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1 Federação Lusófona de Ciências da Comunicação O REAL, O FALSO E A IDENTIDADE GAÚCHA: Análise de conteúdo do jornal O Bairrista Deborah Cattani Gerson 1 RESUMO Trabalho dedicado a análise de conteúdo do Bairrista e sua inserção no jornal Correio do Povo (CP). O objetivo da pesquisa se focou em descobrir porque o veículo de falso jornalismo encontra-se dentro de um tradicional e qual o possível efeito disso na sociedade. Bem como comparar e relacionar as matérias de ambas publicações, uma vez que O Bairrista se pauta pela mídia gaúcha e é impresso todas as sextas-feiras no CP. A amostra concentra todos os jornais que possuem O Bairrista dos meses de abril e maio do presente ano. O estudo conta com técnicas de questionário e entrevista. A questão da identidade e da autenticidade do povo gaúcho também motivam essa investigação. Através de categorias estruturadas previamente, e um referencial teórico específico, voltado para os gêneros jornalísticos propostos por De Assis e Marques de Melo (2010), o artigo se desenvolveu para responder todas essas e algumas outras questões. Palavras-chave: O Bairrista. Correio do Povo. Identidade. Falso jornalismo. ABSTRACT This work aims to approach the newspaper O Bairrista and its relation with Correio do Povo (CP), through content analysis. The objective of the research is to find why the vehicle of fake journalism is inside a traditional one, and what are the possible effects of this on society. It is also important to compare the issues of both publications, since the narrowed O Bairrista, which is printed every Friday in CP, can deceive the conventional media. The sample concentrates all the newspapers that have the fake vehicle inner, from months of April and May of this year. The study relies on questionnaire and interview techniques. The matter of identity and the authenticity of 1 Mestranda do programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em Comunicação Social. E-mail: [email protected].

O REAL, O FALSO E A IDENTIDADE GAÚCHA: Análise de conteúdo do jornal O Bairrista

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Trabalho dedicado a análise de conteúdo do Bairrista e sua inserção no jornal Correio do Povo (CP). O objetivo da pesquisa se focou em descobrir porque o veículo de falso jornalismo encontra-se dentro de um tradicional e qual o possível efeito disso na sociedade. Bem como comparar e relacionar as matérias de ambas publicações, uma vez que O Bairrista se pauta pela mídia gaúcha e é impresso todas as sextas-feiras no CP. A amostra concentra todos os jornais que possuem O Bairrista dos meses de abril e maio do presente ano. O estudo conta com técnicas de questionário e entrevista. A questão da identidade e da autenticidade do povo gaúcho também motivam essa investigação. Através de categorias estruturadas previamente, e um referencial teórico específico, voltado para os gêneros jornalísticos propostos por De Assis e Marques de Melo (2010), o artigo se desenvolveu para responder todas essas e algumas outras questões.

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Federação Lusófona de Ciências da Comunicação

O REAL, O FALSO E A IDENTIDADE GAÚCHA:

Análise de conteúdo do jornal O Bairrista

Deborah Cattani Gerson1

RESUMO

Trabalho dedicado a análise de conteúdo do Bairrista e sua inserção no jornal Correio

do Povo (CP). O objetivo da pesquisa se focou em descobrir porque o veículo de falso

jornalismo encontra-se dentro de um tradicional e qual o possível efeito disso na

sociedade. Bem como comparar e relacionar as matérias de ambas publicações, uma vez

que O Bairrista se pauta pela mídia gaúcha e é impresso todas as sextas-feiras no CP. A

amostra concentra todos os jornais que possuem O Bairrista dos meses de abril e maio

do presente ano. O estudo conta com técnicas de questionário e entrevista. A questão da

identidade e da autenticidade do povo gaúcho também motivam essa investigação.

Através de categorias estruturadas previamente, e um referencial teórico específico,

voltado para os gêneros jornalísticos propostos por De Assis e Marques de Melo (2010),

o artigo se desenvolveu para responder todas essas e algumas outras questões.

Palavras-chave: O Bairrista. Correio do Povo. Identidade. Falso jornalismo.

ABSTRACT

This work aims to approach the newspaper O Bairrista and its relation with Correio do

Povo (CP), through content analysis. The objective of the research is to find why the

vehicle of fake journalism is inside a traditional one, and what are the possible effects of

this on society. It is also important to compare the issues of both publications, since the

narrowed O Bairrista, which is printed every Friday in CP, can deceive the

conventional media. The sample concentrates all the newspapers that have the fake

vehicle inner, from months of April and May of this year. The study relies on

questionnaire and interview techniques. The matter of identity and the authenticity of

1 Mestranda do programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande

do Sul (PUCRS) em Comunicação Social. E-mail: [email protected].

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the people from Rio Grande do Sul also motivate this research. Within structured

categories in advance and a specific theoretical framework, focused on the journalistic

genres proposed by De Assis and Marques de Melo (2010), the article will developed to

answer all these and some other concerns.

Keywords: O Bairrista. Correio do Povo. Identity. Fake journalism.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa versa sobre o jornal O Bairrista e sua relação com o

impresso Correio do Povo (CP). A escolha se deu por diversos fatores, entre eles a

conexão do falso jornalismo e com o tradicional, bem como o fato de que O Bairrista

passou por várias plataformas: surgiu online, passou para o impresso, virou livro e

recentemente foi comprado pela Rádio Gaúcha, do Grupo RBS2, em Porto Alegre.

O site do produtor de falsas notícias atinge cerca de 1 milhão de page views por

mês (MAICÁ JÚNIOR, 2012). Já na rede social Facebook, o jornal chega a 300 mil

menções no mesmo período. A ideia inicial do projeto era, segundo Maicá Júnior (2012),

brincar com o ufanismo gaúcho. Mas, aos poucos, conforme O Bairrista foi tomando

forma, ele passou a ser também um meio ideológico e de identidade da autenticidade

porto-alegrense.

O veículo nasceu em 2010, como um perfil no site Twitter3. Primeiramente eram

postadas apenas as manchetes, respeitando o limite de 140 caracteres imposto pelo

microblog (MAICÁ JÚNIOR, 2012). No final do mesmo ano, o falso perfil alcançou

mais de 15 mil seguidores. Então Maicá Júnior (2012) decidiu lançar um site próprio do

jornal.

Diferindo desta proposta, o CP foi criado por Francisco Antônio Vieira Caldas

Júnior, em 1895, com formato standard4. Na época, os jornais eram meios de difusão

opinativos e espaços de discussão político-social (RÜDIGER, 2003). É considerado, até

hoje, o jornal com mais longa duração de Porto Alegre, pois circulou ininterruptamente

2 Disponível em: <http://wp.clicrbs.com.br/bastidoresdagaucha/2012/05/26/radio-gaucha-agora-

tem-o-bairrista-no-grupo/>. Acesso em: 9 jun. 2012. 3 Disponível em: <http://twitter.com/#!/O_Bairrista>. Acesso em: 9 jun. 2012.

4 Aquele que tem cerca de 55cm de comprimento. Em inglês se chama broadsheet.

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por 89 anos, até 1984. Passou dois anos sem nenhuma publicação e ressurgiu em 1986.

Teve variados formatos e gêneros. Hoje é um tabloide em sua maior parte informativo.

Para essa investigação, foram analisados 8 exemplares do CP, que contém O

Bairrista, iniciando em 6 de abril e terminando em 25 de maio de 2012. O veículo de

falsas notícias costumava sair no caderno Mais Preza, todas as sextas-feiras. Desde o

início de junho, do presente ano, O Bairrista não foi mais divulgado no CP –

coincidindo com a aquisição do mesmo pelo Grupo RBS. Sendo assim, essa verificação

se dá nos últimos dois meses de veiculação do falso jornal.

A metodologia se fundamenta na hermenêutica de Thompson (1998) e na

técnica de análise de conteúdo de Bardin (2010). Também foram empregados métodos

como entrevista e questionário. Apesar dessa escolha, o trabalho será qualitativo e

empírico, priorizando a interpretação dos dados ao número de ocorrências. As

categorias de análise estão ligadas à identidade, bairrismo e algumas outras questões

que veremos mais adiante.

Para que possamos compreender melhor o contexto das falsas notícias, vamos

utilizar um referencial teórico bastante eclético: passando pelos circuitos culturais de

Johnson (1999) e alguns preceitos sobre a concepção e a recepção das notícias, além das

teorias de agenda-setting de McCombs (2009) e do enquadramento de Goffman (1977).

Vamos abordar também os gêneros jornalísticos de De Assis e Marques de Melo (2010),

uma das bases dessa pesquisa. Para compreender o ufanismo gaúcho, vamos nos apoiar

em Oliven (1992).

Como O Bairrista se inseria dentro do CP e como trabalha com o gauchismo

exacerbado? Como pode ser feita a interpretação de um veículo falso dentro de um

tradicional? Como O Bairrista trata o ser gaúcho e qual a diferença desse tratamento

pelo CP? Essas e outras questões abrangem a essência dessa pesquisa e impulsionam a

investigação de um importante campo da comunicação: a (in)formação através do

humor.

POR QUE FALSO JORNALISMO?

Entre 26 de abril e 7 de maio do ano vigente, por meio de pesquisa verificamos

que 79% das pessoas estão familiarizadas com o falso jornalismo e 21% afirmam

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desconhecer o mesmo; 58% confundem tradicional e falso jornalismo, enquanto 42%

dizem nunca ter confundido.

O questionário foi feito online, através de mecanismos do Google, e obteve 76

respostas, de pessoas entre 19 e 57 anos, dos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo,

Distrito Federal e Santa Catarina. Destas, 35% são jornalistas, 15% são estudantes, 5%

são professores e o restante se divide em diversas profissões. Às pessoas que se

disseram conhecedoras do falso jornalismo, foi indagado quais os veículos que as

mesmas seguiam. O resultado foi discriminado no gráfico abaixo.

Gráfico 1 – Porcentagem de público de cada veículo5

Fonte: Autora deste trabalho.

Embora seja uma prova pequena, já evidencia a importância do estudo do

fenômeno. Outras investigações6, realizadas anteriormente e por distintas instituições,

também reforçam a questão. Além disso, podemos classificar essa comunicação como

5 A soma foi feita por veículo, uma vez que 90% dos pesquisados segue mais de um.

6 Um exemplo é a notícia sobre a pesquisa do Pew Research Center for the People and the Press,

publicada no site do New York Times, em abril de 2007. Os resultados afirmam que as pessoas

mais bem informadas também acompanham falsas notícias. Disponível em:

<http://www.nytimes.com/2007/04/16/business/media/16pew.html>. Acesso em: 11 mai. 2012.

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pertencente ao gênero jornalístico diversional, proposto por De Assis e Marques de

Melo (2010). Conforme os autores, os quês jornalísticos do gênero são plus narrativos.

Contrariando Beltrão (1969 apud DE ASSIS; MARQUES DE MELO, 2010),

eles elucidam que há, sim, espaço para entretenimento e distração no campo da prática

da profissão. Os autores atribuem a isso o estilo de vida adotado no século XX, quando

a valorização do bem-estar ganhou prioridade. “Não é à toa, portanto, que algumas

reflexões teóricas sobre as funções da comunicação preveem que à indústria midiática

cabe o papel de divertir” (DE ASSIS; MARQUES DE MELO, 2010, p. 143).

Como exemplo, os autores relembram o início dos folhetins7 no Brasil, durante o

século XIX. Antes disso, na Europa, era comum a circulação de jornais manuscritos,

cujo objetivo era manifestar uma opinião, muitas vezes contrária à da maioria

(BARBOSA, 2007). Esses jornais tinham pouca circulação, porém se diferenciaram da

imprensa tradicional por seu design e estilo. Feitos à mão, eles possuíam muitas

ilustrações e representações visuais artísticas.

Durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1984, surgiram múltiplos

formatos de jornalismo diversional (STRELOW, 2008). Podemos destacar entre esses o

Pasquim, o Casseta Popular e o jornal Pato Macho (Figura 1). O Pasquim8 foi criado

em 1969, sob comando de Sérgio Cabral, ambicionando denunciar o estado ditatorial

através do humor. Não muito diferente dessa proposta, o Casseta Popular germinou em

1978 das mentes de Beto Silva, Helio de la Peña e Marcelo Madureira. Paródia da

Gazeta Popular, o tabloide abusava do uso de palavrões (DAPIEVE, 2008).

7 Narrativas seriadas provenientes da França (feuilleton, folha de livro) que apresenta discurso

“ágil, profusão de eventos e ganchos emocionais estrategicamente planejados para prender a

atenção do leitor” (DE ASSIS; MARQUES DE MELO, 2010, p. 143). 8

Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/tv/materias/O-PASQUIM---A-SUBVERSAO-

DO-HUMOR/164411-O-PASQUIM---A-SUBVERSAO-DO-HUMOR.html>. Acesso em: 17

jun. 2012.

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Figura 1 – Capas: Pasquim, Casseta Popular e Pato Macho.

Fonte: Banco de imagens do Google.

O Pato Macho9 foi uma publicação alternativa, lançada em 1971, cujo alvo era

criticar o “provincianismo gaúcho” (STRELOW, 2008). Foi dirigido por Luís Fernando

Veríssimo e contou com a participação de Moacyr Scliar, Carlos Nobre, Coi Lopes de

Almeida, Ruy Carlos Ostermann, José Onofre e Cláudio Ferlauto, além de fotógrafos

como Assis Hoffmann, Leonid Streliaev e Luiz Carlos Felizardo.

Como vimos, o jornalismo alternativo teve inúmeros frutos de variados formatos.

Por isso, classificamos O Bairrista como um subgênero do diversional: um falso

jornalismo. Essa nomenclatura é apenas uma formalização e contextualização de um

conceito que foi pouco verificado até então. Nos estudos americanos de Amarasingam

(2010) e Cutbirth (2011), sobre o modelo na televisão, os autores nomeiam o mesmo de

fake news (falsas notícias, na tradução literal). Preferimos adotar aqui o termo

jornalismo porque notícias pode ser muito restritivo. Afinal, existem outros aspectos

que foram também adulterados, como notas, reportagens, fotografias e até mesmo textos

opinativos.

MÉTODOLOGIA E ANÁLISE

O estereótipo do gaúcho se consolidou tão forte que, ainda em 1870, José de

Alencar publicou a obra O Gaúcho. Ápice do romantismo, o livro nunca foi bem visto

pelo povo do sul, pois o autor idealizou e mitificou o “centauro dos pampas” sem nunca

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Disponível em: <http://eusoufamecos.uni5.net/nupecc/conteudo/acervodigital/patomacho/>.

Acesso em: 17 jun. 2012.

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ter pisado no Estado (OLIVEN, 2002). A explicação para a emergência desse

imaginário se dá porque

[...] fomos desde os tempos coloniais até o fim do século um território

cronicamente conflagrado. Em setenta e sete anos tivemos doze

conflitos armados, contadas as revoluções. Vivíamos

permanentemente em pé de guerra. Nossas mulheres raramente

despiam o luto. Pense nas duras atividades da vida campeira – alçar,

domar e marcar potros, conduzir tropas, sair da faina diária quebrando

a geada nas madrugadas de inverno – e você compreenderá por que a

virilidade passou a ser a qualidade mais exigida e apreciada do gaúcho

(VERÍSSIMO, 1969, p. 3-4 apud OLIVEN, 2002, p. 48-49).

Seguindo essa semântica que envolve imaginário, mitologia, ideologia e cultura,

vamos nos valer do circuito de comunicação proposto por Johnson (1999). Buscamos

esse método dos estudos culturais por ser mais flexível e mais amplo que outros. Vamos

utilizá-lo como guia da análise de conteúdo, para facilitar nossa visão geral sobre a

amostra escolhida.

Faremos essa panorâmica, pois Johnson (1999, p. 19) crê que o approach dos

objetos culturais é inter e transdisciplinar, não se tratando apenas “de agregar novos

elementos às abordagens existentes [...], mas de retomar os elementos das diferentes

abordagens em suas relações mútuas”.

Figura 2 – Circuito da comunicação e cultura

Fonte: Johnson (1999, p. 35 apud ESCOSTEGUY, 2007, p. 120)

Essa representação simboliza o processo e a organização das formas culturais

(ESCOSTEGUY, 2007). Ao observarmos atentamente, podemos traduzir o

procedimento como uma estruturação político-institucional. Há, aqui, uma preocupação

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equivalente com a forma-mercadoria e a “inferência dos usos sociais com base nas

condições de produção” (ESCOSTEGUY, 2007, p. 120). As culturas vividas, em

relação com o meio social, pautam a produção, que gera textos, que são formas

simbólicas.

Todo esse movimento depende das condições, ou seja, da conjuntura envolvida.

Podemos assim estudar a recepção como “um espaço de produção de sentido. No

entanto, o risco é assumir a autonomia da leitura em oposição à autoridade do texto,

suprimindo ainda o momento da produção do que está sendo consumido”

(ESCOSTEGUY, 2007, p. 121).

Para sustentar essa teoria, aplicaremos a técnica de análise de conteúdo sugerida

por Bardin (2010). Porque carecemos revelar aquilo que está além do latente, principiar

a desocultação de determinados elementos. Sobretudo por estarmos lidando com um

objeto que claramente possui um duplo sentido e, via humor, explora essa capacidade de

interpretação do seu público. Bardin (2010, p. 16) defende que esse método requer

interpretar mensagens obscuras, “cuja significação profunda [...] só pode surgir depois

de uma observação cuidada ou de uma intuição carismática”.

Desta maneira, concebeu-se um quadro investigatório das oito edições, criando-

se categorias para se observar e compreender o conteúdo das mesmas como um todo.

Quadro 1 – Método discriminado de análise de conteúdo dos jornais10

Número e tipos de ocorrências

Datas

Elementos

06/04/2012 13/04/2012 20/04/2012 27/04/2012 04/05/2012 11/05/2012 18/05/2012 25/05/2012

Matérias

relacionadas ao Rio Grande do Sul

(número)

82 76 106 88 90 103 84 127

Quantidade de matérias no

Bairrista

(número)

1 1 3 2 2 2 2 2

Manchetes do

Bairrista

“Notícias de Buenos Aires,

segunda

capital do Rio Grande do

Sul”

“Sexta-feira

13 na República

Rio-

Grandense”

“Água com gosto de terra

em Porto

Alegre é viral publicitário”,

“Filme Cisne

Branco em 4D supera

bilheteria de

“Gabriel O Pensador

explica

confusão: ‘Vou pagar

para ir ao

RS’” e “AC/DC

recusa

“Especialistas afirmam:

ainda é cedo

para usar cachecol” e

“Reforma do

Araújo Vianna é

antecipada e

“Pelo preço das

mensalidades,

sócios gremistas

poderão

escalar o time” e

“Reintegrado,

“EPTC cria área azul para

aviões em

Porto Alegre” e “Inter

contrata

Supernanny para

disciplinar

“Ciclovia de Porto Alegre

entra para o

Livro dos Recordes” e

“Nova lei

Rouanetchê deve injetar

R$ 10

10

Foram levadas em consideração matérias informativas de acordo com os gêneros propostos

por De Assis e Marques de Melo (2010). Entre elas destacam-se as reportagens, as matérias

menores e as notas. A página 2, que comporta o editorial, não foi contabilizada, bem como as

colunas, as agendas, os comerciais, os anúncios e os textos opinativos.

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Titanic 3D” e

“Mário Fernandes é

vendido para

o CSKA”

proposta e

Mano Lima deve fazer

show de

abertura da Arena

Gremista”

deve terminar

em 2031”

Jô quer dar

festa de arromba para

agradecer a

confiança da diretoria”

jogadores

baladeiros”

milhões em

cultura no RS”

Existe relação do

material do Barrista com o

resto do jornal

Não Sim Sim Não Não Não Não Não

Matéria principal de capa do CP

“Devastação – Onda de

tempestades

mata 16 na Argentina e

provoca

destruição em

várias áreas

do Rio

Grande do Sul”

“Supremo

libera aborto de feto sem

cérebro”

“Governo

pede que

clientes fiscalizem

juros

bancários”

“STF vota a

favor das

cotas raciais”

“Poupança

começa a mudar a partir

de hoje”

“Governo

prepara novo pacote para

economia”

“Concurso do

magistério reprova mais

de 90%”

“Enem/2012

mudar regra para corrigir a

redação”

Fonte: Autora deste trabalho.

A leitura focou em palavras-chave como gaúcho, gaudério, capital, Porto

Alegre, Rio Grande do Sul (RS), entre outras, para que fossem contabilizadas as

matérias relacionadas ao estado gaúcho. O resultado foi uma média de 94,5 matérias por

jornal. É um número incrivelmente alto, já que a publicação não é/se considera uma

cobertura exclusiva do RS – sendo divulgada até mesmo em outros estados brasileiros.

Verificamos que tais materiais aparecem em todas as editorias informativas, mesmo sob

a cartola internacional.

Isso pode influenciar a leitura e o uso que o público faz do jornal. Contudo,

também é uma consequência do meio, do contexto e da cultura vivida pelo impresso.

Por mais que o CP se diga um veículo jornalístico que cobre as principais notícias do

dia, ele se encontra em Porto Alegre (RS), ele é característico da região e já se fez

tradicional. Oliven (2002, p. 21) alega que “a evocação da tradição – entendida como

um conjunto de orientações valorativas consagradas pelo passado – se manifesta

freqüentemente em épocas de processos de mudança social [...]”.

De uma certa forma, estamos vivendo mudanças sociais e conflitos. Não

necessariamente estes têm de ser físicos. O século XXI foi um ambiente de

transformações, onde não se priorizou as certezas, mas sim as incertezas, em prol da

ambição e da fome da pesquisa. As tecnologias em transição possibilitaram muitas

inovações, inclusive a ampliação de acesso. Entretanto, elas também implantaram

barreiras, dividindo as gerações.

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Através da teoria da agenda, de McCombs (2009), fica mais clara essa transição

(Quadro 2). O agendamento defende que os consumidores das notícias consideram

proeminentes aqueles assuntos que são veiculados na mídia. Assim, os meios de

comunicação seriam responsáveis pelas conversas produzidas pelo público. McCombs

(2009, p. 18) sustenta que

os públicos usam estas saliências da mídia para organizar suas

próprias agendas e decidirem quais assuntos são os mais importantes.

Ao longo do tempo, os tópicos enfatizados nas notícias tornam-se os

assuntos considerados os mais importantes pelo público. A agenda da

mídia torna-se, em boa medida, a agenda do público. Em outras

palavras, os veículos jornalísticos estabelecem a agenda pública.

O Bairrista também agenda seus leitores, principalmente através do

enquadramento (enfoque) que dá a suas matérias (GOFFMAN, 1977). O processo não é

de todo persuasivo. Às vezes, ressalta mecanicamente assuntos relevantes sem se dar

conta. Porém seu objetivo é ser intencional.

Como ressalta McCombs (2009), não é uma injeção de conteúdo midiático no

público. No entanto, o agenda-setting atribui um grau de poder aos veículos, uma vez

que estes são responsáveis pela agenda pública. “Ou, parafraseando Lippmann, a

informação fornecida pelos veículos noticiosos joga um papel central na constituição de

nossas imagens da realidade. E, além disso, é o conjunto total da informação fornecida

pelos veículos noticiosos que influencia estas imagens.” (MCCOMBS, 2009, p. 24)

Quadro 2 – A definição da agenda pelos mass media – Agenda-setting

AGENDA DA MÍDIA

AGENDA DO PÚBLICO

Padrão da cobertura noticiosa

Preocupações do público

OS MAIS DESTACADOS

OS MAIS IMPORTANTES

Transferência da saliência do tópico

Fonte: MCCOMBS, 2009, p. 22

A inserção do Bairrista no CP pode ser encarada como uma forma de brincar

com a seriedade jornalística invertendo a realidade. O veículo afeta pessoas de inúmeros

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meios sociais, independente da raça, padrão de vida, gostos pessoais, etc. Isso acontece

porque há uma unificação, uma preocupação com o welfare de todos: a criação de um

ideologia. Conforme Oliven (2002, p. 21)

uma ideologia é bem sucedida na medida em que consegue dar a

impressão de unificar os interesses de diferentes grupos sociais. Para

isso, é necessário que um discurso ao interpelar sujeitos veicule uma

mensagem verossímil [...].

Verossímil até certo ponto, porquanto nem todos os textos do Bairrista são

concebíveis na nossa realidade vivida. Podemos observar na nossa amostra, que muitos

conteúdos se sustentam justamente por serem falsos. As implicações com os times de

futebol, o enfrentamento do poder público com a piada sobre a água, a comparação

entre o clássico passeio de Cisne Branco e o filme Titanic; são todos rudimentos

conhecidos do ideal porto-alegrense de que somente as pessoas dentro do grupo maior

podem fazer uma leitura funcional deste conteúdo. Há eco no imaginário dos sujeitos

porque

[...] a recepção das formas simbólicas – incluindo os produtos de

mídia – sempre implica um processo contextualizado e criativo de

interpretação, no qual os indivíduos se servem de recursos de que

dispõem para dar sentido às mensagens que recebem (THOMPSON,

1998).

Ainda que diferentes tribos, com distintas bagagens culturais e experiências de

vida possam conceber um mesmo significado do Bairrista – desde que pertençam ao

contexto do Rio Grande do Sul – o objeto exigirá um nível de perspicácia e boa

decodificação, por causa de sua concepção humorística.

Sobre essa questão do humor, Raskin (1984) assegura que o riso e a sua

predisposição são características humanas que nos diferem dos outros animais. Para o

autor, o humor (nesse sentido e não como temperamento) pode ser em parte nato e em

parte adquirido. Ou seja, depende de treino, bagagem cultural e até do grau/intensidade

do próprio humor. Quanto ao leitmov do riso Raskin (1984) busca a resposta em Hazlitt

(1903) que crê que

nós rimos do absurdo; rimos da deformidade. [...] Uma fonte rica do

ridículo é a angústia com que não podemos compartilhar de seu

absurdo ou insignificância. [...] Nós rimos do mal. Rimos do que não

acreditamos. Nós rimos para mostrar a nossa satisfação com nós

mesmos, ou nosso desprezo para aqueles ao nosso redor, ou para

ocultar nossa inveja ou nossa ignorância. Rimos dos tolos, e daqueles

que fingem ser sábios – da extrema simplicidade, constrangimento,

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hipocrisia e afetação. (HAZLITT, 1903, p. 8-9 apud RASKIN, 1984, p.

2, tradução nossa, grifo nosso)11

Assim, a paródia do jornalismo tem por função ir além do riso. Ele evidencia um

deboche da comunicação a qual pertence e de outras, como a Zero Hora (ZH), do Grupo

RBS. Esse ufanismo gaúcho pode ser considerado uma afronta ao jornal concorrente do

CP, a ZH, já que ele prioriza seriamente a notícia de âmbito hiperlocal.

No entanto, é complicado saber se o público entende e distingue que essa parte

do CP é entretenimento e não conteúdo jornalístico. Como vimos no quadro acima, são

poucas as vezes que o conteúdo do Bairrista teve alguma relação com o CP.

Thompson (1998) observa que, apesar de os receptores não fazerem parte da

fabricação da informação, eles orientam de certa forma o comportamento dos

produtores. Para o autor, a recepção e a produção estão entrelaçados, já que os

produtores também são receptores e vivem no mesmo meio que vimos em Johnson

(1999). Assim, um influencia o outro, fechando o ciclo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A identidade do gaúcho é a principal fonte de inspiração do Bairrista. É por

meio do imaginário de longa data existente no e sobre o Rio Grande do Sul (RS) que o

veículo se constrói e mantém. A utilização dessa ideologia já solidificada pelo tempo e

pela tradição dá veemência ao veículo. O tratamento do ser gaúcho é diferente do

mesmo executado pelo CP. O veículo tradicional exalta. Já o falso pauta o gaudério

como um ser além do imaginário, totalmente estereotipado.

Inventar fatos, matérias, pautas ou histórias não é papel do jornalista, uma vez

que o mesmo é, de certa forma, um historiador. A mídia pauta diariamente as vidas de

seus consumidores e essa ascensão do falso jornalismo pode ser perigosa. Lidar com

isso, dentro de um veículo tradicional é brincar com os limites do ilusório do público e

até mesmo se por em risco. Assim como a piada agrada, muitas vezes ela pode ser um

tiro no próprio pé do comediante.

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We laugh at absurdity; we laugh at deformity. […] One rich source of the ludicrous is distress

with which we cannot sympathize from its absurdity or insignificance. […] We laugh at

mischief. We laugh at what we do not believe. We laugh to show our satisfaction with ourselves,

or our contempt for those about us, or to conceal our envy or our ignorance. We laugh at fools,

and at those who pretend to be wise – at extreme simplicity, awkwardness, hypocrisy, and

affectation. (HAZLITT, 1903, p. 8-9 apud RASKIN, 1984, p. 2)

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Por mais que sejam variados os tipos diversionais – e sua existência necessária

para o entretenimento e a formação de leitores – eles também devem ser ponderados. A

linha divisória entre o real e o falso é tênue e a exacerbação do uso de falsas matérias

pode poluir o mecanismo de discernimento das massas.

Os poucos esboços na área do falso jornalismo dificultam uma aproximação

mais rápida da amostra. Antes da análise, há um longo período de conceituação que

seria desnecessário, se já existissem pesquisas mais consolidadas. A comunidade

científica dos estudos de gêneros precisa acordar para a constante desse tipo jornalístico.

Verificar meios tradicionais é importante, tanto quanto buscar compreender os canais

alternativos.

Sabemos que O Bairrista já não faz mais parte do impresso Correio do Povo.

Porém, na Internet, ele segue com o mesmo formato, bem como na Rádio Gaúcha, do

Grupo RBS. Talvez no rádio seja ainda mais difícil compreender quando se está

tratando de um objeto sólido ou irreal, uma vez que não se tem acesso a muitos

elementos que, no impresso, realçavam as intenções do jornal.

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