-

mo não tinha acesso. Eu tinha, claro, uma ideia do que era tédio na época, na Hayes e na Ri-

verside, ou nas tardes de domingo quando não tinha nada pra fazer – o tipo inquieto de tédio

infantil que tem mais a ver com incômodo do que com desespero. Mas não acho que eu cons-

cientemente relacionei o jeito do olhar do meu pai à noite com o tédio bem diferente e mais

profundo, no nível da alma, de seu trabalho, que eu sabia que era atuarial porque na 2.ª série

todo mundo da sala principal da Sra. Claymore teve de fazer uma breve apresentação sobre a

profissão do pai. Eu sabia que seguro significava proteção que os adultos contratavam pros

casos de risco, e sabia que havia números nisso por causa dos documentos que ficavam visí-

veis na pasta dele quando ele me deixava destravá-la e abri-la, e meu irmão e eu vimos o pré-

dio onde ficava a sede da companhia de seguros e, na fachada, a janela pequenininha do meu

pai que minha mãe apontou do carro, mas as verdadeiras especificidades do seu trabalho sem-

pre foram vagas. E continuaram assim por muitos anos. Olhando para trás, suspeito que havia

alguma situação de cubra-os-olhos e tape-os-ouvidos na minha falta de curiosidade sobre o

que exatamente meu pai tinha de fazer o dia todo. Lembro de certas histórias com narrativas

emocionantes baseadas nas conotações competitivas e quase primitivas da expressão ganha-

pão, que foi o termo genérico usado pela Sra. Claymore para designar as ocupações dos nos-

sos pais. Mas acho que eu não sabia ou nem imaginava, quando criança, que durante quase 30

anos, em 51 semanas por ano, meu pai ficava o dia todo sentado em uma escrivaninha de me-

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tal em uma sala silenciosa e iluminada por lâmpada fluorescente, lendo formulários e fazendo

cálculos e preenchendo outros formulários com os resultados de tais cálculos, parando só de

vez em quando para atender ao telefone ou se reunir com outros securitários em outras salas

silenciosas e bem iluminadas. Só com uma janelinha ao norte em que não batia sol e de onde

dava pra ver outras janelinhas de escritório em outros prédios cinzentos. Os pesadelos eram

bem reais e fortes, mas não eram do tipo em que você acorda chorando e depois precisa tentar

explicar para sua mãe quando ela vem perguntar o que você estava sonhando pra poder te

garantir que foi só um sonho e que não existe nada daquilo no mundo real. Eu sabia que ele

gostava de deixar música ou um programa de rádio animado ligado e audível o tempo todo em

casa, ou de escutar meu irmão treinar enquanto lia o Dispatch antes do jantar, mas tenho cer-

teza de que na época não relacionei isso com o silêncio esmagador que o rodeava o dia todo.

Eu não sabia que o fato de minha mãe fazer seu almoço era uma das bases do contrato do ca-

samento deles, ou que quando o tempo estava ameno ele descia o elevador com seu almoço e

comia sentado em um banco de pedra sem encosto que ficava de frente pra uma pequena pra-

ça de grama com duas árvores e uma escultura pública abstrata, e que em muitas manhãs esses

30 minutos lhe davam um norte, assim como marinheiros longe da terra usam as estrelas. Meu

pai morreu de um infarto quando eu tinha dezesseis anos, e confesso que, apesar do choque e

da perda evidente, foi menos difícil lidar com sua morte do que com muito do que fiquei sa-

bendo sobre sua vida depois que ele já tinha partido. Por exemplo, foi muito importante pra

minha mãe que meu pai fosse enterrado em algum lugar onde houvesse pelo menos algumas

árvores visíveis; e considerando a logística do cemitério e os detalhes do contrato funerário

que ele tinha preparado para os dois, isso trouxe um montão de problemas e despesas em uma

época difícil, e nem meu irmão nem eu entendemos o porquê disso até alguns anos depois

quando ficamos sabendo dos seus dias de trabalho e do banco onde ele gostava de almoçar.

Seguindo a sugestão de Miranda, fiz questão de, em certa primavera, ir visitar o lugar onde

estivera sua pequena praça de grama e árvores. A área tinha sido transformada em um daque-

les parques pequenos e bem pouco utilizados do centro que eram característicos dos progra-

mas de revitalização da Nova Columbus do início da década de 1980, em que não havia mais

grama ou faias mas uma pequena e moderna área de parquinho, com lascas de madeira em vez

de areia e um trepa-trepa todo feito de pneus reciclados. Havia também um balanço, e seus

dois balanços vazios ficavam indo pra frente e pra trás em velocidades diferentes no vento

durante todo o tempo em que fiquei ali sentado. Durante algum tempo no início da minha vida

adulta, eu tive fases de ficar imaginando meu pai sentado no banco ano após ano, mastigando

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e olhando para aquela praça enfiada ali com alguma coisa verde, tendo sempre em mente

quanto tempo exatamente faltava pra acabar o horário de almoço sem precisar olhar para o

relógio. Ainda mais triste era tentar imaginar o que ele pensava enquanto ficava ali sentado,

imaginar que ele talvez pensasse em nós, na cara que a gente fazia quando ele chegava em

casa ou no nosso cheiro característico à noite depois do banho quando ele vinha nos dar um

beijo na testa – mas a verdade é que eu não faço a menor ideia do que ele pensava, de como

teria sido sua vida interior. E se ele estivesse vivo eu ainda assim não saberia. Ou tentar ima-

ginar (e pra Miranda esta era a coisa mais triste de todas) as palavras que ele poderia ter usado

pra descrever seu trabalho e a praça e as duas árvores pra minha mãe. Eu conhecia meu pai

bem o suficiente pra saber que ele não teria falado diretamente – tenho certeza de que ele

nunca sentou ou deitou ao lado dela e simplesmente falou sobre o almoço no banco e as árvo-

res gêmeas que no outono atraíam enxames de estorninhos em migração, vindo em massa e

parecendo mais abelhas do que pássaros, apinhando-se nos galhos dos olmos ou das casta-

nheiras que se curvavam sob o peso e enchendo a mente de som antes de levantarem voo de

novo em uma enorme massa que se expandia e se contraía como uma enorme mão abrindo e

fechando no céu do centro. Tentar, portanto, imaginar comentários e atitudes e anedotas ínfi-

mas que com o tempo comunicaram o bastante pra que ela fizesse o possível e o impossível

para mudar seu túmulo para as áreas nobres mais perto do portão de entrada e seu bosquezi-

nho de pinheiros-do-himalaia. Não era bem um pesadelo propriamente, mas também não era

algo como sonhar acordado ou fantasiar. Vinha quando eu já estava na cama há um tempo e

estava começando a pegar no sono, mas ainda na metade do caminho – aquele momento de

sonolência em que qualquer linha de pensamento que você estava seguindo começa a ganhar

contornos surreais, e nisso em algum ponto os próprios pensamentos são substituídos por

imagens e figuras concretas e cenas. Você passa, gradualmente, do estado de ficar só pensan-

do sobre alguma coisa para o de experimentar aquilo como se realmente se desenvolvesse, ali,

uma história ou um mundo do qual você faz parte, embora ao mesmo tempo uma parte de

você ainda está acordada o suficiente pra conseguir discernir em algum nível que aquilo que

você está experimentando não faz muito sentido, que aquilo ali é a extremidade ou a margem

de um sonho realmente. Ainda hoje, como adulto, consigo reconhecer conscientemente que

estou começando a pegar no sono quando meus pensamentos abstratos se transformam em

figuras de verdade e filmes curtíssimos, daqueles com lógica e associações sempre um tanto

fora do normal – e ainda assim estou ciente disso, da falta de lógica e de como reajo a isso. O

sonho consistia de uma grande sala cheia de homens de ternos e gravatas sentados em enor-

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mes escrivaninhas cinzas enfileiradas, curvados sobre os papéis em suas mesas, imóveis, si-

lenciosos, em uma sala ou um saguão monocromático sob longas séries de lâmpadas fluores-

centes de alto lúmen, o rosto dos homens inchado e marcado pela tensão e pelo desgaste adul-

to e parecendo um tanto vago, com aquela expressão frouxa e solta de uma pessoa que parece

estar olhando pra alguma coisa sem realmente enxergá-la. Eu reconheço que jamais consegui-

ria saber exatamente o que havia de tão terrível sobre esse quadro de uma sala iluminada, to-

talmente silenciosa e cheia de homens imersos na rotina de trabalho. Era o tipo de pesadelo

em que o terror tem menos a ver com o que você está vendo do que com aquilo que você sen-

te entre o peito e a barriga em relação àquilo que você está vendo. Alguns dos homens usa-

vam óculos; havia uns poucos bigodes pequenos e bem aparados. Alguns tinham cabelo grisa-

lho ou ralo ou as bolsas escuras, grandes e de textura complexa debaixo dos olhos que tanto

nosso pai quanto o tio Gerald tinham. Alguns dos homens mais jovens tinham lapelas mais

largas, mas a maioria, não. Parte do terror da perspectiva ampla do sonho era que os homens

da sala pareciam ao mesmo tempo indivíduos e uma grande massa anônima. Havia pelo me-

nos 20 ou 30 fileiras com uma dúzia de escrivaninhas cada, cada uma com um mata-borrão e

uma luminária e fichários com papéis dentro e um homem em uma cadeira reta atrás da mesa,

cada homem com um estilo ou padrão de gravata sutilmente diferente e seu jeito próprio e

levemente distinto de se sentar e posicionar os braços e inclinar a cabeça, alguns com a mão

no queixo ou na testa ou alisando a gravata, ou mordendo a pele morta em volta do polegar,

ou traçando o lábio inferior com a borracha do lápis ou a tampa de metal da caneta. Dava pra

perceber que os estilos diferentes de se sentar e os pequenos hábitos inconscientes que os in-

dividualizavam tinham evoluído ao longo dos anos ou até das décadas sentando assim curva-

do sobre o trabalho todo dia, movendo-se propositalmente só de vez em quando pra virar uma

página grampeada, ou pra mudar uma página solta do lado esquerdo de um fichário aberto pro

lado direito, ou pra fechar um fichário e empurrá-lo alguns centímetros e depois puxar pra si

outro fichário e abri-lo, olhando pro fichário de cima como se eles estivessem em um lugar

terrivelmente alto e os documentos fossem o chão lá embaixo. Se meu irmão sonhava, certa-

mente nós nunca ficamos sabendo. As expressões dos homens de algum modo eram ao mes-

mo tempo letárgicas e ansiosas, debilitadas e tensas – sem lutar tanto contra o impulso de in-

quietação, mas sim parecendo ter há muito tempo desistido de qualquer esperança ou expecta-

tiva que leva alguém a se inquietar. Na parte do assento de algumas cadeiras havia almofadas

feitas de veludo ou sarja, algumas delas bem coloridas e com uma franja na ponta, de tal mo-

do que dava pra ver que tinham sidas feitas à mão e dadas de presente, talvez no aniversário, e

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por algum motivo esse detalhe era o pior de todos. A sala bem iluminada do sonho era a mor-

te, dava pra sentir – mas nem de longe de um jeito em que eu poderia contar ou explicar pra

minha mãe se eu chorasse com medo e ela viesse correndo. E só a possibilidade de tentar falar

sobre o sonho pro meu pai era – mesmo tempos mais tarde, depois de isso ter desaparecido

tão rapidamente quanto o problema de leitura – impensável. A sensação de falar sobre o so-

nho pra ele seria semelhante ao de ir até a nossa tia Tina, uma das irmãs da minha mãe (que,

entre outras cruzes para carregar, tinha nascido com uma fenda palatina que operações não

ajudaram muito a resolver, além de também ter uma doença congênita no pulmão), e apontar

pra fenda palatina e perguntar como ela se sentia em relação a isso e como aquilo tinha afeta-

do sua vida, e só imaginar a cara que ela faria era impensável. Em geral, o sentimento era de

que aqueles rostos sem cor, sofridos e com um olhar vazio eram o rosto de alguma morte que

me aguardava muito antes de eu deixar de andar por aí. Nisso, quando o sono vinha mesmo,

aquilo se torna um sonho de verdade, e eu perdia a perspectiva de alguém que só olhava a

cena e apareço ali – as lentes de perspectiva recuam de repente, e eu sou um deles, uma parte

daquela massa de homens de cara cinza contendo a tosse e sentindo os dentes com a língua e

dobrando as pontas dos papéis em formas sanfonadas complexas e em seguida alisando-os

cuidadosamente mais uma vez antes de colocá-los em seus devidos fichários. E a visão em

perspectiva do sonho aproxima-se lentamente mais e mais até eu ser o principal a aparecer,

em close-up, com um punhado de rostos e troncos de homens de outras mesas emoldurando o

quadro, e a parte de trás de alguns porta-retratos e o que poderia ser tanto uma calculadora

quanto um telefone na ponta da mesa (a minha cadeira também é uma daquelas com uma al-

mofada feita à mão). Pelo que consigo lembrar agora, no sonho eu não pareço nem com meu

pai, nem comigo mesmo. Tenho bem pouco cabelo, e o pouco que tenho está úmido e cuida-

dosamente penteado para as laterais, e uma barbicha estilo Van Dyke ou talvez um cavanha-

que, e meu rosto, que está inclinado e voltado para a mesa, concentrado, parece como se ti-

vesse ficado os últimos 20 anos sendo pressionado contra alguma coisa dura. E a certa altura,

no intervalo entre tirar um clipe e abrir uma gaveta da escrivaninha (não há som), eu levanto

os olhos e olho para as lentes de perspectiva do sonho e encaro a mim mesmo, mas sem de-

monstrar em meu rosto qualquer sinal de reconhecimento, nem de felicidade ou medo ou de-

sespero ou simpatia – os olhos são vazios e opacos, e só são meus da mesma maneira que uma

foto de álbum bem velha de você quando criança em uma situação de que você não se lembra

mas que mesmo assim é você – e no sonho, quando nossos olhos se encontram, é impossível

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saber o que o meu eu adulto está vendo ou como eu estou reagindo ou se ao menos há alguma

coisa ali.

MAIS TARDE, AINDA, OUTRO DESCONFORTO COMPARTILHADO E CO-

MUM ENTRE NÓS QUE FORMAMOS OS 4 DESPREVENIDOS TERIA RELA-

ÇÃO COM O SIGNIFICADO DA PALAVRA TODOS NOS IMPERATIVOS RE-

PETIDOS QUE O SR. JOHNSON COLOCOU A PRINCÍPIO NO QUADRO E COM

OS QUAIS POR FIM ACABOU APAGANDO E OBSCURECENDO A LIÇÃO.

DURANTE TODO O INCIDENTE E O QUE SE SEGUIU, TODO MUNDO QUE

ESTAVA ENVOLVIDO ASSUMIU SEM NENHUMA DÚVIDA QUE O TODOS

DO QUADRO-NEGRO SE REFERIA AOS ALUNOS DO SUBSTITUTO, E QUE

AS REPETIÇÕES INVOLUNTÁRIAS ERAM ALGUMA PARTE PERTURBADA

DA PSIQUE DO SR. JOHNSON EXORTANDO-O A NOS MATAR EM MASSA.

SE BEM ME LEMBRO, FOI MEU IRMÃO MAIS VELHO (QUE NESSA ÉPOCA

JÁ TINHA SE ALISTADO NAS FORÇAS ARMADAS POR UM ACORDO TÁCI-

TO COM O JUIZADO DE PEQUENAS CAUSAS DO CONDADO DE FRANKLIN,

E FOI SERVIR NO MESMO REGIMENTO EM QUE TERENCE VELAN SE DES-

TACARIA TRÊS ANOS DEPOIS) O PRIMEIRO A SUGERIR QUE O TODOS DOS

IMPERATIVOS PODERIA NÃO SE REFERIR A NÓS DE MANEIRA ALGUMA,

E QUE TALVEZ, EM VEZ DISSO, FÔSSEMOS NÓS OS QUE ESTAVAM SENDO

EXORTADOS PELA PARTE PERTURBADA DO SR. JOHNSON, E O TODOS

ALGUM OUTRO TIPO OU TODO UM GRUPO DE PESSOAS. A QUEM EXA-

TAMENTE ESTE TODOS SE REFERIA, NINGUÉM SABE – O PROF. SUBSTI-

TUTO FALECIDO NÃO ESTAVA BEM EM CONDIÇÕES DE EXPLICAR, OB-

SERVOU MEU IRMÃO EM SUA CARTA.

Eu só tenho lembranças gerais e impressionistas da sala de aula propriamente dita da

Sra. Roseman, que, mesmo quando estava quase vazia depois do êxodo em massa, não parecia

assim tão grande. Havia 30 ou 32 duas carteiras viradas na direção norte, e na parede ao norte

ficava o quadro com sua massa tremida de 212 MATAR TODOS sobrescritos e partes frag-

mentadas da mesma coisa, assim como a mesa própria do professor e um armário de aço cinza

logo à esquerda do quadro-negro, que servia para guardar materiais de artes e recursos audio-

visuais relacionados à Educação Cívica. A parede direita era parcialmente formada por duas

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grandes janelas retangulares; a metade inferior de cada uma delas tinha dobradiças horizontais

e podia ser ligeiramente aberta para fora em tempo ameno. Na ausência de qualquer quadro

sobreposto, a tela protetora de arame dava um tom institucional e contribuía pra sensação de

se estar preso. Além disso, havia a série cronológica de presidentes dos EUA colocada acima

da esquadria das janelas, perto do teto. O teto em si era do tipo rebaixado, comum em escritó-

rios, formado por painéis brancos em amianto, com um total de 96 painéis mais 12 partes fra-

gmentadas na ponta ao sul (as dimensões dos painéis não geravam um divisor comum do

comprimento da sala, que eu estimaria em 8 metros). Duas longas séries de lâmpadas fluores-

centes ficavam penduradas a 30 centímetros mais ou menos abaixo do teto falso, sustentadas

por suportes que, imagino, estavam presos à mesma grade de metal em que os painéis ficavam

apoiados. Naquela época, todos os painéis acústicos eram de amianto. A composição das pa-

redes internas parecia ser de blocos de cimento densamente revestidos com múltiplas camadas

de tinta (possivelmente quatro ou mais camadas, tanto que a textura irregular dos blocos de

cimento por baixo ficou bem alisada e tapada), que nas salas de aula era um verde emético e

nos corredores um tipo de bege creme ou cinza. O padrão do piso de cerâmica era um xadrez

irregular de cinza-claro e verde também, embora em um tom ou uma tonalidade ligeiramente

diferente, de maneira que não ficava claro se o piso tinha sido escolhido pra combinar com as

paredes ou se a coisa toda era uma coincidência. Não sei nada sobre quando a R. B. Hayes foi

construída, ou em que termos – ela foi, contudo, demolida durante as administrações de Carter

e Rhodes, e uma estrutura nova que supostamente economizava energia foi erguida em seu

lugar. Na parede ao sul da sala de aula de Educação Cívica (que ninguém conseguia ver a não

ser o professor por causa da posição das mesas de todos os alunos) ficavam o relógio e a cam-

painha acoplada e a caixa acústica, que era de madeira e tinha a parte da frente coberta com o

que parecia ser algum tipo de estopa sintética, e que ficava ligada ao Sistema de Alto-Falantes

no escritório do diretor.

A parede mais à esquerda da sala de aula – onde ficavam os ganchos para casacos não

utilizados, e onde bem recentemente todos os alunos apavorados tinham se amontoado pas-

sando um por cima do outro pra fugir da sala enquanto Richard Allen Johnson ficava parali-

sado e em outra dimensão, segurando o giz comprido pela ponta como uma espada de brin-

quedo – também tinha, mais para o fundo da sala, outros dois armários soltos contendo cópias

extras ou danificadas de De Mar a Mar..., diversos materiais e folhas de prova, cartolina e um

pote grande com tesouras sem ponta, duas caixas grandes com películas sobre os sistemas

governamental e jurídico, e várias perucas brancas de lã e coletes de camurça vermelha escura

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ou cor de ameixa, com peitilhos com babados presos com alfinetes nas lapelas, junto com uma

cartola, um par de óculos de arame sem lente, uma cadeira de rodas dobrável e uma piteira

longa, e mais de uma dúzia de bandeirinhas americanas (estas desatualizadas, já que tinham

só 49 estrelas no canto), tudo pra ser usado na apresentação anual do Dia dos Presidentes que

a Sra. Roseman organizava e coordenava todo mês de fevereiro, sendo que no mês anterior

Chris DeMatteis tinha feito o papel de Franklin D. Roosevelt, e a Sra. Roseman se sentiu mal

e desmaiou e teve de dirigir o show inteiro sentada na escadinha que leva ao palco do ginásio,

e eu desempenhei um duplo papel, representando um partidário da democracia balançando a

bandeira nas audiências do 2.º Discurso de Posse de Thomas Jefferson e no Discurso de Ge-

ttysburg de Abraham Lincoln, assim como o trovão na tempestade em que Philip Finkelpearl

como Benjamin Franklin segurou uma pipa de cartolina com um pedaço de fio preso a uma

grande chave-mestra enquanto Raymond Gillies e eu ficamos nos bastidores logo atrás da

cortina e rolamos um pedaço grande de latão com pedaços de feltro verde tapando as pontas

afiadas pra frente e pra trás em um movimento que lembrava o de sacudir um cobertor para

deixá-lo liso na cama, fazendo um barulho muito parecido com o de trovão pra quem escutava

dos assentos do ginásio, enquanto Ruth Simmons e Yolanda Maldonado ficaram, sob a super-

visão de um adulto, na passarela em cima da série de luzes coloridas do palco e jogaram raios

azuis e brancos de cartolina que a gente levou uma aula inteira pra fazer, usando réguas pra

traçar o zigue-zague e recortar. Meu pai conseguiu permissão pra sair mais cedo do trabalho

pra assistir à apresentação, e apesar de a nossa mãe novamente não estar se sentindo bem o

suficiente e não ter podido acompanhá-lo, nós nos divertimos depois contando pra ela tudo o

que tinha acontecido, com Terence Velan de cartola e barba de lã sabendo o Discurso de Ge-

ttysburg de cor e recitando-o perfeitamente enquanto a cola de sua barba comprida se soltava

de um lado e começava a escorregar mais e mais, até que a barba inteira se soltou de um lado

e ficou dançando na brisa de dezesseis bandeirinhas balançando furiosamente, e Chris DeMat-

teis esquecendo (ou talvez não tendo mesmo a chance de pelo menos estudar, conforme ele

alegou) a maior parte de suas falas e optando por simplesmente empurrar a mandíbula e a

piteira vazia mais e mais pra frente e repetir “O próprio medo, o próprio medo” de novo e de

novo (meu pai disse que foram dezenas de vezes) enquanto iluminados atrás dele, no palco,

Gregory Oehmke e vários outros garotos que tinham acesso aos capacetes e às plaquinhas de

identificação de seus pais atiravam com cabos de vassoura e baionetas de papel alumínio

(Llewellyn levou também uma arma que no fim das contas era de verdade, mas ele disse que

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o pino de disparo havia sido removido, e depois ele ficou em apuros, e seu pai teve de ir até a

escola para conversar com a Sra. Roseman) contra os baluartes de papel machê de Iwo Jima.