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Ovídio A. Baptista da Silva de Posse 2r edição revista e aumentada. com inclusão de novos acórdãos EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS

Ovídio A. Baptista da Silva de Posse - Direito Processual Civil · dirigida não lhe oferecesse oposição ("não achando quem lha contradiga"). 96 AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE AÇÃO

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Ovídio A.Baptista

da Silva

de Posse

2r ediçãorevista e aumentada.com inclusão de novos acórdãos

EDITORAREVISTA DOS TRIBUNAIS

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AÇÃO DE IMISSÃO DE POSS]

SUMÁRIO: 8.1 Antecedentes históricos no direito brasileiro; 8.iQuestões controvertidas na jurisprudência sob o CPC de 1938.2.1 Legitimação passiva; 8.2.2 Legitimados ativos para a açSdo art. 381, I, do CPC de 1939; 8.2.3 Transformação enreivindícatória ou em ação de esbulho, quando proposta contfljpossuidor pró uso; 8.3 Existência da açào de ímissão de possflno sistema brasileiro depois de 1973; 8.4 Origens romanas díação de imíssão de posse; 8.4.) Pretensão à imissão na possícomo proteção interditai; 8.4.2 Natureza dos interdicta adipiscendatpossessionis; 8.4.3 A posse no direito romano; 8.4.4 Juízosumários e tutela possessória no direito moderno; 8.5 Conceitoe estrutura da ação de imissão de posse; 8.5.1 Ações sumárias,proteção interditai e coisa julgada material; 8.5.2 Constitutopossessório e açào de imissão de posse; 8.5.3 "Nulidade" do título5

como matéria de contestação; 8.5.4 Natureza real da ação deimissão de posse; 8.6 Imíssão de posse como ação do compradorcontra o vendedor; 8.7 Ação de imissão de posse conferida aosadministradores e mandatários; 8.8 Imissão de posse e promessade compra e venda; 8.9 Imissão de posse e direito hereditário;8.10 Adjudicatários e arrematantes na ação de imíssão de posse;8.11 Demandas de restituição de posse; 8.12 Imíssão de possee direitos reais limitados.

8.1 Antecedentes históricos no direito brasileiro

A ação de imissão de posse tem uma história curiosa no direitobrasileiro. As controvérsias sobre sua existência, ou utilidade, emnosso sistema, que datam do século passado, perduram acesas, aempolgarem os que se dedicam a seu estudo, refletindo-se aspolémicas, ainda hoje, na jurisprudência de nossos tribunais que

cnnanece vacilante nas mesmas questões fundamentais em que seControvertia desde o início do século.

É uma história verdadeiramente singular, em que as maisAcirradas divergências se dão, precisamente, a respeito da questãoligada à existência dessa ação, intermitentemente negada por juris-tas antigos e recentes. E o mais notável é que sua história no direitoBrasileiro registra uma controvérsia constante, quer a ação apareça

'Cm texto expressão de lei, como ocorreu na vigência de algunsCódigos Estaduais de Processo, pré-unitários, que a contemplavam,ou durante a vigência do Estatuto Federal de 1939, quer nosperíodos legislativos em que se pretenda bani-la do sistema, comose supõe que o legislador de 73 haja pretendido.

Qualquer que seja a solução legislativa encontrada, quer olegislador lhe reconheça a existência, ou, ao contrário, tente expulsá-la do sistema, a ação de imissão de posse, evidenciando umainquebrantável vitalidade, continua presente nas controvérsias dou-trinárias, insinuando-se quotidianamente no foro, a desmentir os queteimam em desconhecer-lhe utilidade prática.

O que torna a questão ainda mais intrigante é a circunstânciade inexistir, em sistemas jurídicos que descendem, como o brasi-leiro, de um mesmo tronco comum, uma demanda equivalente àimissão de posse, embora sua ascendência romana seja incontrover-sa, em doutrina.

Como se sabe, as Ordenações Filipinas, sob cujo impériovivemos por mais de trezentos anos, não faziam menção expressaa uma ação similar à que agora nos ocupa, limitando-se a conter asdisposições inseridas no Liv. 1.°, Tít. 78, § 8.", onde se dispunhasobre a competência dos tabeliães para elaborarem "instrumentos deposse" relativos às que foram "dadas ou tomadas por poder evirtude" de escrituras de venda, escambo, aforamento ouemprazamento, ou de quaisquer outros contratos; e a disciplina aessa competência vinculada, constante do Liv. 4.°, Tít. 58, §§ 3.°e 4.°, da mesma Ordenação, segundo a qual a tomada de possepoderia dar-se, extrajudicial mente, se a parte contra quem ela fossedirigida não lhe oferecesse oposição ("não achando quem lhacontradiga").

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Eis o que ocorria também nos contratos enfítêuticos, a respeito!desse problema, segundo a preciosa exposição do M. J. Brito de]Almeida Costa (Origem da enfiteuse no direito português, Coimbra,1957, p. 189): "Não poderá o senhorio, contudo, ainda que exista)convenção das partes nesse sentido ou a coberto do direito comum,!entrar, por sua autoridade, na posse do prédio, salvo se este estiver!vago e sem defensor do esbulho; de contrário, será indispensável]a intervenção judicial".

Era o fenómeno geral da luta contra a auto-realização dojdireito "reflexo do progressivo esforço político de centralização",jcomo observa o jurista.

O aludido texto do Liv. 4.", Tít. 58, § 3.°, das Ordenações;Filipinas, oferecia invejável precisão técnica na configuração de;duas situações decisivas referentes à transmissão da posse, que essa •disposição distinguia entre o ato de "tomar a posse" e o outro,distinto, de poder, quem por tais meios houve a posse, "imitir-seinela", ou seja, obter o poder fáctico efetivo sobre a coisa ("tomar!e haver a posse delia"). A distinção entre essas duas entidades,diretamente ligadas à teoria sobre aquisição e perda da posse, temenorme relevância para a conceituação da ação de imissão de posse,e não seria exagero dizer-se que nessa questão se escondem osproblemas mais difíceis e pouco explorados sobre essa matéria.

Manuel de Almeida e Souza (Tratado dos interditos, § 68)observava que, para legitimar-se a imissão extrajudicial na posse,era mister que o instrumento em que se deveria basear o tabelião,para conferi-la, contivesse a demissão da posse por parte doalienante, e que, além disso, este a desamparasse. O mestre deLobão, em verdade, se rebelava contra o que ele julgava ser umaexigência misteriosa do aludido § 3.° dessa Ordenação. De qualquermodo, parece relevante a distinção entre os casos em que o contratofaça referência expressa a essa demissão da posse e aqueles outrosem que o alienante a conserve, mesmo em casos especiais deconvenção negociai de transmissão da posse pela cláusula constituti,sempre que, como mais adiante veremos, o alienante conserveposse, e não fique reduzido à posição de simples servidor da posse.

Coelho da Rocha (Instituições, cit, § 451) entendia caber aação "para pedir a posse" aos herdeiros, sejam testamentários ou

legítimos, para "obterem a posse natural, ou efetiva detenção" dosbens hereditários, pois, segundo afirmava, embora, a partir doAlvará de 09.11.1754, a posse dos bens da herança se transmitisseautomaticamente aos herdeiros, em virtude da morte do autor daherança, necessitavam os herdeiros de ação para "obterem a possenatural, ou efetiva detenção", já que a saisina lhes daria apenas a"posse civil". Como se vê, a distinção entre possessio civilis enaturais possessio, de contornos indefinidos, e a penosa distinçãoentre posse natural e detenção, que a doutrina medieval legou aosjuristas dos séculos posteriores, parecem interferir na solução denosso problema.

Coelho da Rocha ensinava que a ação teria lugar "contraquaisquer detentores", exceto: a) contra o cabeça-de-casal, enquan-to não concluírem as partilhas; b) contra o testamenteiro, se otestador lhe encarregou da administração da herança; c) contra o quefundamenta a sua detenção em título legítimo singular, v.g,, compraou doação (Instituições, cit., § 451). Está claro que o terceiro (subc) não se poderia equiparar a um simples detentor, senão quecorrespondia a um verdadeiro possuidor animo domini.

Corrêa Telles (Doutrina, cit., §§ 179 et seq.} tratava da "açãopara adquirir a posse", ou interdito adipiscendae, escrevendo quetal ação competia ao herdeiro legítimo, ou escrito, contra aquele quepossuísse a herança do defunto como herdeiro possuidor. Mas logoadvertia que, em virtude do Alvará de 09.11.1754, poderia oherdeiro usar da ação de esbulho, "fundado na posse civil, por issoque esta tem os efeitos da natural". Contudo, prosseguia o jurista,o interdito adipiscendae teria a vantagem, sobre a ação de esbulho,de "durar trinta anos". Essa, aliás, era a opinião dominante, comose vê em Coelho da Rocha, que refere a lição de Manuel de Almeidae Souza (Tratado dos interditos, cit., § 451, p. 356). Contudo, comoo afirma o próprio Coelho da Rocha (§ 453), se o possuidor vema perder o prazo de ano e dia para o interdito de reintegração,mesmo assim poderia usar da ação de força velha, que mantém anatureza de demanda possessória. E que, como se sabe, também"dura trinta anos". É difícil, portanto, vislumbrar-se vantagem naimissão de posse sobre a reintegração - se o exercício alternativode ambas fosse permitido - pelo ângulo do prazo prescricional, pois

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que as possessórias ordinárias têm prazo prescricional tambélordinário.

Em linhas gerais, todavia, essa era a situação da doutrinjquando começaram a surgir os primeiros Códigos EstaduaisProcesso, já no início deste século. E, enquanto alguns deliconservaram silêncio a respeito da ação de imissão de posse, outro(como os Códigos do Estado do Maranhão (art. 415), da Bahia (í414), do Distrito Federal (art. 543), do Estado de Pernambuco (f571) e de Minas Gerais (art. 691), previam e expressamentregulavam a ação de imissão de posse.

Tal comportamento do legislador estadual, só competente p£editar leis sobre direito processual, longe de amainar as controvérsiaserviu de estímulo para reacendê-las, pois, entendendo-se, corgeralmente se entendia, ser a ação em causa de natureza possessórisparecia defeso ao legislador dos Estados dispor sobre direito materiÈe introduzir uma nova espécie de tutela possessóría desconhecida peljCC que, segundo se dizia, teria limitado a proteção da posse acinterditos proibitórios e aos de manutenção e de esbulho.

A questão da natureza petitória ou possessória da ação díimissão de posse, que já vinha dos séculos precedentes, apemreviveu e se manteve sob o pretexto da suposta inclusão de umjnova demanda possessória em Códigos de Processo, editados p(legislador incompetente para legislar sobre direito material.

Nossos juristas do século XIX encontravam-se em framdivergência sobre a natureza do interdito adipiscendae, como seem Manuel de Almeida e Souza e Coelho da Rocha, o primeiiarrolando o interdito entre os "remédios possessórios" (Tratado do\interditos, cit., §§ 45 et seq.), enquanto o último, seguindo a liçãcde Savigny, negava qualquer caráter possessório à "ação para pedija posse" (Instituições, cíí., nota ao § 45 J). Já Corrêa Telles iniciav|a exposição das ações que ele denominava "ações pessoai(possessórias", com o interdito adipiscendae, ou "ação para pedirposse" (Doutrina, cit., p. 97), assim, também, o mesmo jurista eiseu Digesto português (ed. de 1909, Lisboa, Liv. l, p. 79).

A situação, em linhas gerais, era essa quando, em 192:Azevedo Marques edita sua monografia sobre ações possessórias

em capítulo especialmente redigido para demonstrar a inexistênciada ação de imissão de posse, desfecha-lhe um novo e vigorosoataque, em que nega não só a existência da ação, mas a considerauma superfetação inútil e desnecessária (A ação possessória no CCbrasileiro, p. 148). Essa era, aliás, a opinião também de Lafayette(Direito das coisas, 5.a ed., v. l, p. 79).

E antes mesmo da promulgação do CC, a 11.01.1911, a antigaRelação de Minas Gerais, em acórdão de que foi relator RaphaelMagalhães (RF, 75:269-70), ao negar cabimento a uma ação deimissão de posse, deu ensejo ao voto de Edmundo Lins que se tornouconhecido, no qual este jurista negava, em termos radicais, aexistência da ação de imissão de posse no direito brasileiro, decla-rando-a não só desconhecida de nosso sistema, como absolutamentesupérfluo e desnecessário o interdito adipiscendae possessionis dosromanos, já que, segundo o magistrado, as ações possessóriasprevistas pelo CC e a ação reivindicatória preenchiam perfeitamentetodo o espaço que poderia ser ocupado pela questionada ação.

A promulgação do CPC, em 1939, com a expressa inclusão,dentre as possessórias, da ação de imissão de posse, regulada pelosarts. 381-383, alimentou as controvérsias e reacendeu o debate, senão no campo jurísprudencial que teve de conformar-se ao textoclaro da lei e admitir como existente a demanda, ao menos em sededoutrinária.

Câmara Leal (Comentários ao CPC, 1940, v. 5, p. 97; Col.Forense), inicia seus comentários, criticando a locução imissão deposse e mostrando que o correio seria imissão na posse. Pareceprocedente a suposição do jurista de que a corruptela linguística sedeva a uma imprópria assimilação da ação de imissão aos interditosde manutenção e reintegração de posse. Embora se reconheça razãoà critica de Câmara Leal, julgamos que, nesta altura, será preferívelperpetuar o pecado gramatical do que tentar corrigir o engano, tala sua antiguidade e consagração pelo uso.

A inclusão da ação de imissão de posse dentre as possessórias,como indicam Câmara Leal e Carvalho Santos (Comentários aoCPC, 1947, v. 5, p. 188), seria decorrência da aceitação pelolegislador da doutrina de Cornil, para quem, "por ações possessóriasse devem entender todas as ações pelas quais o jus possessionis é

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regulado por si mesmo, mas provisoriamente e sob reserva d<discussão sobre o jus possidendi em uma instância distinta"]Lembra, igualmente, Carvalho Santos (Comentários, cit., p. 189)ja opinião do Min. Costa Manso, segundo a qual os Estados nãcpoderiam criar ações possessórias, ao tempo da dualidade dícompetência legislativa, argumento esse sobre que voltaremos, paraaveriguar, apenas no interesse da conceituação da demanda, selegislador estadual, na época só competente para dispor sobreprocesso, poderia legitimamente "criar" uma ação de imissão deposse, fosse ela de natureza possessória ou não.

Limitemo-nos, por ora, a expor a concepção do Código de 3Ísobre a indicada demanda. Estes eram os dispositivos que a previare disciplinavam:

"Art. 381. Compete a ação de imissão de posse:

I - aos adquirentes de bens, para haverem a respectiva possejcontra os alienantes ou terceiros, que os detenham;

II - aos administradores e demais representantes das pessoasjurídicas de direito privado, para haverem dos seus antecessoresentrega dos bens pertencentes à pessoa representada;

III - aos mandatários, para receberem dos antecessores a possedos bens do mandante".

A fórmula adotada pelo legislador federal de 39 coincidia, emjlinhas gerais, com a dos Códigos Estaduais que o precederam mdisciplina da ação. A fórmula, contudo, era mais apurada técnica-]mente, e a limitação do cabimento da demanda, quando se tratasse)de terceiros, apenas aos detentores, era mais adequada aos princí-jpios. O Código do Estado da Bahia, por exemplo, outorgava a açãcao adquirente, para haver "dos transmitentes ou de terceiros a posseldos mesmos bens". A ação de imissão de posse jamais poderá ser]concedida ao adquirente para haver a posse contra terceiros possui-]dores, ou, como veremos, sequer contra detentores que não sejamjservidores da posse em nome do próprio alienante. A fórmula!empregada pelo Código baiano desnaturava a imissão de posse e ajconfundia com a reivindicatória.

No que respeita aos mandatários, mais amplo que o próprioCódigo da Bahia, o nacional de 39 estendeu a proteção aos

mandatários em geral para haverem a posse dos bens do mandanteem poder do mandatário anterior.

A ação de imissão de posse, dizia-o expressamente o art. 382,deveria fundar-se em título de domínio, ou nos documentos denomeação ou eleição do representante da pessoa jurídica, ou,finalmente, no documento da constituição do novo mandatário, comos quais deveria o autor instruir a inicial da demanda.

Ao exigir-sc a existência de um título de domínio comofundamento para a ação, rompia-se com qualquer compromissodessa demanda com a tutela possessória. A ação era concebidaclaramente como petitória. E seu fundamento, longe de ser a posse,era o direito de obter a posse. Mas, de qualquer forma, direito enão proteção ao fato jurídico da posse.

No art. 383, dispunha-se que a ação seguiria o curso ordinário,uma vez contestada. E, no respectivo parágrafo único, abria-se aexceção fundamental a favor do terceiro possuidor, contra quem ademanda fosse eventualmente dirigida: enquanto na hipótese normalde ser a ação proposta contra aqueles que seriam, segundo a concepçãodo legislador, seus verdadeiros legitimados passivos, a defesa deveriarestringir-se à "nulidade manifesta" do documento produzido, se elafosse intentada contra o terceiro (entenda-se possuidor e não simplesdetentor em nome do alienante), a defesa seria ampla.

Essa curiosíssima admissão de uma demanda contra quem nãoseria seu verdadeiro legitimado passivo, e ainda mais com umaindisfarçável transmutação de seu conteúdo, pois que, na hipóteseexcepcional, a ação transformar-se-ia em plenária, é, sem dúvida,um caso exemplar de incompreensão do legislador sobre o exatoconceito da demanda que estava a regular e que, como teremosoportunidade de ver, gerou perplexidade e alimentou confusões emtorno do conceito da ação de imissão de posse.

O CPC de Minas Gerais procurara também solucionar oproblema, mas fora, quem sabe, menos feliz ainda na concepçãoadotada. Em seu art. 695, declarava ele que, em sendo a açãoproposta contra terceiro, poderia este defender-se por meio da açãode embargos de terceiro, o que seria, evidentemente, um contra-senso, pois a parte, no caso, não poderia embargar como terceiro.Apesar de tudo, Odilon de Andrade (Código de Processo Civil e

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Comercial do Distrito Federal, 1927, v. l, p. 312) elogiou o Códigomineiro por oferecer ao terceiro a possibilidade de defender-se (eseria defesa?) com a ação de embargos de terceiro.

8.2 Questões controvertidas na jurisprudência sob o Códigode Processo Civil de 1939

8.2.1 Legitimação passiva

Uma das questões amplamente debatida na vigência do Códigoanterior foi a referente à legitimação passiva, para a ação de imissãode posse, como já indicamos. A lei, segundo se viu, declarava cabera ação contra o alienante ou terceiros que detenham o bem alienado.No que respeita à legitimidade do alienante, não havia campo paracontrovérsias. Porém, a que terceiros teria o Código feito alusão,ao indicá-los como terceiros que detenham o bem alienado? Nainterpretação do dispositivo, duas soluções, em tese, seriam possí-veis: ou ter-se-ia de alargar o conceito de "terceiro detentor" atéabranger quaisquer detentores, pois que o Código não se referiaapenas aos detentores "em nome do alienante", ou, ao contrário, ter-se-ia de interpretá-lo como se a referência a terceiro detentorabrangesse, apenas, aos "detentores em nome do alienante".

Os tribunais e a própria doutrina logo se fixaram no entendi-mento de que os legitimados passivos do art. 381, I, do Código,compreendiam o alienante e os que em seu nome detivessem o bemalienado. Nesse sentido, tornou-se torrencial a jurisprudência, bas-tando referir os seguintes julgados:

"Não cabe imissão de posse se os terceiros ocupantes doimóvel não o detêm em nome do alienante" (ac. da l.a Câm. doTJMG, na Ap. 2.387, 28.09.1944, RF> 133: 175).

"A imissão de posse contra terceiros só se justifica quando elesdetenham a coisa em nome do alienante. Não é possível converterem reivindicatória a ação de imissão de posse" (ac. da l.8 Câm. doTJMG, 12.05.1949, in Alexandre de Paula, O processo civil à luzda jurisprudência, v. 7, p. 2.751).

"A ação de imissão de posse, facultada pelo art. 381, n. I, doCPC, do adquirente contra o alienante ou terceiro detentor, tementendido a nossa jurisprudência que só cabe contra o último se eleachar-se em alguma relação jurídica com o alienante, ocupando acoisa em seu nome ou por consentimento seu, e não contra terceiroque seja legítimo possuidor sem vinculação alguma com aquele dequem o autor diz ter havido o imóvel. Assim, não sendo os réussimples ocupantes em nome do alienante, mas verdadeiros possui-dores pró uso, é incabível a imissão de posse contra eles, comodecidiu a sentença apelada" (ac. un. da 3.a Câm. do TApRS,23.11.1944, rei. Dês. Loureiro Lima, in Alexandre de Paula, Oprocesso, cit., p. 2.753).

"O detentor de que trata o art. 381, do CPC, é aquele que obtéma cousa em nome do alienante, em cuja dependência se achava"(TJCE, in Jurandyr Nilsson, Jurisprudência de processo civil, 1963,v. 5, p. 737).

"Na interpretação do texto legal, a jurisprudência, através dereiterados julgados, deixou assentado que, contra terceiros detento-res, a ação só tem cabida quando esses detêm a coisa em nome doalienante, não assim quando a possuem em nome próprio" ... "Ou,como afirmou o Excelso Pretório, pelo voto do insigne Min.Orozimbo Nonato: a imissão, pelo adquirente, contra terceiro quedetenha a coisa, demanda que essa detenção provenha do alienantee que não seja por título próprio do detentor" (ac. un. da 3." Câm.do TASP, 17.06.1959, RT, 290:397).

"A imissão de posse só cabe contra terceiro que detenha aposse em nome do alienante, ou cujo título de posse esteja dequalquer forma preso ao do alienante" (3.a Câm. do TJPA, 25.09.1961,in Alexandre de Paula, O processo, cit., v. 31, p. 1.430).

"É incabível a ação de imissão de posse quando o réu se achaocupando a coisa por direito próprio, como promitente-comprador,e não como mero detentor, em nome do alienante" (3.a Câm. doTJRS, 21.08.1963, rei. Dês. Niro Teixeira de Souza, RevistaJurídica, 64:216).

"A ação de imissão de posse se funda na posse do alienante.Desde que este, ao fazer a venda, já não a detinha, descabe a ação."

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"Constitui requisito para o ajuizamento dessa ação inexistênciade relação obrigacional entre o alienante e o terceiro, quandomovida contra este último" (3.a Câm. Civ. do TJRS, 19.10.1966, rei.Dês. Paulo Boeckel Veloso, Revista de Jurisprudência, 3:285).

"A ação de imissão de posse é de se admitir contra terceiro,quando este é detentor da coisa em nome do alienante, e não quandoé possuidor em nome próprio, como preposto de terceiro" (2.a Câm.do TJRJ, 22.11.1962, in Alexandre de Paula, O processo, cit., v. 31,p. 1.445).

Alongamo-nos propositadamente na indicação da jurisprudên-cia sobre a questão da legitimação passiva do terceiro detentor, paraa ação de imissão de posse, porque o ponto, como teremos ensejode ver, é da maior relevância para a determinação do conceito daação; e a jurisprudência formada sob o Código de 39 pode seraproveitada, nos pontos doutrinários essenciais, mesmo agora soba vigência do Estatuto de 73.

Mas a jurisprudência não era tranquila, sequer nesse ponto, einúmeras decisões tentavam alargar o conceito de terceiro, comolegitimado para a ação de imissão, até abranger os terceirosdetentores que nenhuma subordinação mantinham com o alienante,estando, ao contrário, vinculados a outrem, em virtude de relaçãojurídica totalmente estranha à em que se fundasse a demanda.Vejamos alguns exemplos desta última espécie:

"A imissão de posse é admissível contra o ocupante de imóvelque se comprometeu a adquiri-lo, mas faltou à obrigação assumida"(3.a Câm. Civ. do TJRS, rei. Dês. Samuel Silva, 20.05.1948, inAlexandre de Paula, O processo, cit., v. 6, p. 2.754).

No caso versado pelo acórdão, mesmo que o contrato depromessa de compra e venda fosse ajustado entre as partes, caso emque não se trataria de "terceiro detentor", mas de ação pararecuperação da posse outorgada a promitente-comprador inadim-plente, a ação só seria viável se cumulada com a de rescisão docontrato. "A teor do art. 381, n. I, do CPC, a mencionada ação sócompete ao adquirente de bem imóvel contra alienante, ou terceiroque o detenha, para haver a respectiva posse. Contra o alienante,

como é claro, no caso em que não tenha havido tradição da coisaalienada. Contra terceiro, que não o alienante, só quando ele nãopasse de mero detentor da coisa, quer em nome do alienante, querpor ato próprio, quer ainda em virtude de ato de outrem. Emqualquer desses casos, porém, se o terceiro não é simples detentor,mas verdadeiro possuidor legítimo, já não é possível ao adquirenteexercitar a imissão de posse contra ele" (3.a Câm. do TJRS,26.08.1948, rei. Dês. Loureiro Lima, in Alexandre de Paula, Oprocesso, cit., v. 6, p. 2.754).

8.2.2 Legitimados ativos porá a ação do art. 38], l, do Códigode Processo Civil de 1939

No que respeita à legitimação ativa para a ação de imissão deposse dos adquirentes de bens, a que se referia o inc. I do art. 381do Código de 39, as divergências mostravam-se mais profundasainda. Indicaremos, por enquanto, alguns exemplares jurispruden-ciais e os problemas mais salientes, já que no momento em queprocurarmos fixar o conceito da ação de imissão de posse em nossodireito, depois da promulgação do Código de 73, teremos de valer-nos de muitas conclusões obtidas sob a jurisprudência do Códigorevogado que, em muitos aspectos, se mostrou mais rica e fecundadaquela que se vem formando após a vigência do novo estatutoprocessual.

Os problemas mais marcantes, então, no que se referia àlegitimação ativa para a demanda, podem ser assim resumidos: 1.")Por "adquirentes", tal como vinha indicado no aludido dispositivolegal, ter-se-ia de entender apenas os que o fossem em virtude deaquisição por ato inter vivos, afastados, sempre, os adquirentes pordireito sucessório, em virtude da saisina? 2.") A finalidade da açãoera ensejar a aquisição da posse, ou seu objeto era tornar efetivauma posse virtualmente adquirida e sobre a qual não dispunha,ainda, o possuidor da disponibilidade efetiva sobre a coisa?Complementando a indagação anterior e precisando melhor o seusentido, a aquisição da posse pelo consíítuto possessório afastava,sempre, o cabimento da ação de imissão de posse? Pelo constituíapossessório, o alienante que o institui, em negócio jurídico de

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transmissão de posse, transforma-se, sempre, em mero detentor, oupode haver gradações nesse núcleo de poderes que remanescem como constituinte, de modo que se tenha de considerá-lo, ainda,possuidor? 3.°) Falando a lei em "adquirentes", no indicado dispo-sitivo, e logo depois, no artigo seguinte, exigindo que tais "adqui-rentes" trouxessem com a inicial o "título de domínio", ter-se-ia deconceder a ação de imissão de posse apenas aos titulares dodomínio, ou, ao contrário, poderiam igualmente intentá-la outros"adquirentes" não do domínio, mas de direito à posse, tais como ospromitentes-compradores, desde que os respectivos instrumentoslhes outorgassem esse "direito à posse"?

Como se vê, pela simples enumeração das questões, as difi-culdades eram enormes, não só pela complexidade inerente aosproblemas teóricos que aí se situam, como também pela imprecisãotécnica da própria lei.

"A imissão de posse, embora conceituada em nosso direitocomo possessória, tem como fundamento o domínio, como indubi-tavelmente decorre da exigência contida no art. 382, do CPC.

"Por isso não é via adequada para o compromissário-compradorobter, do terceiro ocupãnte, a posse do imóvel, como têm reiterada-mente decidido os tribunais deste Estado" (3.a Câm. Civ. do TASP,23.12.1959, in Jurandyr Nilsson, Jurisprudência, cit., p. 747).

Pouco antes, porém, o 2.° Grupo de Câmaras Civis do mesmotribunal, nos El 23.783, decidira que a ação de imissão de posse cabeaos compromissários-compradores, com contrato inscrito no Registrode Imóveis, uma vez que, como afirmara antes a l .a Câmara Civil doTribunal, expressamente mencionada no acórdão, a não se concedera ação de imissão de posse a tais contratantes, ficariam eles privadosde qualquer outro meio judicial capaz de assegurar-lhes a posse doimóvel, prometida no contrato, já que não teriam eles ação dereivindicação por não serem titulares do domínio, não poderiam valer-se da reintegração de posse, pois que precisamente a posse era o quelhes faltava; e, finalmente, não poderiam despejar por não seremlocadores (Jurandyr Nilsson, Jurisprudência, cit., p. 748-9).

"O titular do compromisso registrado de compra e vendairretratável, seja compromissário ou cessionário, tem ação para

obter a efetiva entrega do imóvel se a posse lhe foi passada pelotítulo" (2.a Câm. Civ. do TJSP, 07.06.1966, in Alexandre de Paula,O processo, cit., v. 31, p. 1.433).

Nesse acórdão, o que se deve entender por "posse passada pelotítulo"? Que pretendia essa decisão significar com a expressão "açãopara obter a efetiva entrega"? Tais questões não podem ser obscu-recidas e desviadas, se tivermos interesse em conhecer, comsegurança, as dimensões da ação de imissão de posse.

A "efetiva entrega", a que aludia o tribunal, seria a consuma-ção da apreensão física do bem, sobre o qual a posse já fora"passada pelo título"?

"Tem o compromissário-comprador acesso à ação de imissãode posse, presente o princípio de que a cada direito corresponde umaação que o ampara. Se não for assim, se não se permitir aocompromissário-comprador demandar imissão de posse, de nenhu-ma outra ação poderá ele lançar mão, para efetivar a posse a quetem direito. Não poderá reivindicar, porque não tem domínio; nãopoderá usar do interdito reintegratório, porque não tem posse, nema teve antes; não poderá despejar, porque o ocupãnte não élocatário" (4.' Câm. do TJPA, RT, 384:292).

Esse argumento, seguidamente empregado a favor dos com-promissários-compradores, provinha de um voto do Min. LuizGallotti, proferido perante o Supremo Tribunal Federal.

"A posse da herança se transmite, desde a abertura da sucessão,ao herdeiro, de modo que ele não tem a ação de imissão de posse,salvo se o de cujus adquirira o imóvel sem ter tomado posse" (3.a

Câm. do TJRS, 22.03.1967, rei. Dês. Pedro Soares Munoz, Revistade Jurisprudência, 4:324).

"A imissão de posse não se aplica à sucessão hereditária(saisina). Os herdeiros do falecido poderão usar de uma açãoadequada qualquer, para reaverem o domínio e a posse, menos aação de imissão de posse, conferida pelo art. 381 do CPC aossucessores a título singular" (3.a Câm. do TASP, RT, 346:323).

"A imissão de posse é meio inidôneo para se obter a entregade semoventes adquiridos em inventário e que se encontram empoder de herdeiro que com eles não foi contemplado" (2.a Câm. do

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TJRJ, 03.10.1963, in Alexandre de Paula, O processo, cit., v. 31,p. 1.446).

Todavia, a l.a Câmara do Tribunal de Justiça da Bahia decidiuque "o formal de partilha constitui título hábil para a viúva pedira imissão de posse de imóvel que coube na sua meação" (RT,343:507).

E o Supremo Tribunal Federal, em acórdão proferido no RE52.535, de que foi relator o Min. Victor Nunes Leal, a 04.07.1963,decidiu que "o herdeiro, cujo formal de partilha ainda não estejatranscrito, tem, contudo, qualidade para requerer imissão de possecontra terceiro detentor. Em tal caso, não é necessária a préviatranscrição, porque o CC, no art. 530, distingue a aquisição dapropriedade pela transcrição do título (inc. I), em caso de alienaçãointer vivos, da aquisição por direito hereditário (inc. IV)" (Alexan-dre de Paula, O processo, cit., v. 31, p. 1.462).

Sobre o outro ponto crucial que diz respeito com a transmissãoda posse pelo constituía possessorio, os tribunais tiveram oportu-nidade de decidir o seguinte:

"Ao adquirente assiste o direito à ação de imissão de posse,para obter a desocupação do imóvel. O adquirente não se imite naposse do prédio comprado pela simples intenção de possuir, ou pelaficção jurídica do constituía possessorio, mas sim pela detençãofísica, tradutora do efetivo uso" (7.a Câm. do TJDF, 26.12.1947, rei.Dês. Men de Vasconcelos, in Alexandre de Paula, O processo, cit.,v. 6, p. 1.748).

Mas, contrariamente ao que entendera o tribunal do DistritoFederal, a 4.a Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo,a 17.04.1958, decidiu o seguinte: "A imissão de posse, como seevidencia pelo art. 381 do CPC, não cabe senão contra osalienantes ou terceiros que detenham os bens em nome dosvendedores. Por consequência, se os autores perderam a posse desuas terras, depois de havê-las recebido pelo 'constituto possessorio',expressamente incluído em suas escrituras de aquisição, devemreivindicá-las dos terceiros que as detêm e delas se apossaram emseu próprio nome e não dos vendedores" (Jurandyr Nilsson,Jurisprudência, cit., p. 746).

8.2.3 Transformação em reivindicatória ou em ação de esbulho,quando proposta contra possuidor pró uso

Se afirmamos, como já o fizemos, que a ação de imissão deposse teria como legitimados passivos o alienante ou o terceiro queeventualmente ocupasse a coisa, na condição de simples detentorem nome daquele, a conclusão inevitável seria a da impropriedadeda ação, quando ela fosse dirigida contra outros terceiros que nãofossem os verdadeiros legitimados passivos, seja porque, ao invésde simples detentores, fossem ele verdadeiros possuidores, sejaporque, embora sendo detentores, sua relação jurídica se desse comoutrem que não o alienante.

Entretanto, apesar da aparente simplicidade da questão, adoutrina e os próprios tribunais mostravam-se, também aí, vacilan-tes, seja em razão da escassa compreensão do fenómeno fundamen-tal da "transformação de demandas" e dos limites em que isso sejalegítimo, seja porque o próprio Código, pela forma ambígua comoseparava as duas hipóteses, dava ensejo a que se defendesse alegitimidade dessa transformação de uma ação, reconhecidamentemal endereçada contra alguém, cuja legitimidade para a causa eranegada pela própria lei.

O problema hermenêutico que se criava era, então, o seguinte:a ação de imissão de posse só seria sumária quando fosse propostacontra os verdadeiros legitimados passivos, sendo viável sua pro-positura contra alguém cuja ilegitimidade era manifesta, devendo,nesse caso, o juiz transformá-la noutra demanda para além ou paraaquém do pedido formulado na ação, caso em que a demanda setransformaria em plenária?

É importante observar-se que o elemento de controvérsia queaparecia não era tanto a questão referente à legitimidade dessatransformação da demanda em outra, quando mal endereçada comose isso fosse problema sem importância e sem consequênciasprocessuais gravíssimas, quanto à repugnância com que a doutrina,de um modo geral, encarava a possibilidade da existência de umaação com tão grave limitação do campo de defesa, quando osprincípios modernos do processo civil indicariam para o outrosentido, buscando, sempre, a maior proteção jurisdicional aos

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direitos subjetivos (dos demandados), assegurados pela franquia dejtodos os instrumentos processuais que garantissem a ampla eexauriente defesa do réu.

Câmara Leal (Comentários, cit, p. 116) escreve o seguinte: "Onovo CPC só consente a defesa ampla quando a ação é intentadacontra terceiro detentor dos bens cuja posse é reclamada pelo autor."

"Não nos parece legal a restrição de defesa imposta pelo art.383, parágrafo único."

"A lei adjetiva não podia privar o réu do exercício de umdireito que a lei substantiva lhe outorga. Se o réu tiver a seufavor um direito, pelo qual seja legítima a conservação da coisaem seu poder, como esbulhá-lo judicialmente em sua posse, nãopermitindo defesa fundada nesse direito, e arrancar-lhe a coisa,violentamente, por meio de um mandado de posse concedido afavor de outrem?"

E logo a seguir: "Violador do direito do réu, na ação de imissãode posse, privando-o de uma defesa consistente no exercício de umdireito que a lei civil lhe assegura, obrigando-o a despojar-se de umaposse que a lei lhe dá o direito de reter, o art. 383, parágrafo único,não pode ser obedecido, nem pela parte, nem pelo juiz, porque estese tornaria um esbulhador, demitindo injustamente da posse da coisaaquele que legitimamente a retém".

"Mesmo contra o alienante não poderia ser atendido o pedidode imissão na posse pelo adquirente, se, nos termos da alienação,a entrega da coisa alienada ficou subordinada a um termo ou a umacondição."

Na conclusão que se seguia, porém, o autor transbordava de suaprópria premissa e sugeria o seguinte: "O verdadeiro critério a seguir-se é o do Código de Minas, admitindo-se como matéria de defesa tudoquanto possa evidenciar a notória injustiça da imissão requerida".

A desproporção entre a hipótese indicada pelo processualista,de alguém que (pelo título!) tenha direito de reter a coisa, e suaprópria conclusão, de que seria admissível toda a defesa queevidenciasse a "injustiça notória" da imissão, é manifesta. Contudo,esse ponto de vista seguidamente aparecia na jurisprudência.

Câmara Leal (Comentários, cit., p. 117), procurando darexemplos de matéria capaz de ser arguida pelo demandado e quese poderia definir como fundamento para a improcedência da açãopor "injustiça notória", arrolava a hipótese em que o autor investidona posse da coisa haja "entrado na posse", vindo a perdê-la depois,"não se justificando assim o pedido de imissão".

O exemplo, contudo, mal disfarça a imprecisão conceituai deque se serve o processualista, pois a circunstância de provar odemandado que o autor era possuidor e fora esbulhado é motivopara decretar-se a carência da ação que, verdadeiramente, é incabível,no caso. Seria exemplo típico de carência por ilegitimidade passivado possuidor demandado.

De qualquer modo, a conclusão do autor de que a demandadeveria ser repelida quando o réu demonstrasse que o adquirentetivera a posse e a perdera, em virtude de esbulho possessório, afastaa possibilidade, que também era comum na doutrina e jurisprudên-cia desse período, de "aproveitar-se" a ação de imissão de posse ejulgá-la como de esbulho ou reivindicatória, desde que ela fosseprocessada pela forma ordinária.

Parece que ninguém tinha a menor preocupação em averiguarcomo oscilariam os limites objetivos da coisa julgada que, eventual-mente, se formaria na demanda em que o juiz julgasse a ação comoreivindicatória, em relação à sentença do outro juiz que decretassea carência da ação por ilegitimidade passiva do réu. Em teoria, nãose pode fugir à alternativa seguinte: quando o juiz "converte" umademanda em outra, de duas uma, ou a transformação é só aparentee a primitiva demanda remanesce, no processo, em seus elementosestruturais básicos, ou o juiz, a pretexto de aproveitar o processado,"transforma" a demanda em outra, não imaginada e muito menospostulada pelo autor. Na última hipótese, evidentemente, o juizestará agindo como parte e exercendo jurisdição ex officio".

Se, porém, a demanda de imissão de posse pode ser,validamente, julgada pelo juiz como ação de esbulho, ou comoreivindicatória, então é porque o petitum contido na demandaproposta já envolvia a entrega da posse ao autor, qualquer que fossea causa petendi sustentada na inicial pelo demandante, ou por ele

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imaginada. A literatura sobre esse ponto é abundante e firmes asposições doutrinárias conhecidas, a ponto de dispensar-nos exposi-ção mais detalhada sobre tal questão, que nos desviaria excessiva-mente de nossos problemas.

Jorge Americano, contudo, liderando a posição inversa, afir-mava que a ação de imissão de posse, "quando a causa é contestadae toma o curso ordinário (art. 383), é verdadeira reivindicação, nãosendo legítima, aliás, a restrição da defesa, determinada pelo art.383, parágrafo único" (Comentários ao Código de Processo Civil,2* ed., 1959, v. 2, p. 194).

Segundo Jorge Americano, se o réu juntasse também docu-mento, provando direito seu sobre a coisa, a demanda envolveriauma autêntica disputa reivindicatória. Não lhe ocorreu, porém,indagar se, nesse caso singularíssimo, a ação do autor só poderiaser conceituada pelo réu, depois de oferecida a contestação. Ou elaseria demanda simplesmente imissiva, ou uma reivindicatória,conforme o réu contestasse ou ficasse revel. Por onde andariam,nessa altura, as questões ligadas a limites objetivos da coisa julgadaé problema que não parece ter preocupado o processualista.

O Tribunal de Apelação do Rio Grande do Sul, pelo voto doDês. Loureiro Lima, em acórdão unânime de 22.05.1941, declarouo seguinte: "Na ação de imissão de posse, quando movida contra opróprio alienante, seja qual for a forma de alienação, a única defesaque permite o art. 383, do CPC, em seu parágrafo único, é aconsistente em nulidade do título de aquisição. Quaisquer outrasalegações, apresentadas como constestação, devem ser rejeitadas ehaver-se a causa como não contestada, para o efeito de determinara imediata expedição do mandado de imissão de posse, conforme aregra do art. 382, parágrafo único, do mesmo Código" (RF, 88:220).

Contudo, a 25.05.1943, o mesmo tribunal, na Ap. 1.732, deque foi relator o Dês. João Soares, decidiu que "quando a ação éintentada contra terceiro, permite-se-lhe ampla defesa para excluira legitimidade do direito do autor sobre o objeto do litígio"(Alexandre de Paula, O processo, cit., v. 6, p. 2.783).

E o Tribunal de Justiça do Paraná, em acórdão unânime de sua3.a Câmara, de que foi relator o Dês. Segismundo Gradowski, julgou,

a 06.02.1961, que "pode a ação de imissão de posse ser apreciada ejulgada como sendo de reintegração de posse, uma vez que nos autosexistam elementos probatórios que tal autorizem" (RT, 307:720).

Mas o Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao contrário, decidiuque "a imissão de posse contra terceiros só se justifica quando elesdetenham a coisa em nome do alienante, não sendo possível, por outrolado, converter em reivindicatória a ação de imissão de posse"(Alexandre de Paula, O processo, cit, v. 31, p. 1.443).

Finalmente, o próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande doSul, em acórdão de sua 4.a Câmara Civil, de que foi relator o Dês.Niro Teixeira de Souza (Revista Jurídica, 58:200), decidiu que "aação de imissão proposta pelo apelante apresenta-se inadequada naespécie, por isso que tendo já o mesmo apelante, na qualidade deherdeiro e inventariante, o domínio e posse do imóvel, conforme jáfoi salientado, não cabe o aludido procedimento e sim a reintegraçãode posse. Como ao propósito diz Pontes de Miranda, os herdeirosestão excluídos da ação de imissão de posse em virtude da saisina(art. 1.572 do CC, Comentários ao CPC, vol. VI, p. 168)".

"O procedimento, entretanto, não é nulo, uma vez que seguiuo rito ordinário, não resultando, portanto, qualquer prejuízo e suaconversão de reintegratória é perfeitamente possível nos termos doque dispõe o art. 375 do referido diploma processual."

A única observação que se pode fazer, quanto a isso, seria asugestão de tentar-se salvar uma ação de despejo proposta contrao esbulhador, se ela tivesse recebido a unção purificadora de,eventualmente, ter-se processado pelo rito ordinário.

Cabe, contudo, para forrarmo-nos a mal-entendidos, que facil-mente poderiam ocorrer, esclarecer que não criticamos a soluçãoencontrada pelos que defendem a "conversão" da ação de imissão deposse em ação de esbulho ou em reivindicatória, em razão de qualquercompromisso doutrinário com a denominada teoria da substanciação,relativamente a limites objetivos da coisa julgada. Em sede puramentedoutrinária, estaríamos até mesmo inclinados a admitir a relevânciasó do petitum, ou, como sugerem os defensores da teoria daindividualização, a relevância tão-só da "consequência jurídica" dopedido formulado pelo autor, em sua demanda (sobre isso, entre

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outros, Leo Rosenberg, Tratado de derecho procesal civil, trad. da5.a ed., ai., 1955, v. 2, § 88; Karl Heinz Schwab, El objeto litigiosoen el proceso civil, trad. arg. da ed. ai. de 1954, § 16). Contudo, seestamos dispostos a aceitar uma solução de tal gravidade teórica,"devemos estar igualmente preparados para enfrentar e dar soluçãoadequada aos múltiplos problemas que necessariamente surgirão emtemas tais como identificação de demandas, limites objetivos da coisajulgada, litispendência e cumulação de ações.

Uma coisa parece certa, quando se medita seriamente sobreessas questões: nenhuma conversão de uma demanda em outra sefaz impunemente. Ou essa suposta conversão não passa de simplescorreção do nome n iuris equivocamente indicado pelo autor, que adoutrina tern como perfeitamente admissível (G. Giannozzi, Lamodificazione delia do m anda nel processo civile, 1958, p. 69), casoem que a suposta ação de imissão de posse já vinha na própriainicial, com todos os elementos identificadores da outra ação emque ela se deva "converter"; ou o juiz realmente modifica ademanda, pondo em seu lugar outra não proposta pela parte.

No Brasil, onde ainda se teima em repetir que nosso sistemaé filiado à teoria da substandação, essas questões não podem sercontornadas.

8.3 Existência da ação de imissão de posse no sistemabrasileiro depois de 1973

E necessário que se façam algumas considerações, de certomodo já discutidas, ainda que incidentalmente, nas páginas anterio-res, mas que por sua importância teórica impõe-nos o dever deenfrentá-las de maneira direta e adequada. A questão diz respeitoàs relações entre direito material e processo. Sua oportunidadesurge, aqui, do fato de terem muitos escritores dificuldades emexplicar a permanência das ações de imissão de posse no Códigode 1973, quando esse diploma legal, ao que se supõe, teria, com seusilêncio, suprimido as demandas do art. 381 do Código anterior.

À pergunta sobre a permanência das ações de imissão de posse,perante o sistema processual inaugurado pelo CPC de 73, é possíveldar-se resposta formulando uma nova pergunta: Pode-se afirmar que

a ação de investigação de paternidade não existe porque o Códigoprocessual não a prevê nem a regula? Ou esta outra mais genérica:As ações são outorgadas pelos Códigos de Processo, ou estes apenasse limitam a regular-lhes o curso e, nalguns casos, a dimensionar-lhes o conteúdo da matéria a ser objeto da controvérsia? Poderá olegislador do processo suprimir algumas ações que hoje se reconhe-cem como existentes no sistema jurídico brasileiro, por este outor-gadas ao comprador, ou ao vendedor, ou ao proprietário, ou aocondómino, ou ao locador, sem invadir o direito material e modificá-lo? Tais são as verdadeiras e próprias questões a serem postas erespondidas, para sabermos da existência atual da ação de imissãode posse; questão essa que, no fundo, é aquela mesma já abordada,da distinção entre ação de direito material e "ação" processual.

Verdadeiramente, os processualistas tratam da ação de imissãode posse como se tal entidade só existisse no plano do direitoprocessual; como se ela fosse uma realidade só processual, capazde ser posta ou retirada do sistema pelo legislador do processo. Ocurioso, todavia, é que todos os que pensam assim não deixamnunca de afirmar que tal ação compete ao adquirente de bens, queinvoca "a tutela jurisdicional do Estado, para ingressar nessaposse", como escreve, para só citar um dentre muitos, HerondesJoão de Andrade (Ação de imissão de posse, Revista Brasileira deDireito Processual, 22:65). De modo que essa entidade, a que sedá o nome de ação de imissão de posse, só existirá no momentoem que o juiz tiver reconhecido, na parte que a postula, a condiçãode adquirente de bens que, por outro lado, só obterá a tutelapretendida que lhe garanta "ingressar na posse", como escreve oautor, se, no outro pólo da relação processual, encontrar-se umaoutra figura de direito material, qual seja, um "detentor em nomedo alienante", ou o próprio alienante.

Mesmo assim, alguns escritores e juizes, ao inaugurar-se avigência do novo CPC, não vacilaram em afirmar que a ação deimissão de posse havia desaparecido de nosso sistema. Muitosoutros permaneceram indecisos e em dúvida sobre a permanênciada ação, tentando encontrar fundamentos para apoiá-la no campo dodireito processual. Outros, finalmente, colocaram-se na posição dosque defendem a irrelevância da supressão das ações do art. 381, inc.I, do Código de 39, no CP que o substituiu, para o efeito de elimina-

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ias do sistema jurídico brasileiro, afirmando que a ação permanececomo demanda comum e não especial.

Uma das primeiras manifestações doutrinárias a respeito daação de imissão de posse, após a vigência do Código de 73, foi ado Prof. Galeno de Lacerda que afirmou o seguinte: "O Código, aosuprimir a ação de imissão de posse do Liv. IV, destinado aosprocedimentos especiais, e ao deixar de ressalvá-la, no art. 1.218,entre os procedimentos do Código antigo de vigência prorrogada,na verdade, suprimiu-lhes apenas o rito especial, mas não poderiaeliminar, como não eliminou, o direito subjetivo processual de ação,que tenha por objeto a pretensão material à imissão de posse".

"Isto significa que esse direito há de ser exercido, agora,através de ação de rito ordinário, ou de rito sumaríssimo, consoanteo valor respectivo" (O novo direito, cit,, 1974, p. 42).

A lição foi reproduzida na seguinte decisão do Tribunal deJustiça de São Paulo, em acórdão de sua 3.a Câmara Civil, em datade 03.10.1974, onde ficou dito que o novo Código "suprimiu,apenas, o procedimento especial da ação de imissão de posse,estabelecido nos arts. 381 et seq. do Código de 1939, contudo nãoeliminou o direito subjetivo processual da ação que tenha porobjetivo a pretensão à imissão na posse". E o acórdão avançou umpouco mais e declarou: "O direito deve ser exercido, agora, atravésda ação de rito ordinário, ou de rito sumaríssimo, conforme o valorda causa, procedendo-se à execução de acordo com os arts. 621 etseq, do estatuto processual vigente" (RT, 477:101).

Como se observa, o acórdão tomou uma posição clara, emassunto de extrema gravidade, de modo simplório, sem dar-se aotrabalho de explicar por que a transformação ritual teria o condãomágico de transformar a ação, que fora executiva, em ação conde-natória, a exigir a nova ação executória do art. 621 do novo Código.

Essa questão fundamental para a conceituação correia da deman-da, que ora nos ocupa, será certamente objeto ainda de muitasconsiderações ao longo deste trabalho, mas observe-se, desde agora,a facilidade com que se passa do plano meramente formal, em quese discutia ritualidade ordinária ou sumaríssima para a demanda, parao plano do direito material, como se a transformação de rito pudessemodificar-lhe a substância, mais ou menos como se fosse possível

suprimir-se a ação do art. 901 do CPC, com o "rito especial" que alei lhe confere, de modo a dar-lhe curso ordinário ou sumaríssimo,e a simples supressão do art. 901 pudesse ter o efeito mágico detransformar a demanda em declaratória ou constitutiva.

Esse engano, aliás, é muito mais profundo e comum do quepode parecer ao observador menos atento. O Prof. Galeno deLacerda, mesmo, no estudo indicado, afirma que, em processoiniciado na vigência do Código revogado, havendo revelia e nãotendo o juiz ainda, ao entrar em vigência a lei nova, determinadoa imissão na posse, "sob o velho Código, não poderá mais fazê-losob a vigência do novo, e o processo terá de seguir o rito ordinário"(O novo direito, cit.). Ora, havendo revelia, mesmo se o processofora iniciado sob o império da lei revogada, parece evidente que seteria de aplicar, desde logo, o art. 330, inc. II, da lei nova, quedetermina a imissão imediata da sentença quando ocorra revelia.Certamente, o ilustre professor gaúcho não discordará dessa assertiva,pois até se poderia dizer que o julgamento antecipado da lide teve,como ancestral, o procedimento do art. 382, parágrafo único, doCódigo de 39. Em que ponto e sob que fundamento estaria a apoiar-se Galeno de Lacerda para afirmar que, havendo revelia, mesmo sobo Código de 73, a ação de imissão de posse não daria ensejo aojulgamento antecipado da lide? Segundo se depreende de suaexposição, considera ele que a imissão prevista no art. 382 doCódigo de 39 era imissão liminar e não sentença final de primeirainstância, só recorrível por apelação (certo, Hamilton de Moraes eBarros, RF, 247:18, quanto à natureza de sentença de mérito daimissão do art. 382 do Código revogado).

Em sentido contrário, inclinando-se pela supressão da ação deimissão de posse, perante o novo CPC, como consequência docaráter possessório que o autor lhe atribui, manifesta-se Ovídio R.Barros Sandoval (tf 7", 486:22-6), escrevendo: "Portanto a orientaçãodoutrinária de que seja a imissão de posse interdito possessório secoaduna com o nosso direito e a sistemática que lhe dá o CC,abraçando a doutrina de Ihering". Segundo o entendimento desteautor, o caminho de que se dispõe, no direito brasileiro atual, seráo apelo à ação de esbulho. Aliás, o autor se apoia em Ataliba Vianae ambos incidem no equívoco de considerar a transcrição imobiliá-

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ria como ato de transmissão possessória. A tradição que se operana compra e venda, por efeito da transcrição do título, não tem nadaa ver com a transmissão da posse.

Hamilton de Moraes e Barros manifesta-se no seguinte sentido:"O diploma de 39, ao tratar das ações possessórias, disciplinouquatro ações: os interditos de manutenção e de reintegração, ointerdito proibitório e a imissão de posse. Já em 73 somente vamosencontrar o interdito proibitório e os de manutenção e reintegração".

"Desapareceu, como se vê, a ação de imissão na posse comoprocedimento especial. Os que se acharem com direito de imitir-sena posse de bens próprios ou alheios, pois que não era casuísticaou exaustiva a enumeração do art. 381 do diploma pretérito, que oexerçam através do procedimento ordinário" (RF, 247:17).

O autor não explica, com suficiente explicitude, como poderásobreviver uma ação possessória que o legislador teria riscado dorol dos interditos. Mesmo assim, a posição do ilustre processualistaguanabarino é clara no sentido da permanência de uma ação deimissão de posse, mesmo ante o silêncio do Código. Essa ação,porém, que seria possessória e ordinária, está descrita com contor-nos poucos precisos.

A problemática sobre a permanência ou não da imissão de posse,às vezes, torna-se curiosa e corre o risco de perder-se em mera disputaverbal. Isso ocorre com a seguinte posição adotada pelo Prof. J.Frederico Marques, em resposta a uma indagação do auditório, empalestra proferida em ciclo de debates promovido pela Associação dosAdvogados de São Paulo. A pergunta fora a seguinte: "A antiga açãode imissão de posse está substituída, na lei atual, pelo procedimentoordinário?" A tal indagação, respondeu Frederico Marques: "Não hánada disso. Aquela ação especial de imissão de posse não existe mais.É evidente, conforme diz a Constituição da República, que não sepode tirar da apreciação do Poder Judiciário qualquer ato lesivo adireito subjetivo. A imissão de posse pode ser substituída por umaação para entrega de uma coisa certa. A imissão de posse, em algunscasos, como já mostrou Azevedo Marques, nas suas Ações possessórias,será substituída, e com acerto, pela própria reintegração de posse.Aquela ação especial de imissão de posse não existe mais, mas odireito da imissão de posse existe, ou através de uma ação de entrega

de coisa certa, ou, em determinados casos, pela reintegração de posse"(O processo civil', ciclo de debates sobre o novo CPC, 1975, ed. daAASP, p. 21).

Renato Riotaro Takiguchi (Instituições de processo civil, 1977,p. 3) inclui o Prof. Frederico Marques, e a nosso ver com toda arazão, entre os que negam a existência da ação de imissão de posseem nosso direito. O argumento de que se utiliza o eminente mestrede São Paulo, para dizer que a Constituição Federal não pode afastarda apreciação do Poder Judiciário qualquer ato lesivo a direitosubjetivo, e que, portanto, "o direito da imissão de posse existe",apenas devendo ser exercido por meio de uma "ação para entregade coisa certa", ou pela ação de esbulho, em verdade não confirmaa permanência da ação. Ação para entrega de coisa certa pode ser,para darmos só os exemplos mais corriqueiros, a ação de despejo,a ação de reivindicação, a ação de depósito ou a ação especial deimissão de posse nos casos de alienação fiduciária em garantia. Ea indicação de uma ação especial de imissão de posse dentre aspossíveis "ações para entrega de coisa certa", constantes da sugestãode Frederico Marques, tem sentido porque ele próprio, ao rematarseu raciocínio, na passagem citada, declara que a questão dapermanência ou não da ação de imissão de posse refoge ao temade sua conferência "que trata do procedimento ordinário".

O Dês. Luiz António de Andrade, em conferência que pronun-ciou, em Florianópolis, por ocasião de um simpósio sobre o novoCPC, teve oportunidade de declarar que "sumiu também do Códigoa ação de imissão de posse" (Ciclo de palestras sobre o novo CPC,publicação da Secção de Santa Catarina da Ordem dos Advogadosdo Brasil, 1974, p. 43).

Afirmar-se, como o fazem J. Frederico Marques, Luiz Antóniode Andrade e tantos outros juristas e tribunais, que a ação de imissãode posse "sumiu", como ação especial, de nosso CPC, mas, em seulugar, os interessados poderão socorrer-se de uma "ação paraentrega de coisa certa", que terá rito (observe-se bem: curso)ordinário ou sumaríssimo, em verdade, é fazer-se afirmação incom-pleta e ambígua, dizendo-se muito pouco, ou mesmo nada, sobrea existência de uma demanda determinada, identificável por seuselementos internos, por sua rés deducta e por suas eficácias

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118 AÇÃO DE IM1SSÃO DE POSSEAÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE 119

ria como ato de transmissão possessória. A tradição que se operana compra e venda, por efeito da transcrição do título, não tem nadaa ver com a transmissão da posse.

Hamilton de Moraes e Barros manifesta-se no seguinte sentido:"O diploma de 39, ao tratar das ações possessórias, disciplinouquatro ações: os interditos de manutenção e de reintegração, ointerdito proibitório e a imissão de posse. Já em 73 somente vamosencontrar o interdito proibitório e os de manutenção e reintegração".

"Desapareceu, como se vê, a ação de imissão na posse comoprocedimento especial. Os que se acharem com direito de imitir-sena posse de bens próprios ou alheios, pois que não era casuísticaou exaustiva a enumeração do art. 381 do diploma pretérito, que oexerçam através do procedimento ordinário" (RF, 247:17).

O autor não explica, com suficiente explicítude, como poderásobreviver uma ação possessória que o legislador teria riscado dorol dos interditos. Mesmo assim, a posição do ilustre processualistaguanabarino é clara no sentido da permanência de uma ação deimissão de posse, mesmo ante o silêncio do Código. Essa ação,porém, que seria possessória e ordinária, está descrita com contor-nos poucos precisos.

A problemática sobre a permanência ou não da imissão de posse,às vezes, torna-se curiosa e corre o risco de perder-se em mera disputaverbal. Isso ocorre com a seguinte posição adotada pelo Prof. J.Frederico Marques, em resposta a uma indagação do auditório, empalestra proferida em ciclo de debates promovido pela Associação dosAdvogados de São Paulo. A pergunta fora a seguinte: "A antiga açãode imissão de posse está substituída, na lei atual, pelo procedimentoordinário?" A tal indagação, respondeu Frederico Marques: "Não hánada disso. Aquela ação especial de imissão de posse não existe mais.É evidente, conforme diz a Constituição da República, que não sepode tirar da apreciação do Poder Judiciário qualquer ato lesivo adireito subjetivo. A imissão de posse pode ser substituída por umaação para entrega de uma coisa certa. A imissão de posse, em algunscasos, como já mostrou Azevedo Marques, nas suas Ações possessórias,será substituída, e com acerto, pela própria reintegração de posse.Aquela ação especial de imissão de posse não existe mais, mas odireito da imissão de posse existe, ou através de uma ação de entrega

de coisa certa, ou, em determinados casos, pela reintegração de posse"(O processo civil; ciclo de debates sobre o novo CPC, 1975, ed. daAASP, p. 21).

Renato Riotaro Takiguchi (Instituições de processo civil, 1977,p. 3) inclui o Prof. Frederico Marques, e a nosso ver com toda arazão, entre os que negam a existência da ação de imissão de posseem nosso direito. O argumento de que se utiliza o eminente mestrede São Paulo, para dizer que a Constituição Federal não pode afastarda apreciação do Poder Judiciário qualquer ato lesivo a direitosubjetivo, e que, portanto, "o direito da imissão de posse existe",apenas devendo ser exercido por meio de uma "ação para entregade coisa certa", ou pela ação de esbulho, em verdade não confirmaa permanência da ação. Ação para entrega de coisa certa pode ser,para darmos só os exemplos mais corriqueiros, a ação de despejo,a ação de reivindicação, a ação de depósito ou a ação especial deimissão de posse nos casos de alienação fiduciária em garantia. Ea indicação de uma ação especial de imissão de posse dentre aspossíveis "ações para entrega de coisa certa", constantes da sugestãode Frederico Marques, tem sentido porque ele próprio, ao rematarseu raciocínio, na passagem citada, declara que a questão dapermanência ou não da ação de imissão de posse refoge ao temade sua conferência "que trata do procedimento ordinário".

O Dês. Luiz António de Andrade, em conferência que pronun-ciou, em Florianópolis, por ocasião de um simpósio sobre o novoCPC, teve oportunidade de declarar que "sumiu também do Códigoa ação de imissão de posse" (Ciclo de palestras sobre o novo CPC,publicação da Secção de Santa Catarina da Ordem dos Advogadosdo Brasil, 1974, p. 43).

Afirmar-se, como o fazem J. Frederico Marques, Luiz Antóniode Andrade e tantos outros juristas e tribunais, que a ação de imissãode posse "sumiu", como ação especial, de nosso CPC, mas, em seulugar, os interessados poderão socorrer-se de uma "ação paraentrega de coisa certa", que terá rito (observe-se bem: curso)ordinário ou sumaríssimo, em verdade, é fazer-se afirmação incom-pleta e ambígua, dizendo-se muito pouco, ou mesmo nada, sobrea existência de uma demanda determinada, identificável por seuselementos internos, por sua rés deducta e por suas eficácias

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120 AÇÂO DE IMISSÃO DE FOSSE AÇÂO DE IMISSÃO DE POSSE 121

sentenciais, a que se possa dar o nome de ação de imissão de posse;mesmo tendo permanecido sob a forma de demanda de cursoespecial, ou se havendo transformado em ação de curso ordinárioou sumaríssimo. A confusão entre os planos de direito processuale de direito material é palmar.

No fundo, a posição assumida pela maioria dos que afirmama supressão da "ação especial" de imissão de posse do art. 381, inc.I, do Código de 39, e a outorga de uma ação de procedimentoordinário ou sumaríssimo, do procedimento comum, na sistemáticado novo diploma processual, qual seja, a "ação para entrega de coisacerta", demanda incolor e indefinida, corresponde ao entendimentode que a ação do Código revogado só era especial quanto ao ritoe que, uma vez suprimida a. forma ritual especial, a partir do Códigode 73, a demanda passou a ensejar a tão almejada "ampla defesa"concedida ao demandado, de modo a assegurar-se, segundo talentendimento, uma justiça material perfeita e definitiva; resultadoesse, aliás, que a experiência brasileira sabe muito bem que sebusca, em nossos tribunais, à custa dos demandantes, sempre e cadavez mais entregues às manobras protelatórias de litigantes que todossabem maliciosos, menos as pessoas que teriam poderes para coibiros abusos e acabar com o paraíso de demandados recalcitrantes emque estamos transformados.

Quando se diz: "agora a ação de imissão de posse deve tercurso (observe-se bem: andamento, rito) ordinário ou sumaríssimo,na realidade, o que se está a insinuar não é tanto a transformaçãoritual, mas a completa deterioração do que a demanda tinha deespecial, no Código de 39, que era a eficácia executiva e asumariedade material de sua rés deducta, onde só se poderiaquestionar a nulidade do título que servisse de base para a ação.Tanto que os juristas que se alegram com a queda da ação "especial"de imissão de posse dão-se muito bem com uma ação que - se oproblema fosse tão-somente a questão procedimental - seria agoramais sumária do que a antiga "ação especial" de imissão de posse,já que, pelo Código de 73, a ação poderá ter rito sumaríssimo.

Todos sabemos, contudo, que as ações do procedimentosumaríssimo, em nosso Código, são exaustivamente plenárias, nadatendo de sumariedade substancial.

O exemplo disso está no seguinte acórdão do l." TACivSP, emque se discutiu a compatibilidade entre o processo de imissão deposse previsto pelo Decreto-lei 70, de 1966, e o vigente CPC. Teveensejo a 2.a Câmara, por maioria de votos, de decidir o seguinte:"Verifica-se que há incompatibilidade entre o procedimento mistode ação executiva e imissão na posse previsto nos arts. 31 et seq.do Decreto-lei 70, de 1966, e o CPC. Aquele procedimento fogecompletamente às regras processuais estabelecidas no novo Código,cerceando a defesa do compromissário-comprador e outorgando aoagente financeiro meios violentos para arredar do imóvel compro-missado o indefeso compfomissário" (RT, 510:141). O voto venci-do, de autoria de Paulo Shintate, depois de tecer considerações sobrea supressão da ação de imissão de posse, cujo desaparecimento denosso direito parece ser a conclusão do magistrado, afirma que aação de imissão de posse, com fundamento em arrematação levadaa termo com base no Decreto-lei 70, "nenhuma semelhança guardacom a ação de imissão de posse do art. 381 do CPC de 1939", pois,segundo ele, a do Decreto-lei seria "de natureza executiva", aopasso que a do Código de 39 seria uma "ação condenatóriaespecial".

A questão, recolocada no acórdão, de cerceamento de defesado "indefeso compromissário" - velha e conhecida questão dodireito brasileiro e que não oferece qualquer sabor de novidade aoprocessualista, como argumento jurídico para repelir-se a imissãode posse em favor do adquirente do imóvel hipotecado, emarrematação extrajudicial - realmente não convence. Não há ne-nhum problema técnico que pudesse comprometer o processualistae obrigá-lo a rejeitar a demanda de imissão sob o fundamentojurídico de cerceamento de defesa. Se a questão fosse infringênciaaos princípios básicos do direito processual, seja ao princípio dabílateralidade, seja ao princípio da demanda, também chamadoprincípio dispositivo, ou, finalmente, ao princípio da "instrumenta-lidade de formas" ou da lealdade processual, a objeção, enquantoobjeção apenas técnico-processual, teria de valer, igualmente, parao caso de a lei prever a mesma ação de imissão de posse não contrao "indefeso compromissário", mas agora em seu benefício. Sehouvesse, como o acórdão afirmou, incompatibilidade entre oprocedimento (misto?) de ação executiva e imissão de posse, um

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122 AÇAO DE IMISSÃO DE POSSE AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE 123

previsto no Código de 73 e outro na lei especial, e se tal conclusãofosse somente técnica, o que equivale a dizer, despida de qualquercomponente ideológico, então a ratio da incompatibilidade perdu-raria, mesmo para o caso de beneficiar o demandado, no exemploimaginado em que ele se houvesse transformado em "indefesodemandante", contra o poderio económico do agente financeiro. Oprocessualista não está obrigado a ser neutro e imparcial ante osproblemas de direito material, ou de filosofia jurídica, que a todoo momento lhe surgem. Contudo, deve ser comedido para nãoassumir posição ideológica em outro plano que não seja o seucampo de atividade e argumentar como se esse compromisso, essaadesão, lhe fosse imposto como decorrência de princípios denatureza processual.

A 6.a Câm. do 1.° TACivSP, no Agln 222.235, em acórdãounânime de 28.09.1976, declarou que a ação especial de imissão deposse foi abolida pelo Código de 73 e que, pretendendo o adquirenteobter a entrega do bem adquirido, terá de valer-se dos novos "meiosregulares" para conseguir tal resultado que, no caso, seria a "execuçãopara entrega de coisa certa", que o acórdão afirma ser criação originaldo estatuto processual promulgado em 1973 (Jurisprudência brasi-leira; posse e ações possessórias, Juruá Ed., v. 6, p. 282).

Pela importância das questões envolvidas nesse acórdão, nãopodemos deixá-lo sem transcrição e comentário. Tratava-se deexecução hipotecária movida pela Caixa Económica do Estado de SãoPaulo que, sendo credora por quantia superior à da avaliação do bemvinculado, obteve a respectiva adjudicação, à falta de licitantes,sendo, depois, registrada a correspondente carta de adjudicação. Deposse da carta registrada, requereu então a Caixa Económica "aimediata imissão na posse do imóvel", o que lhe foi negado pelo juiz,"por falta de amparo legal". Dessa decisão, surgiu o agravo deinstrumento, onde se disse o seguinte: "Em época em que tanto sefala na abreviação do andamento processual, pareceria adequadoreviver a imissão de posse pretendida pela agravante, 'sem forma oufigura de juízo', ou seja, mediante simples ordem do Juiz aodepositário do imóvel arrematado ou adjudicado em execução".

"Há antigos precedentes dessa sumária maneira de proceder,mas é de ver-se, data vénia, que com o advento do CPC de 1973

e a criação de uma ação de tipo executivo, especialmente destinadaa concretizar a posse simbólica do adquirente contra o alienante, portítulo judicial ou extrajudicial, já não seria lícito cogitar-se daimissão de posse sem a citação do detentor e sem abrir ao mesmoa oportunidade de alguma defesa que porventura ainda lhe reste."

"Assim, ou o executado-depositário entrega pacificamente oimóvel que já não lhe pertence, ou oferece resistência, cuja licitudecarece de exame por parte do Juiz da execução."

"Nesse último caso, o adquirente tem de valer-se dos meiosregulares para entrar na posse do imóvel."

"Dentre esses meios, abolida que foi a ação especial de imissãode posse, deverá se incluir a execução para entrega de coisa certa,desde que não se leve ao pé da letra a expressão do art. 621 do CPC,que parece exigir a prévia condenação e uma vez que o procedi-mento oferece todas as garantias ao exercício de alguma defesaoponível pelo executado, em tese, obrigado à entrega que se lheexise.

1.°) É difícil não se levar ao pé da letra o que dispõe o art.621 do CPC, pois ele é de uma clareza meridiana ao exigir a préviacondenação do executado, para só então, com base em tal sentença,admitir-se a ação executória.

A solução, como se pretende demonstrar, amplamente, aolongo de todo este estudo, deve ser procurada noutro lugar e comoutros critérios científicos que o acórdão não descobriu.

2.°) Observa-se, contudo, a mesma preocupação pela busca deum procedimento que ofereça ao demandado "todas as garantias aoexercício de alguma defesa", embora o próprio acórdão, como nãopoderia deixar de ser, reconheça que, em tese, estaria ele obrigadoà entrega que se lhe exige.

E aqui reside o gravíssimo problema não percebido, ouescondido, pela sugestão de usar-se as demais vias jurisdicionaispara o ingresso na posse, que seria o objeto da imissão de posse,tais como a reivindicação, a reintegração de posse, ou essa própriaação (do processo de conhecimento?!) sugerida por FredericoMarques, "para entrega de coisa certa". É que, quando se faz a

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passagem da antiga ação de imissão de posse, que mais apareciacomo "especial" a esses processualistas, em virtude de um pretensomandado liminar de imissão, em caso de revelia, quando setransporta a ação de imissão de posse para o procedimento comumno Código de 73, o que a doutrina consegue é nada mais nada menosdo que transfigurar-lhe a estrutura e a essência, transformando-a emação condenatória, com execução diferida. E mais: destruir-lhe aespecialidade substancia! que lhe era inerente, resultante de suasumariedade material, abrindo as mais amplas e desarrazoadasoportunidades aos demandados para que eles aleguem "ampladefesa"; ou se lhes assegure um procedimento que "ofereça todasas garantias ao exercício de alguma defesa ...".

3.") A afirmação de que teria sido criação do Código de 73 aação de "tipo executivo", para concretizar a posse simbólica dosadquirentes por títulos judiciais ou extrajudiciais, e que, em razãodisso, não se poderia utilizar a ação de imissão de posse, não éprocedente. O acórdão tem razão ao afirmar que a imissão, com baseem carta de adjudicação sem citação do possuidor, ou detentor doimóvel, é impossível. Mas isso já o era no Código anterior. Não hánenhuma criação, no particular, no Estatuto de 73.

4.") Aliás, a respeito dessa interessante questão de saber-se seo juiz poderia ordenar - como se tal ordem estivesse contida naprópria carta de adjudicação (eficácia mandamental) - que odepositário-executado entregasse, sem forma nem figura de juízo,a coisa adjudicada, ou arrematada, o acórdão disse, com toda arazão, o seguinte: "Esta (refere-se o julgado à adjudicatária) adqui-riu, sem dúvida, o domínio do bem hipotecado, força da adjudicaçãoregular, mas a posse, ou pelo menos a detenção, permanece como devedor-executado e não perdeu o seu caráter originário, tão-somente por obra da aceitação do cargo de depositário judicial". Asugestão para transformar-se a arrematação em sentença manda-mental foi aceita por Gildo dos Santos (As ações de imissão de possee cominatórias, 2.a ed., p. 70); por Ernane Fidelis dos Santos(Comentários ao CPC, Forense, 1978, v. 6, p. 52); e, na esteiradesses, por Herondes João de Andrade (Ação, Revista, cit., p. 69).O primeiro deles chega a dizer que a carta é "uma ordem do juízo",ou ato decisório em sentido lato (p. 71), Ora, é manifesto que não

se pode ver qualquer ordem de entrega na cana de adjudicação. Aorientação correia, pois, é a do acórdão do tribunal paulista que orase comenta (infra, 8.10).

5.") Contudo, tirar-se da circunstância de não conter a sentençade adjudicação uma ordem para a tomada, ou para a entrega daposse, a consequência de que esse efeito só possa ser conseguidomediante o exercício da ação executória do art. 621 do CPC afigura-se conclusão demasiada e não autorizada pela premissa de onde separte; especialmente se, como está dito no acórdão, tal execução sóentraria no art. 621 uma vez forçada sua redação para permitir-se,com base nele, a execução fundada em título extrajudicial, já quefica subentendido, da decisão do tribunal paulista, que a execuçãoque ele sugere não teria por base a sentença que poderia estarcontida na carta de arrematação e não seria "execução sentenciai"a que se fizesse com base na sentença de adjudicação, contida narespectiva carta (art. 715, § 2.°), havendo licitação; ou fundada emcarta, havendo um só pretendente (art. 715 do CPC).

Ora, a considerar-se, como parece imperioso, que a "execuçãopara entrega de coisa certa", sugerida pelo tribunal paulista,corresponda a uma execução fundada em título extrajudicial, entãoa consequência inafastável será a de que as garantias ao exercíciode alguma defesa a que o julgado se refere terão a dimensão quelhe dá o art. 745 do CPC, de que resulta ao adjudicatário anecessidade de responder a uma ação de embargos do executado,com toda a amplitude de controvérsia permitida pelo sistemaprocessual,

O problema da tomada de posse pelo adjudicatário ou arrema-tante ainda nos ocupará mais adiante. Por ora, deixemos apenasestabelecido que o caminho para o ingresso na posse não deverá seruma demanda fundada no art. 621 do CPC, como, de resto, não serátambém a "execução para a entrega de coisa certa" a via processualadequada para os casos da antiga ação de imissão de posse do art.381 do Estatuto de 39.

E se não for a ação de execução do art. 621 a demanda indicadapara substituir a antiga ação de imissão de posse, não poderia ointeressado servir-se da reivindicatória, ou da ação de esbulho,como muitos alvitram? Quanto à ação possessória de reintegração,

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como possível sucedâneo para a imissão de posse, falaremos quandodiscutirmos a pretensa natureza possessória desta última.

A sugestão para utilizarem-se os interessados da ação dereivindicação esbarra, desde logo, numa dificuldade insuperável; éque nem só os adquirentes, titulares do domínio, podem terpretensão a imitir-se na posse de alguma coisa. Em variadascircunstâncias, diariamente tratadas pelo direito, mesmo uma rela-ção obrigacional pode dar lugar a uma pretensão de imissão naposse. De modo que a sugestão de empregar-se a reivindicatória nãoabrangeria todas as hipóteses em que o interessado, mesmo nãosendo proprietário, ou no caso de sê-lo, não esteja a invocar talcondição - possa ter direito a imitir-se na posse da coisa. Observe-se que se está a falar em "direito à posse", o que, desde logo edefinitivamente, afasta qualquer caráter possessório da ação, pois àtutela possessória não corresponde direito à posse. Protege-se, comas ações possessórias, a posse, como fato jurídico, mesmo embenefício do ladrão, a favor de quem certamente ninguém há dereconhecer direito à posse.

Mas há outra dificuldade ainda maior e doutrinariamente maisrelevante nessa questão da pretensa fungibilidade entre a imissãode posse e a reivindicatória, afirmação essa que se vem insinuando,na doutrina brasileira, desde muito tempo e que urge ter esclareci-mento definitivo. O problema pode ser colocado nestes termos: aação de imissão de posse, quando processada pelo rito ordinário,ou, no sistema de nosso Código, deixando de ser ação especial, paratransformar-se em ação ordinária do procedimento comum, teria,como consequência dessa transmutação de rito, alterada sua subs-tância, transformando-s e em reivindicatória, como afirmava JorgeAmericano (Comentários, cit., p. 195)? Ou, ao contrário, emborapassando a ser demanda do procedimento comum, ordinária ousumaríssima, continuaria a ter a mesma sumariedade material quelhe é peculiar desde o direito romano?

Quando se indaga sobre a existência da ação de imissão deposse, perante o Código de 73, a primeira coisa a fazer-se é distingui-la bem das outras formas de tutela, a que costumam recorrer osjuristas, para servir-lhe de sucedâneo, especialmente diferençá-la daação reivindicatória, já que, sendo ambas demandas petitórias, pelas

quais se pretende obter a posse, só mesmo se elas forem entre siinconfundíveis poder-se-á sustentar a existência e utilidade de nossaação de imissão. E, como consequência disso, impõe-se logo anecessidade de averiguar-lhe o conteúdo, o que, em última análise,dará resposta a nossa indagação anterior. Se a supressão da "espe-cialidade", apenas ritual, da ação a transforma em reivindicatória, éclaro que todo o esforço para ressuscitá-la, depois de 73, seria inútil,pois não há lugar para ela no livro em que o Código trata das açõesespeciais e se ela se confundisse com a reivindicatória - em sendoordinária -, então, por via transversa, teríamos chegado ao mesmoresultado de ter-se a ação de imissão de posse confundida, ou, comose diz, "subsumida" na reivindicatória.

Gildo dos Santos (As ações, cit., p. 76) percebera o problemada distinção essencial entre a reivindicatória e a imissão de posse,quanto à dimensão da controvérsia que cada uma delas contém, aoescrever: "Nada impede, segundo parece, que o autor promova areivindicação da posse que adquiriu, mas isto não lhe é tão favorávelquanto à imissão na posse. Nem mesmo tecnicamente é essa a melhorsolução. Afinal, reivindicar o imóvel que já lhe pertence, quando sólhe falta a simples posse, é medida que só prejudica os interesses doautor. Primeiro, porque na reivindicatória a discussão é sempre maisampla e, é fora de dúvida, que continua válida a lição de que a açãode imissão tem defesa restrita, pois a resposta do réu, contestando,somente pode fundar-se em manifesta nulidade do título, segundopacífico entendimento da doutrina e da jurisprudência".

A conclusão do autor está certa, embora sua premissa estejaerrada: na ação reivindicatória, pede-se a simples posse também. Ea circunstância de "reivindicar o imóvel que já lhe pertence" nãoé de estranhar, pois só o titular do domínio pode fazê-lo. Maislucidez em observação semelhante teve o mestre Dionysio da Gama,ao mostrar que a imissão de posse era "processo precioso pela suarapidez", nos casos em que o autor só necessitasse ser confirmadojudicialmente em sua posse, nos casos em que ele tivesse "direitoqualquer" a essa posse (Tratado theorico e prático de direito civilbrasileiro, 1930, v. 3, § 119).

Contudo o que Gildo dos Santos coloca como sendo uma"lição válida", perante o novo Código, deveria ser, justamente, o

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ponto a merecer resposta, qual seja, a permanência da sumariedadeda ação, perante um Código que não a inclui dentre as açõesespeciais. Verdadeiramente, não havia qualquer conclusão doutri-nária formada durante a vigência do Código revogado que fosseválida agora. O que existia não passava de conclusões apenasdogmáticas, tiradas de um texto de lei agora suprimido. A conclusãode que a defesa do alienante, ou do terceiro, que em nome deledetivesse a coisa, só poderia versar sobre nulidade manifesta dotítulo não era proposição doutrinária que se pudesse ter comoresultante de investigação científica. Correspondia, a muito custo,à elaboração dogmática calcada em disposição legal que procuravalimitar o âmbito de defesa do demandado. Desaparecido o pressu-posto legal, ter-se-á, agora sim, de investigar a permanência dasumariedade material da ação, não como decorrência de disposiçãode lei processual, mas como eficácia imanente à demanda.

A questão foi suscitada, com elogiável clareza e precisãotécnica, pelo Prof. Adroaldo Furtado Fabrício, em seus beloscomentários, recentemente publicados, referindo-se a um estudonosso sobre a eficácia executiva da ação de imissão de posse.Escreve o processualista gaúcho, referindo-se às duas conclusões aque então chegáramos, no aludido ensaio - a de que a ação em causaera de natureza executiva e a afirmação de sua permanência, noregime do Código de 73, com o "mesmo caráter": "Não é fácilidentificar-se entre essa conclusão e a ampla e erudita fundamentaçãoprecedente uma correspondência lógica satisfatória. Não foi explicitadauma premissa necessária. Uma delas, a da existência no sistemajurídico de ações executivas, foi sólida e convincentemente estabe-lecida. Mas não se estabeleceu a de que determinadas 'ações' sejamnatural, intrínseca e necessariamente executivas, independentementedo tratamento que lhes dispense o direito positivo" (Comentários aoCódigo de Processo Civil, v. 8, t. 3, p. 36, Col. Forense).

A crítica, sern a menor dúvida, é procedente no que respeitaà insuficiência de nossa demonstração lógica entre a conclusão deser executiva a demanda, perante um CP que continha regraexpressa sobre a executoriedade da sentença, na mesma relaçãoprocessual, e a permanência desse caráter, já agora perante umCódigo que se comporta, justamente, de modo inverso ao anterior,

propondo-se suprimir, como de fato o fez, a especialidade ritual daação e, ao que tudo indica, imaginando, por esse meio, fazê-ladesaparecer de nosso sistema. Cabe-nos, então, o ónus de demons-trar nossa assertiva; e a tal nos propomos na exposição que se segue.

Antes, porém, vejamos como prossegue o processualista: "Nãonos parece demonstrado esse ponto. Ao contrário, é ao direitolegislado que, sensível inclusive a razões de conveniência sócio-econômica, cabe provar sobre a necessidade ou não, com respeitoa determinada pretensão de direito material, de manter ou suprimira dicotomia cognição-execução, que é a regra. Não cremos, aliás,que favoreça a tese da executividade 'natural' a invocada lição deLíebman, que antes parece apontar para a solução aqui preferida.A lei de processo é que estabelece a 'executividade' das ações, pelainstituição de procedimentos específicos onde se incluam medidasde caráter executivo. Da inegável possibilidade, a que Liebman serefere, de processos em que a cognição e a execução coexistam ese interpenetrem não resulta que eles possam surgir independente-mente de consagração legislativa, caso a caso - e com maior razãonum sistema jurídico caracterizado pela nítida e marcada separação,dentro do próprio direito legislado, das diversas espécies de tutelajurisdicíonal e dos correspondentes processos de conhecimento,execução e cautelar".

"Eis por que - admitindo, embora, de lege ferenda, apreferibilidade da solução oposta - concluímos estar a ação deimissão de posse, no direito positivo brasileiro, excluída da classedas executivas. Ela se submete a rito comum (ordinário ou suma-ríssimo) e acha-se praticamente subsumida na reivindicatória, sujei-tando-se a sentença que nela se profere a execução também comumpara entrega de coisa certa" (Comentários, cit., p. 36-7).

A clareza de raciocínio e a profundidade da temática suscitadaobrigar-nos-á a retomar a exposição que já fizemos, na parte inicialdeste trabalho, sobre os conceitos de ação e pretensão de direitomaterial, de modo a alcançar-se, com esses instrumentos, umavisualização mais nítida dos elementos que, em tal conceito,pertencem ao direito material e dos componentes verdadeiramenteprocessuais inerentes à pretensão e à ação de imissão de posse.Depois disso, seremos forçados a tentar uma restauração histórica

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das vicissitudes por que passou a nossa ação, desde o direitoromano. A tarefa poderá, ao que se supõe, tornar-se fastidiosa aoleitor que estiver mais interessado em soluções dogmáticas do que,propriamente, em investigação doutrinária do problema. Mas, peloque temos visto, nessa matéria, onde grassa um inacreditáveldesencontro de opiniões, muitas vezes superficiais e apressadas,mas nem por isso menos influentes, não nos seria lícito dispensar-nos dessa pesquisa.

Façamos, porém, antes disso, com o objetivo de facilitar nossaanálise, um esquema das afirmações feitas por Adroaldo FurtadoFabrício. Segundo o eminente processualista, a) a ação de imissãode posse era, no regime do Código de 39, indiscutivelmenteexecutiva; b) contudo, não está demonstrado que certas "ações"(chama a atenção que o autor empregue, neste contexto, a palavraação entre aspas) sejam "necessariamente executivas", independen-temente do tratamento que lhes dispense o direito positivo; c) aocontrário disso, ao "direito legislado" é que cabe prover sobre anecessidade ou não de manter-se, relativamente a determinadapretensão de direito material, a dicotomia processual cognição-execução; d) essa dicotomia, pela qual a pretensão de direitomaterial se distribuiria por duas demandas processuais distintas eautónomas, processualmente separadas, segundo o escritor, é aregra, em doutrina; e) o sistema processual brasileiro, marcadamenteorientado para a nítida separação entre cognição e execução, deverá,como regra, observar esse princípio;/) a lei do processo, portanto,é que deve estabelecer a "executividade" das ações; g) a imissãode posse, quando transferida para o procedimento comum (ordinárioou sumaríssimo), quer dizer, ao perder seu caráter de demanda derito especial, confunde-se com a reivindicatória; e, finalmente, h)sendo a imissão de posse, no Código de 73, uma ação de procedi-mento comum, sua execução também o será, razão pela qual orespectivo procedimento será o indicado para a "execução paraentrega de coisa certa".

Como se vê da proposição (sub b), a perda da ritualidade"especial" teria a virtude de tocar-lhe a essência, transformando aimissão de posse, de ação executiva que fora, em demanda condena-tória. Perderia ela, então, alguns elementos de sua eficácia primor-

dial, pois, a ser verdadeira a conclusão tirada pelo jurista, tornar-se-ia ela impotente para realizar-se executivamente, na mesmarelação processual, carecendo de uma nova ação executória a serproposta pelo demandante vitorioso, para, só aí, revelar-se ocomponente executivo que antes estava na petição inicial da ação.

O ponto crucial que neste particular se define como aqueleatinente à influência maior ou menor da estrutura do direitomaterial, como fator determinante de formas procedimentais, nãoescapou à observação do autor que alerta, seguindo uma observaçãode J. Alberto dos Reis, para o fato de que determinadas classes deritos procedimentais se diferenciam e se agrupam sob influênciasde peculiaridades determinadas pelo direito material envolvido nalide (Comentários, cit., p. 40).

Ainda uma outra observação preliminar se impõe. Trata-se daafirmação de Furtado Fabrício de que caberia ao "direito legislado"prover sobre a necessidade, ou não, de manter-se a dicotomiaprocessual cognição-execução. Aceitando, como o aceita o escritor,nossa premissa da existência de um tipo especial de ações, a quedenominamos executivas lato sensu, sua conclusão é a de que ocaráter de executividade ou condenatoriedade, como cargas eficaciaispreponderantes das respectivas ações e sentenças, reduzir-se-ia a umproblema de pura conveniência legislativa.

Além das dúvidas que se poderiam e, efetivamente, se hão desuscitar quanto à veracidade de tal assertiva, no caso vertente,parece-nos que também o eminente processualista pode ser acusadodo mesmo pecado lógico que nos atribuiu. Em verdade, segundopensamos, não se pode reduzir, para fins de investigação sobre apermanência ou não do caráter de demanda executiva da ação deimissão de posse, "direito legislado" a direito processual. Podemos,sem qualquer dificuldade teórica, aceitar a afirmação de que caberáao sistema jurídico, de cada Estado, estabelecer quais as pretensõese ações condenatórias, e quais as dotadas de "executividade"; e,mesmo assim, insistir em que o sistema brasileiro, pela simplespromulgação de um novo diploma processual, não sofreu abalo emsua estrutura, a ponto de transformar em condenatória uma ação quefora, no regime do estatuto revogado, aceita como sendo nitidamen-te executiva.

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Diremos mais: nem a afirmação radical de que as regras dedireito processual seriam suficientes, sempre, para determinar a"executividade" de uma demanda pode ser aceita sem restrições;como a assertiva inversa também seria demasiada e sem correspon-dência nos fatos. Assim como pode haver executividade criada noplano processual, em outros casos a natureza executiva da demandanasce no direito material e o legislador de processo, nesta hipótese,será impotente para transfigurar-lhe a fisionomia.

Casos há em que a perda da executividade depende só de umaregra de direito processual, ao passo que noutros a natureza executivada pretensão de direito material impõe-se ao legislador imperiosa-mente e acaba por modelar a respectiva ação, no plano processual,ainda que a lei do processo mantenha silêncio a seu respeito.

Certamente, com relação à hipótese de que tratamos, poderiaocorrer que o legislador de processo lançasse uma regra expressa,determinando que, na ação de imissão de posse, a execução se fizessepor meio de ação executória autónoma. Nesse caso, que nada tem aver com nosso problema - onde o que se quer é saber o sentido dosilêncio do legislador -, efetivamente teria a lei processual trans-formado a ação de executiva em condenatória. Porém, o seu triunfosobre a realidade seria efémero e ilusórios seus resultados, pois aodistribuir, por duas demandas, o conhecimento e a execução, antescomponentes de uma única demanda, tornaria uma delas supérflua eoca de matéria litigiosa, destituída de qualquer sentido prático.

Outro exemplo que serve de elemento para nossa análise é otratamento dado pelo legislador de 73 às ações cominatórias do art.302 do Código de 39. Aliás, o Prof. Adroaldo Fabrício a elas serefere, nos seguintes termos: "Assim, e atendendo-se também a queo Código não proíbe, antes explicitamente autoriza, a formulaçãode pedido de cominação inicial, apenas a forma especial foisuprimida [sem grifo no original], porque a pretensão de cunhocominatório perdura (com as exceções que logo examinaremos),submetida embora, com resultados praticamente equivalentes, aoprocedimento ordinário ou ocasionalmente a outro que a lei pres-creva" (Comentários, cit., p. 28).

A ação cominatória, tal como a conheceu o direito luso-brasileiro, sob o nome de ação de embargos à primeira, consistia

numa demanda em que se adiantava decisão condenatória, fazendo-se com que o mandado de citação contivesse já "mandado proibitório"(Corrêa Telles, Doutrina, cit., § 201), de modo que a citaçãocontinha mais do que simples chamamento a juízo do demandado.Havia no preceito conteúdo decisório, tanto que poderia a preceituaçãoliminar adquirir eficácia de coisa julgada (para o direito português,também Manuel de Almeida e Souza, Tratado das ações sumárias,§ 569; para o direito germânico, L. Rosenberg, Tratado, cit., § 160,p. 528 e 534; e para o direito italiano, a respeito do processomonitório, Calamandrei, El procedimiento monitoria, 1946, p. 60e 254; Garbagnatti, / procedimenti d'ingiuniíone e per convalida disfratto, § 15). Daí porque haveria o réu de embargar, ao invés desimplesmente contestar a ação. Mas o adiantamento de eficácia,como é facilmente compreensível, dava-se no plano processual. Apretensão de direito material era e, com adiantamento ou não deeficácia sentenciai, continuava condenatória.

Coisa semelhante ocorre com nossos interditos possessóriosque desaparecem quando se pretende tutela para "posse velha",embora perdure o caráter possessório da demanda, concebida, aindaneste caso, para defesa da posse, aqui, porém, sem a natureza detutela interditai, uma vez que, desaparecida a especialidade contidana liminar possessória, terá a demanda curso ordinário ou sumarís-simo, segundo os pressupostos. Dado que a demanda interditai nodireito contemporâneo é plenária, como também o será a posses-sória ordinária, com esta necessariamente se confunde tão pronto selhe corte, no plano processual, a eficácia sentenciai antecipada,conteúdo da decisão liminar.

O Prof. Adroaldo Fabrício continua sua exposição sobre ascominatórias assim: "Quando se afirma, como se vem de afirmar,que o desaparecimento do rito especial antes existente para as açõesde preceito cominatório não implica o das pretensões de direitomaterial que por aquelas vias se deduzem, torna-se necessárioadvertir de pronto que, em face de uma peculiaridade do velhoCódigo, a assertiva comporta exceções. Vale dizer, suprimidasficaram, com efeito, algumas daquelas pretensões, porque eramcriações do revogado Código de Processo"... "Donde afirmar-se quea própria pretensão de direito material radicava na lei processual,

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ou mais exatamente em disposição de Direito Material excepcional-mente colocada em um código de processo" (Comentários, cit., p.29). Entende, o autor, segundo pensamos, com razão, que o Prof.Couto e Silva (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 11, p.15, Col. RT) comunga da mesma opinião. Este último escreve oseguinte a respeito das ações cominatórias criadas pelo art. 302 doCódigo de 39, especialmente sobre a ação concedida ao fiador peloinc. II desse artigo.: "... o anterior CPC, ao dispor sobre essas ações,na verdade legislou sobre direito material, pois, ao conferi-las emcertos casos, deu ação onde o direito material não conferia preten-são". Realmente, como assevera o jurista, a ação do inc. II do art.302 não estava no art. 1.491 do CC.

Lamentamos, porém, divergir de ambos os processualistas,especialmente quando o primeiro se coloca em divergência a Pontesde Miranda, admitindo, como acaba o mestre gaúcho por afirmar,que a supressão da regra do art. 302 do CPC, no caso de seu inc.II, por exemplo, faria com que o próprio direito subjetivo materialdesaparecesse, o que estaria a demonstrar que a regra era, realmente,de direito material, inserta em Código de Processo.

O que ocorre, contudo, como seguidamente acontece, é queexiste aqui um novo exemplo de imprecisão linguística, pela qual,aliás, parece responsável Pontes de Miranda, ao deixar imprecisa-mente definidos os conceitos de "ação de preceito cominatório" e"pretensão à cominação". O que se afirma é que a "ação de preceitocominatório", ou, como a denominavam os velhos juristas luso-brasileiros, "ação de embargos à primeira", é, sempre foi e só poderáser entidade de direito processual. Não existe, no plano do direitomaterial, alguma coisa a que se possa dar o nome de pretensão(satisfativa\) a simples cominação. O direito processual é que aconcebe, como instrumento técnico de realização (satisfação) dealgumas pretensões de direito material que, por outros meios, seriaminalcançáveis, in specie. Quando se pensa em "ação cominatória",não se está, e nem se pode elevá-la ao mesmo plano de existênciade uma ação declaratória, ou uma ação constitutiva. No plano dodireito material, quer-se a execução, ou a declaração, ou a cons-tituição ou a simples condenação (para que a execução se dê noutroprocesso). Todavia, nesse mesmo plano, jamais se quer (só) comi-

nação. Usa-se de cominação para, no plano processual, tornarexequíveis, por essa via oblíqua, determinadas pretensõescondenatórias que, pela configuração peculiar da relação de direitomaterial de que provêm, não encontrariam execução jurisdicionalpor outro meio. As pretensões, condenatórias todas, que nascem dasobrigações de pagar certa quantia em dinheiro, ou de entregaralguma coisa, ou de fazer ou não fazer, equivalem-se, no plano dodireito material. Todas têm como piso um direito de crédito e urnapretensão à satisfação dessas obrigações. A diversidade de trata-mento delas dá-se no plano processual.

O Código de 73 não eliminou, certamente, a "pretensão àcominação", sob pena de deixar ao desamparo os direitos quenascem das obrigações de fazer ou não fazer. Contudo, nessediploma, a cominação não é concebida como eficácia de decisãoliminar e sim como resultante da sentença final, para o caso de não-cumprimento da sentença, como demonstrou, com propriedade,Nelson Nascimento Diz (RT 461/27). Não há, portanto, em nossosistema, decisão liminar que antecipe condenação. Logo, a ação depreceito cominatório, como a conhecíamos, desapareceu.

De tal sorte, mesmo naquelas hipóteses em que não hajaprevisão, no direito material, de uma pretensão à cominação, comoocorria entre os arts. l .499 do CC e 302, II, do CPC, a criação, pelolegislador, de uma nova pretensão à cominação, dá-se no plano"pré-processual", assim como acontece com a ação rescisória, oucom a ação de restauração de autos (arts. 1.063-1.069 do CC), quesão pretensões só processuais e existem em virtude de regrasinseridas em CP, como é executiva e pretensão a exigir-se opagamento de obrigação de entregar coisa fungível (art. 585, II, doCPC). Se tal disposição for retirada do CPC, a executividadedesaparece, embora a pretensão de direito material à satisfação docrédito, como é natural, permaneça intocada.

De modo que, para resumir, mas fundamentalmente para nãonos alongarmos em demasia sobre esse assunto, podemos afirmar,sem medo de errar, que a ação cominatória, como nosso direito aconhecia, desapareceu com o Código de 73. Não temos mais a "açãode embargos à primeira". Não há mais, mesrno na ação que contenhaa cominação de que fala o art. 287 do CPC, aquela "ação especial"

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cominatória, que continha decisão liminar condenatória', assim comodesapareceu a ação executiva do art. 298, IX, do Código de 39,outorgada aos credores por foro, laudêmios ou aluguéis, "provenien-tes de contratos verbais" (sobre a supressão da ação executiva, nessecaso, vejam-se as valiosas observações de Mendonça Lima, Comen-tários ao CPC, 3.a ed., v. 6, t. l, p. 427 et seq.\

Nossa tarefa, então se define como dirigida ao propósito deevidenciar que a) a ação de imissão de posse mantém sua naturezade ação executiva; e b) que, permanecendo ação materialmentesumária, não se confunde com a reivindicatória, mesmo nos casosque eram abrangidos pelo art. 381, I, do Código anterior. Sepudermos demonstrar esses requisitos, como peculiares e existentesem nossa demanda, então estará fundamentada a questão de suapermanência em nosso sistema.

Ainda como elemento de contraste, para averiguar-se a in-fluência das regras processuais sobre a estrutura das pretensões eações de direito material, utilizemo-nos de um novo exemplo.Vimos que a outorga de tutela executiva, aos créditos, a quecorrespondam obrigações de entregar coisa fungível, pode serconferida ou negada pelo direito processual; de igual modo, a açãocambiaria típica de cobrança é executiva. Contudo, a lei processualpoderia cortar-lhe a benefício da executividade, dispondo que oscredores por letras de câmbio, promissórias ou outros títuloscambiários deveriam obter a prévia condenação do obrigado epromover, a seguir, a execução, fundados em sentença condenató-ria. A regra de nossa antiga lei cambiaria, contida no art. 49, ai. l .a

da Lei 2.044, de 31.12.1908 ("A ação cambial é a executiva"), deveentender-se como outorga de remédio jurídico processual executivo(v. as esclarecedoras palavras de Pontes de Miranda, Tratado dedireito privado, cit., 2.a ed., t. 35, p. 125-127). Se a parte renunciaao benefício da executividade que o título lhe confere e propõe açãode condenação, a ação cambiaria é a mesma.

A ação cambiaria, como todos sabemos, é sumária, no sentidode ter gravemente limitada a área por que se podem estender asdefesas do obrigado cambiário.

Porém, se o legitimado cambiário para a ação de cobrançapromove ação condenatória, sob o rito ordinário, fundado na

cambial, como uma ação ordinária de cobrança - o que é possível,em nosso direito -, a natureza da ação cambiaria estaria alterada,a ponto de expor o portador do título e demandante na ação decobrança a toda sorte de defesas e exceções, mesmo àquelas vedadaspelo direito cambiário? A mudança do "remédio jurídico proces-sual" teria a virtude de transformar a ação cambiaria em ação decobrança fundada em mútuo, ou qualquer que fosse o negóciojurídico subjacente à cambial? Ou, dizendo-se a mesma coisa comoutras palavras: a ação executiva cambiaria do art. 585,1, do CPC,quando processada pela forma ordinária, faz o título cambiáriodesaparecer e transformar-se em "escrito assinado pelo devedor",simples começo de prova por escrito do (eventual) negócio jurídicoque lhe tenha servido de base para a criação? A ação cambiariapermanece executiva ou desaparece? A enérgica resposta negativafoi dada por Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, cit.,t. 35, p. 199, e também in Comentários, cit., t. 4, p. 370).

De modo que, transposta que seja a ação cambiaria - ação dedireito material, a que se liga pretensão e direito subjetivo cambiário- para outro lugar, num CP, e regulada com outro rito, outorgadoque lhe seja o benefício executivo, ou cortada essa tutela, a demandapermanece íntegra em seus elementos internos. E a matéria dacontrovérsia suscitável na contestação da ação condenatória não terádimensão mais vasta do que aquela que o executado poderia incluirem seus embargos. A esses princípios é que presta homenagem o art.745 do CPC, ao dispor que as defesas admissíveis nos embargosfundados em execução por título extrajudicial serão aquelas queseriam admissíveis, como contestação, no processo de conhecimento.

A questão, apropriadamente colocada por Adroaldo FurtadoFabrício, e realmente de importância fundamental não só para odesenvolvimento de nosso problema, mas também como questão deteoria geral, sempre presente, como pano de fundo, em muitascontrovérsias, às vezes intermináveis, está, pois, em saber seexistem "ações" - e aqui usamos propositadamente o terno açãoentre aspas, como ele o faz - que "sejam natural, intrínseca enecessariamente executivas", independentemente do tratamento quelhe dispense o direito positivo, como indaga o autor; e a que nósacrescentamos, particularizando a questão: "independentemente dotratamento que lhe dispense o direito positivo processuar.

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Ora, se acrescentarmos, como entendemos apropriado, o qua-lificativo "processual" ao conceito de "direito positivo", empregadopelo processualista, então a perspectiva para a resposta se alterasubstancialmente, a ponto de dar-nos a convicção de que só nessadimensão a pergunta faz sentido, e apenas nessa óptica se poderiaresponder, com pertinência, à indagação proposta.

Realmente não faria sentido a indagação que fizéssemos aosistema jurídico brasileiro se haveria, perante ele, uma entidadenecessariamente identificável com a ação constitutiva ou declarató-ria, sem que o próprio sistema a reconhecesse como existente e adisciplinasse, como pretensão de direito material, dando-lhe viaapropriada de acesso à tutela jurisdicional. Sem dúvida não poderãoexistir quaisquer ações (referirno-nos à ação de direito material) oumesmo "ações" (entidade de direito processual) sem que o sistemajurídico a reconheça e a legitime. Daí porque demo-nos a liberdadede supor que o escritor, ao formular a questão sobre a eventualidadeda existência de uma "ação" natural e necessariamente executiva,queria saber se tal entidade poderia existir, no plano processual,quando o próprio direito processual a desconhecesse.

Cremos, portanto, que a solução deve ser encontrada medianteuma prévia delimitação, neste contexto, desses dois conceitos comque estamos a lidar: a ação, enquanto entidade pertencente ao direitomaterial, e "ação", como o agir perante o órgão estatal obrigado aprestar jurisdição.

Um determinado sistema jurídico pode desconhecer a açãodeclaratória, como entidade autónoma de tutela jurisdicional, e,mesmo assim, haver, no plano do direito material, pretensão àdeclaração (sobre isso, conferir o que escrevemos em A açãocautelar, cit., p. 29; mas, fundamentalmente, Pontes de Miranda,Tratado de direito privado, cit., 2.-' ed. t. 5, p. 459).

Se, voltando ao exemplo das cominatórias, tomarmos paraexame o caso previsto no art. 302, III, do Código de 39, veremos queo deserdado, no plano do direito material, não tem pretensãocominatória, ou seja, simples pretensão a que se comine ao deman-dado, no caso, ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite adeserdação, a cominação a que prove o fundamento desta, sob penade considerarem-se nulas as disposições que prejudiquem a legítima

do deserdado (art. 1.743 do CC). A pretensão a que se comine penaao beneficiado pela deserdação surge como instrumento de técnicaprocessual; é pretensão que nasce em razão da especialidade da regrade direito material sobre eficácia da deserdação, mas já não está noplano do direito material a pretensão.

O que o deserdado tem é direito e pretensão a que se provea veracidade da causa da deserdação, pois, se o beneficiado, como afastamento do herdeiro excluído da herança, por deserdação emtestamento não provar a veracidade da causa, consideram-se nulasa instituição e as disposições que prejudiquem a legítima dodeserdado.

O problema da necessidade de cominar-se pena ao herdeiroinstituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, decorre dacircunstância de caber-lhe o ónus de prova, o que, em última análise,se reduz a uma espécie de obrigação de fazer, para cujo cumprimentoo interessado não pode contar com outro meio senão forçá-lo aexecutar, com a cominação para o caso de incumprimento desse ónus.A necessidade de cominação ("prova, sob pena de ter-se por nula ainstituição ou as disposições prejudiciais ao deserdado") surge de umproblema de técnica processual, diríamos, de uma contingênciasurgida no plano processual que não tem meios para oferecer outraalternativa à satisfação da pretensão do autor da ação condenatória.

A cominação por si só, não é forma de satisfação dos direitose pretensões existentes no plano do direito material. As pretensõesde direito material satisfazem-se reconhecendo-se elas como exis-tentes (ação declaratória), ou executando-se, no plano jurisdicional,a obrigação, ou cumprindo-se, fora do processo, a prestação; oucorno decorrência de criação, modificação ou extinção de umarelação jurídica, por meio de sentença constitutiva, ou ato jurídiconegociai, ou não, ainda no plano do direito material. A cominação,referida ao direito material, implica imposição de pena a quem secomina o exercício da atividade (ação ou omissão). Portanto, noplano puramente de direito material, a pretensão que lá está é acondenatória.

Se, como ocorre na concepção do Código de Processo Civil, aparte pode inserir na petição inicial a cominação de pena, para o casode vir o condenado a descumprir a sentença, isso, como é óbvio, não

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retira ao ato decisório sua natureza de sentença condenatória. Acominação é expediente de técnica processual que responde àespecialidade das obrigações de fazer. Portanto, pretensões que estãofora do direito material; e sempre hão de estar, ainda quando criadaspelo direito processual em lugares onde não haja regra nos Códigosde direito material. Não existe, ao lado das ações (e pretensões)declaratórias, condenatórias, constitutivas, executivas e mandamentais,uma sexta classe de pretensão de direito material cominatória.

E, como resultado disso, temos que o Código vigente suprimiua ação cominatória, como a conhecia o direito brasileiro. Acominação do art. 287 desse Código em nada modifica a naturezacondenatória da sentença, nem interfere com a sua eficácia prepon-derante. As outras eficácias certamente poderão variar, em cadacaso, dependendo da estrutura do direito material envolvido nacausa. A ação cominatória do deserdado, embora condenatóriacomo a do locador, no caso do inc. VI do mesmo art. 302 do Códigode 39, terá as demais eficácias sentenciais menores diversamentedispostas, com relação a esta última. Naquela, os elementos decla-rativo e constitutivo serão certamente mais relevantes, ao passo quenesta, aparecerá a eficácia executiva mais em evidência. Depois daeficácia condenatória, atente-se bem.

Assim, postas as coisas, poderíamos concluir, ao menos emlinha de princípio, que a supressão das ações de imissão de possedos chamados "procedimentos especiais" não poderia, em primeirolugar, transformá-la em demanda "plenária", se ela, além daespecialidade ritual, fosse sumária, sob o ponto de vista material,como ocorre com a ação cambiaria.

Finalmente, admitida a existência de uma classe de ações quenão sejam declaratórias nem constitutivas e, mesmo assim, sejamdiferentes das condenatórias, ter-se-ia de averiguar - e aqui seencontra o cerne do problema apropriadamente posto por AdroaldoFabrício - se a atribuição dessa configuração especial à demanda,que a faz executiva, é fenómeno que nasce e se exaure no plano dodireito processual, ou se, ao contrário, a executividade da ação deimissão de posse, como em tantos outros casos, lança raízes nodireito material, de tal modo que ao legislador do processo sejaimpossível desfigurar-lhe a natureza.

À afirmação do processualista, de que ainda está por serprovada a existência de determinadas ações que "sejam natural,intrínseca e necessariamente executivas", independentemente doque venha a dispor o legislador do processo, poder-se-ia simples-mente responder que a ação de anulação de matrimónio seránecessária e intrinsecamente constitutiva, ou deixará de ser açãoanulatória, qualquer que seja a intenção da norma processual quea discipline.

O Código de 73 igualmente omitiu qualquer referência à açãode usucapião de móveis, pois só faz alusão à ação de usucapião deterras particulares. Ante esse silêncio, ter-se-ão por revogados osarts. 618 e 619 do CC? E, afastada essa hipótese que seriainaceitável, teria a ação de usucapião, por ter tratamento não maisespecial, mas sujeitar-se ao procedimento comum, deixado de serdeclaratória, para transformar-se em condenatória? Pois a questãosuscitada pelo eminente processualista gaúcho insere-se nessa mesmaperspectiva: assim como as ações constitutivas, ou as declaratórias,ou as condenatórias - com execução diferida para uma demandasubsequente - são entidades que existem independentemente davontade do legislador processual, assim também se há de buscar,para além de simples "razões de conveniência sócio-econômicas",como quer o escritor, critérios científicos consistentes, capazes denos indicarem a natureza e as diferenças específicas entre umademanda condenatória e outra executiva lato sensu. Essa, de resto,é a tese central de todo este estudo.

Fixemo-nos, porém, em um ponto de suma importância:queremos assinalar, com o maior cuidado, a distinção entre preten-são e ação de direito material e o fenómeno completamente distintodesses que é a atribuição de "remédio processual" executivo, comoocorre com os títulos executivos extrajudiciais. Aqui, efetivamente,o "benefício executivo", outorgado ao documento, é decorrente daequiparação dele à sentença condenatória; nasce da lei processuale a retirada da executoriedade, pela lei processual que a outorgou,evidentemente resulta na supressão do benefício executivo. Contu-do, se tivermos presentes os fundamentos históricos que originaramos títulos executivos, veremos que a executividade se deu porequiparação deles à sentença condenatória. A criação do título

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142AÇÃO DH IM1SSÃO DE POSSE

executivo extrajudicial apenas coloca o devedor na condição decondenado. Não há, aí, tratamento processual de uma pretensãoexecutória, mas atribuição de eficácia executória - melhor diríamos,"equivalência condenatóría" - a certos documentos, por critériosde mera conveniência legislativa. Daí porque, quando vivíamos emregime de dualidade legislativa - o direito material de origemfederal, e estadual o processo -, a atribuição de eficácia executivaà cambial pela Lei Federal 2.044, de 31.12.1908, mereceu, comrazão a increpação de inconstitucionalidade (Alcides de MendonçaLima, Comentários, cit., p. 47). Agora, evidentemente, mesmonaquele regime de dualidade legislativa, ninguém se aventuraria aacusar de inconstitucional uma lei federal que criasse, digamos, umaação anulatória de casamento, como ocorreu com o CC, cujapromulgação se deu naquele regime. Certamente a eficáciaconstitutiva da ação anulatória, em tal caso, jamais pode ser pensadacomo entidade de direito processual. Fenómeno semelhante ocorrecom a sumaricdade de algumas ações que, em certos casos, decorreda lei, noutros^ de seu objeto (assim, a respeito das cominatórias,Pontes de Miranda, Tratado das ações, cit., t. 5, p. 163).

Os exemplos por nós indicados das ações de usucapião demóveis e da ação de execução por títulos extrajudiciais deixam-nosà vontade para prosseguir, sabendo agora que a permanência, ou asupressão, da ação de imissão de posse não é assunto a ser decididode modo simplista, como se as pretensões imissivas fossem cria-ções, mais ou menos arbitrárias, do legislador processual. Trata-se,então de averiguar se existem, no direito brasileiro contemporâneo,pretensões e ações que configurem direito aposse, que possam sertratadas processualmente de maneira independente e autónoma; e seessa possível demanda de imissão na posse, desde que existente,seria "necessariamente" executiva; ou se, ao contrário, com apromulgação do Código de 73, teríamos de degradá-la à condiçãode demanda condenatória - o que corresponde, em última análise,a responder-se à arguta e precisa indagação de Adroaldo Fabrício.

Teremos, então, de perquirir se o legislador do processo podedar estrutura executiva, por exemplo, a uma ação de indenização,ao mesmo tempo em que poderia suprimir, impunemente, a eficáciaexecutiva de nossa atual ação de despejo. E tudo por um simples

AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE 143

critério de conveniência. A questão que se coloca, pois, é a seguinte:uma vez admitida uma quarta classe de ações, definidas como"executivas lato sensu", existentes no mesmo plano das constitutivas,declaratórias e condenatórias, teria o legislador do processo arbítriopara defini-las por critérios de simples conveniência, ou, ao contrá-rio, haveria, entre a nova classe e as demais, algum critérioontológico que as individualizasse?

Segundo pensamos, o que faz com que, em certos casos, o "atoexecutivo" se transforme em "demanda executiva" (na ação execu-tória do Liv. II do Código) será a própria índole da ação, conformese inclua, ou não, em sua rés deducta, a questão da legitimidade daposse que o demandado exerce sobre a coisa que, pela respectivademanda, se reclama. Essa foi a matéria de que tratamos na partegeral desta obra. Resta-nos, pois, tão-somente, averiguar, no desen-volvimento da ação de imissão de posse, desde o direito romano deque elementos se compõe a sua rés deducta, para, então, podermosafirmar se ela, efetivamente, é demanda executiva; e, se, além deexecutiva, será sumária.

8.4 Origens romanas da ação de imissão de posse

8.4.1 Pretensão à imissão na posse como proteção interditai

Parece imune a qualquer dúvida séria o entendimento de quea ação de imissão de posse, do direito brasileiro, seja provenientedos interditos romanos adipiscendae possessionis.

Eis o que, a respeito, escreve Câmara Leal: "No direitoromano, os interditos relativos à posse dividiam-se em três classes:a) interdicta adipiscendae possessionis - para obtenção de umaposse que não se tinha ainda; b) interdicta retinendae possessionis- para conservação de uma posse que já se tinha e não cessou, masna qual se foi molestado; c) interdicta recuperandae possessionis- para recuperação de uma posse que se tinha, mas da qual se foiprivado" (Comentários, cit., p. 98-9).

Depois de referir a doutrina de Savigny e Maynz sobre anatureza não-possessória dos interditos "aquisitivos da posse",doutrina de que participava Lafayette (Direito, cit, p. 79 e 174),

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Não seria o caso de invocar-se a fórmula indefinível e ambíguado Código mineiro, para solucionar a questão. A simples substi tui-ção do conceito de nulidade manifesta pelo outro, mais uíL-quudo,de ineficácia do título, seria suficiente para proteger-se, convenien-temente, a posição do demandado, e preservá-lo contra uma açãode imissão de posse, intentada pelo adquirente contra o própriotítulo. E - o que é fundamental, na perspectiva em que noscolocamos - essa correta definição da controvérsia deixaria acontestação, como se impõe, em seus precisos limites de arguiçãode defesas contra o título que fundamenta a demanda.

De modo que, colocada a questão nesses termos, tem-se deadmitir, como corretas, as duas decisões, antes indicadas, doTribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a primeira da lavra doDês. Loureiro Lima, que declarou serem incabíveis quaisqueralegações apresentadas na contestação que não dissessem respeitoà "nulidade do título" (retius, ineficácia); e a segunda, de que foirelator o Dês. João M. Soares, que afirmou que a imissão de posse,quando intentada contra terceiro, dá ensejo a mais ampla defesa"para excluir a legitimidade do direito do autor sobre o objeto dolitígio" (acórdãos, respectivamente, na RF, 88:220, e em Alexandrede Paula, O processo, cit., v. 6, p. 2.783). A "ampla defesa"admitida em favor do terceiro, que era e permanece "parteilegítima para a imissão de posse, só é admissível para excluir alegitimidade da demanda; e •não, como pensava Jorge Americano,para transformá-la em reivindicatória, de tal modo que ela pudesseser acolhida como se fora esta segunda demanda.

A posição que ora se sustenta, relativamente à matéria dacontrovérsia cabível em contestação, coincide com a doutrinaesposada por Pontes de Miranda, ao comentar o Código de 39, ondeo jurista escreveu o seguinte:

"A defesa tem de consistir nas afirmações sobre a ineficáciado título. Naturalmente o réu pode discutir a existência e extensãodo direito do autor à posse própria (art. 381, inc. I), ou à posseimediata (art. 381, incs. II e III), inclusive no tempo e no espaço.A própria eficácia do título pode ser atacada. Não só quanto à forma;também quanto ao fundo" (Comentários, cit., t. 6, p. 182-3).

Tem-se, aí, excelentemente resumidas, algumas das questõesfundamentais e polémicas sobre a ação de imissão de posse. Dentre

elas, queremos destacar essa que o jurista com tanta propriedadecoloca, de poder a defesa consistir em objeções "quanto à forma",e, igualmente, "quanto ao fundo", para evidenciar que, ao contráriodo que ocorre com os títulos e negócios jurídicos abstratos, asdefesas contra a imissão de posse não devem ser, nem de longe,assemelhadas às pertinentes, por exemplo, no direito cambiário, cujaliteralidade impede o exame das "defesas de fundo", que diriamrespeito ao negócio jurídico causal, subjacente ao título cambiário. Aimissão de posse, embora sumária e, em certo sentido, equiparávelaos "processos documentais", admite todas as defesas que possamelidir o "direito à posse" do autor, compreendida nesse conceitopeculiar de "ineficácia do título" a nulidade manifesta, porque estaé mais do que ineficácia, por ser invalidade. Contudo, as arguiçõesque digam respeito à anulabilidade seriam inviáveis (Pontes deMiranda, Comentários, cit., p. 182-3), pois o título simplesmenteanulável é, enquanto não anulado, eficaz. Não impedirá, portanto, aimissão na posse do autor a alegação feita pelo réu de que acordarao negócio jurídico de transmissão da posse em virtude de erro, dolo,simulação ou fraude. Nessas hipóteses, o caráter sumário da ação sedestaca e permite-nos observá-la sob esse ângulo geralmente poucotratado pelos juristas. Quem tiver, seja em virtude de negócio jurídicode direito das coisas, ou de direito obrigacional, se obrigado atransferir a posse, há de primeiro cumprir o contrato, transferindo aposse, para, em demanda subsequente, alegar os vícios que eventual-mente tornem anulável o negócio jurídico.

A 3.a Câm. Cível do TJSP, em acórdão datado de 10.05.1983,apreciando a controvérsia sobre a existência da ação de imissão deposse no sistema do vigente CPC, não apenas considerou-aexistente, pelas razões conhecidas, como proclamou igualmente ocaráter sumário dessa demanda, onde apenas caberá a alegação denulidade manifesta do título em que o autor a fundamenta (RJTJSP,85/115).

8.5.4 Natureza real da ação de imissão de posse

Corrêa Telles (Doutrina, cit., § 4) define as ações reais comoas "que nascem áojus in ré, e competem àquele, que tem esse ./wscontra o réu", sendo, ao contrário, pessoais as ações "que nascem

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da obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa" (§ 5.")- E,a seguir, refere que estas açõcs ou nascem do contrato, ou do quase-contrato, do delito, ou do quase-delito. E, referindo-se ainda àsações pessoais, afirma que "estas ações competem contra a pessoaconstituída na obrigação".

No tratamento desse tema, o jurista português transcreve alição do alemão Heineccip, que contém a secular ambiguidade sobreos conceitos de ação real e ação pessoal. Este último, em verdade,nega caráter de direito real à posse (Recitationes i n elementa júriscivilis, § 334), especialmente perante o direito romano, o que estácerto. Mas ao tratar das ações reais, reporta-se a esse parágrafo eescreve o seguinte:

"Doctores actionibus in rem adnumerant interdicta. Quia enimpossessionem pró quinta specie júris in ré habent, etiam interdictaex possessione orta habent pró actionibus realibus. Sed id perspicuefalsum est. Nam (a) supra § 334, luculenter demonstravimus,possessionem perperam dici jus in ré..." (Recitationes, cit., § 1.144).

E, a partir daí, Heineccio passa, no § 1.145, a tratar das açõespessoais e das reipersecutórias, mencionando, ao escrever sobreestas últimas, a lição reproduzida por Corrêa Telles, o qual afirmao seguinte:

"A obrigação de dar ou fazer alguma coisa pode provir ex vido réu ser possuidor; a ação se diz em tal caso pessoal in remscripta" (Doutrina, cit., § 5, nota 5).

Essa afirmação, de que possa provir ex vi da posse umaobrigação, certamente contribuiu para o incremento do processo depersonalização do direito real que tem caracterizado a IdadeModerna, e para o fenómeno processual da pancondenatoriedade,para onde se tem dirigido o direito brasileiro, cada vez mais afastadode suas origens lusitanas.

A confusão entre "direito real" e "ação real" fica evidente naposição de Heineccio, uma vez que ele afasta o caráter real dasações possessórias porque, segundo afirma, teria antes demonstradoque a posse nunca pode ser definida como um jus in ré.

Guido Arzua (Posse, o direito e o processo, 1960, Cap. IX),tratando da natureza das ações possessórias, transcreve este suges-

tivo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde a confusãoentre os dois conceitos aparece com nitidez:

"A ação possessória, embora o assunto seja eriçado de dúvidas,dando margem a contínuas disputas, não é ação real, pois a posse,ainda que um direito, não é um direito real. E direito pessoal,resultante de uma situação de fato, que não se apega irremediavel-mente ao domínio, ou a qualquer outro direito real. Daí pender ajurisprudência para esse ponto de vista, por fim predominante, semembargo da notória controvérsia acerca da natureza dos interditos"(RT, 268:320).

Ao contrário do que se diz no acórdão, a posse nem mesmoé um direito pessoal; não passa de um fato, simples elemento de umsuporte fáctico complexo, que dá causa à proteção possessória. Desorte que a posse entra no mundo jurídico, torna-se fato relevantepara o direito quando a ela se somam os outros elementos do suportefáctico da proteção possessória. Mesmo assim, não sendo sequerdireito pessoal, a posse da origem às ações possessórias que, no casoda recuperação da posse, é uma ação real, que nada tem a ver comdireito real.

Esse equívoco que pode parecer inocente, no plano do direitomaterial, tem desastrosas consequências no campo do processo, namedida em que mutila seriamente o campo das ações reais,transformando quase tudo em pretensão fundada em direitoobrigacional, por onde se infiltra e se alastra, em detrimento dasações executivas, denominadas ações de força, no antigo direitoluso-brasileiro, a ação condenatória.

As confusões entre os dois conceitos - o de ações reais edireito real ~ perturbam a tal ponto aqueles que exercem atividadesforenses, que Arzua, depois de expor uma série apreciável deexemplares jurisprudenciais, conclui do seguinte modo:

"A contagem numérica dos acórdãos aqui trazidos à leituramostra equilíbrio de vacilações, não se podendo realmente apontaro rumo que pretendem adotar. A mostragem também reflete odesacerto que lavra nos doutrinadores e noutros tribunais nãomencionados" (Posse, cit., p. 175).

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Há de observar-se, conforme se disse amplamente, o seguinte:à) a petição inicial, se a demanda for proposta pelo adquirente, ounas demais hipóteses de ação de imissão de posse, deverá viracompanhada do documento em que o autor fundar o alegadodireito à posse. A demanda é nitidamente documental, motivo peloqual deverá ser liminarmente rejeitada se o autor não exibir, logocom o pedido inicial, o documento que, segundo ele, lhe confira odireito à posse. Trata-se de documento indispensável à propositurada ação, no sentido do art. 283 do CPC; b) a controvérsia limitar-se-á ao alegado direito à posse, razão pela qual os limites da defesaficarão restritos a esse ponto, não cabendo qualquer discussão sobreas questões de domínio que nunca ficarão abrangidas pela coisajulgada da sentença que julgar a imissão de posse (Tito Fulgêncio,Da posse, cit., p. 241; Pontes de Miranda, Comentários, cit., v.10,p. 528; Alexandre de Paula, O processo, cit., v. 6, p. 2782). Se oréu, porventura, tiver alguma objeção que envolva controvérsiasobre a titularidade do domínio, ou se ele arguir algum vício deconsentimento que torne o negócio jurídico anulável, sem insurgir-se contra o direito à posse, que ele próprio conferiu ao autor,sustentando a ineficácia do título para fundar tal direito, haverá deser condenado a entregar a cpisa, ficando-lhe, todavia, reservada apossibilidade de discutir, em processo subsequente, as causas cujoexame a ação de imissão de posse não comportara; c) tratando-sede ação que verse sobre imóvel, o procedimento será o ordinárioe o documento hábil será o título aquisitivo regularmente registrado,ou documento posterior que confira direito à posse; d} se o objetoda demanda for coisa móvel, o rito será o do procedimentosumaríssimo, por força do disposto no art. 275, II, a, do CPC; e)se a ação versar sobre posse de bem imóvel, a defesa abrangerá asquestões relativas à validade do registro, já que o direito à possedecorre da condição de adquirente alegada pelo autor, o quepressupõe registro imobiliário válido e eficaz.

O comprador, insista-se mais uma vez, não terá nunca ação deimissão de posse, enquanto sustentar-se apenas em seu contrato. Alegitimação do comprador surge no momento em que ele incorporaa essa condição do direito das obrigações a titularidade do domínio,que lhe advém da tradição da coisa. A nítida distinção entre ação

condenatória, ex empto, outorgada ao comprador, e a imissão deposse, de que pode usar o "adquirente", foi feita pela 2.a Câm. Civ.do TJSP, a 26.04.1960, no AgP 100.102, de que foi relator o Dês.Paulo Barbosa (RT, 303:389).

Se o comprador, enquanto tal, não dispõe da ação executivapara imitir-se na posse da coisa comprada, também nem todoadquirente estará legitimado para a imissão de posse. Este acórdãodo TJRS, da lavra do Dês. Paulo Boeckel Velloso, coloca oproblema em termos correios:

"A ação de imissão de posse se funda na posse do alienante.Desde que este, ao fazer a venda, já não a detinha, descabe a ação.

"Constitui requisito para o ajuizamento dessa ação a ine-xistência de relação obrigacional entre o alienante e o terceiro,quando movida contra este último" (TJRS, Revista de Jurispru-dência, 3:285).

Se o alienante não estava na posse, ao adquirente caberásocorrer-se das ações possessórias, ou da reivindicação, ou havendoalguma relação contratual que ligue o possuidor ao alienante, daação que o contrato indicar.

8.7 Ação de imissão de posse conferida aos administradorese mandatários

O art. 381 do Código de 39 dispunha o seguinte:

"Compete a ação de imissão de posse:

II - aos administradores e demais representantes das pessoasjurídicas de direito privado, para haverem dos seus antecessores aentrega dos bens pertencentes à pessoa representada;

III - aos mandatários, para receberem dos antecessores a possedos bens do mandante".

A questão referente à existência dessas ações, depois dapromulgação do Código de 73, deve ser respondida afirmativamen-te. O direito à posse sobre os bens da pessoa jurídica representada,ou administrada, ou sobre os bens do mandante postulado pelo