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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: discursos de preservação no Brasil e na Argentina BISPO, ALBA. (1); PROCHNOW, LUCAS. (2) 1. Universidade Federal de São João del-Rei UFSJ. Professora Assistente A do Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas DAUAP. Avenida Visconde do Rio Preto, S/Nº (Km 02), Campus Ctan, Prédio REUNI, Sala 3.01RE, Colônia do Bengo, São João del-Rei, MG, CEP: 36.301-360. [email protected] 2. Universidad Nacional de Córdoba. Departamento de Pós-Graduação da Facultad de Arquitectura, Urbanismo y Diseño. Doctorado en Arquitectura. Bolsa CAPES/Brasil. Av. Velez Sarsfield, 264, 2º piso, 1º cuerpo, CP: 5000. [email protected] RESUMO Este trabalho investiga como a noção de paisagem cultural é utilizada para a preservação de bens ferroviários em áreas urbanas no Brasil e Argentina. Especificamente, como os órgãos protetivos de ambos países montam suas narrativas para a valoração desses bens e como a gestão tenta dar conta dessas valorações. Palavras-chave: Paisagem cultural; patrimônio ferroviário; memória ferroviária; requalificação urbana

PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: … · 8/7/2016 · homem e da natureza e, ... para então ganhar espaço como patrimônio ambiental urbano e então paisagem cultural

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: discursos de preservação no Brasil e na Argentina

BISPO, ALBA. (1); PROCHNOW, LUCAS. (2)

1. Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ. Professora Assistente A do Departamento

de Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas – DAUAP. Avenida Visconde do Rio Preto, S/Nº (Km 02), Campus Ctan, Prédio REUNI, Sala 3.01RE, Colônia do

Bengo, São João del-Rei, MG, CEP: 36.301-360. [email protected]

2. Universidad Nacional de Córdoba. Departamento de Pós-Graduação da Facultad de Arquitectura,

Urbanismo y Diseño. Doctorado en Arquitectura. Bolsa CAPES/Brasil. Av. Velez Sarsfield, 264, 2º piso, 1º cuerpo, CP: 5000.

[email protected]

RESUMO

Este trabalho investiga como a noção de paisagem cultural é utilizada para a preservação de bens ferroviários em áreas urbanas no Brasil e Argentina. Especificamente, como os órgãos protetivos de ambos países montam suas narrativas para a valoração desses bens e como a gestão tenta dar conta dessas valorações.

Palavras-chave: Paisagem cultural; patrimônio ferroviário; memória ferroviária; requalificação urbana

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Território e Paisagem: abordagens críticas nos discursos de preservação

Ao longo dos últimos anos, e a partir da avaliação da gestão sobre o patrimônio cultural,

observa-se tendência a tratar o patrimônio cultural com enfoque regional e assim promover,

capacitar, gerir, obter recursos, etc., dentro dessa dinâmica. Nesse contexto, termos como

paisagem cultural, itinerários culturais, turismo cultural, rotas culturais, etc., ganham

relevância nas estratégias de valorização e reconhecimento de patrimônios locais.

A UNESCO refere termos como itinerário cultural, rota, caminho, entre outros, como

possibilidades de recuperação de histórias locais, notadamente, pensando no

desenvolvimento de regiões relativamente afastadas de centros urbanos. Esses termos se

referem ao movimento e formação de valores e práticas construídos ao longo da história

através de intercâmbios culturais que reforçam outros termos, como diversidade cultural e

diversidade identitária, todas involucradas com a preservação, ou a necessidade de

preservação, do patrimônio. Ainda que em termos culturais globais, esses processos são

mais bem observados a nível local, em recortes territoriais que poderiam ser chamados de

paisagens culturais.

Na perspectiva do desenvolvimento local, incorporando ou não como transversal as políticas

setoriais para o turismo cultural, é obrigatório que se tenha como eixo central a criação de

autonomia e desenvolvimento da cidadania das populações locais sendo estes os atores

principais e, então, as esferas municipal, estadual ou federal como entes facilitadores do

processo. Nesse âmbito, é necessário ter consciência do processo de valorização dos bens

materiais e imateriais regionais ou locais que configuram qualquer espaço como um recorte

cultural importante para as demandas da sociedade, por um lado, e dos entes públicos e

seus interesses culturais e econômicos, por outro lado. É nesse espaço de disputa, tal como

na formação do território, que pode-se desenhar políticas culturais de inventario, valorização

e promoção dos patrimônios locais como, por exemplo, os referentes a imigração:

Ao longo de décadas, as manifestações patrimoniais relativas à imigração foram sendo estudadas e protegidas pelo Iphan, inicialmente por meio de tombamentos do patrimônio arquitetônico. Para além do patrimônio edificado e paisagístico, atentou-se para a produção cultural de modo ampliado e para a vida que anima o lugar. A partir de inventários e estudos de reconhecimento do território e das colônias de imigrantes, das atividades e bens variados, tais como a fabricação de doces, as técnicas dos bordados, patrimônio linguístico, as festividades, entre outros, aferiu-se a necessidade de apoiar meios de vida e atividades produtivas, de modo a salvaguardar tradições, especialmente entre as famílias rurais, que viam os integrantes mais jovens saindo a contra-gosto da região, em busca de melhores alternativas de vida. (MONGELLI, 2011, p.135)

Os modos de vida tradicionais, sistemas de valores socioculturais, entre outros, em agência

com patrimônios materiais arquitetônicos, urbanos ou rurais, caracterizam o território ou,

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com maior foco, a paisagem cultural historicamente construída. Os referenciais imateriais e

materiais de determinado território reforçam a potência do conceito de patrimônio na

perspectiva regional, no sentido exposto na Carta de Itinerários Culturais do ICOMOS

(2008).

Para compreender a noção de paisagem cultural incorporada no campo do patrimônio é

preciso retomar brevemente alguns conceitos de paisagem e território. Em 1913 o sociólogo

alemão Georg Simmel explica que a paisagem é “um pedaço de natureza”, pois se

compreende pelo recorte em uma porção da natureza ou “parcela de chão com o que ele

comporta” (SIMMEL, 2009, p.6), de modo que a paisagem é demarcada em um fragmento

que apresenta unidade e se distingue do conceito de natureza. Já em 1925, o geógrafo

norte-americano Carl Sauer publica “A Morfologia da Paisagem” e distingue paisagem

cultural e paisagem natural, considerando que a paisagem cultural ou geográfica resulta da

ação, ao longo do tempo, da cultura sobre a paisagem natural, de modo que “a cultura é o

agente, a área natural o meio e a paisagem cultural é o resultado” (SAUER, 1996 apud

Ribeiro, 2007, p. 19). Para além dos elementos formais, visíveis e apreendidos da

paisagem, o geógrafo francês Augustin Berque destaca o “comportamento das pessoas

diante dos lugares mostrando que os laços que aí se estabelecem, entre lembranças do

sujeito e as coisas que o cercam, tornam impossível a neutralidade dos territórios humanos

compreendidos como paisagem” (apud VERAS, 2014, p.74).

Nos territórios humanos ou paisagens recortadas da natureza há de ser considerar a

sobreposição de memórias, discursos e relações de interesses na leitura dos territórios e de

seu processo de desenvolvimento a partir de relações de poder estabelecidas e que se

manifestam espacialmente. Baseados nos trabalhos do geógrafo Claude Raffestin (1993),

para quem o espaço antecede o território, alguns pesquisadores consideram um espaço real

e um espaço inventado pelos discursos e relações de poder, ou que são materializados a

partir desses discursos de poder. Para Raffestin, o território é resultado da relação

produzida entre atores sintagmáticos (aqueles que “conhecem” o processo ou tem o “poder”

sobre o processo) e paradigmáticos (surgem a partir de alguma classificação comum aos

demais atores). Assim, “o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas

relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais

simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2014, p. 166).

Essa pode ser uma das formas de compreensão daquilo que é importante destacar: as

práticas sociais produzem o território a partir de relações conflitivas e disputas de poder que

agem efetivamente sobre ele ou que o constroem discursivamente. Compreender as

relações que incidem num território, suas formas de apropriação e lógicas de poder são

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imprescindíveis para entender as relações sociais e aquilo que lhes é importante no que

toca ao patrimônio local. De todas as formas, parece ser interessante trazer a ideia de poder

e conflito pois parece que nas discussões sobre a paisagem cultural essa dimensão

conflitiva da produção do território, e da paisagem, está ausente ou pouco sublinhada.

A paisagem é tomada por várias áreas de conhecimento e da arte sendo, portanto,

polissêmica e com acepções variadas. Comumente é tida como uma obra conjugada do

homem e da natureza e, hoje em dia, no campo da preservação do patrimônio, é chancelada

como paisagem cultural. Em seu início, a paisagem como patrimônio se referia a

monumentos isolados e logo bem cultural, para então ganhar espaço como patrimônio

ambiental urbano e então paisagem cultural (MENESES, 2002). A noção de paisagem

urbana incorporada no campo do patrimônio leva em consideração as relações sócio

espaciais entre as configurações geomorfológicas do meio natural, as estratificações

históricas e os processos de usos e ocupações expressos materialmente no conjunto de

bens artísticos, arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos, bem como as práticas ou

manifestações culturais associadas ao território citadino.

No caso de bens ferroviários e de paisagens culturais em contextos urbanos,

especificamente, a identificação de valores atribuídos a determinados recortes territoriais

que ultrapassam as análises estéticas, morfológicas e/ou tipológicas da arquitetura e

urbanismo, passando a incorporar perspectivas diferenciadas, sobretudo das disciplinas da

história, geografia, sociologia e antropologia. Assim, compreendendo os objetos culturais

como suportes materiais da memória social, a paisagem se circunscreve numa determinada

delimitação territorial, sendo composta por lugares de diferentes memórias e apropriações,

em marcas materiais e imateriais, considerando “não só as marcas, como força de uma

forma que se manifesta visualmente e se impõem, mas também as que se perdem

invisíveis, pelas histórias de vida do cotidiano, que trazem o sentido de paisagem como

lugar apropriado” (VERAS, 2014, p.78-79).

Desde o restauro do patrimônio histórico até o reconhecimento de saberes e fazeres

passando pela monumentalidade ou excepcionalidade de bens materiais como patrimônio

cultural de uma sociedade, a paisagem cultural se transformou em uma categoria de análise

que tem no território um espaço privilegiado. Suas mudanças não podem ser analisadas

independentemente das práticas sociais existentes em cada época histórica e sem levar em

consideração que cada etapa do desenvolvimento material engendra uma nova paisagem

com novas funções, objetos e valores na sociedade (CORRÊA; ROSENDAHL, 2001).

Por outro lado, “a paisagem está ancorada no solo, modelada pelas transformações naturais

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e pelo trabalho do homem e, acima de tudo, é objeto de um sistema de valores construído

historicamente e apreendido diferentemente no tempo e no espaço, pela percepção

humana” (CORRÊA; ROSENDAHL, 2001, p. 19). Ou seja, ao nível da representação, é

importante analisar os discursos e narrativas existentes sobre a paisagem cultural e o

território que serão objeto de pesquisa, pois “as paisagens de artistas, geógrafos, arquitetos,

turistas, ecologistas, planejadores e pessoas comuns não recobrem a mesma realidade. A

paisagem pode ser a mesma, mas são diferentes representações” (CORRÊA;

ROSENDAHL, 2001).

Também sobre as representações existe um componente de poder desde o local de fala dos

atores e que interessa na discussão sobre reutilização ou “revitalização” de espaços

industriais ou ferroviários. Corrêa e Rosendhal (2001) lembram do geógrafo Cosgrove que

define uma paisagem da cultura dominante que, em nível urbano latino-americano, pode ser

lida a partir de projetos como Puerto Madero (Buenos Aires), a Orla do Rio Guaíba (Porto

Alegre), o Museu do Amanhã (Rio de Janeiro) ou o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas

(Recife). Nestes locais, referenciais de um passado industrial, ferroviário ou de centro de

escravidão e referenciais na paisagem urbana foram ressignificados sob a justificativa de

novos usos do espaço público em benefício de uma narrativa hegemônica ancorada,

notadamente, em exemplos europeus de obras de revitalização urbana. A paisagem cultural

nestes casos é cenário e ambiência em oposição ao processo histórico de longa duração de

sua constituição, assim, recai-se na fetichização da paisagem. Ressalte-se que nos casos

da cidade de Porto Alegre e de Recife os projetos não foram executados mas construiu-se

uma forte narrativa de que aquilo que se propunha era a única maneira possível de sacar os

referidos espaços do abandono e ruína. É um tema interessante para debate o processo de

constituição da paisagem e a evolução conflitiva do território, mas também as narrativas

sobre este espaço e as apropriações que fazem dele os diferentes atores e grupos sociais.

Am âmbito internacional, que reflete nos processos internos de cada país, desde a década

de 1970 a UNESCO contribui no desenvolvimento do reconhecimento, preservação e gestão

de paisagens, acompanhando o desenvolvimento conceitual que o termo tem em disciplinas

acadêmicas e com a intenção de ultrapassar a divisão existente entre paisagem natural e

paisagem cultural. Para a UNESCO são três as categorias de paisagem cultural, e elas são

importantes, pois balizam o olhar de investigadores e profissionais que desse tema se

ocupam: a) paisagens claramente definidas, desenhadas e criadas intencionalmente, como

jardins e parques construídos; b) paisagens evoluídas organicamente (subdivididas em

paisagens-relíquia ou fóssil) e paisagens contínuas ou vivas, em que os processos ainda

estão em curso; c) paisagens culturais associativas, cujo valor é determinado por

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associações feitas a partir delas.

Em maior ou menor grau, ainda que sem intenção de inscrição de bens na lista da

UNESCO, os países signatários utilizaram os parâmetros internacionais para investigarem,

definirem e reconhecerem seus próprios patrimônios culturais como paisagem cultural. A

relação que se estabelece entre paisagem cultural e ferrovia é bastante clara, ora

considerando-se os caminhos rurais e a transformação da paisagem (plantios, industrias,

instalação e desenvolvimento de povoados, trânsito de informação, modernidade, etc.), ora

na ocupação de espaços urbanos que definiram em muitos casos o próprio desenho da

cidade, influenciando seu traçado mesmo quando, no momento atual, os pátios ferroviários

encontram-se cercados e murados nos centros das cidades.

Memória Ferroviária e Paisagem Cultural na perspectiva brasileira: desafios de

preservação e gestão integradas ao planejamento urbano

No Brasil, as noções de memória ferroviária e paisagem cultural apresentam-se como

conceito ou categoria de análise, relacionando aspectos de natureza material e material, de

modo a constituir discursos de valoração e chancela, estabelecendo novos instrumentos de

preservação, complementares ao tombamento e ao registro, para atingir um objetivo

comum: o estabelecimento de pactos estratégicos de gestão compartilhada.

A atribuição de preservação dos bens ferroviários foi delegada ao Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional – Iphan, via lei federal no início dos anos 2000 após articulação

de organizações de ferroviários junto a deputados e senadores no congresso nacional. No

contexto do desmanche e privatização de linhas e ramais operacionais e não-operacionais,

as referências históricas materiais haveriam de ser preservadas de maneira distinta àquela a

qual o Iphan vinha se ocupando através do instrumento do tombamento. A partir de 2007, ao

que se convencionou chamar de “memória ferroviária”, o Iphan precisou lidar com um

enorme passivo material ferroviário em estado de abandono e ruína, já em vias de

esquecimento do importante momento histórico de desenvolvimento econômico, territorial,

social e cultural propiciado pela instalação da ferrovia no país. Como destafa Finger:

A instalação da malha férrea brasileira transformou significativamente a paisagem do país tendo em vista que, até meados do século XIX, a articulação territorial se dava através da navegação marítima e fluvial ou por caminhos terrestres de infraestrutura precária, sendo que parte destes traçados foram utilizados para implantação de trilhos ferroviários ( FINGER, 2013, p.395).

O processo de privatização do setor ferroviário foi iniciado em 1992 com a inclusão da Rede

Ferroviária Federal S. A. – RFFSA, no Plano Nacional de Desestatização – PND, pelo

Decreto n° 473/1992. Após a extinção da RFFSA, em 2007, pela Medida Provisória nº 353 –

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posteriormente tornada a Lei n° 11.483/2007 –, os bens oriundos da RFFSA foram divididos

em operacionais e não-operacionais, incluindo bens móveis e imóveis. Quanto às

responsabilidades do Iphan, o Art. 9º da Lei 11.483/2007 especifica que:

Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção.

§ 2o A preservação e a difusão da Memória Ferroviária constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário […].

A atribuição de valor preventiva pelo Estado, neste momento, permite supor que a memória

ferroviária aparece como um atributo a ser alcançado (BOLOGNANI, 2012). A lei impôs algo

estranho à prática patrimonialista do Iphan, pois este recebe a incumbência de proteção da

memória ferroviária, como se o patrimônio ferroviário possuísse um valor inquestionável por

si, um espólio cujo significado fosse inerente a ele próprio e não necessitasse ser valorado,

pois é parte de sua natureza. A Lei claramente equivale o patrimônio ferroviário à memória

ferroviária (PROCHNOW, 2011). Deste modo, com vistas à normatização da situação, o

Iphan iniciou um processo de construção do conhecimento acerca do problema e que

culminou na Portaria nº 407/2010 que estabeleceu a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário,

inaugurando um novo instrumento de preservação no Iphan.

A preservação do patrimônio ferroviário baseia-se na perspectiva do patrimônio industrial

explicitada, precisamente, na Carta de Nizhny Tagil e não se orienta pela monumentalidade

ou pela excepcionalidade. Para a Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário – CTPF

do Iphan, a utilização da lei da memória ferroviária trouxe maior responsabilidade ao órgão,

visto que o alcance é maior do que simplesmente preservar um grupo de estações com

valor histórico. Isso implica olhar este patrimônio com maior abrangência, o que já está

sendo feito pelo Iphan, quando procura estabelecer a relação do patrimônio imaterial com o

material (CAVALCANTI NETO, 2009; 2012). Nessa concepção já se percebe a perspectiva

de abordagem sistêmica do patrimônio cultural que ganharia forma alguns anos mais tarde e

que tem na paisagem cultural e no patrimônio local o objeto de sua execução.

No caso brasileiro, a paisagem passou pelo mesmo percurso internacional de

reconhecimento e problematização para inserção como categoria de preservação cultural.

Desde os primeiros tombamentos e durante todas as três primeiras décadas, a paisagem

esteve presente como uma moldura dos bens materiais que se preservavam, como um

cenário, refletindo algumas preocupações da Carta de Atenas de 1931 com a visibilidade

dos monumentos. Somente a partir da década de 1980 a concepção de paisagem se

distancia do bem arquitetônico ou urbanístico dos centros históricos preservados e se

incorpora a leituras de território subsidiados pelas disciplinas da história, geografia e

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antropologia, conformando o momento de compreensão da cidade-documento

(SANT’ANNA, 1995). A partir de 2009 o IPHAN estabelece a Chancela da Paisagem Cultural

como instrumento de preservação celebrado através de um pacto de gestão entre os entes

federal, estadual e municipal. A paisagem cultural é entendida como bem resultante de uma

estratificação histórica dos valores e da cultura que se reflete em determinadas

manifestações, materiais e imateriais, que expressam relações do homem com o meio

natural, sendo valorizada como patrimônio através da caracterização e preservação de seus

atributos.

Na relação entre paisagem cultural e ferrovia, estabelece-se, no Brasil, uma preocupação

primeira em tratar a ferrovia como patrimônio já estabelecido, o que parece dificultar a

identificação e reutilização de antigos bens ferroviários pois, como visto anteriormente,

desde 2007, todos os elementos materiais ferroviários estão protegidos e, desde 2010, são

inscritos por demanda em uma Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário. Na prática, a

patrimonialização de bens ferroviários e das respectivas paisagens associadas à

implantação das malhas férreas ancora-se em um processo de atribuição de valor cultural

que se aproxima dos procedimentos de tombamento, entretanto, a preservação efetiva dos

bens ferroviários inscritos na Lista articula o estabelecimento de um termo de compromisso

visando pactuar as ações de gestão necessárias à plena conservação dos bens móveis e

imóveis. Do ponto de vista da argumentação para proteção de bens ferroviários, tanto a Lei

11.483/2007 quanto o tombamento, e mesmo a inscrição em Lista, visam promover a

preservação da memória, no entanto, assumem impactos diferentes diante dos mecanismos

urbanísticos de regulação de uso e ocupação do solo, sobretudo no caso de bens

ferroviários situados em contextos urbanos que atravessam processos complexos de

subutilização e especulação imobiliária.

O caso do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas é o mais emblemático e ilustrativo dos

discursos de preservação da memória ferroviária e da paisagem urbana. O Pátio situa-se no

centro da cidade do Recife, às margens do Cais José Estelita e do Cais de Santa Rita, nos

limites dos sítios históricos dos bairros de Santo Antônio e São José, composto pelo “maior

acervo de monumentos tombados do Recife, notadamente religiosos do século XVIII” e que

“mesmo sendo tangente, esta borda não foi inserida neste Sítio nem incluída como área de

transição, desconsiderando-se, inclusive, a histórica relação do Recife com suas águas”

conforme destaca Veras (2014, p.25).

O processo de especulação imobiliária nas áreas da borda do cais gerou um grande debate

sobre a preservação da paisagem urbana e a imagem da cidade, sobretudo a partir da

construção de dois edifícios de 41 pavimentos – conhecidas como “torres gêmeas” - que

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rompem com o padrão tipológico das construções históricas, onde as torres dos

monumentos religiosos se destacavam no skyline da planície recifense.

Skyline da paisagem urbana do Recife com torres gêmeas e vazio urbano do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas (destaque sob imagem). Fonte: VERAS, 2014, p.180.

Considerando toda área operacional e não operacional que compõe o pátio ferroviário,

historicamente caracterizado como vazio urbano, o Parecer Técnico complementar de

27/10/2011 do IPHAN/PE destaca os valores de significância cultural e preservação da

memória ferroviária atribuídos à área, defendendo sua inscrição na Lista do Patrimônio

Cultural Ferroviário:

Considerando que a combinação dos valores identificados no Pátio Ferroviário das Cinco Pontas (valor histórico, valor arquitetônico, valor arqueológico, valor paisagístico, valor de uso, valor de raridade e valor de memória) reflete a sua complexidade e indica a sua relevância e significância, em nível nacional, para a preservação da Memória Ferroviária brasileira, uma vez que todos os suportes materiais da memória, ainda existentes (imóveis, móveis e textos e iconografia) propiciam remontar toda a lógica funcional, estrutural, visual e de relações sociais de trabalho no contexto da implantação do sistema ferroviário brasileiro.

Nesse ínterim, a eminência de execução do Projeto Novo Recife que prevê a construção de

outros 15 edifícios de padrão semelhante às torres gêmeas na área do Pátio Ferroviário das

Cinco Pontas vem provocando a emergência de proteção patrimonial, para além da

justificativa da preservação da memória ferroviária, considerando também os valores da

área na escala de composição da paisagem histórica da cidade do Recife.

Tais edifícios estão inseridos em um planejamento onde a paisagem não é discutida e que, portanto, desconsidera as suas preexistências ao impor um novo padrão de ocupação e apropriação do espaço, bem como uma escala oposta à que ali se consolidara, nos mais de quatro séculos de paisagem. (VERAS, 2014, p.24-25)

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Escala das torres gêmeas na paisagem do Recife e vazio urbano do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas (destaque sob a foto). Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=243194

Cabe ressaltar que o processo de valoração do patrimônio ferroviário em contextos urbanos

implica na identificação de valores culturais materializados num determinado recorte

territorial, a partir de lugares de memória ferroviária que consideram o impacto cultural da

implantação da malha ferroviária no processo de formação, consolidação, expansão e

desenvolvimento urbano de diversas cidades, cujo cotidiano foi amplamente alterado a partir

da passagem das linhas férreas.

De todas as formas, acredita-se que a paisagem seguirá a linha de que é uma condição

necessária para o reconhecimento de territorialidade e de pertencimento aos lugares pois

estes abrangem identidades, relações sociais e história, sendo passíveis de estudo e

proposições no âmbito do planejamento urbano. O caso da Vila de Paranapiacaba, em São

Paulo, reafirma a importância do estabelecimento de um pacto para gestão da paisagem

cultural, o que possibilitou a criação de uma Zona Especial de Interesse do Patrimônio de

Paranapiacaba junto ao Plano Diretor da cidade com objetivo de criar diretrizes de

planejamento urbano:

Nesse sentido, a estratégia que revelou-se mais adequada ao controle e direcionamento das mudanças e atualizações necessárias à preservação sustentável da paisagem cultural, ao menos para o caso de Paranapiacaba, baseou-se na utilização de instrumentos do planejamento urbano. Todavia, não se trata apenas da prática do planejamento territorial urbano, mas, sobretudo, de sua articulação ao planejamento das atividades econômicas, sociais e culturais a serem desenvolvidas em uma porção de território considerada como sítio histórico urbano ou paisagem cultural (FIGUEIREDO, 2010, p. 77).

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Paisagem da Vila Ferroviária de Paranapiacaba/SP que não integra a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, mas cujo conjunto urbano é tombado pelo IPHAN através do Processo 1252-T-1987 com

inscrição em 2008 no Livro de Tombo Histórico. Fotografia: Alba Bispo 13/03/2011.

Patrimônio Ferroviário e Paisagem Cultural na perspectiva argentina: dos

valores históricos à refuncionalização urbana

Ao que representa o caso argentino, a preservação nacional de bens ferroviários realizado

pela Comisión Nacional de Monumentos, de Lugares y de Bienes Históricos privilegiou,

como no caso brasileiro, estações, pontes, locomotoras, espaços ocupados por instalações

ferroviárias, e um ramal com suas estações ferroviárias. Os valores atribuídos foram como

bens de interesse histórico e como monumento histórico. O mais importante no bojo desse

artigo é que, aparte a preservação nacional dos 24 bens protegidos, os elementos

ferroviários principalmente em regiões urbanas são tratados na perspectiva de

refuncionalização das áreas e bens a partir de planejamento urbano das cidades.

Tal qual o Brasil, a extensão da malha ferroviária argentina equivale à sua importância

histórica, econômica, social e cultural. A compreensão da relação entre paisagem cultural e

bens ferroviários, as diferentes paisagens que ela percorre, parece influenciar a valoração

de seus bens na perspectiva da paisagem cultural principalmente no que tange a projetos de

planejamento urbano em espaços ferroviários abandonados e de centralidade urbana.

Para a arquiteta Mônica Ferrari (2013, p.77), investigadora destes temas na região do

noroeste argentino (NOA), a ferrovia “se integra y se vincula a una serie de recursos que

forman parte del paisage, donde subyace un modelo (territorial) histórico en el que se

destaca el caractér de permanencia y evolución”, como a rede de caminhos pré-hispânicos,

os campos de cultivo, a paisagem rural e a paisagem urbana. Para a arquiteta, a ferrovia

tem papel integrador destas paisagens e por isso não se fala de uma paisagem ferroviária,

se não de uma paisagem cultural donde a ferrovia é um dos elementos catalizadores:

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El conjunto estudiado no es sólo la vía ferroviaria y las estaciones del ferrocarril, sino justamente el papel integrador que juega el ferrocarril (la suma de las imágenes paisajísticas, pueblos, gentes, costumbres, campos de cultivos, sus vínculos con la tierra, incluyendo lo ferroviario), enfoque que permite entender la herencia del territorio como patrimonio y su consecuente identidad (FERRARI, 2013, p. 77).

É interessante a perspectiva da autora na medida em que percebe o patrimônio ferroviário

como um sistema articulado, um conjunto de componentes que lhe garante um valor de

sistema muitas vezes não compreendido pelas instituições administrativas e que acabam

sempre por valorar individualmente algum bem, geralmente a estação ferroviária, por seu

valor arquitetônico. No texto citado, Ferrari aponta ao menos três partes identificáveis deste

sistema ferroviário: sistema territorial, sistema de assentamentos e sistema arquitetônico, os

quais deve sempre ser analisados em forma de um sistema articulado.

A arquiteta Terezita Nuñez (2009) defende a tese de que o território pode ser tomado como

patrimônio e, na perspectiva da paisagem cultural, o projeto deve ser vetor de

desenvolvimento. Metodologicamente, indica o uso das narrativas locais para o

descobrimento do que seria para os atores sociais “o território” deles, pois são esses atores

que historicamente construíram o território e são os zeladores de seu patrimônio cultural.

Essa metodologia se aproxima da preservação do patrimônio cultural como uma prática

social. Nesse sentido investigadores uruguaios trazem uma compreensão que fortalece o

olhar sobre o sistema ferroviário:

La identificación de los valores urbanos, espaciales y ambientales del sistema ferroviario nacional debe ser establecida en el marco de una valoración más amplia, que incluya su carácter industrial, su protagonismo en la historia del país, su legado arquitectónico y su vinculación con los aspectos socio - culturales de fuerte arraigo en las comunidades locales. En este marco integral de análisis del ferrocarril como fenómeno cultural, es posible identificar que sus valores de identidad y su potencial como factor de desarrollo local, en relación al territorio (ETCHEVARREN; PRIMUCCI; ROMAY, 2010).

O caso da cidade de Rosário (Argentina) é um exemplo clássico de uma zona central de

cidade, à beira do Rio Paraná, onde se desenvolveram durante décadas atividades

ferroviárias e portuárias, constituindo o segundo porto em importância do país. Ele se insere

na dinâmica mundial de refuncionalização territorial de áreas centrais de cidades com

superfícies subutilizadas em consequência da obsolência das atividades de outrora. Outra

característica é que tais processos possuem como um dos agentes o mercado imobiliário,

um forte componente na dinâmica local e nos processos decisórios sobre estes espaços.

A análise recai sobre o chamado Puerto Norte, última etapa de um projeto geral sobre a

requalificação de toda a frente do rio da cidade de Rosário. Conforme os mapas a seguir, a

região central já fora objeto de intervenção, conforme relata o arquiteto Luciano Kruk:

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[La estratégia] consistió en ir abriendo diversas áreas de ubicación estratégica siguiendo un plan de etapas, procediendo de una manera muy sencilla que requirió de una bajísima inversión económica y plazos de obra muy breves: en una primera instancia se removieron todos aquellas barreras arquitectónicas (cercos, muros, y diversas construcciones) que impedían el acceso público peatonal o vehicular al rio, y se trataron las áreas principalmente limpiándolas y con una parquización mínima para volverlas transitables pero dejando intactos ciertos elementos de la antigua infraestructura (tales como grandes silos de acopio de granos, o depósitos ferroviarios) que no interferían con la llegada a la costa, estos elementos fueron reciclados y reconvertidos sus usos en públicos con notable destreza arquitectónica , dotando al sector de una atmósfera muy particular que recupera para el uso de toda la población éste territorio que por la presencia del imponente Río Paraná no solamente se incorpora como un gran espacio verde sino que aporta un gran valor paisajístico antes escondido (KRUK, 2011, p. 31)

Foto aérea da região centro já objeto de requalificação. Fonte: BID, 2015

Antes, é necessário frisar que o Estado Nacional, dono das terras ferroviárias, colocou-as no

mercado à disposição principalmente das municipalidades uma grande superfície de

território, solo urbano, estrategicamente localizados e pendentes de processos de

planejamento e projeto urbano para requalificação e uso não só dos bens edificados como

do solo propriamente dito. Como refere a arquiteta Laura Tarchini (2010), essa operação

sempre foi definida por leis municipais e em disputa entre comunidades, órgãos e

instituições e o mercado imobiliário. Geralmente ao final de longos processos, as novas

diretrizes urbanas regulam o que pode ser feito e de que maneira, além da função das

zonas pré-definidas.

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Chamado de Porto Norte, este espaço possui 100 hectares de instalações industriais,

ferroviárias, portuárias e foi o centro do sistema ferroviário dessa região do país,

responsável pelo escoamento de produção e trafego de inúmeros tipos de bens dado sua

junção com o porto. A arquiteta Cecília Galimberti relata o início dos debates sobre a

refuncionalização da área:

De manera que, luego de décadas de litigio legal, se logra liberar este sector de usos productivos-portuarios y se desarrolla, desde la Secretaría de Planeamiento de la Municipalidad de Rosario, un nuevo modelo de gestión y concertación público-privado a través de elaboración del Plan Especial de Puerto Norte. En el mismo se divide al sector en unidades de gestión que se proyectan en sucesivos Planes de Detalle. El proceso normativo que posibilita la reestructuración de esta zona urbana estratégica comienza a vislumbrarse en la década de 1990. La Ley Nacional de Cesión de Tierras de 1992 y el Convenio Marco entre la Municipalidad de Rosario y Ferrocarriles Argentinos en 1996 posibilitan la ejecución de proyectos de reestructuración ferro-urbanística, a fin de avanzar en la desafectación de instalaciones y terrenos ferroviarios para su utilización en diversos proyectos urbanos (GALIMBERTI, 2016).

Segundo a arquiteta, diversas Ordenanzas Municipales vão especificando ao longo de

alguns anos os equipamentos, usos, serviços, índices construtivos, etc. Logo após as fases

do processo, define-se uma das zonas como parque polifuncional com construção de

moradias, parque público e demais serviços. Com a realização, em 2004, de um concurso

nacional de Anteprojeto para definição do plano geral, a equipe vencedora liderada pelo

arquiteto Juan Munuce apresentava a seguinte memória descritiva do projeto:

Acima: imagem área da cidade de Rosário; à esq.: setorização da cidade com destaque à regiaõ do Puerto Norte. Fonte: BID, 2015.

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Nos interesa construir un trozo incompleto de ciudad… un tanto defectuoso… inconcluso… que se mezcle con ese tiempo [el tiempo acumulado con la vaguedad formal del área] sin dar demasiadas lecciones acerca de la ciudad futura. [...] Pensamos que esta arquitectura debería tener un descanso merecido, por eso solo limpiamos los medianeros de chapas oxidadas para construir el vacío necesario. [...] El edificado es concebido como un plegado que varía su altura produciendo llenos y vacíos que son patios y terrazas de casitas sobre un jardín de silos abandonados. [...] Este proyecto quiere ser un vacío sobre el vacío existente. Nos interesa construir el baldío en el baldío. Un trozo donde la ciudad se suspende alegremente para inquietar los ojos aturdidos de tanta ciudad reglada de tanta libertad vigilada... (apud GALIMBERTI, 2016, p. 10).

Galimberti afirma que tal projeto com o passar dos anos é apropriado pela especulação

imobiliária e se transforma em outra coisa, restando somente o parque Scalabrini Ortiz com

seu projeto original. As demais zonas foram privatizadas e resultaram em

Una sumatoria de espacios intersticiales y de componentes viales, sin equipamiento apropiado a fin de garantizar una apropiación colectiva del mismo. De manera que, en este caso de estudio los intereses privados tienden a producir una topofagia urbana del espacio público. Es importante remarcar que la recuperación cuantitativa de éste no asegura una verdadera publicidad del espacio. Producir espacio público requiere intencionalidad, proyecto, escucha atenta a las voces colectivas – de quienes eligen y se apropian del mismo cotidianamente. Es decir, su definición no se limita a aquello que no corresponde a la propiedad privada, sino que debe incluir intrínsecamente en su desarrollo al rol de la identificación territorial y al intercambio con el outro (GALIMBERTI, 2016, p. 15).

A autora identificou ao longo do processo de refuncionalização dessa área três modelos de

proteção patrimonial: 1) aquele promovido pelo Estado como defensor de bens coletivos; 2)

aquele que está sob pressão entre o mercado imobiliário e o poder público mas que tende a

prevalecer os critérios definidos pelo Estado; 3) o que o Estado cede ao mercado imobiliário.

No primeiro, a autora identifica a preservação como preocupação primeira dos entes

envolvidos que visam preservar o patrimônio material para as gerações futuras respeitando

Detalhe para as modificações entre os anos de 2008 e de 2015 na região norte da cidade (Puerto Norte). Fonte: Google.

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as relações históricas e a identidade do território. Nesse caso, é a comunidade quem

geralmente requer e se manifesta ativamente pela preservação. No segundo caso, apesar

de certa pressão imobiliária, o poder público intervém e define os limites entre preservação e

mudança territorial. Já no terceiro caso, a iniciativa imobiliária produz uma requalificação

urbana absolutamente nova ignorando a história e a comunidade local, aproveitando-se

muitas vezes do patrimônio histórico vizinho como recurso patrimonial e estratégia de

marketing.

Fazendo eco às considerações que Ferrari traz, Tarchini em seu texto também discute o

sistema ferroviário e o equívoco de tratá-lo como uma série de bens valorados

individualmente:

La mirada hacia el sistema ferroviario como patrimonio construido, en términos de un conjunto de edificios y espacios que forman parte indisoluble de la trama urbana, que se encuentran en estado de obsolescencia funcional pero presentan posibilidades físicas y ambientales para relacionarse con una red más amplia de usos públicos, debería ser un punto de partida para el tratamiento diferencial pero a su vez integral del patrimonio en las ciudades. Justamente el valor los enclaves ferroviarios reside en su condición pública diferenciada de la estructura urbana y en su carácter de red espacial continua que conjuga en su interior elementos materiales referentes de la memoria de gran flexibilidad funcional. Es por ello que su proyectualidad debe considerar un tratamiento dirigido a aprovechar y maximizar las potencialidades que derivan de estas características y relaciones urbanas establecidas por la red. (TARCHINI, 2010, p. 8).

Os resquícios da época da ferrovia, sejam eles edificados ou terrenos, se colocam como

oportunidades para novos arranjos de territórios e uso de espaços públicos para as cidades.

Como comenta Tarchini, são oportunidades plurais, de múltiplas vozes, essas

requalificações da cidade e do território desde uma perspectiva espacial e paisagística que

tem no patrimônio construído, ferroviário, o elemento estruturante do desenvolvimento do

tecido urbano.

Considerações Finais

Em ambos países, as realidades socioeconômicas resultantes da extensão do sistema

ferroviário e as marcas arquitetônicas, urbanas e paisagísticas demandam uma complexa

leitura do território urbano. Ao delinear pactos estratégicos para gestão compartilhada e

preservação da memória ferroviária e da paisagem cultural, os discursos de valoração

patrimonial refletem uma leitura ampliada do patrimônio, a partir de outras perspectivas e

significações culturais sob um determinado recorte territorial, relacionando aspectos de

natureza material e imaterial inerentes às marcantes intervenções das ferrovias nas cidades,

cujo processo histórico de implantação delineou paisagens singulares. Em ambos os casos

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estudados a pressão do mercado imobiliário e sua marcada face excludente e elitista

impelem a organização social construir meios de acesso a politicas públicas que devem, por

outro lado, criar elos com os conselhos municipais definidores do planejamento urbano.

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