O Sentimento Do Mundo - Carlos Drummond de Andrade

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  • 7/29/2019 O Sentimento Do Mundo - Carlos Drummond de Andrade

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    O Sentimento do Mundo - Carlos Drummond de Andrade

    Tenho apenas duas mos

    e o sentimento do mundo,

    mas estou cheio escravos,

    minhas lembranas escorreme o corpo transige

    na confluncia do amor.

    Quando me levantar, o cu

    estar morto e saqueado,

    eu mesmo estarei morto,

    morto meu desejo, morto

    o pntano sem acordes.

    Os camaradas no disseram

    que havia uma guerra

    e era necessrio

    trazer fogo e alimento.

    Sinto-me disperso,

    anterior a fronteiras,

    humildemente vos peo

    que me perdoeis.

    Quando os corpos passarem,

    eu ficarei sozinho

    desfiando a recordao

    do sineiro, da viva e do microscopista

    que habitavam a barraca

    e no foram encontrados

    ao amanhecer

    esse amanhecer

    mais noite que a noite.

    (poema: Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade)

    Os poemas de Sentimento do mundo foram produzidos entre 1935 e 1940. So 28 no total.

    Poema: Sentimento do mundo

    O primeiro poema (que deu nome ao livro) revela a viso-de-mundo do poeta: no alegre,

    antes, cheia da realidade que sempre nos estarrece, porque, por mais que sonhemos, a

    realidade geralmente dura e muito desafiante.

    O poeta inicia (estrofe 1) indicando suas limitaes para ver o mundo: Tenho apenas duas

    mos; mas aponta, em seguida, alguns elementos auxiliares que o ajudaro a suprir suas

    deficincias de viso: escravos, lembranas e o mistrio do amor (versos 3 a 5); escravos

    podem ser os meios escusos de que nos utilizamos para tocar a vida e decifr-la e dela nos

    aproveitarmos.

    O pessimismo denuncia-se com as mortes do cu e do prprio poeta, na estrofe 2.

    Apesar da ajuda incompleta dos companheiros de vida (Camaradas), o poeta no consegue

    decifrar os cdigos existenciais e pede, humilde, desculpas.

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    Nas duas ltimas estrofes, Drummond pinta uma viso de futuro bem negativo, mas bem real:

    mortos, lembranas, tipos de pessoas que sumiram nas batalhas da vida (guerra, na estrofe

    3).

    Conclui, na estrofe 5, que o futuro (amanhecer) bem negro, tenebroso. Feita s de dois

    versos, sintetiza seu sentimento do mundo.

    Os demais 27 poemas so nuances, explicaes dessa amarga viso inicial da vida.

    Poema: Confidncia do Itabirano

    O poema comea com a saudade profunda de seu lugar de nascimento, traado em quatro

    belas, mas sofredoras estrofes. Confessa (estrofe 3) que aprendeu a sofrer por causa de

    Itabira; mas, paradoxalmente: A vontade de amor (...) vem de Itabira; vale dizer que o amor

    nasce e servido no sofrimento. De Itabira vem a explicao de Drummond viver de cabea

    baixa (estrofe 3), verso 6). Afinal, apesar das negatividades, o poeta sente uma

    incomensurvel saudade de sua cidade natal.

    Poema: O operrio do mar

    O texto nmero 6 faz o autor escapar da linguagem potica material (versos) e se apropriar

    dessa linguagem potica sem versos, mas bastante poesia imaterial, em belo painel-definio

    explicita a grande diferena social entre operrios e no-operrios.

    Esta belssima crnica potica, de base surrealista to em voga nos anos trinta, quarenta

    serve bem para duas constataes:

    1) o sentimento socialista de Drummond que iria espraiar-se cinco anos aps Sentimento do

    mundo, na publicao de Rosa do povo, em 1945;

    2) a viso-de-mundo onrica e bem potica de um operrio universalizado em So Pedro; ele

    anda sobre guas por graa de Deus, enquanto burgueses se espantam por no poderem

    realizar a mgica; isto , aos humildes: a magia divina, aos prepotentes: a inveja.

    Esta crnica potica tambm pode permitir que se compare a apreenso do mistrio da

    palavra nos poemas explcitos de Drummond diante desta prosa potica; por exemplo:

    minhas lembranas escorrem (Sentimento do mundo, estrofe 1, verso 4) e feixes escorrem

    (das mos do operrio, em O operrio no mar, linha 26). O mistrio potico de lembranasescorrem bem mais profundo do que peixes escorrerem imaginariamente das mos do

    operrio.

    Poema: Privilgio do mar

    No poema 12, o autor continua detendo-se alegoricamente no problema social das diferenas

    humanas.

    Poema: Inocentes do Lelbon

    Ainda no enfoque da viso social, o poeta fala da riqueza: inocentes significa os que queremignorar; por isto fingem e se aproveitam.

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    Poema: La possession du monde

    Neste poema 17, Drummond indica o membro da Academia Francesa de Letras, em 1884,

    Georges Duhamel, pedindo uma risvel fruta estragada; como se isso fosse, como diz o ttulo

    do poema, ter o mundo nas mos.

    Poema: Ode no cinqentenrio do poeta brasileiro

    O belo elogio do poema 18 a palavra drummondiana a Manuel Bandeira, nascido em 1886 e

    que, em 1936, completava 50 anos de vida. Drummond pede que seu canto confidencial (a

    poesia de Bandeira) ressoe acima dos vos disfarces do homem!

    E para concluir esta fugaz viso do livro Sentimento do mundo, fiquemos com as palavras do

    ltimo poema, Noturno janela do apartamento: A vida na escurido absoluta, como lquido,

    circunda.