176

Os Tripeiros

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Os Tripeiros

Citation preview

OS TRIPEIROS CRNICAS DO SCULO XIV COELHO LOUSADA Esta obra respeita as regrasdo Novo Acordo Ortogrfico Apresenteobraencontra-sesobdomniopblicoaoabrigodoart.31do Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do autor) e distribuda de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.Foiagenerosidadequemotivouasuadistribuioe,sobo mesmo princpio, livre para a difundir. Para encontrar outras obras de domnio pblico em formato digital, visite-nos em: http://www.luso-livros.net/ CAPTULO I A MENSAGEM DO MESTRE Eraumaestranharomariaaquela,paraquemnotivessenotciados alvoroos a que a morte de FernandoI e o casamento de Beatriz em Castela tinhamdadocausa,aqueameadosdeMaiodemiltrezentoseoitentae quatro,saapelasportasdacidadedoPortoquedavamsobreorio,epela chamada Porta Nova. Se fossefcil conduzir o leitor a ver do alto das torres que a defendiam aquela gente, acreditaria que ele tinha invadido algum arsenal a procurar disfarce entre o guerreiro e o burlesco. Um soldado cobria a cabea com um elmo adamascado, e, mostrando os joelhos atravs do grosso estofo dascalas,compsdescalospisavaaareiaondeomontantequearrastava deixava um sulco; um outro, parecendo ter em menos conta a cabea do que o peito, abrigava o peito numa couraa mais que farta, e deixava a cabea ao sol eaovento;este,vestindoapenasumascalas,seassimsepodiachamarum cerzidodetrapos,traziasuspensodefundaumescudodecouro,ondeem temposestivera pintada ou divisa ou braso, poisnoera jfcil adivinhar o quefora;deumcintoleonadopendiadeumladoumestoque,dooutroum punhal,e,comosenobastassemestasarmasdeofensivas,empunhavaum chuo enorme; aquele levava um bacinete amassado e um gorjal ferrugento, e tinhaporcinto degrosseirajorneiauma funda,oprovimento daqual,como senoforaumaarmafcildeencontraracadapasso,pesavanumsaco lanado aos ombros.Detemposatemposobompovo,comolhechamavaomestredeAvis, abriaaquilugaraumcavaleiroacobertadodeferrodesdeospscabea, seguidodosseuspajens,ouescudeiros,almaoutrosmaisesquisitamente vestidospeloantiquadodasarmas,oupeloincompleto.Haviacapaceteque, se Cervantes o visse, no o deixaria ser original descrevendo o que deu ao seu heri noprincpio das peregrinaes; peitos de ao polido, espelhando osol, quedisparatavamcomumasgrevasdesconjuntadas,enegrecidas,remendo visvel; feixes de armas que desdiziam umas das outras pelo valor, casando-se a facha grosseira com um estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata, montantesdeToledoeadagasgrosseiras.Oscavalosiamunscobertosde ferro, outros apenas com os arreios necessrios para se poder cavalgar, e no poucos dos cavaleiros, e aos pares at, montavam em mulas. Os cidados que assim sobrecarregavam os pobres animais, costume vulgar por esses tempos e por muitos outros, vestiam em geral a garnacha negra, distintivo dos doutores efsicos.Comestemesmotraje,pormarregaadopelaponteiradaespada, deixandoveracaladeduascoreseoborzeguimpontiagudovia-setrsou quatroaspirantesqueladistintaclassedemdicoseletrados,ecomeles alguns monges, que tambm se mostravam afeitos s armas pelo modo como seguravam opunhodaespadaecobriam a tonsuracomobacinete.Um dos cavaleirosmaisbizarrosdaromariaeratambmumeclesistico;pelomenos assim o demonstrava um roquete, que sobre armas soberbas vestia em vez de brial.De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas, as torres, os eirados e soteias nada havia nesta procisso; de marcial havia muito, tudo, a avaliar pelo entusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas que se juntavam s saudaes. Tinhadecorridoumaboahoradesdequecorreranacidadequeumasgals demandavamabarra,e,postoquetivessequemafirmasselogoqueeram portuguesas,comodosdecasahaviatantoarecearcomodosestranhos, todossetinhamprevenidoparaasreceber.UmpajemlevarajaAires Gonalves e ao bispo D.Joo a nova deque eram expedidas pelomestre de Avis;pormestessenhoreseramentoautoridadesquasenominais,e deixavamportanto,paranoperderemotempo,fazerasuademonstrao aosbonscidadoseaoscavaleirosquenoeramdassuascasas,criao,ou servio.Ideia de que no sculo dcimo quarto era uma guerra civil, acompanhada de uma invaso estrangeira, nem todos os que passam os olhos por este captulo faro. Hojehasteiam-se duasou trsbandeiras, ou mais, sequiserem, mas, o primeirompetopassado,amquinacivillvaifuncionandopioroumelhor porcontadosgovernosprovisrios;naquelestempos,porm,ningumse entendiaporvezes.Cadafidalgolevantavaoseutroodegenteevendiae revendia a espada; hoje era ao servio de um, amanh ao de outro; os alcaides doscastelos,amaiorpartedominandoaspovoaesprincipais,juravam preitoeperjuravamtodososdias,easmunicipalidadeslanavam,bomou maugrado,pelamanhumbandoemfavordeummonarcaetarde aclamavamoutro.Nomeiodestabelaordemhaviacaudilhoquedavaem ambos os partidos beligerantes, e sobretudo nos pacficos, aventureiros que se batiamporsieparaseuproveito.Namenoridadedopaidoregedor,como modestaearteiramenteseapelidaraoirmobastardodeD.Fernando,eem quasetodososreinadosantecedentes,aprovnciadeEntreDouroeMinho tinhatidoasuaamostradestasamabilidades;masoqueagentedaordem chamarevoluoerevoluopoliticanoestalaraemtempoalgumcomo agora.Ataopovocontentara-se,salvoumououtrocaso,comevitara pontadalanadosnobressenhoreseovirotedosseushomensdearmas, e aindamaisdelhefranquearasarcasedecorreroscordesdabolsa,oque rarasvezesconseguia.OsburguesesdoPorto,omaisdesinquietopovode todaaprovnciaedoreino,tinhamjdadomostrasdasuaforaaosbispos MartinhoRodrigueseVascoMartins,porm,nestasrevoltasseentrava poltica era acobertada: eles no davam por tal. Desta vez o exemplo da capital fora-lhescontagioso,emesmosemtobonsmotorescomoAlvarespais, desempenharam a sua tarefa por tal arte, que se pode dizer, que a lei porque se governavam era a sua. Aires Gonalves de Figueiredo, o governador de Gaia admiraradaoutramargemavalentiadospulmesdospartidriosdonovo governo,e,postoquenoestivessebemsegurodassuasideiasquanto legalidadedaregedoria,eprefernciadedireitosdomestredeAvissobreos do infante, dos deste sobre a irm, ou vice-versa, para no lhes avaliar as iras tambm,contemporizara,soltandoasmesmasaclamaes.Nacidadehavia um caos. Os vereadores governavam; governavam osjuzes do povo e o juiz real;governavamoschefesdascorporaes;governava,pormmenos,o bispo e os seus meirinhos; governavam at, ou mandavam, os prisioneiros, ou tidosportais, comoeraocondeD.PedrodeTrastmara,quenocampode CoimbrativeraassuasaspiraescoroadePortugal,easeroterceiro maridolegitimadodeLeonorTeles;finalmente,mandavamtodos,seamais ningum fosse, cada um a si.Do pequeno povoado que ficava extramuros, composto de uma mescla de armnios, que nove anos antes tinham deixado cair o trono de Livnio, o seu ltimorei,aosgolpesdeespadadosultodoEgito;degregosdaAsia, escapadosfriadossoldadosdeAmurat;deflamengosegenoveses aventureiros,demouros,oscultivadoresdaencostaemqueobairrose abrigava; da pequena povoao, dobairroArmnio,aumentado ainda depois datomadadeConstantinoplacomospiedososguardasdeS.Pantaleo, juntava-seprocissosadadaPortaNovaumamultidodecuriosos,que pela variedade de vesturios, lhe vinha dar realce. Como em tais casos sucede, todaestagenteseembaraavanamarcha,peesacavaleiros,cavaleirosa pees; todos falavam, todos tomavam e davam concelho, e perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro encontrado uma verso correta e aumentada com reflexes de lavra prpria e estranha. O espao que se estendia desde os murosatondeaArrbida deixavaapenasumcaminhodecabras, abertona rocha para quem sequisesse dirigir Foz doDouro, nofoi pois transposto em menos de uma hora, pela vanguarda: uma grande parte do exrcito nem l chegou. Os primeiros que encontraram uma das gals subindo o rio, gritaram paraostripulantesquelhesdissessemporquemvinham,ecomoestes respondessemquepeloMestre,semmaisatenderem,voltaramatrs,dando vivas, como se fosse aquilo reforo inesperado, que os viesse tirar de apuros.NasgalsnovinhareforoalgumparaosdoPorto,nicaterrade importncia ao norte do reino, que no aceitara como rei o marido de Beatriz, e tinha a braos setecentas lanas e dois mil infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores castelhanos e portugueses, sem contar os aventureiros de Fernando Afonso, que no eram nem uma coisa nem outra.D. Joo de Castela, feita em Santarm a cesso dos direitos coroa por D. Leonor,atrocodevinganasprometidasnopovodeLisboa,quearespeito delaeemrostoesgotaraumvocabulrioimensodenomes,dequeFerno Lopesdumaamostra,eamimosearacompedradas;D.Joo,resolveu-se, seno a cumprir o ajuste, pois se malquistara com a ambiciosa sogra por causa dedoisjudeus,adestruirarebelio,comoelelhechamava,nofoco,e avanara at o Bombarral, ao passo que aprestava uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse tambm as comunicaes por mar.OsarredoresdeLisboatalados,aspovoaessaqueadasnopodiam abastecerdevveresossitiados;entreeleseCoimbraestavamosexrcitos inimigos,portantorecorria-seaoPorto,pedindotambmumreforode naviosparaimpedirqueoTejofossebloqueado.D.Loureno,arcebispo de Braga,azafamara-separa armar asgalsquedeviamlevarestessocorros,eo mestredeAvisencarregaraRuiPereiradeumamissiva,emqueaosbons burguesesseprometiamilregalias;poisD.Jooaceitaraoconselhodedar tudo o que lhe fosse possvel dar, e prometer at o impossvel.Osvivaseoapndiceatodooentusiasmopolticodemorras,naquela quadra aos castelhanos, aos traidores e aos loucos, prolongaram-se at que as galsemquevinhamRuiPereiraeGonaloRodriguesvararampertodos murosdacidadeecomeouodesembarquedesteseoutrosilustres personagens, e ainda maior foi a algazarra quando o estandarte real apareceu. OcondedeTrastmara,comoprimodoreideCastela,noeradoscoristas mais fracos deste grande coro desafinado, e fora dos primeiros cavaleiros que se apearam para receber os reais mensageiros, com toda a cortesania. O povo semfnaquelaconversoepoucoacatadornessemomentodasesporasde ouro,dascotasbordadasecimeirashistoriadas;opovo,deixandoescapar dessesepigramasdequeelepossuiomoldeparticular,emvezdelheabrir caminho,cerrava-senasuapassagem,fazendoperderaofidalgooaranzel lisonjeiro que tencionava pregar a Rui Pereira. Rui era uma notabilidade, como hoje se diz; porque ento ainda se no tinha inventado as notabilidades, nem muitasoutrascoisas.DesdequeexplicaraaomestredeAvisaopiniodo povoarespeitodarainhaLeonor,notandoquequandoandavaparacasar com a sua mulher, falavam todos em que se queria casar com Violante Lopes, e depois de casadoningum mais de tal falara; depois, sobretudo, quedera o golpedemercaocondevalido,abaixodoseusobrinho,doshomensde espadacomvalimentonacorte,eraoprimeiro,eparaquemestavanas circunstncias de D. Pedro, portanto, pessoa que era prudente lisonjear.Jento,comosevernodecursodestanarrao,seatendiaa convenincias.Emquantoosmesteiraiseburguesesembaraavamoconde,MartimGil, abade de Pao de Sousa, substitua-o dignamente com duas rajadas de latim, a substanciadotodo,queomensageiroperdeupornoentenderalnguade Ccero,eumaenfiadadeperodosemportugusgarrafal,queentenderia perfeitamente,seaalgazarrativessecessado.RuiPereirasatisfez-secomver abrirefecharabocaaoreverendo,erespondeuatodaestaeloquncia, fazendo-lhe um ponto no meio do recado, perguntando onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas as boas casas da cidade desde os paos da S e o conventodeS.Domingos,atalgumasdasvivendasparticulares,eotiode NunoAlvaresescolheuS.Domingos,mostrandomaispressadedescansar dos incmodos do mar, que de dar conta da sua misso. O abade tentou ento darentradanacidadedospassageirosetripulantesdagaldeGonalo Rodrigues,edasoutrasqueiamaproandoaolongodapraia,umtodo processional, porm lutava em vo; que era at dificultoso fazer desembaraar osstiosdedesembarque,ondeopovoseapinhava,seacotovelavasemdar descanso ao pulmo. O Douro no tinha ainda, nas suas soberbas, arrojando asterrasroubadasnascampinasdeencontropraia;tornadoestatolarga comohoje;nemoshomenstinhamcomparapeitosavanadosobreoleito daquele. O espao existente logo alm de portas, onde havia povoado, era to limitado,que,adistncia,pareciaqueasedificaestinhamparaagua serventia, comoos dacidadedaslagunas, arainha doAdritico; oestadode exaltao, e nimo revoltoso ou independente dos burgueses e viles, porm, at em lugares mais espaosos tornava difcil a empresa do abade.Rui Pereira, apesar de ter presenciado em Lisboa a revolta popular, fazendo parte dela ele mesmo, no o era tanto que levasse a bem aquela sem-cerimnia dosportuenses, elanando sobre osmaisprximosum olhar poucoamvel, reprimindo a custo a vontade que tinha de mandar abrir caminho a prancha de espada e conto de lana, lamentava in mente os bons velhos tempos que j entohaviabonsvelhostemposemqueacoisapeodescortinandoa vontade no gesto de um rico homem, logo obedecia sem mais tugir ou mugir. Graasintervenodosjuzesdopovoereal,que,avisadosdachegada dosnaviosedequemeramaspessoasqueelesconduziam,vinhamparaas acomodarempousadadecenteefazertodasashonrarias,queemtalcaso competia,oembaraoterminou.Astrsautoridades,duasmunicipais,uma real,duasdemurosadentro,outraribeirinha,foramfelizes,deve-se confessar,naquelaocasio,pornohaverconflitodepoderes,nem recalcitrao dos governados, o que era raro, e deveram esta felicidade a estar satisfeitaacuriosidadedosburgueses,enoserprecisoempregarbarqueiro oupescadoralgumnaamarraodosnavios.Aprocissocomeoupoisa mover-sepelasestreitasruasda cidade, e, em vez deparar em S. Domingos, seguiu at casa da camara no meio sempre de grandes aclamaes ao mestre de Avis, defensor e regedor do reino, e morras aos castelhanos hereges, loucos etraidores,oquefaziatragarsemrplicaaRuiPereiraocerimonial amofinador a que osubmetiam os edisportuenses, ea pressa quetinham de saber em que podiam servir a sua senhoria, o futuro rei. CAPTULO II UM RAPAZ TRAVESSO Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente levadopela porta, quetemposdepoisdeuaumpoetacomonomeumtrocadilhoparaum requerimentoemverso,nomarulhardecuriososepatriotasquese empuxavam,forcejandoporabrircaminhoparaaquelegargalo,umburgus que tornava respeitvel o sisudo do traje, uma barriga proeminente, onde batia uma gorda bolsa de couro e um esguio punhal, cabelo branco, patrioticamente cortado, lutava para no ser levado na corrente, dando mostras pelo inquieto doolharqueprocuravaalgum.Aforadacorrenteeragrande,porm,e arrastou-opoucoapoucoatjuntodeumadastorresdedefesa,ondea ressaca o fazia tomar todas as direes e posies possveis no meio dos gritos dasmulheresabafadas,dascrianastrilhadas,doestalardasarmaduras,que, permita-se a imagem, eram os crustceos que as ondas daquele mar lanavam de encontro s rochas. Mestre Gonalo Domingues suava por todos os poros eformavacomoscotovelosumamparoaoabdmenequebra-marmar, receando ser litografado no muro, resmungando ao passo uma ladainha contra ocausadordaqueledesastre,segundoselheafigurava,umsobrinhoqueo acompanhara momentos antes, e que perdera de vista. Resolvido j a deixa-lo pela sua conta, pois no estava j em idade de se perder, e a escapar-se daquele aperto, comeava a recuar, servindo-se dos cotovelos como de uma alavanca, quandosentiuumasmoscalosaspousarem-lhenoombro,sustendo-ona marcha.Sentindoaquelaresistncia,semverquemaopunha,poislheera impossvelvoltarorosto,ereceandodenovoserlevadoparaomuro, empregoucontraoindividuoqueassimlhecortavaaretiradaumcotovelo, que estava na razo direta da fora que o impelia: tudo isto acompanhado por uma praga:Ms ters te colham, cabea de bugalho!Apragaameio,eumadasmosaerguer-seadescerfechadaemmurro, estourandonocostadodemestreGonaloDomingues,quesoltouum regougo,cambaleoueperderiadecertooequilbrio,seummesteiral,que estava na frente, o no amparasse na queda. O burgus, incomodando com o peso o seu primeiro ponto de apoio, este o sacudiu para um dos vizinhos, que o recambiou sobre o homem do murro, apresentando-lho de cara.Se te apanhara aqui, maldito! disse a exclamar mestre Gonalo, soltando outro gemido: punha-te as orelhas a fumegar. Tu mas pagars!Esta exclamao a meia voz, dirigida ao ausente sobrinho, foi intercetada a meiopelohomemdemurro,ummarinheiro,que,vendoorostoaflitodo bojudocidado,secontentoucomdar-lheumgrandeencontro, resmungando, como gozo que v em perigo o osso que esburga:Pois junte l mais isso conta, meu baleote.MestreGonaloestavaafeitoasermaisbemtratadointramuros:doeu-se da chufa dirigida aoseu fsico pelomartimo, efez-se maisvermelhodoque estava; fez-se roxo, se pode dizer, desde a raiz do cabelo at aos queixos, mas no reagiu. A sua ndole era pacfica, apesar do punhal que o acompanhava; e paraalmdisso,noviapertodesisenocarasdesconhecidaserostos queimados pelo ar do mar, que podiam ser de vassalos da coroa, e estes, posto nessaocasioestivessememharmoniacomosvassalosdamitra,ejum poucoapagadasasdivisesantigas,eradecrerqueporelenotomassem partido. Contudo, no se ficou, sem responder:Senoestbom,deite-se,ouvtravarrazescompetintais, espadeleirosououtragentedasuaigualha;nosemetacomquemnose mete consigo.Olhemooutro!resmungouomarinheiro;abalroou-mecomos cotovelospelospeitos,edizquesenometecomagente;trazaquelacara que parece mesmo um odre a rever, e grita que um homem c est toldado!Gonalo Domingues, doendo-se da nova zombaria, tornou mais apropriada a imagem do marinheiro, e cerrando os punhos exclamou:Veja como fala!Graas a S. Pedro; meu advogado, redarguiu o homem do mar, levando amo aobarretenofcildedizerse ematenoaosanto-apostolo,se em cortesia zombeteira, pelo esgar que fez, ao senhor Gonalo graas a S. Pedro,falosemtrave.Enomefaabiocosnemarremessos,acrescentou com ar mais carregado: que, se me sobe a mar aos cascos?!...Que l isso, mestre Gonalo? perguntou quase ao mesmo tempo um cidado de pouco menos idade que o interrogado. este excomungado, que se meteu onde no era chamado, e me ps a pacincia em maior apuro do que j a trazia.Excomungadoele!resmungouomarinheiro,recambiandooapodo que lhe fora dirigido, e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.Olhe,mestreGil,disseoburgusrubicundo,dirigindo-seaorecm-chegado;iaeuamofinadoporcausadaquelacabeadeventodomeu sobrinho...E que tenho l eu com o seu sobrinho? disse o marinheiro.Isso mesmo queria eu que me dissesse! acudiu o senhor Gonalo.E, voltando-se para o seu colega, continuou:Iaeu,comolhedizia,amofinado,porqueomalditodorapazseme escapouoraseieulparaonde!enoseiquedigodemimparamim, quandoessacriaturinha,comosenotivessedasuaigualhamaiscomquem desenferrujar a lngua, travou-se de razes...Isso nada vale, mestre Gonalo! atalhou o homem a quem vimos dar o nomedeGil,dirigindo-separaogaleote,quelhevoltouascostas,fazendo umacaretamuitoexpressivaparaumcompanheiro,que,comumamo pousada no ombro dele, parecia, na posio que tomava, querer dizer que ali estava para ir ao seu auxilio, se preciso fosse, que no era.Ogordoburgus,vendooantagonistavoltar-lheascostas,desafogou contra ele, com o seu amigo, a clera, que o ameaava com uma apoplexia; e em seguida desafogou tambm a respeito do causador, o estouvado sobrinho, quedesaparecera.Apesardeterescoadoamultidopelaportadacidade,de estar j desembaraado o transito, volta dos altercadores havia uma reunio decuriosos,comodecostume,cujoncleoeraumaboadziadegarotos pertencentes,peloquedostraposvestidossedivisava,atrsreligies;pelo tipo, a trs raas, e ao qual se juntavam por um segundo, que mais no fosse, os arrastados daquela procisso e todos os que por ali o acaso conduzia. Uma velhaqueregressava aoslares comosaviamentospara aceia,comprados na tendadeaopdaporta,soalheirodobairro,noescapou,apesarde carregada,foraatraentedaslamentaesdemestreGonalo;e,sabidaa causa destas, se apressou em dar-lhe remedio.Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento, mestre Gonalo? Bem se v que o rapaz no tinha queda para os latins e o hbito; aquilo um levantado! Tome sentido com ele, mestre! Agora o vi eu a correr pela betesga que vai por p da casa de Joo Ramalho. A modos que ele...A reflexo da velha,senafrase ficou incompleta, no o ficou nogesto. A traduo deste era que o rapaz comeava a inclinar-se s saias. (Como demos a traduo,juntaremos,emnotaintercaladanotexto,queaboasantinha parecia, no ar malicioso que tomou, recordando-se dos seus tempos, ter deles saudade.)GonaloDomingues,semmaisatendermulherdaalcofa,tomoua direodostioindicadocomooseguidopelosobrinho,resolvidoa descarregarneleomauhumorexcitadopeloseudesaparecimento,pelos apertes que levara, o cortejo que perdera, e, sobretudo, ospodos e murros dogaleote.enquantoparalsedirige,ruminandoaquelaspassadas atribulaes, saibamos o que fazia o travesso rapaz.Comojviuoleitor,noantecedentecapitulo,notempoemqueestas coisassucediam,ashabitaes,emMiragaia,estavammaispertodorio,ou melhor,oriocorriamaispertodashabitaes.EntreS.Pedroeosmuros, havia,noespaoqueabreamontanha,algumasbetesgas,dequeaindase conservaumaamostra,povoadasumas,outrascorrendoentrecercadose muros;emoutrosstios,umfraguedodeixavaapenasolugarprecisopara algumcarreironomuitovivel.Apovoaocerrava-se,apinhava-semais paraopdavelhaigrejadeS.Pedro,erareavaprogressivamenteparao orienteepoente.Pertodosmuros,haviatosomenteumafieiradecasas beiradegua;depoisodecliverudedomonteondeseedificouoconvento dos Agostinhos, coberto de silvados e mato, que vinha angustiar mais o passo para a cidade. Onde se tornava mais suave a encosta, subia um carreiro, que, depoisdeserpearpordetrsdealgumasdasmoradasdobairrodorei,se bifurcava, levando um brao a uma daquelas ruas, lanando outro pelo monte, serventia a casais que se comunicavam igualmente com a cidade pelo lado do Olival.PorestecarreiroquetomaraFernando,ouFernoVasques,o sobrinhodosenhorGonaloDomingues,malviuabsorvidaaatenodeste nasgalsreaiseosseuspassageiros.Orapazcorreuporalgumtemposem tropear, para o que preciso era estar bem afeito a trilhar semelhante caminho, esafrouxouopassoquandoseaproximavadeuma casadeboaaparncia, cuja frente dava para a praia, habitao de uma das notabilidades do bairro, e que o foi depois, na histria, do piloto e mercador Joo Ramalho.A casa para olado do rio nada apresentava denotvel nafachada: era um edifcio de madeira como muitos dessapoca; para o lado do monte, porm, erabastantepitoresca.Aparteinferiorescondia-senumamoitadearbustos deumpequenocercado,ondetambmselevantavamalgumasrvoresde fruto, uma das quais, rompendo, com um brao lanado flor da terra o muro de pedra insossa, sacudia sobre o caminho a folha, a flor e mesmo o fruto, se aguladosgarotosesperavapelosefeitosdotempo.Acimadoverdedos arbustosdescortinava-seumavarandadepau,onde,noparapeito,davam passagemaoareluzaberturassimtricas,figurandofolhasdetrevo,ena partesuperior,zelosiasemxadrez,tudopintadodeencarnadovivoeverde esmeralda,comquerealavaobrancoquetingiaotabique.Deambosos ladosdavarandadesciaumaescada,cujosmainisseperdiamentreos arbustos,depoisdeseligaremnumpatamar,aocentro,paradenovose separarem,formandodasorteumcorposalientenafachada.Porcimada varanda abriam-se duas janelas, todas lavradas, ornadas de zelosias tambm, e tendoporbaixo,sobretravessalientes,emcadaumadasquaisartistarude esculpira um animal sonhado, dois caixes com terra. num , apar do qual duas longas canas formavam um estendal, onde se via roupa a secar, a providncia domsticasemearasalsaeaprecauocontrafeitiosdispuseraumpde arruda;nooutro,haviaumpdeamoresperfeitoseoutrodemadressilva marinhandoporcordespassadosparaoguarda-chuvademadeiraqueos abrigava.QuandoFernandoVasquesseaproximoudacasa,depoisdealguns assobios, entre a trepadeira e por cima dos amores, apareceu, aberta a zelosia, umacabeabemprpriaparaencaixilharentreaquelasflores.Imaginaium rosto oval, de uma carnao que se no podia dizer branca, mas a que se no podiachamartrigueira,porqueonoera;umapalidez,semserdessasque denunciamumanaturezaenfezada,doentia;umapalidezquelhedavaum tododebrandura,decarinho,quefaziaporvezesrealarumcarmim vivssimoetraaumolhartravesso,detravessurainfantil,inocente;imaginai umabocadeumlindodesenho,formandoemcadaextremoumacovinha engraada; uma boca que parecia sorrir sempre, mesmo quando a cara pensava oulgrimasdesciam pelasfaces;imaginai queonarizforamodeladopelo de umaestatuaantiga,eimaginai,sobretudo,unsolhoscastanhosrasgados, assombrados por uma franja de cileias to cerrada, que pareciam negros como abagadoloureiro;unsolhos,enfim,expressivos,verdadeirosespelhosde alma,comolheschamamospoetas,etereisumaideiadasfeiesdeIrene. Esta encantadora cabea enfeitava-se com o mais soberbo cabelo que se pode teraosquinzeanos;negro,longo,srico,ligeiramenteondeado.Paramaior realce da cor, parecia feita moda que vogava. As tranas, que vinham pousar nocolo,alvocomomarfim,eramintermediadasporfitasdeldeum vermelhovivo,quesecruzavamdepoisnacabeaevinhamcairsoltas,dos lados, terminando em pingentes de metal dourado.As leis que faziam distinguir, pela cabea, as solteiras das casadas e estas das vivas caam em desuso.A filha de JooRamalho, apesar da curtaidade, eraumabeleza. O sangue dasuame,umadessasbelasjovensdaAsia,emqueseconfundiamdois tipos,ogregoeoarmnio,predominando,desenvolveraaquelecorpo garboso;dera-lhenaadolescnciaoacabado,amorbidezquesmaistarde, em geral, em outra idade se alcana. Com o corpo desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada educao materna, que distava bem da vulgar entre a nossa burguesia naqueles tempos, e os carinhos da boa mulher, que o senhor Joonocompreendiabem,entretidosemprenassuasviagenserude, voltados todos para aquela filha nica, em que se embelezava cultivando-lhe o corao,aformosearam-lheaalma.Umabelaalmafazumrosto,seno formoso, amvel; a inteligncia reproduz-se nas feies como aureola que lhes d realce; a natureza,j odissemos,foramadrinha enomadrastaparacom Irene:abelamenina,reunindo,pois,todasasformosuras,despertavaa admirao e o amor ao mesmo tempo. A impresso produzida no sobrinho de Gonalo Domingues fora esta, e que o amor naquele peito tinha boas razes, dizia-oaconfusoemqueeleficou,maljanelaapareceuagentilcabea. Fernando,umrapazjovialeresoluto,comoodiziamunsolhoscastanhos cheios de fogo, um nariz ligeiramente curvo, os lbios delgados, acentuados na extremidade por um ligeiro buo; Fernando baixou os olhos, fez-se vermelho, sentiu que os joelhos se dobravam, enfraquecidos, e, sem se atrever a fitar de novoaquelaapario,bomtempogastouempuxarobarretedeumparao outroladodacabeaeamarrota-lonasmos,nemcrianabisonhaquese dispe a abrir brecha na bolsa paterna,ou tem deresponder por avaria feita, acabando por desafivelar o cinto da jorneia, como se carecesse de tomar largo folego para levar a cabo a sua empresa.Noeraestaavezprimeiraemquealiseencontravaemtaisembaraos, pormnuncatogravestinhamsidoascircunstncias.Agravidadeno provinhadaescpulafeitaaoseutio,quejnemdetalselembrava,masda resoluoquetomara derealizarassuasambiesesonhos,ascombinaes detantas horas; depassar alm de alguns gestose sorrisos eumassaudaes feitas do cimo da encosta, no falando num a enfiada de sons, que palavras se no podiam dizer, pois nem ele lhes soubera o sentido, soltados porta de S. Pedroentreunscomoarrepios,queatribuiuaomodoporqueoencaroua cultivadora da arruda, a criada a quem o senhor Joo Ramalho, por morte da sua esposa, confiara o governo da casa e a guarda da filha.Quaseigualforadaresoluoforaoabalo,comonestascoisasde costume,masFernandonoestavaresolvidoadeixarperdermaisuma ocasio:puxandoobarretesobreanuca,subiuaumcomoro,aoladoda quelha, ergueu os olhos e abriu a boca, porm a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de Irene. O pobre no prevera que pregar a sua confidencia daquele sitio fora,querendoqueelaaouvisse,mete-latambmnos ouvidosdosvizinhos, ou pelo menos das pessoas de casa, e a jovem, levando um dedo aos lbios e indicando-lhe com um gesto que descia varanda para encurtar a distancia, se noenleio,noruborsemostravamalafeitaquelasartimanhas,professadas peloamor,ouquemsuasvezesfaz,comodosexoaquepertencia,se mostravamaisprudente.Irenedesceu,masvencidoameiooinconveniente dadistncia,furtava-se,encobertapelocercadodahorta,svistasde Fernando.Esteeclipse,comodiriaumpoeta,foiquedeuaonamoradoum nimodequeeleprprioseespantoupormuitosdiasdepois:atreveu-sea subiraomuroemarinharpelarvorequesedebruavasobreaestrada,a esconder-se entre a ramagem.Os discursos naquele dia tinham m sorte: como o que fora destinado a Rui Pereira,opensadoerepensadodosobrinhodeGonaloDominguesno vingou.AerudiodoabadedePaodeSousaachatara-sedeencontro pacincia do fidalgo; as flores escolhidas para ornar a declarao feita a Irene (toricodelasocoraoemquerebentaoamor!)asfloresdeestilo queimou-asumolharlanadoaojovem,traduzindotantacoisa,quesum dessesolharespodiadarbonstrscaptuloscomoesteemquesecontae comentatantosucesso.Oolhardeumadonzela,comoafilhadopiloto, nestasconfidnciasdeumprimeiroamordeixemdizerqueoamor,o verdadeiro amor s vem muito mais tarde, deixem; que eles treleiem, e julgam que o egosmo aquilata a paixo ; o olhar de uma donzela assim, encerra um mistodeafetocarinhoso,devolpiaindefinvel,depudoreinocncia,de receioeousadia,que,paradeledarumaideia,apoesiamesmouma linguagem descolorida.Fernando,malseviufrenteafrentecomajovemnamorada,sentiuum formigueiro nos ps, turbara-se-lhe a vista, etevedese agarrar aos ramos da rvore, para no cair; quis procurar o cabealho da sua declarao, porm nem uma s ideia lhe vinha mente; por mais de uma vez abriu a boca, e teve da fecharsemformularumnicomonosslabo.Irene,navaranda,coma aproximaotambmseacanhara,eocultavaoseuembarao,ou,antes descobria-o,passandoamopelacara,levantandoumatranaparalogoa abaixar,enrolandoedesenrolandoumadasfitas,afogandoedesafogandoo pescoo com o singelo coleirinho do corpete. Os minutos que assim passaram no foram poucos. Recuar depois de ter chegado at ali era desairoso e difcil.O sobrinho de Gonalo Domingues fez o supremo esforo para no perder tudo.Irene, Irenesinha! disse ele, amarrotando o barrete com a mo que tinha desembaraada.A jovem fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos foram desperdiados, se desperdiadosepodedizeraqueletempopassadoemenleio,rpidona passagem, mas que depois enche com a recordao tantas horas de vida.Irenesinha! disse Fernando, continuando a procurar a musa no barrete.Ajovemcontinuouafitaroembaraadorapaz,aguardandoquealguma palavra mais seguisse invocao. O barrete no absorvera, ao que parecia, os galanteiosestudados,amimadosportantotempo,peloque,depoisdelarga pausa,Fernandodesceudasregiesdoamoracoisasmaisterrestres,na linguagem;procurou,se,oquemaisprovvel,senoagarrouprimeira ideia visada, um ponto de partida nos sucessos do dia, e titubeou:No sabe que chegaram a umas gals de Lisboa?Sei; respondeu a jovem, baixinho, depois de olhar para todos os lados a ver se algum poderia ouvir aquela conversa amorosa. O meu pai para l foi.Foi? interrogou maquinalmente o jovem.Foi, repetiu Irene, debruando-se pela varanda e fazendo com uma das mos junto do ouvido uma concha para no perder uma s palavra.Pois veem nelas muitos fidalgos de Lisboa. No os viu desembarcar?Vi.Disseram-me que iam em procisso cidade, e que traziam um recado do senhor D. Joo!E no foi ver?...Olhe,Irene,atalhouFernandoemvozmaisbaixaeentrecortada,por muito que tenham que ver, eu antes quero estar aqui. A menina que no sei como no vai para o lado da praia.Paraque?Tolongeficaolugarondevararamasgals,eestum gentio...Ento, se pudesse ver, no estava a.Porque no? disse Irene, corando.Porque...porque,titubeouFernando,baixandoosolhos;porque aquelesfidalgos com asjorneias bordadas, aquelasarmasa espelhar somais para se verem...Dajanela,disseajovem,encolhendoosombros;dajanelanose podem admirar esses alindes.Fernando baixou a cabea, desconcertado o seu intento. A jovem no vinha para o campo para que ele a queria trazer: no o entendia, pensava ele, e se o no entendia porque o no amava. Se soubesse avaliar a entonao de certas palavrasnopensariadaquelasorte;pormtodososnamoradosassimso: no reparam nas rosas e colhem os espinhos.Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem fazer uma leva para a guerra contraosloucosdeCastela?disseojovem,procurandolevaraconversaao fim desejado.Para que pensar nessas coisas!E se me levassem? insistiu ele.Maselesnoveemparaisso;no,senhorFernando?disseadonzela com uma inflexo de voz, que pintava o receio de que uma afirmativa fosse a resposta.O sobrinho de Gonalo Domingues no notou esta expresso e prosseguiu:No se lhe dava que eu fosse?Eu?Sim; parece que no teria pena alguma.No diga essas coisas!Pois deveras magoava-a a minha partida?Deveras; disse Irene, passando a mo pelo rosto, para ocultar as tintas do pejo, que a ele assomavam com esta confisso.No diz o que pensa, acudiu o jovem, imprimindo, cheio de alegria, um talabalorvore,queesta,oscilandooroandodeencontroaomuro,fez desprender algumas pedras.Jesus! vai cair! exclamou a donzela, tornando-se plida.Ai!Irenezinha,sparaverseoquedizcerto,deboavontade quebrava a cabea.Ajovem,emvezderesponder,comumgestoimpssilencioaoseu conversado. Do lado de baixo ouvia-se os passos de quem para ali se dirigia, e pouco depois apareceu Gonalo Domingues.meutio,disseFernando,comvoztosumida,queparasitos pareciafalar,enomomentoemqueorotundoburguspassavadistrado juntodomuro,querendoesconderaspernasquedeixavapenderdeume outroladodogalhoemquecavalgava,denovooscilouarvore violentamente, mais arruinando o muro a que se encostava.Oh velhaco, que fazes a empoleirado?Eu,senhortio?acudiuopobrerapaz,coandonacabeacomtodaa fria.Sim,tu,Belzebut!Saltacparabaixo,queteensinoaandararoubar fruta pelos cerrados.Oh meu tio, a rvore no tem fruto; olhe bem.Ento que fazes a?Eu estava a ver...O que, rapaz de m morte, cabea oca?A ver se o via por algures, prosseguiu o desconcertado jovem.Levadigastecolham!Procurasteatalaiabemlongedocaminho.Ora, desce, que eu te vou ensinar chanas melhores.Cuidei que ia pela Aljama.Algemia isso que tu ests a pregar. Desce, velhaco!Lvou,tio;disseFernando,descavalgando,pormdeixando-se suspenso pelas mos do seu poleiro. Mas...Mas o que? pela tua causa em boas me vi, e tu mas pagars juntas. Eu farei de modo que no tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados. Sevaisporessecaminho,acabasnasmosdajustia!exclamouosenhor GonaloDomingues,comsobrecenhoprovocadopelarecordaode desaguisado da praia.Fernandodeitoudonzela,quetodatrmulaseconservavaencostada varanda, um olhar a furto, no se atrevendo, por envergonhado de ser assim, alina presena dela, tratado comoumacriana, a uma despedida; com outro relance de olhos avaliou se as ameaas do tio no teriam, na execuo, algum desconto,elentamente,soltandoumsuspiro,desceudarvoreemque,ao modo das aves, tinha soltado as primeiras confidncias do amor. To depressa sentiu nos ps o contato do pedregulho da betesga, como sentiu nas orelhas o damodemestreGonalo,queacompanhavacadapuxocomumepiteto pouco amvel, terminando pelo de ladro.Ladrono!exclamouorapazdandoumsalto,feridopelainsistncia do tio naquele mau conceito.Ento que fazias ali, rapaz dos meus pecados?Algum,noointerrogado,seencarregouderesponder.janelaonde vicejavaaarrudaassomouumrostoencarquilhado,meioocultonuma enorme touca de linho a feio das que usam as freiras, e gritou com uma voz de cana rachada, debruando-se:Menina Irene! menina Irene!GonaloDominguessuspendeuassuasiras,eestendeuolbioinferior com um gesto que queria dizer muita coisa, e, entre outras, que atinava com o motivo de ter o sobrinho trocado a procisso dosfidalgos por uma ascenso s rvoresdosenhor JooRamalho. Lembraram-lhe as palavras e os momos da velha da praia.JagoravamospelaAljama,edepassofalareicomomeucompadre; disseemseguida,dandoumencontroaojovemeindicandoocarreiroque subia a montanha.Metendo-seacaminho,voltouacabea,comoavoltaraFernando,paraa casa do mercador, e viu na janela do andar superior, por entre azelosia meia aberta, o rosto da gentil menina. f, disse ele por entre dentes, que o rapaz no tem mau gosto; e ela...Apalavrafoiterminadaporumsorriso,olhandoparaFernando,como desvanecidodoseusangue.GonaloDomingueseraumexcelentehomem, apesar de toda a sua aspereza aparente. CAPTULO III OS VELHACOS Umacidadedapennsula,nosculoXIV,noeraumagregadode indivduosvivendo,comohoje,debaixodamesmaleisegundorezaalei, entenda-se.Aforaasdistinesdeclassesesenhoriosdiversos,haviaa distinodecrenas,easeparaoeravisvelnasgrossascadeiasque tornavam ao cair das Ave-Marias incomunicveis certos bairros. O Porto tinha de tudo: sbditos da coroa e sbditos da mitra, e no tempo em que sucedia o quenarramos,moradoresquenemreconheciamuma,nemoutra;havia cristos,mouros ejudeus.Sobreummontealteavam-seastorresdaS, eos paosfortificadosdobispo;sobreooutromaishumildelevantava-sea esnoga,ousinagoga,enaencosta,entreumeoutro,apequenaaljama apresentava-se,comoosmbolodareligiodoprofetadeIatreb,querendo aproximar-se do Evangelho e da Bblia, e lanando depois pela encosta um ou outrocasebre,comotransioparaalgumamoradadeheresiarcaquese ocultasse entre os foragidos doOriente. A aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica; a cruz, mais alta, dominando as duas, era a mais forte.Aljama, municpio, catedral, esnoga, tudo fora cintado pela mesma muralha, como para viver em boa fraternidade; mas esta aguara entre os dois filhos de Ado, quanto mais entre tanta gente. O judeudesprezava o mouro; o mouro desprezava o judeu; o cristo desprezava a ambos, e, como fizera a lei, talhara parasimaisregaliaseparaosoutrosmaistributos,reservando,paraosque nadativessemdoseu,odireitodeselamentarememparticulardealgum pescoo de burgus arrufado, gilvaz de cavaleiro, pedrada degaroto epraga de rascoa enraivecida, ou velha rabugenta. Era uma sorte bem agradvel, feliz, contudo,aquela,emcomparaoquelhesprepararam,aosjudeus especialmente, uns beatos metidos em poltica, de que se serviam para ganhar ocu,supunhameles,eumbandodetogas,garnachaseroupetasquese serviamdocuparaapanhardinheiro.Aquelaanimosidadeeraaregrageral, mastodaaregratemexceo,enamourariaerasvezesrecebidocomos braos abertos omesteiral; najudearia havia mo quese estendia aoburgus emprovadeamizadesincera,eumououtrofilhodeIsraelachavaagasalho no chorado na casa do cristo, mesmo quando aquele no tinha a arca cheia deboasdobras;queemtalcasotodasasportasseabriam,desdeadopao rgio ou episcopal e a do solar do nobre, at da cela do reverendo abade, e a doleigo,esobreeleschoviamhonrasemercs;comoeramprovavivaD. JudaseD.David,duascriaturas,que,fazendograndearrudonacorte, jogaram com os destinos do pas, como bons ministros de finanas o nome, o titulo ainda no estava criado, mas a coisa j existia no se esquecendo de tirardeletodoosucopossvel.GonaloDominguesviviaemboaharmonia comoarabi,ouarrabimenor,harmoniaqueodevialisonjear,poiseraat certopontoumanotabilidade,comochefedosjudeusdacidadeecomo homem de teres, e por isso se resolvera a subir a encosta, pelo lado do Olival, parafalaremcertosnegciosemquedesejavaservirumseucompadre,e tratar da compra de poro de gado. O velho Gonalo, forureiro (*) nos seus princpios,reuniraocabedalbastanteparaalargarareadoseucomrcio: estendera-oscarnes-verdeseensacadaseapelamesdetodoognero; tornara-seenfimumnegociantedeconsiderao,comoumseucolegade Coimbra, que salvou aptria, emprestando a sua senhoria, o Mestre deAvis, algunspunhadosdedobras,servioquelherendeuadoaodealgunsbens nacionais e a glria de ser o tronco de uma nobre famlia. [(*)Forureiro,eraonomedadoaohomemcuja profissoeralidarcom aspelesdosanimais.Oseu trabalho consistia em limpar os animais mortos, retirando-lhes as tripas eos restantesrgos(que iam para o lixo), separar a pele da carne (que era vendida ao talhante) e tratar do couro e dos plos para depois serem vendidos aos confecionadores de roupas.] A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos do sculo XIX, lanando-lheemrostoonosercomaespadaquelavrassemosseusescudos;mas porqueno tmpacincia ou vagar derevolver osarquivos dafamlia, seno deixariadeatirarpedraaotelhadodosvizinhos,vendoosseusdevidro:se portaldevidroospodemconsiderar.Deixemosreflexes,porm,e retrogrademos ao bom tempo, que assim se chama sempre ao tempo passado, a apanhar o rico burgus e o sobrinho porta do Olival.Nocampo,que,extramuros,poraquelesladosseestendia,aindaseviam alguns indivduos, que, com os olhos postos no rio, pareciam analisar as gals chegadas; maseravisvel que, detodosos portuenses, estes, que assim ainda pasmavam, eram os menos curiosos, os mais indiferentes luta travada. A boa parte, farrapos, que em bom tempo tinham formado uma aljuba, denunciavam comodescendentes deTarik;aoutros distinguia-osumcrculodelamarela pregado nos grosseiros tabardos; o resto no se distinguia por coisa alguma da roupa, porque naquele cerzido de trapos nada se podia distinguir. Os curiosos, osverdadeiroscuriosostinham,comovimos,descidobaixadacidade,e mais crescera o nmero depois que se soubera que nada havia que recear das gals,equeRuiPereiraeosoutroscapitesdesembarcarameseguiram processionalmenteparaospaosmunicipais.GonaloDomingues, intercalando as combinaes do seu negcio com reflexes sobre a descoberta feitadosamoresdoseusobrinho,reflexesquefaziamcomqueaeste mostrassegestocarregado,einteriormentesesorrisse,avivandonamemria osseusverdesanos:medindodetemposatemposaalturadosol,queno eramdepoisdeAve-Mariassegurascertasparagens,passeavadeumparao outro lado do campo: Fernando acompanhava-o, voltando a todo o instante a cabeaparaMiragaia;procurandoaproximar-sedestiodeondepudesseao menosveracasadomercador;repreendendo-sepornoteraproveitado melhor o tempo que passara junto de Irene, dizendo uma fineza daquelas do livro de cavaleiras, que frei Gumeado lhe deixara ler; descorooado por aquele final, que decerto o rebaixaria no conceito da linda jovem. O sobrinho andava to embebido, que nem sentia os ps tocar no cho, e o campo no era jardim areado; o tio cansava-se j de aguardar seu compadre, que no encontrara em casa,quandoaapariodeumpersonagemveiopremmovimentoos frequentadores do campo: uns deslisaram-se, o mais sorrateiramente que lhes foipossvel,pelaencostaeporentreoarvoredo,outrosperfilaram-se,e levaramasmosaosbarretes,osqueostinham,mostrando,contudo,pelo gesto, que no era a estima, mas o temor que os levava a esta delicadeza.Orecm-chegado,personagemlhechamamos,emostrava-oserdeconta entreaquelagente,eraumafiguranotvel.Umbarretedetelavermelhade formaesquisitarematava,sentadosobreumcapirote,umacaraumpouco crescidaesaliente,complementodeumrostoossudo,moreno,emquedois olhos desesperados com a proeminncia de um nariz, que se metia em tudo de permeio,tinhamacabadoporenviaraspupilas,cadaumaparaoseulado,a tomarconhecimentocomasorelhas;olbiosuperioreraadornadoporum bigode esfarrapado, decor duvidosa, ou de todas as cores possveis preto, branco, castanho, louro e ruivo e de igual mescla eram os pelos que deixava crescernoqueixo.Dacabeanodesdiziamorestodocorpoeovesturio: trajava um gibo bipartido preto e vermelho, e uma das longas pernas enfiava-se num a cala e borzeguim vermelho, a outra em cala e borzeguim preto; do pescoo pendia-lhe umamedalha demetal amarelo, comas armasda cidade, da cinta um grande punhal e uma enorme bolsa de couro, e na mo sustinha um basto, terminado por uma cabea de metal cinzelada, ao que parecia, por artista que tomara a dele por modelo. Medalha e basto apregoavam que Telo Rabaldo era o pai dos velhacos, cargo que no tem hoje correspondente, por notoleraremasluzesdosculoabsurdo.Telosuperintendia,governavato somentecidadosqueemnoitesserenastmodosseldoleitorecamadode estrelas,jejuamsemdevoo,deixamcrestarocorpopelosoldeAgostoe gelarosanguepelofriodeJaneiro,echamar-lhesvelhacoseraalterara significaodaspalavras,senoeramaliciadelegislador,queassim arrebanhava e batizava alguns centos de criaturas, para que se persuadissem as de boa f que na terra no havia mais, como os hospitais de doidos lisonjeiam muitagentequenoforadaanoterlmoradia.Osvelhacos,os verdadeiros,ento,comohoje,nosedeixavamgovernar,sempre governavam tambm, e havia-os anafados, vestindo custosas telas e abrigados em paos soberbos.Eh! boa gente! exclamou Telo, dirigindo-se aos indivduos que tratavam de lhe evitar a presena; ento assim querem fugir ao seu pai! Vamos, venham receberabno,comobonsfilhos,ecomabnoumaboanova.Ol, PedroChoca!acrescentou,depoisdehonrarcomumsorrisoafaceciaque serviradeexordio,dirigindo-seaumdosquesedesbarretava;quenenhum dos teus falte depois de amanh na Ribeira. Onde est o Joo Bispo?Joo Bispo, redarguiu o interrogado, h dias que desapareceu.O velhaco voltaria para o convento farto de estar deitado de barriga ao sol,ousemeteuoutravezcomafilhadovelhoHumeia,eestafazer penitncia por ter pecado com moura?Ou se foi lanar com os loucos...Paraque?Tomacontaemti!Chegou-meaosouvidosquetetravaste com ele de razes por umas nonadas, e se me deste cabo do rapaz, em boa te meteste!Senometrouxeresembrevenotciasdele,atuapelemasdar.A pol do aljube est nova, e poder bem contigo.Choca resmungou por entre dentes algumas palavras, e o pai dos velhacos prosseguiu:Avisa aos compadres para que ou vo contigo e mais a sua gente, ou a levemparaastercenas.Quenofalteningum!Queroduzentoshomens, bons pulsos...Duzentoshomens,bemsabesuamercquenopodemosreunir.A melhoria da gente levou-a o senhor conde Gonalo; o senhor alcaide tem boa poro, e se crianas, mulheres e aleijados no servem...Eessescesdecabeaamarrada!exclamouTelo,designandoum mouro que a curiosidade trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma turmadevadios.Quantoaosaleijados,seideumamesinhaqueospesos como um pero, juntou, mostrando o seu basto; o manco da porta da S que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada) apelidou os bons homens da sua boacidade(outrabarretada)paraqueoajudassemadarcabodoscesde Castela,eosalvaziresdo-voshonrametendo-vosnacontadosbons homens... fazendo-vos trabalhar. Que ningum falte, e viva sua senhoria!Viva sua senhoria! repetiram os vadios e com eles Gonalo Domingues, queseaproximaradarodaformadaaopaidosvelhacos,rodadesfeitaaum sinalporestedadocomavara,deixandoaimportante,incansvele incorruptvelautoridade,comolhechamariamhoje,quetodososencargos tm um ou mais adjetivos anexos, face a face com o burgus, que abria a boca para indagar quais os servios que o filho de Teresa Loureno reclamava dos portuenses.A interrogao no foi formulada. Telo Rabaldo, cheio da sua importncia, fez uma leve saudao, carregou o barrete sobre um dos olhos em rebeldia, e girousobreoscalcanharesaomesmotempoqueumoutroindividuo assentavanosombrosdoforureiroumagrandepalmada.Gonalo Domingues voltou-se a ver quem segundava a amabilidade do marinheiro, e se no reconheceu logo o seu compadre, foi porque um abrao de meter costelas dentroosufocou.ObomhomemvinhalisonjeadocomacartadequeRui Pereiraforaportador,lisonjeadoemextremonoseupatriotismode localidade, eexpandiaoseucontentamentodaquela sorteeemexclamaes, quefizeramsuspeitaraotiodeFernando,quenoestavaembomarranjo aquela cabea. D. Joo chamava aos portuenses o seu bom povo, mimoseara-oalmdissocomoutroseptetostaiscomoleal,esforado,etc.,eo portador,resolvido,apesardoseuenfado,aseramvelepopular,pintaraa amizade ereconhecimentodoMestre, pela espontaneidadeda sua aclamao na cidade da Virgem, com tais cores, descera da sua dignidade prodigalizando sorrisosaocorpomunicipal,batendonoombrodeLuizGiraldesdeum modo, que o nosso homem esteve por um triz a deixar cair uma de comoo. Eraumaalmacndidaeentusistica,apesardoinvolucrogrosseiro,o compadredosenhorGonaloDomingos;tocndidaqueacreditavano desinteresse do Mestre de Avis, supondo que defendia a coroa para a entregar ao filho de Ignez de Castro; toentusistica e patritica que, quando, fora de lhe perguntar o marchante seencontrara o arrabi, secas as goelas e j sem alentoparadescreverareunionospaosmunicipaisemaisepisdiosda embaixada, se recordou do seu negcio, era tarde. O sol ia quase a mergulhar no oceano, e era provvel no s que, na judearia estivessem fechadas as ruas, masatqueselfossem,encontrassemasportasdacidadecerradasno regresso.Osdoisburguesessepararam-se,pois:opatriota,compadrede GonaloDomingues,seguiupeloscamposemdireoaopovoadode Cedofeita;esteoutro,despertandoosobrinhodepensamentosemqueno entravamnemcompras,nemvendas,nemosdireitosqueosfilhosde HenriqueIIdeCastelaeD.PedroIdePortugal,podiamterterraque pisava, tomou com ele o caminho de casa.Asnuvens,queonorteespalharanoar,comoflocosdealgodo,ornadas pelas tintas que formam a gradao entre o rubro e o amarelo vivo, davam ao cu a aparncia de um mrmore, um todo que em pintura seria inverosmil; os edifcios de Vila Nova e de Gaia cortavam com o perfil o horizonte, vestindo pouco a pouco uma cor uniforme, o cinzento-escuro. De um destes edifcios, o que mais se avantajava, do castelo de Gaia, as janelas esguias voltadas para o poente pareciam dar sada aos fogos de um incendio. De que no era, porm, estechamejarmaisqueumreflexodosolnoocaso,sepoderiadesenganar quem, mesmo nunca tendo presenciado este fenmeno, se nos antecipasse na residnciadotenentedocondeD.Gonalo,ondeumahoradepoislhe provaramosqueareflexo,aoapresentarTeloRabaldo,noforadeleve feita: velhacos no eram s os que no tinham nem leira nem beira.Numa das salas que no castelo serviam de aposento ao alcaide, revestida de apaineladosdecarvalho,emquealuzdodia,coadapelosmidosvidrosde cor,formandolosangos,embaava,eembaavaigualmenteaquedavamas tochassustentadasporbraosdeferro,passeavadeumparaoutroladoum homemdealgumaidadej,magroedeestaturamediana.Nopeitodeuma espciedecamisoladepanodecurtasfraldas,cujasmangas,farpadasnas orlas, pendiam at ao joelho, viam-se bordadas a verde com nervuras de ouro trsfolhasdefigueira;omesmodistintivosereproduzianumabolsade couro, que, do lado contrrio ao estoque, acompanhava um punhal, nos fartos reposteirosdasduasportas,queparaasaladavamserventia,enamangada jorneiadeumpajem,crianadedezanos,quecabeceavacomsonoaum canto.Obarreteadornava-secomduaspenasdeaguia,presasemfechode ouro, e os borzeguins apresentavam uns longos bicos, moda que um episdio daguerratravadadeixouassinaladanahistria.Encostados,novodeuma janela, conversavam, em voz baixa, uma dama e um individuo que se tornava notvelporusarcrescidoocabelo,raroedecoravermelhada,eporuma longa espada, de que afagava o punho. Do lado oposto havia seis indivduos, umdosquaisvestiahbitomonstico,eoutroseacobertavacomumavelha armadura de malha.OhomemquepasseavaeraAiresGonalvesdeFigueiredo;adamaeraa esposadeste,D.Catarina;oindividuo,quelhefaziacompanhia,oirlands GuilhermeDown-Patrick;osrestanteseramquatrocavaleiros,homensde solardeEntre-Douro-e-Minho,ocapitodebesteiros,PeroBeduido,efrei Garcia.Aspassadasdoalcaidesoavammaisaltodoqueaspoucaspalavrasque todaaquelagentetrocavaentresi,evisivelmente preocupava-o negcio,que noera para os outrosestranho, a noenganar omodo porque detempos a tempossefitavameameditaoquese seguia.Duaspessoassesubtraam influncia geral, a castel e o irlands: se se calavam era, ela para amimar uma galga branca, que se enroscava sobre um banco, ele para com a vista percorrer a laaria e penduris do teto.Segredosesilncio,aquelesolharesegestostinhamumtodomisterioso, que houve por bem quebrar Aires Gonalves.Quemedizeis,senhores?exclamou,estacandonomeiodopasseio, como a procurar alvitre que viesse pr termo sua irresoluo, parecer que se conformasse com o que tinha na mente.Ningum respondeu, porm, eocastelo, lanando volta desi um olhar dequemquerialernasfisionomiasdoshspedesassuasintenes, prosseguiu:Suasenhoriaqueremvoltadesitodasaslanasdoreino,enose lembra,ounosequerlembrardequeficadesguarnecidaumaterrato importante como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram voz pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade aos pees, aos pees, que trata como a gente de prol?!Emboaconfusovaipondoascoisas!Umdia,veremos,senolhes puser cobro s ousadias, vir o povo tomar-nos os solares; atalhou, abanando a cabeacomarsentencioso,umvelhofidalgodeRiba-Tua.Bemaltaneiros andam j burgueses e mesteirais!Deixai,acudiuAfonsoDarga,asencamisadasdospees,queteroo seu cabo. O Mestre precisa de sustentar a guerra, e lisonjeia por isso quanto o mercadortemaarcabemprovidadeboasdobras,torneses,gentis,florinse pilartes. Aos do Porto pede ele agora uma armada, mantimentos e dinheiro.ArmadaquenoslevaraverorostoshostesdeCastela;disseAires Gonalves.Se se fizer.O povo do Messias de Lisboa a arranjar. No viram como os alvazires propuseramlogoumaderrama,ejuraramaRuiPereiraqueteriamantesde ummsanadoalgumasnauseoutrassearmariamdosmelhoresnaviosdo comrcio com Flandres?! Esto inchados com o valimento que lhes do.Por a se conhecem os viles...quedoelesaoMestre?Grandecoisa!Emcamposeverdeque servem,enocampoqueacontendatemdesedecidir.Irocombestas, virotes e azevns fazer frente s lanas de Castela? Lngua tm eles; mas honra quenemtodaaalgaraviadessesmestresemleiseclrigos,queoregedor tomouparaseusconselhos,essesfaladoresdePisaeBolonha,podermeter nessa gente.MasnelaseestribaD.Joo,disse,abanandoacabea,umdos cavaleiros.Paraelesapelacomboaspalavras;ansmanda-nos,norecado,mas ordem!exclamouoalcaide.dessasgarnachassadasdonadaquevema desconsiderao em que nos tem.TemposdoreiD.Fernando!suspirouDown-Patrick,recordando-se talvezdequandoashostesdoduquedeLencastrefaziam,entreosaliados portugueses e os inimigos de Castela, de tudo roupa de francs.EraumbomreioqueDeustem!juntoufreiGarcia,fazendouma momice de piedade.Rei, e criado como rei, bem sabia ele onde estava a fora e grandeza do reino e sua.Emelhoragasalhononosfazemsemprenocampodomaridoda rainha D. Beatriz. Aos da suacasa aconselhou D. Leonor quefossem para o Mestre, que ao menos no era sfrego.Com isso perdeu D. Joo: perdeu-o a altivez.E ao Mestre no aproveitaro as mercs rastejadas.Ele no precisa de ns, disse o velho, o mais desapontado dos hspedes doalcaide,aoqueperecia;fazcavaleirosaoseucaprichodoprimeiropeo que se lhe antolha.Bonscavaleiros!observou,rindo,omaisjovemdareunio.Porl andam montados em mulas fazendo rir com os seus ares de importncia. No ser preciso, para os derribar, erguer clava ou montante: andam to mal a jeito com arns e grevas, to abafados pelos elmos, os que os tm, que ao primeiro arranco das azes vo ao cho.Emsetratandodelanadasconnoscoquesehavero, bem ovedes, disse Aires de S.E ireis, senhor alcaide? interrogou Afonso Darga.Eu, senhores, respondeu Aires depois de alguma hesitao, levantei voz peloMestre,masrecebiocastelodocondeD.Gonalo:obedecereiasua senhoria em tudo, mas s abandonarei o castelo...Afrasedoalcaidenoterminou.D.Catarina,aproximando-sedoseu marido,eimpondo-lhecomumrelancedeolhosaconveninciadeno prosseguir, atalhou:Largos dias tendes para tomar conselho, cavaleiros; alegrai o sarau com outroscontos.coisasdetantaimportncianosedevemtratardesalto:o tempo que se leva a pensar em casos tais no perdido. Tomai exemplo de D. Gonalo Teles, juntou mais baixo, dirigindo-se ao esposo.D.Catarina deFigueiredo era, atcertoponto, uma donaprudente, como chamaumhistoriador,porigualconselhofabiano,aBeatrizGonalvesde Moura, aia depois da excelente rainha D. Filipa. O exemplo do conde era um grandeexemplo,poiseradehomemquesabia,oupareciaterdememriao Sic vos non vobis de Virglio, e dar-lhe o valor devido nas coisas do mundo. D.Gonalofechara-seemCoimbra,jogaracomasuairmumjogopouco lealepareciaaguardarqueasortedecidissequaldospretendentescoroa tinharazoedireito,ouforaejeitoparaasegurarnacabea.Oalcaide aproveitouoconselhoeabandonouotemaemqueolanaraomauhumor causado pela mensagem de Rui Pereira.Palestrasobreoutroassuntoeranaquelaocasiodifcildesustentar.Os cavalheirospoucoapoucodeixaramasala,equandosrestavamo aventureiro,HenriqueFafes,omaisjovemdosdareunio,efreiGarcia, indicouesteltimocomoolharopajemquaseadormecido,tirandoao mesmotempodamangaumatiradepergaminhodobrada.Airesde Figueiredo,sacudindocomviolnciaacrianadequemoreverendoparecia recear a indiscrio, a ps, estremunhada, fora da porta, ordenando-lhe que se recolhesse,eemseguidapercorreucomosolhosomanuscrito,quelhe apresentaram.O alcaide de Monsaraz veio? disse ele terminando a leitura e dirigindo-se ao frade.Senhor, sim, veio.E no desconfiaram de nada?Penso que de nada. As gals castelhanas no apareceram.E de boa fonte houvestes esta proposta?Do irmo do arrabi-mor, esse judeu a quem sua real senhoria acaba de fazer merc.MisterGuilherme,senhorHenrique,disseoalcaidedepoisdefitaros dois por um momento, se pouco caso se faz de ns em Lisboa, no campo dos que a sitiam tm-nos em apreo. D. Joo no to sfrego como o pintavam, e a prova este pergaminho.Down-Patrick fez uma visagem e soltou um oh gutural, que expressava a poucaadmiraoquelhecausavaoapreoemqueopoderiamter,como certo dos seus muitos merecimentos.Gonalo Rodrigues vos falar depois de amanh em S. Domingos, disse freiGarcia,atraindo oalcaideparajuntodeumadasportas, aopostaquela porondesaraopajem.Edepois,acrescentandoalgumaspalavrasemvoz baixa, saiu pelo outro lado.Aires de S, chamando Henrique Fafes e o irlands, seguiu-o.Quandoasalaficoudeserta,oreposteiro,juntodoqualfreiGarciafalara com o alcaide de Gaia, oscilou e apareceu entre ele e a ombreira da porta um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam.Amulhertemrazo,disse,referindo-sespalavrasdeD.Catarina,o curioso, depois de ter o ouvido escuta por alguns segundos; o tempo que se gasta em certas coisas no se perde, e eu no perdi o meu. Ah! Garifa, minha pobreGarifa!exclamouemseguida,mudandodeexpressoejuntando exclamao um suspiro, de ti que no apanho notcias. CAPTULO IV DOUS NAMORADOS Fernando, chegando a casa, o melhor prdio da rua dos Pelames, ao toque dengelus,viuseutiodevorarcomtodooapetiteumagrandepostade carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do pr em debandada umexrcito maometano,regadotudocomosumoda uva.GonaloDomingues,sedava descansoaosdentes,noodavalngua,poisencetou,aobenedicite,um sermo, que, ao gratias, ainda no estavaconcludo. O velho falou na criao doseutempo,naobedinciadagentejovemmaisidosaemgeral,eem especialqueladequemserecebeopodocorpoeopodoespirito; discorreusobreaspassadastravessurasdosobrinho,efoicairnaltima, terminandopelaameaadeumseverocastigo,emcasodereincidncia. Fernando,aoinversodotio,notocavasequernumamealhadopoalvo, que a criada com um prato de figos passos servira por mimo, e, com os olhos fixos na toalha, no soltava uma palavra de desculpa. O bom velho, notando aqueleextraordinriofastioesisudez,tomoutudoporefeitodasua eloquncia, converso e compuno do rapaz, e por um triz esteve, no final, a adicionar ao sermo um paliativo, tirando o exemplo de casa, pois que o podia fazer;masanecessidadedadisciplina,deconservarsempreperanteo sobrinhoumtododesoberania,umsobrecenho,quejulgavaindispensvel, embora no quadrasse com a afeio que lhe tinha, o detiveram. Fernando era, segundoele, um estouvado, um levianocomoseu pai, doquedera j provas exuberantes,abandonando,depoisdosestudos,oconventodeS.Francisco, entoextramuros,paraondeumoutroparenteochamara,afimdeometer naestradadocuedomundopelaclausura.Oquenistoamofinavamaiso forureiroeraaboadisposioquemostravaojovemparaasletras,a intelignciadesenvolvida,quenosprimeirostemposfizeradizerafrei Gumeado, grande sabedor para aquelas pocas, que bem podia vir a aspirar a grandes dignidades da igreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou chanceler. Todo o rigor, pois, que empregasse era pouco, e despediu-se do jovem com toda a solenidade,paradizercuvilheiraque,comopeloseuvotoelembrana,lhe levasse ao quarto alguma coisa para comer.SeGonaloDominguessouberaqualaatenoquelhedavaosobrinho, decertonofizerasemelhanterecomendao.bemcertoqueosanos trazem,svezes,experienciaealgumsaber;masnomenoscertoque proporoque vopassando se esquece muita coisaigualmente: aos sessenta perde-seamemriadosvinte,senodasaespraticadas,dospensamentos havidos;umjovempodemuitobemavaliaroquenoapreciar,no conseguirdistinguirumhomemaquemoinvernodavidatenhageladoo corao.AprdicaentravatantonaabsorodeFernando,comoentravaa mensagemdoDefensor:aspalavrasdotioecoavam-lheaosouvidoscomo sonsvagos,quesenoreproduziamnomaquinismoreguladorchamado intelignciaeoutrosnomes,segundoafaceporondevisto,porquesons diversosoimpressionavam.AsfalasdeIrene,asinflexes,osmaisleves gestos preocupavam-no: de uns e outros tirava esperanas agora, logo motivos de amofinao; traduzia agora uma frase, das poucas obtidas de Irene, por um modo que o corao trasbordava de alegria, e logo parecia-lhe que o timbre de voz, um nada sonhado lhe dava bem diverso valor; assinalava aquele dia como omaisfelizdavida,erecordando-sedodesfechodocoloquio,emseguida; entristecia-se e amaldioava o tio, que o fizera descer do galho da rvore e dos braosdafelicidade.Opuxodeorelhas,sobretudo,doa-lhe,quandoo recordava,maisdoquelhedoeraemMiragaia,julgando-seaosolhosdasua namoradadesonrado...maisquedesonrado,ridculo.Estecombateentreo desejoeoreceio,durou,trazendoainsnia,ataltashorasdanoite;mas,a final, venceu o desejo, e a alegria espelhou-se-lhe no rosto. Fernando, nas azas daimaginao;voavadopassadoaofuturo,edesteaquele,amontoandoas pedrasdoseucastelodefelicidade.Deitando-seeapagandoaluzsorriaa todos os sonhos criados; sentia como nova vida a inflar-se no peito, e parecia querer afogar-se em ar, tanto era o que respirava de momentos a momentos. JuntocomaimagemdalindafilhadeJooRamalhotodaanaturezaera risonha naquela miragem: as rvores reproduziam-se mais verdes, mais cheias de perfumes e mais belas as flores; as aves nos cantos diziam todas alegria; ocutransparentedeixavaadivinharalmdomantoazulumasegundavida todaamor.Ojovemvira,bemopodemacreditar,bastantesvezesocu,as rvores e as flores, mas nunca se lhe tinham afigurado assim: como esttua dePigmalio,faltava-lheofogonopeito.Alavaredaateara-senaqueledia, posto que incubasse havia muito.FernandoVasquesamavaIrenedesdequeavira,evira-anessaidadeem quese sente um vcuo nocorao; a si mesmoconfessara j esseamor; mas definido, claro, s ento rebentara: o vcuo enchera-se, e a trasbordar, e para oenchertalvezoamaldioadopuxodeorelhas,aprimeiragrande contrariedade,entrassepormuito:talvezdizemos,epodamosdizer certamente.Oamorvivedecontrariedades,delutas,dizumfisiologista;e comoummaliciosoacrescentouqueporissoselenasmulheressecriava, saibam, acreditem as leitoras que todo o homem tem no corao o seu tanto ouquantodemulher,najuventudesobretudo,eporissonoperde.As mulhereslucrammenoscomoquerecebemdohomememgeral:noas compensamos.Comodizamos,porm,deixandoreflexes,acorreode GonaloDomingues, eainda, sequiserem, aspoucas palavrastrocadasentre osdoisnamorados,tinhamateadoalavaredanopeitodojovem,eumdos efeitos dela fora, de fazer acordar homem quase quem se deitara criana.Fernando,nodiaseguinte,noeraomesmorapaz;otionotouaquela diferena e atribuiu-a ao jejum da vspera, com a mesma perspiccia com que atriburaacausadelesuaprdica;eparacontentarorapaz,levou-ode manh,depoisdetratardosseusnegciosedapolticadodia,avisitarfrei Gumeado,queocostumavaregalar,apesardasuadesero,comgulodices, em que no tocou dessa vez, e de tarde, a passeio at aos Carvalhos do monte, queassimsechamavaolocalondeocabeudoparodiadordomarqusde PombalnoPorto,ocorregedorAlmada,edificouumteatro.Oefeitodestas amabilidades fcil de adivinhar. O namorado de Irene, que, voltando com a luzdamadrugadalutadeesperanasereceios,ansiavaporocasiodeir buscar um desengano nos olhos da donzela, preso assim todo o dia, revoltou-se interiormente contra a tutela do tio e desapontou-o com desabrimentos. O velho pasmou, benzeu-se, e da compaixo, do arrependimento da aspereza da vspera caiucomum mauhumor verdadeiro,tomandoaqueleprocedimento por ingratido, protestou que a severidade, que at a lhe ficava nos lbios, ia serpostaemao,ecomoassimserevoltarapelolevecastigodeuma travessura,eletratariaemprimeirolugardasimpedir,nolhedeixandouma hora para folias, nem arredar p da loja de pelames; em segundo, se se furtasse sua vigilncia, de passar alm do puxo de orelhas, dando causa verdadeira a amuos.Nooutrodia,umdomingo,noseesqueceudoseuprotestoovelho forureiro,eodesesperodosobrinhoaumentou,tantoquantoaumentavao receio de perder o amor da linda jovem; que, se at ao dia em que conseguira trocar algumas palavras com Irene, muitos se passaram em que no descera a Miragaia,semquetantoseamofinasse,aquelameiadeclaraoeodesfecho mudaraascircunstncias:daquelasemqueseencontravabempodemfazer ideiaasleitoraseosleitores,aosquaisamemriaaindaconservavivasas pginas da juventude.Depoisdejantar,pormrefeioquesetomavanessaspocas,mesmo entre aristocratas, desde as onze ao meio dia, exatamente hora em que hoje almoamuitagentequandoGonaloDominguesexecutava,dormindoa sesta,umamsicaqueseassemelhavaatempestadeemchaminna combinaodeassobiosenotasdecontrabasso,apareceuLuizGeraldes,o maisrespeitvelindividuodaburguesia,aprocura-loparairemaS. Domingos,ondesedeviatratardomeiodecorresponderconfianaqueo mestredeAvisdepositaranosbonscidadosdaterra,assuntoemqueo conselho do forureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem sonora dasboasdobrasdeel-reiD.Pedro;apareceuLuizGeraldesecomelea ocasioquedesdemadrugadaesperavaeprovocarasombradetodosos pretextos. MestreGonalo,pois,asair,eFernandoaprocurar naarcaoseu melhor gibo e o barrete, a alindar-se, e a bater com a porta da rua na cara da velhacriada,quelherecordavaasordensdadaspelotio,avivadassegundos antes, e a trovoada que sobre ele e sobre ela descarregaria se ou o encontrasse na rua, ou o no achasse em casa, regressando.O namorado jovem deitou a correr; mas, como em certo aplogo, a pressa foicausadevagares.Taleraoestadodaquelacabeaquetomouocaminho seguidopeloseutioeograndeamigodoMestre,eaocabodaruada Bainharia esbarrava com eles se um encontro de um homem de armas o no obrigasse a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se sentava num desses balces oumostradoresquefechavamumadasportasdasestreitaseescuras lojas,conservandonasruasmaisestreitasenomenosescurasosfregueses, no ouvisse dizer para um vizinho que deitava a cabea por uma adufa:LvaiemcatademestreGonalo,quedobrouagoramesmoparao terreiro, o sobrinho... O filho de Vasco, que Deus haja.Fernando,quisretroceder;porm,comoobomdoespadeirolhegritasse quepertoiaGonaloDomingues,seoprocurava,noteveremedioseno responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar pelo arco de Sant'Ana, tomar caminho pelo lado da judearia e descer aos Banhos, onde lhe tolheu o passo o personagem que no captulo antecedente vimos no castelo de Gaia, surdir por entre o reposteiro.Vindes de S. Domingos? interrogou ele, pondo-se diante do jovem.Oh! s tu Joo Bispo! exclamou Fernando, depois de examinar o rosto do individuo, assombrado por um farto capuz. h muitos dias que te no vejo. verdade, redarguiu o recm-chegado, dando pelo nome, que ouvimos jdabocadopaidosvelhacos.verdade,repetiu;epalavrajuntouum profundo suspiro.Que tens, tu? Ests to triste como quando nos tinham no convento.De onde nunca devera ter sado! disse Joo, soltando outro suspiro.Bem mudado ests, meu folio, ou isso momice nova?Antes fora, Fernando! antes fora! mas finaram-se as alegrias.Mas, ao que parece, a vida no te vai pior. Gibo novo de barregana... boa adaga! disse o jovem, medindo-o de alto a baixo.Vesti isto; mas em almfega respirava melhor: o saio e as calas riam-se por todas as costuras, mas eu tambm ria, e agora bem vedes....Vejoqueestssisudocomoeremito,oumestreemleis,verdade... Mas onde assim te puseram? de onde vens?Do castelo.Do castelo? Tomaste l moradia e servio?Ou coisa parecida... que no se pode assim dizer de praa...Segredo!OravejamJooBispofeitoescrivodapuridadedoalcaide! exclamou o jovem, sorrindo e dando alguns passos para seguir seu caminho.Joosegurou-oporumdos braos,eencolhendoos ombrosrespondeu zombaria:Mofai,queavezatodoschega.Algumdiahaveisdequererbema algum....E por isso te amofinas, quando no tens quem te empea da ver a todo omomento!redarguiuFernando,quesenorecordounaqueleinstantede outro contratempo em amores, seno do que com ele se dava.V-la!... v-la! exclamou, tornando a suspirar o vadio. Oh! minha pobre Garifa!Garifa,repetiuFernando;Garifa...Oraespera...Garifanoeraaquela rapariga moura que vinha ao terreiro vender fruta?Joo Bispo fez com a cabea um aceno afirmativo.Umaraparigasemprealegre,quenaprocissodeCorpustangia pandeiroedanavacomtantadesenvoltura,trazendoovestidocheiode cascavis?Sim.Que to bem cantava umas cantigas castelhanas?Sim.Pois bonita era... pena que fosse moura! E tu, Joo...Euquero-lhe,quero-lhecomoseemnoitedeS.Joomefizessem feitio...E feitio foi decerto; porque uma moura...No sei se grande pecado o querer-lhe bem; mas c para mim tenho que no. Ela moura, ; mas... por isso que to magoado te vejo? Queria-la crist, e casavas.No , no; porque ma roubaram!Roubaram-ta?Roubaram. h uma semana, no sbado, estava eu na encosta do Olival, ao p do regato, espera dela, e eis que vejo o pai, o velho Humeia, vir direito amim.Opobrehomemchoravacomoumacriana;lgrimaseramcomo punhospelacaraabaixoeossoluospareciamafog-lo;cortavaocorao! disse Joo Bispo, limpando com a manga do gibo os olhos,sensibilizado ou pela recordao da cena, que narrava, ou pela desapario de Garifa. O velho prosseguiu, quando pde comear a falar, a pedir-me a filha, dizendo que lha entregasse;quebemtinhavistoandar-lhenoseguimento,enavsperaa encontraraaindaalimesmoafalarcomigo.Olha,Fernando,fiqueicomo quando me vieram dizer que o meu Pai Deus o tenha era finado, e jurei aquelepobrehomemquenoforaeuquelhetiraraafilha...ecomigopela hstiaconsagradajureitambmdescobrir-lhearapariga.Ovelhoacreditou-me, e disse-me coisas, que no poderei repetir; que no sei bem o que foram; mas que pelo modo das dizer me deram um n na garganta: parecia que tinha engolidoumamainteira.ProcureiGarifa.doishomensforamvistosa passar orio nessa noite com uma mulher, me disseum petintal, ecorritudo emGaia;alistei-menotroodePeroBeduido,paraterocasiode esquadrinhartodososcantosdocastelo;masv-la...v-la...aindaanovi! Desconfio,porm,quelesteja,eselestiver,aidorausador!Olhai,eles deram-meesta adaga, eeu trago-a bem afiada, os ouvidosatentose os olhos abertos!Joo Bispo, ao soltar estas ltimas palavras, baixou a voz e um vu sinistro lheassombrouacara;poralgunsinstantespermaneceucalado,eprosseguiu depois,vendoqueosobrinhodeGonaloDominguespareciaaterradocom semelhante confidncia:A alegria nopode durarsempre. Desdeque,mortomeu pai, quepor foramequeriavertonsurado,fizumarevernciaaoguardio,deium cascudonoporteiroemefizvelhaco,vistoquenoconventonoaprendi ofcio e de sujeio estava farto, bem vestido, mal vestido, mais trapo, menos trapo, barriga mais cheia ou menos, tinha quase todo o santo dia os dentes amostra; agora veio um revs...No s s tu, Joo, que os tens; eu...Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que eu dou uma ensinadela, e... negcio em que nada podes. No sabes, Joo, disse o jovem, pondo a monoombrodoseuantigocompanheiro,echegando-lheabocapertodo ouvido, como em segredo; no sabes... eu tambm quero a uma rapariga como s meninas dos meus olhos. Oh! mais bonita que a tua!, disse Joo Bispo, com um meio sorriso.Muito mais; porm, meu tio, tenho eu para mim...No quer?Parece-me que no. pobre?Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo os ombros. Mestre Gonalo Domingues rico, e...OnamoradodeIrene,ouvindoonomedotio,lanouemtornodesios olhos, como se receasse que ali aparecesse; lembrou-se que passava o tempo e ele podia, de volta a casa, no o encontrar, se fosse grande a demora; recordou acausadoseupasseio,efazendoumgestodedespedida,deualgunspassos em direo porta da cidade.Sefornecessriooantigocompanheirodasfolias,noopoupeis.Os meus trapos nunca vos fizeram voltar o rosto, quando nos encontramos, e hei de mostrar que no tendes feito mal, Fernando, disse o ex-novio, estendendo aojovem um pulso que noera fraco. Ah! exclamou em seguida; novindes do lado de S. Domingos?No.Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaia?No.Equetensavercomosenhoralcaide,meuvelhaco?disseumavoz, que logo Joo Bispo reconheceu por ser de Telo Rabaldo.Ah!soisvs!murmurouointerpelado,visivelmentecontrariadopor aquela apario, enquanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo.Vosso servo, disse o pai dos velhacos, tirando com ar zombeteiro o seu barreteesegurandopelocapuzaJooBispo.Ofidalgodecertoquescom fidalgostemtrato eporelesprocura; pormcomoestembeetria,parano haverdesaguisado,pondo-ofora,dou-lhecompanhiamaisch;masquelhe far bom agasalho. Vamos! exclamou mudando de tom; para as tercenas j!Senhor Telo, porm...Vais secar a goela sem proveito.Senhor Telo, quisera falar a Rui Pereira.Agora com Rui Pereira! Grandes so os negcios! Bravo! continuou o paidosvelhacos,medindoJooBispodecimaabaixo,comominutosantes fizera o sobrinho de Gonalo Domingues, e como ele admirando a mudana quenaroupahavia;bravo!Parecequevamostercontasgravesaajustar! Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou algibebe para vires assim garrido?Sou besteiro do rei.Besteiro do rei desde quando, velhaco? desde que fugiste com a filha do velho Humeia?Estexcomungado!credo!gritouumavelhadopequenojuntamento quesefizeravoltadosdoisinterlocutores.Tercontratoscomaquela condenada moura, aquela...!A mulher disse nome que lhe valeu de Joo Bispo ummurro, que levava a foraproporcionalraivaquelhecausaraaabelhudacomadre,insultando Garifa.Olhem o maldito! gritaram duas companheiras da agredida. Onde est a justia?Quefazosenhorbispoqueonomandaaoutarbemaoutado?E atreve-se em rosto do senhor Telo...Calem a boca, serpentes! berrou o pai dos velhacos, fazendo um gesto e abanando o seu basto.Serpentes? grunhiu a velha, segurando com a mo os dentes que o soco pusera em vsperas de despedida.Serpentes? pipilou uma das novas, esganiando-se.Serpentes? resmungou a outra, ferrando os pulsos nas ancas.Serpentes!gritaram,grunhiramepipitaramentregargalhadaseem todos os tons os garotos que j embaraavam o trnsito.TeloRabaldoviuasuadignidadecomprometida,oquenopoucasvezes acontecia, etratou da salvar pelosmeiosusados ainda hojeem embaraos pelafora;ecomomonotivessesenoasua,foidessaqueseserviu. Segurandosempreonamoradodamourapelaextremidadedocapirote,fez rodziocomoseubasto;tomando-opelapartesuperior,eumaescala salteadadeaiseuissaiudentrearodadecuriososecuriosas,que aumentava.Osenhoralcaide!avemAiresGonalves!gritaramduasvozesquase ao mesmo tempo.Tolhidosejastu,maldito!resmungouJooBispo,lanadoemapuros com semelhante apario.SenhorPero!senhorPeroBeduido!berrouopaidosvelhacos,parao capito de besteiros, que, seguindo o alcaide de Gaia, se dispunha a embarcar para o castelo, e desaparecia por um dos postigos.Jnadafao,disseconsigooex-noviodeitandooolhoaverseo capitoacudiaaochamamento.Apelecorre-meagoragranderisco,se desconfiam de mim. Com a boca no pixel no os apanho j!Ol, senhor Pero! sua merc no me diz se este velhaco tomou servio? prosseguiuTelo,querendoarrastarconsigoJooBispo,maistalvezpara sombradocapitodosbesteirossefazeracatar,doquepelacuriosidadede saber se o namorado de Garifa lhe mentira, ao que estava bastante afeito, para regular a sua justia pelo humor em que o apanhavam e no por depoimentos econfisses.Emmatriadeconfissesdavafsfeitasempotro,oude borzeguins, quando estava de boa feio, e felizmente no era isto raro.Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra ao seu prisioneiro; ainda h pouco no tinhas que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa se pilha um mentiroso do que um coxo.Pero Beduido, ouvindo a voz do pai dos velhacos, parara junto do postigo, que dava sobre a margem do rio, e retorcendo o bigode piscava os olhos para concentrar os raios visuais afim de melhor reconhecer quem o chamava. Aires de Figueiredo parara igualmente.Quem no deve no teme. Joo Bispo sentia os seus arrepios pelos lombos, porqueumpensamento,queoleitorexperto,equedecertoserecordado dilogo apanhado atrs do reposteiro, adivinhar, o punha, na conscincia, em hostilidade com o nobre alcaide, e se na presena dele Telo Rabaldo de novo sereferisse entrevistaquepretendiatercomotiodeNunoAlvares, a vida corria-lhe grave risco. Joo no tinha, porm, cursado em vo os estudos em S. Francisco e a escola prtica de velhacarias dos terreiros, praas e betesgas da cidadedaVirgem,paranoacharumexpedientebomoumaucomquese sassedeapuros,momentaneamentequefosse.Telosegurava-o,tendo-o quaseesganadopelaextremidadedocapirote,eocabeodestefechavano peito e garganta por meio de quatro grossos botes. Desabotoado estava livre.Senhor Telo, senhor D.Telo?! murmurou orapaz, levandoasmosj aos botes, e esgotando no submisso, no plangente da voz, e naquele dom, o ltimo recurso oratrio.Ah! co, velhaco! Eu te...O pai dos velhacos no concluiu a frase: um cascudoque preparava como pagadanobilitaodadaaoseunome,deu-onoar,ecomocostadono mesmomomentoapalpouocho,depoisdeabalroarcomascanelasde alguns curiosos.Umcoroformadodeumunssonodegargalhadasedegritosensurdeceu osvizinhosqueenchiamasjanelaseatulhavamasportas.Asgargalhadas provocara-asodesastredeTelo;osgritossoltaram-nososqueabriam caminho a Joo Bispo. O amante de Garifa deixando o capirote na mo do pai dosvelhacos,queperderaoequilbrio,meteramosadagaecorriana direo da Ferraria.Ao passar em frente do postigo um acontiado dabeetria tomou um virote para lhe embargar o passo.AiresGonalves,aomesmotempoquePeroBeduido,reconhecendono fugitivo um dos seus homens, lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem alta para chegar aos ouvidos de Joo:Co, vilo, se tocas num dos meus homens!...Eamodofidalgopousoucomocomplementodefrasenopunhodo estoque.O acontiado fez uma careta de despeito, baixou o virote, e quando o fidalgo voltou costas, deu com ele com uma fora tal de encontro parede, que o fez voar em hastilhas, resmungando:Ceseviles...ceseviles!Anossavezhdechegar,traidores, loucos! CAPTULO V IRENE E a linda Irene, a filha de Joo Ramalho?Irene,dasprimeirasfalastrocadascomFernando,colheuumresultado quaseigualaoqueesteobtivera.Aimpressoprimeirafoiadaalegria. DeslembradadaapariodemestreGonalo,quandofoiaoencontroda cuvilheira,queachamara,afisionomiailuminara-se,reproduzindotodaa felicidadequeliapordentronaquelecorao.perguntaquelhefizeram, mas no ouviu, respondeu com um abrao na velha, que, mal afeita, pela sua rabuje,ataiscarinhos,abriugrandesolhos,eoespantodestasubiuainda, levando-aabenzer-se,quandoviuque,semlheprestarateno,ajovem comeouaentoarumacopladeamores,dessescavalheirescosamoresda poca.Aquelaalmadevirgemsaudavaoenfloramentodanobrepaixoque noseiolhegerminara,eavelha,comoGonaloDominguesarespeitode Fernando, nem se quer pensou que nessa exaltao entrasse por alguma coisa ojovem,dequemjhavianotadoospasseiosemfrentedacasaoquea levaraafazer-lhecarrancasdesobrecenhocapazesdeafugentarqualquer outro que no fosse um namorado.A menina Irene namorar! a menina que depois da morte da nossa ama tenhocriadocomtodososcuidados?!pensavaelacomosseusbotes, quandolhevinhamdesconfianas,ouasvizinhas,pelasesta,nocavaco quotidianoquetinhadepoisdearranjadospratis,agomias,sart,pcarose mais aprestes de cozinha, notavam o volver de olhos de um ou outro alindado da terra.AtiaGenovevatinhadesiparasiqueocoraodeIreneseabririas quando ela, ou o senhor Joo Ramalho muito bem quisessem.As tias Genovevas ainda hoje no so raras.Alindajovem,quandoadeixouacuvilheira,insensivelmentecomeoua refletirnaspalavrasdeFernando,epoucoapouconorostoenocorao comeou a tristeza a vencer. A pobre no sabia que o amor se no traduz bem empalavras,eesmorecera pensandoquepodianoser amada,aopassoque bemsentiadefinir-se-lhenoseioapaixo;equando,noitecabida,avelha trouxe para o quarto de trabalho um velador do qual pendia um grado candil, norespondeusboasnoitesdadas,possudadesentimentobemdiverso do que horas antes a distrara. Ainda mais: a tia Genoveva, ao espiar a roca e terminar a ltima ave-maria da coroa que todas as noites rezava Senhora da Silva, para a ter pela sua intercessora; a tia Genoveva notou uma a balouar-se nas cileias da linda jovem, como aljofre matutino nos estames de uma flor.Porquechora,menina?perguntouavelhacriadatomando-lheorosto entreasmos,paramelhorsecertificardequenoerailusosuaaquele choro.Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os olhos.Sim, a menina. Ento no veem o espanto que faz? que eu no choro... Porque havia de chorar?Porque? Ora sei eu o porque?Nem eu...Credo! Anjo bento da minha guarda! Feitio por certo lhe fizeram! De tarde a rir e a cantar como uma louquinha, e a fazer-me momices carendeiras; agoraachoramingarsemquenemparaque!quebranto,menina... feitiaria; e bem far em pr esta noite debaixo da almadraquexa um ramo de arruda.A velha atinava: que maior feitiaria que a do amor no pode haver. S ele tem o privilgio de dar a uma palavra eco que, por vezes, dura at com ele se casar j bem fraco o das ltimas preces: de perpetuar uma imagem perante os olhos at que os cerre o frio osculo da morte.Pranto e risos, sucedendo-se rapidamente sem explicao para quem os v, sem explicaomesmopara quem os sente humedecerasfaces, ou descerrar oslbios,soemgeraloresultadovulgardotoquedavaradogrande feiticeiro:enquantoofeitioconservatodaafora,ochorocomoos chuveiros de Maio, que veem como para fazer ressaltar o sol que lhes sucede, ou como os orvalhos de Junho, que refrigeram as flores; quando o feiticeiro se ausenta, o riso como o luar em noites de Fevereiro, quando tudo silncio: contrista como ele, trazmelancolia. lgrimas da linda filha deJooRamalho eram chuveiros de Maio. Correndo vontade sobre o travesseiro, em que no puseraaarruda,nolheimprimiamnasfacesaaridez;regavam,permita-se maisestaimagementretantas,oamorque,comonosobrinhodeGonalo Domingues, repetimos, se definira naquela tarde.Oamornajuventude,nosexoquechamamosfrgil,porquens, quenos dobramos a todo o momento aos seus ps, lhe esmigalhamos o corao num crculo de ferro chamado positivismo, realidade e convenincia, quase sempre nasceentresaslgrimasdasquechoravaIrenequandorepetiabaixinho, consigo, o nome de Fernando; as lgrimas que rebentam espaadas, demoram-se nas plpebras, e descem lentas pelo rosto.Nooutrodiamuitasvezescorreuajovemnamoradajaneladapraia, muitasquedavaparaoladodomonte,eimpacientou-seeentristeceu-se quandoviu cair a tardesem aparecer osobrinhodoforureiro; nodomingo, durante a missa do dia, na velha igreja de S. Pedro, fez cochichar umas poucas de comadres, que lhe ficavam na retaguarda, tantas foram as vezes que voltou, durante o ofcio, a cabea para o lado da porta, e ainda mais se impacientou e entristeceuquando,feitasperantetodasasimagensasestaesqueeramda devoodasenhoraGenoveva,regressouacasasemverumasombra rastejando ao lado dela (que olhar face a face, de perto, para Fernando, nunca agentilmeninaolhara)semouvircertaspassadas,quedistinguiadetodasas outras e lhe causavam uma impresso nervosa agradvel.Nestedescontentamento,sentadanavaranda,quetentamosjdescrever, prestavaatenoatodososrudos,quandoavelhacriadacomquemJoo Ramalhohaviaconferenciadodepoisdejantar,arrastandoumtamboretede paueumascontascomqueseentretinhatodasasvezesquenotrabalhava ou dava lngua, lhe veio fazercompanhia. Genoveva engorolou um pater e tossiu; engorolou outropater etossiu outra vez; terceiro pater a meio emais prolongada foi a tosse, e, ao findar, a esta juntou um arrastar de tamborete e umsuspiro.Eraevidentequerebentavaporfalar;pormasuajovemama estavabastantedistradaparanotartodosaquelespreparativosoratrios.A velhaaindaseresignouafazerpassarmaisalgumascontas,amudaro tamborete da direita para a esquerda e a passar na tosse do piano ao forte, do moderato ao vivace e at fria; mas vendo que era trabalho perdido, pousou o rosrio, puxou a touca, cruzou os braos sobre a barriga e exclamou:A menina que tem?Nada,respondeuIrene,olhandopelaaberturadazelosiaparaocu, que mostrava um azul soberbo.Nada!Entoeuestoucega;hdiasquenoseioquetem...anda triste!...Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos, que se denunciam como contrafeitos.Aindaestamanhmedissequeandavacomacabeanoar,e achou que ria como louca... no sei quando...Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos secos, menina. Por mais que faa no me faz acreditar que no est magoada. Eu desconfio que...Deque?interrogouIrene,fazendo-severmelha,julgandoserdo sentimento dominante no seu corao que lhe iam falar.Nada, nada. O senhor seu pai no lhe falou... no lhe deu a entender...Meu pai, disse a jovem sobressaltada, no me disse coisa alguma... que... pensei...O que, Genoveva? Que tinha meu pai a dizer-me?Nada, nada; respondeu a velha, recomeando de novo o rosrio.No,algumacoisaera!Diga,diga,Genoveva;meupaiestdemal comigo?De mal! ele que no v outra coisa, que a traz nas palminhas das mos, apesar daquele modo assim de poucas palavras?! Se se amofina ...Acabe! suplicou a jovem.Tristejestamenina;paraqueaentristecermais?disseacriada mastigando.No mequerentristecermais?Poisqueh?exclamouafilha de Joo Ramalho, erguendo-se com a ansiedade pintada no rosto....nada,nada,redarguiuavelha.Ebaixoacrescentou,tornandoa carregar a roca: Cala-te, boca. Ora, no ia eu j dizer tudo?Oapartedacuvilheira,porumamaniaquetinhadesempredarlngua paraqueaouvissem,pareceu-secomtodososapartesdoteatro,emais ansiosa ficou Irene.Jesus, Genoveva! Sucedeu alguma coisa?Nada: que...Acabe por uma vez.Como tem deser... porm, olhe, triste j a menina est, equanto mais tarde...Est a fazer-me mal, minha boa Genoveva! exclamou Irene, juntando e erguendo as mos em ao de splica.Oravejam!malqueeulhenoqueriafazer;masvistoqueteima... sempre lhe digo: o seu pai embarca por estes dias.Embarca... disse ajovemtornandoasentar-se.Julgueiquefosse outra coisa. No estou j afeita a ver partir meu pai, todos os anos, uma, duas e trs vezes para essas terras de cristo? Se pudesse fazer com que no andasse sobre guas do mar, exposto; porm...Aomar,atalhouGenoveva,josenhorJooRamalhoestafeito. Parecequetemtodosossantosesantasporele...emerece-o,quenoh tempestade que mal lhe faa; e mais dizem que so bem ms as da Inglaterra e Flandres! Mas no agora s o mar...Ento que mais , Genoveva?... que... que volta a Lisboa... e...Jesus! agora... que anda a guerra por l!...Deus h de querer que nenhum mal lhe venha, e eu hei de recomenda-lomuitoSenhora daSilvaeSenhora doAmparo,asduassantasdemais valimentoquehnocu...demaioresmilagrespelomenos...aoSenhorS. Pedro, advogado da gente do mar, e s almas milagrosas! redarguiu a senhora Genoveva, fazendo uma espcie de mesura a cada nome dos beatos patronos que proferia.Bem me dizia o corao que destas naus e gals chegadas me viria mal, disse Irene recordando-se naquele instante das palavras de Fernando.Mal... mal? Tenha f em Deus, que grande pecado descorooar assim. OsenhorJooRamalho,seupai,seandacuidadosoporsi,meninaIrene: comoestjumajovem...eucmeentendo...querdeix-labemamparada, emlugarseguro;quenestestemposrevoltos,enosqueonoso,todoo cuidadopouco.Comonovailoboaredilnemraposaagalinheiroseno quando acha a porta mal cerrada e no h mastins para aular, queria deixa-la emabrigoseguro,elembrou-sedeumconvento.Jdeirecadoparauma prima,quetenho,sergenteemEntre-Rios,avercomopodereiirfazer companhia menina...Ento, Genoveva, vamos para to longe! exclamou a linda jovem com voz magoada.Ainda no decerto. precisa licena do senhor D. Joo Afonso, e no sei que outras requestas... e como no para j o caso... por estes dias...Genoveva!Genoveva!gritoudoandartrreoosenhorJooRamalho, fazendoestacarafaladoracuvilheira,queencetandoumPadre-nossonum tom de voz que, sem ofensa da boa da beata, se podia comparar ao rosnar de um co, desceu as escadas.Virgemsanta, valei-me!murmurou ajovemfechandoumanaoutraas mos,brancasedelicadas,edeixandosobreoseiopenderorosto,queno desfeavam os assomos de tristeza.Irene assim permaneceu longo tempo, e quando ergueu os olhos orlava-lhe asplpebrasumacormaisrosadaquedecostume,elgrimasborbulhavam mais intensas do que as trazidas pela desconfiana de que Fernando Vasques no correspondesse ao afeto por ela consagrado. Eram mais intensas, porque juntocomasarrancadaspeloamorfilialpoisbem-queriaajovemaoseu pai, com um extremo inexplicvel, atenta a rudeza aparente do piloto, se que umaforaocultaanofaziacorresponderaosentimentoporelevotadoao nico enteque na terra lhe restava, imagem deuma esposa adorada com o fogo que empregam essas almas reconcentradas, os homens que jogam a vida sobre o mais terrvel dos elementos, e passam dias e noites seguidas a soletrar no livro da natureza a pgina do infinito, em circulo fechado por cu e mar; junto com as saudades e receios pelo seu pai, se ligavam penas avultadas pela sua imaginao, supondo-se j separada, longe de Fernando, clausurada para a vidatalvez;quenoamortudocoadoporumprismaqueengrandecee multiplica os objetos.slgrimasdotravessojovemsucederaaresoluo:Fernandofizera-se homem; s lgrimas de Irene sucedia o aniquilamento: pode-se dizer tambm quese fizera mulher a pobremenina porque: a coroa do seu sexo formada por essas perolas nascidas no corao, perolas que resgatam a prpria culpa e aalheia.ParaoresgatedahumanidadeDeus,tornadohomem,deuoseu sangue;paracompletaressaregenerao,paraabrirsmulheresasportasda vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu uma virgem.Irene chorava pela segunda vez, depois que seapoderara do seu corao a imagemdeFernando,quandolheveioferirosouvidosumsomdistantee confuso;confusoporqueeragrandeoarrudoquepetintais,espadeleirose galeotesfaziamnapraia,santificandoodiadodescansocomlibaes frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas. Era o som de um toque de caa, assobiado por um valente folego. A jovem estremeceu, quando se lhe afiguroureconhece-lo;estremeceueaalegriarepeliunaquelacaraasnuvens detristezacomtantaoumaisrapidezdequenoslevaadarumaideiadessa mudana.Ergueu-seecorreuaoextremodavaranda,encostouadufao ouvidoatentoalindanamorada;mascalara-seamarcha,eosberrosda multidoiamnumrinforzandoprodigioso.Algunsminutosdeansiedade assimpassou,comoseioaarfar,oslbiosmeio-abertos,deixandoveruma enfiadadedentesalvoscomoofrutodascamarinhas,comosolhos brilhantes, fixos, at que com novo sibilo rompeu um grito da jovem, um grito de alegria, e deixando a varanda subiu a assomar a cabea por aquela histria da janela das flores, onde com ela travamos conhecimento.A cabea apareceu e desapareceu logo.Irenesoltou outrogrito, porque os seusolhosencontraram os doseupai, irados, em vez de outros que decerto procurava carinhosos.Juntocomosibilo,comosgritos,comobaterdasadufasdavarandae portadasdajanelajunto,sepodedizer,talfoiarapidezdasucesso ouviu-se um grande fragor.A rvore do cercado oscilara e o muro da quelha fora a terra.AfilhadeJooRamalhodeixou-secairnoestradoemquecostumava costurar;opilotosoltouumapraga,eacabeadatiaGenoveva,queda cozinhapresenciarapartedestacena,apareceudebocaabertanoquartoda donzela, persignando-se e abanando a cabea como um manequim,pintando emtodaestagesticulaooseupasmo,eterminandoporentredentescom esta frase, que havia de ser, como j fora, repetida milhares de vezes:Ora fiem-se l nas inocncias deste tempo! O mundo vai perdido! CAPTULO VI CAUSA PBLICA E COISAS PARTICULARES Em quanto Irene soluava, Telo Rabaldo vociferava, sacudindo a poeira do gibo, eJooBispo evitava narede debecoseescadasdobairroa sanha do besteiroedealgunsmesteirais,queosupunhamrudecrimegrave,ou queriam nele desacatar o alc