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115 No diálogo Crátilo, a certa altura dos acontecimentos, Sócrates dis- põe-se a convencer Crátilo, personagem que dá nome ao diálogo, de que é possível verdadeiramente dizer o falso (yeudh= le/gein). Dizer o falso por força de uma falsa designação como, por exemplo, a de invocar Crátilo pelo nome de “Hermógenes” 1 . Ora, “Hermógenes” não é o nome de Crátilo, embora seja um nome, precisamente o atribuído à personagem que atende pelo nome de “ Hermógenes”, no contexto do diálogo em questão. Para Crátilo, o problema não se resume simplesmente em dizer ou não dizer o falso, mas em falar falsificadamente, ou seja, falsificando a fala, pois, sequer fala quem enuncia o nome “Hermógenes” para chamar a atenção dele, Crátilo. Este parece mal suportar que Hermógenes se chame “Hermógenes”: pertence àquela estirpe que defende ser o nome fu/sei, ou seja, já assumir, na enunciação, um feitio, uma forma (tu/poj) que lhe é impri- mida, desde a origem. 2 E Hermógenes, afinal, não é assim tão filho de um deus, cuja excelência repousa exatamente no vigor da enunciação 3 , para mere- cer ser chamado de “Hermógenes”. Já os nomes de Crátilo e Sócrates são verdadeiramente nomes porque sugerem, por força de sua filiação lingüística, o vigor físico e mental que caracteriza tanto um quanto o outro, e que, portan- to, se lhes assemelha, enquanto kra/tistoi que são, vale dizer, enquanto aque- SÓCRATES E AS UVAS PINTADAS DE ZÊUXIS C ARMEN L ÚCIA M AGALHÃES P AES Departamento de Filosofia Universidade Federal do Rio de Janeiro 1 PLATÃO. Crátilo,429 c. Texte établi et traduit pard Louis Méridier. In: -------. Oeuvres complètes. Paris: Les Belles Lettres, 1989. t. 5. Doravante, apenas serão citados os títulos e os passos dos diálogos de Platão que pertencem a esta coleção. 2 Cf. PLATÃO. Crátilo, 383 b, 439 e. 3 PLATÃO. Crátilo, 383 a, b. Certamente, aqui é antecipado o jogo das etimologias, de forma implícita. Cf. também a nota 2 do rodapé da ed. citada da Belles Lettres. K LÉOS N. 4 : 115-129 , 2000

Paes - Sócrates e as uvas pintadas de Zêuxis

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Kléos 2000

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    No dilogo Crtilo, a certa altura dos acontecimentos, Scrates dis-pe-se a convencer Crtilo, personagem que d nome ao dilogo, de que possvel verdadeiramente dizer o falso (yeudh= le/gein). Dizer o falso por forade uma falsa designao como, por exemplo, a de invocar Crtilo pelo nomede Hermgenes

    1. Ora, Hermgenes no o nome de Crtilo, embora

    seja um nome, precisamente o atribudo personagem que atende pelo nomede Hermgenes, no contexto do dilogo em questo.

    Para Crtilo, o problema no se resume simplesmente em dizer ouno dizer o falso, mas em falar falsificadamente, ou seja, falsificando a fala,pois, sequer fala quem enuncia o nome Hermgenes para chamar a atenodele, Crtilo. Este parece mal suportar que Hermgenes se chameHermgenes: pertence quela estirpe que defende ser o nome fu/sei, ouseja, j assumir, na enunciao, um feitio, uma forma (tu/poj) que lhe impri-mida, desde a origem.

    2 E Hermgenes, afinal, no assim to filho de um

    deus, cuja excelncia repousa exatamente no vigor da enunciao3, para mere-

    cer ser chamado de Hermgenes. J os nomes de Crtilo e Scrates soverdadeiramente nomes porque sugerem, por fora de sua filiao lingstica,o vigor fsico e mental que caracteriza tanto um quanto o outro, e que, portan-to, se lhes assemelha, enquanto kra/tistoi que so, vale dizer, enquanto aque-

    SCRATES E AS UVAS PINTADAS DE ZUXIS

    CA R M E N L C I A M A G A L H E S PA E S

    Departamento de FilosofiaUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    1 PLATO. Crtilo,429 c. Texte tabli et traduit pard Louis Mridier. In: -------. Oeuvres compltes. Paris: LesBelles Lettres, 1989. t. 5. Doravante, apenas sero citados os ttulos e os passos dos dilogos de Plato quepertencem a esta coleo.

    2 Cf. PLATO. Crtilo, 383 b, 439 e.

    3 PLATO. Crtilo, 383 a, b. Certamente, aqui antecipado o jogo das etimologias, de forma implcita. Cf.tambm a nota 2 do rodap da ed. citada da Belles Lettres.

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    les que agem poderosamente, enquanto aqueles que agem kata\ kra/toj.Como a fala dialtica nitidamente uma produo (poi/hsij), Scrates

    se mune do recurso retrico de comparar o nome e a imagem pintada (gra/mma)de Crtilo, para construir discursivamente uma relao de assemelhamentoentre estas duas idias afins (a do nome e a do retrato), com apoio na concep-o de um princpio de analogia universal.

    Em que so semelhantes o nome e a imagem pintada de Crtilo?Primeiramente, so ambos mimh/mata, ou seja, alm de assemelharem-se en-tre si mesmos, so semelhantes tambm s coisas de que so mimh/mata. Eassemelham-se, no caso, pelo fato de fazerem aparecer, pelo fato de daremconta da coisa a que se assemelham: Crtilo. O nome Crtilo, pelas razesaduzidas, o que melhor convm (to\ prosh=kon). Ou seja, aquilo que apontapara o que faz da coisa nomeada o que ela propriamente , em outras palavras,sua ou)si/a.

    E quanto, em particular, imagem pintada de Crtilo? Scrates bem claro em relao a isto: Crtilo e a imagem pintada de Crtilo so coisasdiferentes que apenas se assemelham, assim como o nome se assemelha aonomeado. A imagem de Crtilo, para ser o que , no necessita, por exemplo,apresentar entranhas com o mesmo grau de ductilidade e calor das entranhasreais de Crtilo; nem o mesmo movimento real, nem a mesma alma ou a mes-ma fro/nhsij do Crtilo real. Em suma, uma imagem, para ser imagem, noprecisa reproduzir todas as particularidades do objeto de que imagem.

    A imagem produzida por um pintor necessita apenas mimetizar afigura (sch=ma) e a cor (crw=ma) de Crtilo. Logo se v que a imagem, aqui,quer-se imagem, quer resguardar o sentido de sua diferena

    4.

    Que a imagem de Crtilo e o nome de Crtilo so mimh/mata, sabe-mos pelo prprio Scrates

    5. O nome uma certa imitao da coisa (pra=gma);

    a imagem pintada um outro modo de imitao (tro/pon tina\ a)/llon)6. Por-

    tanto, h duas espcies de imitao, aqui, no caso: a das imagens (zw|=oij) e ados nomes (o)no/masin)

    7. Isto tudo contextualiza uma questo: a de se poder

    dizer o que .8

    Do mesmo modo que para o nome, h um critrio de verdade para

    S C R A T E S E A S U VA S P I N TA D A S D E Z U X I S

    4 PLATO. Crtilo, 432 b-d.

    5 PLATO. Crtilo, 430 b.

    6 PLATO. Crtilo, 430 b.

    7 PLATO. Crtilo, 430 d.

    8 PLATO. Crtilo, 429 d.

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    a correta realizao daquilo que aqui foi designado como imagem, enquan-to retrato pintado: na ao de dar forma (tupo/w), tal imagem implica a conside-rao do tu/poj, em que se dispem os elementos como devido, como con-vm, vale dizer, conservando, na descrio pelo esquema e pelas cores, o vigorprprio de cada coisa. Diga-se de passagem que, nesta circunstncia, teremosa bela imagem (kalh\ h\( ei)kw\n e)/stai) ou figuras belas (kala\ ta\ gra/mmata/),preservada que a ou)si/a da imagem. Por este motivo, quem retrata Crtilomostra Crtilo, no sentido de que pe a imagem verdadeira de Crtilodiante de nossos olhos (to\ de\ dei/xai le/gw ei)j th\n tw=n o)fqalmw=n ai)/sqhsinkatasth=sai)

    9 e no a imagem de Hermgenes, por exemplo, ou a de uma

    mulher.Se o nome e a imagem pintada de Crtilo tm um compromisso

    inevitvel de preservao de sua marca ontolgica (tu/poj), ambos no sepodem furtar captao de relaes privilegiveis, ontologicamente an-teriores ao prprio ato do ver primeira vista e de delinear concretamentea figura de Crtilo. E assim por fora da unidade, no plano ontolgico, denome e imagem pintada, o que no anula, como de ver-se, a especificidadede cada uma dessas formas de realizao. Este algo virtualmente implica-do com o tu/poj da imagem de Crtilo (seja o nome-imagem, seja o retra-to-imagem) , repito, o sch=ma, que, acredito, podemos tambm chamar deta\ e)co/mena, ou seja, o atinente, o pertinente, o referente, o conveniente aCrtilo, e que captvel no seguir de perto a natureza de Crtilo, aquilo paraque dirigida a vista, aquilo que seguido de perto pela vista da alma

    10. E isto

    no deixa de ser um presente de Prometeu, uma promessa de pr-vidncia(promh/qeia), o saber prvio que acompanha esta espcie do fazer da te/cnh(e)/ntecnoj sofi/a su\n puri/).

    11

    Sem dvida, o que alimenta estas afirmaes todas a pergunta-eixo,socrtica, fundamental, a implicada, a velha, a indefectvel ti to\ o)/n; O que isto?. No caso, O que isto, a pintura?, conforme referncia acima feita.

    De incio, podemos deduzir que quando tratamos de pintura, nestecontexto cratlico, no podemos deixar de imaginar uma espcie de matriaoriginria, exatamente aquela forma de ser do sensvel, o pastoso da tinta,

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    9 PLATO. Crtilo, 430 e.

    10Cf. FRISK,H. Griechsches Etymologisches Wrterbuch. Heidelberg: Carl Winter, 1970. 2v. BOISACQ, mile.Dictionnaire tymologique de la langue grecque. Heidelberg: Carl Winte,1950; e, MOURCIN, J. T. Lexique grec-franais.3 d. Paris: Imprimerie et Librairie Classiques, 1864.

    11PLATO. Protgoras, 321 d.

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    sua indeterminao de tinta, de carvo, de grafite. Exatamente a matria sens-vel, trabalhada com fins de transparecimento da ou)si/a da coisa que inspira aimagem que advm e que com-forma de uma determinada maneira a realida-de a que ela mesma pertence e de que parte substancial. como se o queantes era matria en-formada (enquanto complexo de impresses materiais)recebesse uma forma outra, nova configurao, em funo de uma realidadeescondida que a suscita e a que pertence indissoluvelmente. O desordenar aordem implicada em determinada forma (a aparncia sensvel de Crtilo) significaobter um novo ganho de ordem, uma pro-duo que j no mais fu/sei.

    A imagem vinda luz ganha, de certa forma, inteligibilidade e, con-seqentemente, ganha verdade, ostentao daquilo que ela realmente : ima-gem, ou seja, algo que descreve, de uma certa maneira, o vigor que efetiva anatureza do real que Crtilo. E esta verdade apario mediante a cor, coresta que , ao mesmo tempo, o limite sensvel da pura transparncia do quetrans-aparece, no auto-estruturar-se da prpria realizao da pintura. O quetrans-aparece a estrutura ordenada que possibilita a excelncia e a beleza dosseres e das coisas. Neste sentido, creio podermos considerar que o papel domimhth/j, do pintor, mais o de captar a beleza oculta das coisas, no trnsitoconstante do olhar entre a imagem e a idia, em linguagem prpria, a dosesquemas e das cores, como j vimos, do que a de inventar uma belezaque pouco tenha a ver com aquela beleza da prpria coisa imitada; funoontolgica deste belo propiciar aquele trnsito que encurta a distncia entre oque e o que aparece. assim que se imita: imitar e criar so o mesmo, atporque o fazer (poiei=n) aqui em foco propicia a passagem do no-ser ao ser-imagem-pintada.

    12 Portanto, a imagem pintada, enquanto linguagem prpria

    da te/cnh , implica uma ontologia virtual que informa a disposio, a ordena-o (dia/qesij)

    13 e o esforo (zh/thsij) de ver o que digno de ser visto, e que

    no so propriamente formas novas, individuais ou inventadas. O novo,nestas circunstncias, uma espcie de permisso que a fu/sij oferece, face incompletude virtual de todas as coisas de sua doao

    14. E o que valido

    para o nome, do contexto do Crtilo, o , por analogia, como j mencionado,para a imagem pintada.

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    12 Cf. PLATO. Banquete, 205 b.

    13 Cf. PLATO. Fedro, 236 a. Creio que podemos fazer a transposio do dito de Scrates para o caso da pintura,uma vez que o prprio Scrates est sempre pensando a retrica em termos de pintura e vice-versa.

    14 Cf. PLATO. Crtilo, 436 a

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    Face a um retrato de Crtilo, seramos verdadeiramente videntes sepudssemos ver a forma externa, a disposio das linhas, o aspecto puramentevisual da imagem o puro e s visvel das coisas. Um delineamento (diagrafh/)puro, sem a carne real de Crtilo, invisvel a olhos desatentos, delineamentoeste que, de certo modo, copia a forma (ei=)doj), no a coisa material que acarne de Crtilo; algo assim como a projeo do contorno de uma sombra, nasuperfcie em que se expande. a partir deste sch=ma que se pode dar oaparecimento da prpria imagem pintada de Crtilo. Quanto mais o retratopropicia isto, mais ele uma bela imagem e isto tem pouco a ver com a belezaou a feira de quem retratado, quero crer. Scrates chega mesmo a ser bemexplcito a este respeito em A Repblica

    15, quanto viso do embevecimento

    dos que se prendem a belas formas ou se detm na contemplao dasobras de arte, mas que possuem uma alma incapaz do pa/qoj da verdadeirai)))de/a do Belo.

    Isto significa tambm que, no ver adequadamente a imagem deCrtilo, h mais que simplesmente um ponto de vista de observao comum.Neste sentido, o pintor no de forma nenhuma, um ilusionista antes semove no mbito da prpria verdade da imagem, ou seja, da verdade da aparn-cia, em seu sentido mais originrio, que talvez fosse melhor denominar deaparecimento, sem mais. Esta verdade da aparncia aponta inclusive para asvicissitudes da ao de assemelhamento, face s imposies da prpria mat-ria e do espao implicados na efetivao do que se efetiva. H que ser preser-vado o paradigma, face antropofagia da imagem, devoradora que do ser domodelo, deglutindo sem d tambm a prpria semelhana.

    O Crtilo do retrato, se se quiser redutvel ao Crtilo mesmo, nadamais ser que um melanclico fracasso, um pastiche, uma imitao grosseira,dada a mais absoluta impossibilidade de reduo de um ao outro. Esse privile-giar a execuo material manifestaria, sem dvida, uma grande habilidade tc-nica, com simulaes de aprofundamento, colorido bem lanado em propor-es ilusrias, etc., posto que se aceita o modelo tal qual se apresenta a nossosolhos sensveis. H uma tentativa de transposio servil, na busca de fazerassemelharem-se Crtilo e sua imagem pintada, base de iluses de tica quetransformam os que olham sem ver, em pssaros sedentos que vo bicar asuvas pintadas de Zuxis, pintor grego do sculo V a.C., de tal modo elas se

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    15 PLATO, Repblica, 476 b.

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    assemelham a uvas reais.No confundir, portanto, a verdade da imagem com a verdade da

    realidade objetiva, contida nisto que hoje chamamos representao. Apintura como aqui visualizada, e no que se refere s uvas pintadas da obra deZuxis, no est meramente apontando para uma ausncia real, mas se quer aexibio de uma presena dissimulada. E, neste caso, a imagem verdadeira deCrtilo, ante nossos olhos, seria substituda por uma forma de aparecimentoilusrio, maneira de como se Crtilo estivesse em pessoa ante nosso olhar.Eis a imposio do simulacro contra a mostrao implicada na noo demmesis como a entende Scrates, e em que se faz ver realmente alguma coisa:a imagem. Tal acontecimento faz com que a pintura seja isto o que ela , ouseja, pintura, na verdade de sua manifestao. E, sendo assim, a imagem ver-dadeira das uvas, ante nossos olhos. H, pois, uma verdade plstica da ima-gem, uma superior poi/hsij da verdade.

    Com certeza, Scrates teria imenso prazer se pudesse ouvir ecosdessa sua conversa com Crtilo, por exemplo, em declaraes como as que fezPaul Klee (1879-1940), em uma conferncia em Bauhaus. Falava Klee

    16 de

    como comeara a selecionar linhas, sombras e cores entre si, sublinhando aqui,esmaecendo ali, a fim de alcanar a sensao de equilbrio ou correo quetodo artista, a seu ver, almeja conseguir. Descreveu ele a maneira como asformas que emergiam de suas mos sugeriam gradualmente algum tema realou fantstico sua imaginao; menciona como seguiu esses indcios sempreque pressentiu que poderiam ajudar e no dificultar as harmonias, completan-do a imagem que tinha encontrado. Teve a convico de que este modo decriar imagens era mais fiel natureza do que qualquer cpia servil jamaispoderia ser. A prpria natureza, assim argumentava ele, cria, por uma espciede poder misterioso, atravs do artista.

    O fato que esta uma questo central, se no a questo central dapintura, at hoje. Que se pense, por exemplo, em Ren Magritte (1898-1967),pintor belga, surrealista, que certa vez pintou um cachimbo de forma ilusio-nista em uma tela que denominou de A Traio das Imagens. Embaixo da ima-gem pintada, escreveu: Isto no um cachimbo. Posteriormente, repetiu oquadro dentro de outro quadro e legendou: Isto continua no sendo umcachimbo. Em outras palavras, em outras condies, e guardadas as devidas

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    16 GOMBRICH, E. H. A histria da arte. Traduo de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientfi-cos, 1999. p. 578.

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    propores, Magritte estava dizendo o mesmo que Scrates: Isto uma ima-gem, e a prpria palavra cachimbo no um cachimbo

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    Talvez caiba aqui ainda uma outra digresso que nos leve at umpintor do sculo XIX, mais precisamente Gustave Courbet (1819-77), que tido como pioneiro do chamado realismo moderno, e que era, consta, mui-to combatido em razo de seus princpios estticos. Tal realismo que o pr-prio Courbet se atribuiu, assim denominando uma de suas clebres exposi-es, haveria de ser devastador no que se refere s tcnicas da pintura. ParaCourbet, no era nada importante pintar figuras belas ou graciosas: no queriaformosura, queria verdade, contra a tradio que contestava

    18. Conta-se a seu

    respeito que, trabalhando um dia em alguma de suas paisagens, percebeu, desbito, que havia pintado um objeto longnquo, cuja natureza ignorava. En-viou, ento, algum ao local em que estaria situado tal objeto, para identific-lo. Esse algum voltou dizendo que se tratava de um feixe de ramagens oucoisa que o valha. Courbet havia, ento, pintado um objeto no identificadoe isto sem nenhum tipo de particular constrangimento, dado que ele, comopintor, no considerava que tivesse alguma coisa a ver com a questo da iden-tidade das coisas. No seria, portanto, fundamental para os fins de sua arte areposta pergunta O que isto que eu pintei?. Ainda menos importanteseria conhecer a funo do objeto, mas apenas sua aparncia visual, seu aspec-to, seus contornos, suas cores. H, inclusive, uma outra verso para este fato,se que ele aconteceu: o assistente de Courbet no teria ido ver in loco o talfeixe de ramos. Teria, isto sim, examinado mais atentamente este pormenordo quadro em questo, no qual o pintor teria representado com exatido aqui-lo mesmo que no havia reconhecido. Consta que Courbet teria dito, na cir-cunstncia, mais ou menos isto: Eu no tinha necessidade de saber o que era,fiz o que vi sem me dar conta disso. Depois, recuando ante seu quadro, teriaacrescentado: verdade, so feixes de ramos. Com esta atitude, sua percep-o j estaria inoculando, nas veias do ato de pintar, o vrus da destruio doobjeto, o que, posteriormente no deixaria pedra sobre pedra, no territriodas artes plsticas.

    19 Mas, esta j uma outra histria.

    Sob todos estes aspectos, o pintor que pinta o retrato de Crtilo

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    17ARGAN, Giulio Carlo. Ren Magritte. Arte moderna. Traduo de Denise Bottman e Frederico Carotti. SoPaulo: Companhia das Letras, 1999. p. 480.

    18GOMBRICH, E. H. op. cit., p. 511, n. 17.

    19GENETTE, Grard. Lattencion esthtique. In: -------. Loeuvre de lart. La relation esthtique. Paris: Seuil,1997, p. 14.

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    como deve ser pintado, no como Zuxis pintou suas uvas, no perspectivista ou realista, no sentido que comumente se d a estes ter-mos, no jargo da teoria das artes plsticas. E quem quer que busque pintarcomo se deve pintar, quem renuncia a iludir pssaros sedentos, dir certa-mente o que disse um dia o mestre impressionista Pierre Auguste Renoir (1841-1919): Como difcil encontrar exatamente em um quadro o ponto em quese deve cessar a imitao da natureza.

    20

    A forma de mostrar o que e no o que parece ser implica a ocultaode certos aspectos materiais da coisa que se mostra aos olhos do pintor; e estaocultao proporciona o aclaramento do que era sombra e o ensombreamentodo que era luz. Fazendo realar o que era incgnito (a ou)si/a), invisvel, nomodo cotidiano de ver Crtilo, a fabricao da imagem traz luz o que antesno era, conforme j vimos. E isto que vem brilha no silncio dos contornos,das linhas, como uma bela apario liberta da banalidade que a obscurecia.

    S quem capaz de um olhar que despoje o que v de sua meraaparncia externa, s quem capaz de ver dentro todo um complexo depulsaes vitais que penetram o espao que elas mesmas animam; s quem para isto vocacionado, s quem Paul Valry capaz de confiar mo pinta-da de um anjo a retomada e o prolongamento do significado do olhar de umavirgem

    21, que mal se recorta no claro-escuro do jogo de sombras de onde

    aparece, como sucede com A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci. Omesmo da Vinci que, ao que parece, contra todo o saber do Renascimento,privilegiava, por exemplo, o estado de esprito nas figuras que retratava, emvez de seguir unicamente a trilha da beleza e a perfeio das partes.

    22

    O pintor h que saber discernir o que houver de pictural no visvel,h que saber reconhecer que elementos da realidade so suscetveis de entrarem composio plstica.

    Quem j se aventurou a pintar uma natureza morta, por exemplo,mesmo que seja na incipincia do mais tosco aprendizado, pode vivenciar aexperincia do aparecimento da beleza escondida nas coisas, a experincia davirtual implicao de fu/sij e te/cnh, na simples refrao da luz no vidro de

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    20 Cf. MARANGONI, Matteo, La vraisemblance. In: -------. Apprendre a voir. Traduo de Denise Lombard.Neuchtel: Griffon, 1947. p. 77.

    21 Cf. VALRY, Paul. Introduction la mthode de Lonard da Vinci. Traduo de Geraldo Grson de Souza. SoPaulo: Editora 34, 1998.

    22 DA VINCI, L. Come il buon pittore ha da dipingere due cose, l uomo e sua mente. In: -------.Tratatto dellapittura. Roma: Unione Coopeerativa Editrice. 1890. par. 176, p. 73.

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    um copo. Implica tudo isso que o retrato pintado de Crtilo seja resultante de

    virtualidades construtivas, reminiscncias daquela beleza que preciso ver coma alma, para o vislumbre, do que deve ser visto, atravs da beleza sensvel,sempre incompletamente realizada; e, mesmo assim, virtual encaminhamentoda alma contemplao das formas eternamente inspiradoras. Aquela belezaapenas possvel de recordar quando a paixo, o pthos da verdadeira lembrananos move a partir da imagem, em direo luz mais pura das aparies perfeitas.

    A partir destas consideraes, acredito no ser demais a afirmativade que o legtimo ato do fazer pictrico, a mi/mhsij, impe necessariamentedeformao. Isto porque o que a define, neste caso, no uma pura relao dedependncia formal entre dois entes, quais sejam a imagem de Crtilo e Crtilomesmo. Esta deformao, porm, fundadora e no depende da vontade dequem pinta. diferente daquela deformao que o Estrangeiro de Elia, noSofista, condena nos deformadores que deformam a deformao originria,corrigindo o sch=ma para compensar tais deformaes, resultantes do pon-to de vista individual de quem olha de determinada posio.

    23 Adaptao, por-

    tanto, da mi/mhsij a essas necessidades visuais deseducadas, que reivindi-cam ver o que querem ver, sem a disposio necessria impositividade de ummodo de ser verdadeiro. No tambm deformao no sentido moderno deabstrao formal, estilo, ou coisa do gnero, suscetvel at de transfor-mar-se em deformismo, como acontece freqentemente.

    De outra coisa no falava o Estrangeiro de Elia, ao proclamar a exis-tncia de uma forma nobre da mimtica, face a outra bastarda, sofstica,aduladora

    24. a que produz no propriamente imagens (ei)ko/na), mas enga-

    nos, contrafaes (fanta/smata). Iluses de tica que co-movem a alma, quemovem a sensibilidade, rumo facilidade de uma contemplao que deseducaos olhos carnais e atrofia os olhos da alma. Esta face bastarda da mimtica seresolve em uma figuratividade especificamente capciosa, cujos efeitos so fun-damentados em uma adesibilidade complacente, pela seduo dos sentidos.De fato, a iluso requer um espectador mais crdulo que advertido, menosalma que sentidos, mais afeito contrafao das aparncias configuradas pelascores, por aquele verniz superficial, pela matria, pura e simplesmente, umespectador mais disponvel a uma beleza emprestada do que beleza natu-

    CA R M E N L C I A MA G A L H E S PA E S

    23 PLATO. Sofista, 236 b.

    24 PLATO. Sofista, 235 a.

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    ral das coisas.As imagens que mimetizam de forma verdadeira respeitam as leis da

    simetria do paradigma, vale dizer, preservam as propores reais de compri-mento, largura e profundidade. Conferem a cada parte as cores e as formasapropriadas disso resulta a perfeio da imagem, da bela imagem. Nem sem-pre a verdadeira simetria da beleza verdadeira resguardada, face ao desejo deiluso, como dito acima. Nem sempre o jogo das propores ignora o que mutvel, em favor do permanente. o que sucede com as obras de propor-es monumentais, como bem nota o Estrangeiro. Nestas, as partes superio-res, as de grande altura, parecero menores que o natural e, maiores que as debaixo, por contemplarmos umas de perto e outras de longe

    25. Aqui, imperam

    os truques, os poderes mgicos, acionados pela tcnica que desconhece ourenuncia aos seus prprios fundamentos ontolgicos, em favor da iluso debeleza, da correo das fraquezas de nossa humana viso: reproduo do saparente da aparncia, do parecer belo sem o ser. E, entretanto, h uma verda-de artstica da beleza sensvel da imagem constituda pelo ato de pintar, a bele-za das verdadeiras propores, a beleza da verdade; beleza esta que parte daBeleza em si, e preciso no esquecer este fato, se quisermos apreender anatureza disto que se chama pintura, na perspectiva aqui abordada.

    Dessas coisas falava tambm o Scrates de outros contextos, finali-zando, por exemplo, uma longa discusso com o sofista Hpias: o belo difcil (to\ calepa\ ta\ kalla/

    6). Quem fala do belo (to\ kalo/n) fala de algo que

    em si mesmo (au)to\ to\ kalo/n) e no por fora, muito ao contrrio, da exis-tncia de qualquer coisa que seja bela

    27. Seja esta coisa uma bela jovem, um

    belo cavalo ou uma bela panela, desde que fabricada esta por um bom oleiro,belamente cozida, no ponto, polida e arredondada, etc..

    Este algo que em si mesmo, mas que se faz visvel em uma belajovem, em uma bela gua ou em uma bela panela assemelha-se a um corpomole, macio e brilhante de leo, que resvala de nossas mos, dada a sua natu-reza ( )/Eoike gou=n malakw= kai\ lei/w| liparw=|)

    28. E essa coisa escorregadia bem

    pode bem ser o Scrates que Alcibades comparou, em O Banquete29

    , a umsileno, daqueles que, quando destampados, exibem em seu bojo vrias esttu-

    S C R A T E S E A S U VA S P I N TA D A S D E Z U X I S

    25 PLATO. Sofista, 235 e, 236 a.

    26 PLATO. Hippias Maior, 304 e.

    27 PLATO. Hpias Maior 288

    a.

    28 PLATO. Lsias, 216 c-d.

    29 PLATO. Banquete, 215 b.

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    as da divindade, belas imagens, escondidas sob a capa surrada da feira sens-vel

    30 e que o olho do pensamento (th=j dianoi/aj o)/yij) s comea a ver,

    com agudeza, quando os do corpo comeam a enfraquecer.E, no entanto, a Beleza , de todas as idias, a mais brilhante e a

    mais claramente percebida porque o atravs do mais claro de nossos senti-dos, a viso, e por meio da beleza sensvel

    31. Viso esta que se encaminha

    sempre mais para a perfeio, mediante a convivncia freqente com esta be-leza sensvel, que potencializa a alma para a contemplao daquela Beleza es-sencial, que faz serem belas todas as coisas belas.

    ainda no Hpias Maior que est em jogo essa beleza das qualidadessensveis, posto que por todo o teor do dilogo, nunca superada a convicode que o belo proporcionado unicamente pela viso ou pela audio

    32. Mas,

    como todo visvel, a beleza sensvel da pintura de qualquer coisa bela no sereduz a uma simples duplicao mimtica do real. Tal beleza h que confor-mar-se aos critrios de semelhana, mas igualmente aos da convenincia, paraalm da simples aparncia e da semelhana emprica. Ela h de ostentar, tam-bm, a sua verdade, como temos visto, ou seja, a verdade da arte. Do artifciovia cores, tintas, carnao, via todos os sentidos que a palavra crw=ma encer-ra em seu bojo.

    Pisamos o cho daquilo que o belo faz nas coisas belas: kosmei=tai,33

    em outras palavras, aquilo que imprime nessas coisas a marca de bela ordena-o, de uma boa disposio das partes, enfim, de um ko/smoj, como j assina-lado, fruto do feliz encontro de uma disponibilidade do olhar humano e doreal em sua totalidade. Ou seja, aqui as tcnicas esto a servio da produo deum mundo que fruto da busca de uma imagem geradora, por sua vez, deformas puras de pintura. Habitamos este territrio que medeia o sensvel e ointeligvel, na vigncia do belo como idia, como algo transcendente que semanifesta como excelncia, como plenitude vigente, em todas as acepesque este termo possa apresentar.

    fato, portanto, que to\ kalo/n, o belo, no redutvel ao puroornamento do kosmei=tai, o belo no cosmtico no pior sentido derivado aque possa ter chegado esta palavra. No atentar para isto ser confundi-lo,confin-lo superficialidade da aparncia pela aparncia, em seu mais restritivo

    CA R M E N L C I A MA G A L H E S PA E S

    30 PLATO. Banquete, 219 a.

    31 PLATO. Banquete, 219, a-c.

    32 PLATO. Hpias Maior, 250 b-d.

    33 PLATO. Hpias Maior, 298 a.

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    sentido, quando , na verdade, a luz do ser. A luz do ser, embora ambiguamen-te dependa, de certo modo, das aparncias sensveis, por fora de seu esta-tuto de similitude.

    em funo dessa mesma ambigidade que Zuxis, aquele mesmodas uvas pintadas, instado pelos habitantes de Crotona, pde realizar o retratode Helena, a mais bela das helenas, da forma em que o fez. E o fez atravs deuma inflexo da mi/mesij: escolhidas entre todas as jovens da cidade as cincomais belas, selecionou o que parecia mais belo em cada uma, para criar umaespcie de tautologia do visto, mera reproduo do visto, na produo de ummodelo de beleza perfeita, a seu modo de ver, guisa de cnon de sua arte

    34.

    Estamos, pois, a caminho daquilo que hoje denominado, na hist-ria da arte, de naturalismo, entendido como o triunfo da aparncia, semmais, da exterioridade pela exterioridade, morte daquele arte-fazer artefatos,em que o artifcio naturalidade, se por naturalidade nossos ouvidos mou-cos puderem ouvir inteligibilidade. sob este aspecto que o belo difcil;por seu teor de inteligibilidade, por sua vigncia entre o sensvel e o inteligvel,nesse lugar que mais um no-lugar: cw=ra?

    O belo difcil porque pura virtualidade, possibilidade de ver,visibilidade dispensada pela i)de/a e que d a ver, em seu jogo de presena e deausncia, a forma (ousi/a) comum quilo que est presente e quilo que estausente, neste lance de instaurao da imagem, seja dita, seja escrita, seja pintada.

    ainda neste sentido que nos permitido aceitar que a pintura,como toda apario, sustenta-se a partir de um fundo de invisibilidade, siln-cio da cor, ligado a esse no-lugar mencionado. Esta invisibilidade, se quiser-mos apelar para um exemplo recente, bem verdade que em termos histri-cos, e com inspirao distinta, esta invisibilidade bem pode ser ilustrada, nasdevidas propores, pelo gesto do construtivista Kazemir Malevitch (1878-1935). Um gesto que pretendeu exprimir as vicissitudes da prpria expresso,apontando para a sensibilidade da ausncia do objeto. Como se deu talgesto? Malevitch pintou um quadrado branco, ligeiramente diferenciado detonalidade, sobre o fundo branco de uma tela em branco; isso como o resulta-do de um percurso abstrativo, em direo a formas geomtricas cada vez maispuras. Este percurso se resolve na reduo de formas a quadrados, crculos,retngulos, etc., cada vez mais descoloridos, cada vez mais s pretos, brancos

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    34 Cf. XENOFONTE. Ditos e feitos memorveis de Scrates, III, 10. In: Scrates. Traduo de Mirtes Coscodai.So Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleo Os Pensadores).

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    e cinzentos, at se esvanecerem. E isto no deixa de ser paradoxal: a caminhoda abstrao, gestos como este, aps eliminarem a figura e o espao fictcio datela, defrontam-se com a aporia da relao figura-fundo. Aporia esta que constitutiva da prpria experincia perceptiva: tudo aquilo que percebemos,percebemos em um fundo, vale dizer, tudo o que percebido uma figura oufiguras destacadas sobre um fundo. Isto significa, j se v, que a percepo figurativa

    35.Se Scrates tivesse podido visitar o ateli de Malevitch, como um

    dia, no dizer de Xenofonte, visitara o ateli do pintor Parrsio, quando lhecobrara que pintasse coisas invisveis, coisas sem proporo e sem cores

    36,

    certamente tambm faria reivindicaes irnicas. Exigiria, talvez, maisradicalidade: Por que no deixar, ento, a tela totalmente em branco? Assimficaria eliminada a figura do quadrado branco. Se Malevitch se apressasse emconcordar, como Hpias, no dilogo Hpias Maior, j referido aqui, o mestre dePlato certamente continuaria na sua dialtica: por que, neste caso, no elimi-nar tambm o fundo em que se insere a tela em branco, ou seja, o espao doateli, e assim sucessivamente, at que se tivesse que eliminar o prprio ko/smoj,para chegar-se talvez ao Nada, melhor: pura tenso entre ser e no-ser? Istoporque o quadro teria sido reduzido, de um espao virtual a um espao real domundo, perdida sua transcendncia primitiva, de volta a sua banalidade pri-meira de pedao de pano, de madeira, de grampos, etc. Afinal, foi o que Malevitchterminou mesmo fazendo, de fato. Tendo desmaterializado a forma, buscavatalvez uma outra espcie de forma, imaterial, uma no-forma; realidades es-senciais, no mais precrias e relativas, mas arqutipos geomtricos. umcaso a pensar o problema da destruio do objeto, que culminaria, pode-sedizer, por anular a distino originria entre a imagem da realidade e a realida-de mesma, j que a realidade estaria assim amputada. claro que tal compor-tamento viria a deflagrar toda a revoluo que deflagrou at chegar s embala-gens da sopa Campbell, de Andy Warhol (1930-1987), por exemplo. Warhol (1930-1987) chegou a fazer composies com essas embalagens, no espao real,apondo-lhes, por exemplo, uma placa contendo a pergunta: Isto pintura?.

    Logo se v, nunca samos da questo do Crtilo, que desencadeou aspresentes consideraes. Consideraes estas acerca das consideraes que o

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    35 Cf. ARGAN, Giulio Carlo. op. cit., p. 480. Cf. tambm CAVALCANTE, Carlos. Como entender a pintura moderna.Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 157-59.

    36 Cf. XENOFONTE. op. cit., III, 10.

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    prprio Scrates nunca se furtou a fazer, em vrios dilogos, enquanto perso-nagem de Plato. Nunca se furtou a dialogar acerca da prtica sobre a matriano apenas da lngua, caso da nomeao das coisas do mundo, como da prti-ca sobre a matria do mundo do dar a ver da imagem pintada das coisas domundo. Neste ltimo caso, como j foi sugerido aqui, h o esforo de umaprtica sobre a materialidade dos meios de expresso pela cor, pelo trao, pe-los esquemas, pelos perfis.

    H toda uma retrica da imagem que merece ateno e que nomais ditada pelos esforos de soluo de problemas da forma, vale dizer, daimagem, e que a mim parecem estar em germe nessas discusses de Scratescom Crtilo, no dilogo homnimo, que vimos; nessas conversas a respeito deimagens pintadas, de esquemas que promovem o aparecimento do sentido toclaramente quanto possvel; conversaes a respeito da fora que move a moque pinta a pintar como pinta; dessa fora que tem tudo a ver com a aparnciae seus artifcios e, portanto, com o prazer e a beleza.

    a esse mover, a esses efeitos patticos, que necessrio retornarum pouco que seja. Implica trazer baila a tenso entre o visvel e o dizvel.Neste particular essas falas de Scrates sempre primaram em pensar a retricaem termos de pintura e a pintura em termos de retrica, como se uma nopudesse ser perfeitamente entendida sem a considerao da outra.

    No que toca precisamente pintura, percebemos que a teoriaplatnica da mmesis sempre se dispe a domesticar a virulncia da liberdade deuma imagem, a imagem pintada. Esta liberdade seria virulenta porque, no fun-do, no fundo, quem se dispusesse a raspar, como em um palimpsesto, camadapor camada da tinta de uma tela pintada, iria deparar-se com a brancura virtualde uma tela nua. Nenhuma realidade se dissimula sob as cores; o que se d no uma aparncia ilusria, mas a iluso de uma aparncia. Se a pintura for issorealmente qualquer que seja o tempo de sua manifestao, ela merecer todasas censuras feitas por Scrates, nos dilogos em que o faz. Mas, assim comoencontrou uma forma de regenerao do dizvel, pela instituio de umaretrica filosfica, do mesmo modo aponta para uma origem da imagem pic-trica na fu/sij, vale dizer, na verdade, como at j vimos. Esta espcie deredeno se d por fora de submeter-se esta imagem s condies filosfi-cas que regulam o estatuto da aparncia, isto , de uma ao, a de pintar, cujareferncia o real. E isto nos impele a pensar na possibilidade de umaeloqncia pictrica, o que implica as qualidades persuasivas da imagem

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    pintada, o poder de iluso que possa ter, sua capacidade de mostrao daexpresso de um rosto, do movimento de um corpo, infinitamente mais per-suasivo do que um discurso.

    Com certeza, isto tudo apontado por um Scrates que emergedesses contextos tericos, desses discursos marginais, de fora insuspeitada,no fossem suas palavras sempre kata\ kra/toj. preciso sempre atentar paraessas insinuaes, muitas vezes disfaradas nos recursos aparentemente sim-ples da comparao. No vigor desse fundo socrtico do dizvel, podem dar-seinauguraes inesperadas, como a considerao da alma do espectador, cuja pai-xo (pa/qoj) de responsabilidade da mo que pinta, para o bem ou para o mal.

    E o resto sempre som, palavra, trao, cor.

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