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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Linguagem, usos e ensino n o 43, p. 119-136, 2011 119 PARÁFRASE E POLISSEMIA: OS SENTIDOS POSSÍVEIS DA PALAVRA “SISTEMA” NO DISCURSO DAS COTAS DE ACESSO À UNIVERSIDADE PÚBLICA Isabel Cristina Rodrigues RESUMO: Este artigo analisa processos parafrásticos e polissêmicos relacionados ao referente discursivo “imple- mentação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil”, presente em entrevista do periódico ADVIR, publicado pela Associação de Docentes da UERJ em 2005. Com base na perspectiva da Análise de Discurso, destacam- -se, na análise, confrontos em torno da posição-sujeito do gestor das políticas nacionais de educação. PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso; processos parafrásticos e polissêmicos; sistema de cotas. Introdução: “o debate inconcluso das cotas” E m 2005, a Associação de Docentes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – ASDUERJ definiu o seguinte tema “Cotas: um debate inconcluso” para sua revista acadêmica, a ADVIR. Essa escolha se insere no âmbito dos debates acerca de ações afirmativas que, na última década, têm ganhado espaço na sociedade brasileira, muito especialmente, motivados pelas propostas de implementação de sistemas de cotas no acesso a universidades públicas. Nesse contexto, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ se destacou como pioneira em âmbito nacional, em função da promulgação da lei estadual 4151/2003. Esses debates vêm reunindo campos de opiniões em franca polêmica, a qual parece incidir, majoritariamente, sobre duas questões: o mérito por nota em concurso na ocupação de vagas públicas em universidades e a reserva des-

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pAráFrASe e poLiSSemiA: oS SentiDoS poSSíveiS DA pALAvrA “SiStemA” no DiScurSo DAS cotAS De AceSSo à

univerSiDADe púbLicA

Isabel Cristina Rodrigues

RESUMO: Este artigo analisa processos parafrásticos e polissêmicos relacionados ao referente discursivo “imple-mentação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil”, presente em entrevista do periódico ADVIR, publicado pela Associação de Docentes da UERJ em 2005. Com base na perspectiva da Análise de Discurso, destacam--se, na análise, confrontos em torno da posição-sujeito do gestor das políticas nacionais de educação.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso; processos parafrásticos e polissêmicos; sistema de cotas.

introdução: “o debate inconcluso das cotas”

Em 2005, a Associação de Docentes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – ASDUERJ definiu o seguinte tema “Cotas: um debate inconcluso” para sua revista acadêmica, a ADVIR. Essa escolha se insere

no âmbito dos debates acerca de ações afirmativas que, na última década, têm ganhado espaço na sociedade brasileira, muito especialmente, motivados pelas propostas de implementação de sistemas de cotas no acesso a universidades públicas. Nesse contexto, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ se destacou como pioneira em âmbito nacional, em função da promulgação da lei estadual 4151/2003.

Esses debates vêm reunindo campos de opiniões em franca polêmica, a qual parece incidir, majoritariamente, sobre duas questões: o mérito por nota em concurso na ocupação de vagas públicas em universidades e a reserva des-

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sas vagas em função de uma definição de raça. Essas questões ficam visíveis, por exemplo, nos debates sobre a prática assumida na UERJ, onde 40% das vagas estão reservadas para candidatos que associem escolarização em institui-ções públicas, determinado perfil de renda e, também, pertencimento a dois segmentos específicos da população – negros e índios.

Nessa edição de ADVIR, um conjunto de textos abarca diferentes aspec-tos do debate. Segundo o próprio editorial:

questões centrais relativas ao racismo, à identidade e à persis-tência das desigualdades no campo educacional; as dimensões das políticas de ação afirmativa, como estratégia inclusiva, den-tro e fora do sistema escolar; os avanços e perspectivas na im-plementação de cotas ou reserva de vagas no ensino superior; os critérios de classificação de cor (sua pertinência e legitimidade); as mudanças jurídico-institucionais que decorrem da imple-mentação de estratégias de democratização desenvolvidas neste campo (Revista ADVIR, 2005, p. 6)1.

De fato, nas diversas seções da revista, um grupo expressivo de pessoas envolvidas com o tema, de estudantes a secretários de governo, de pesquisado-res a representantes de entidades, posiciona-se no debate, traçando um certo percurso das polêmicas que constituem a área. Interessou-nos, em especial, a seção de entrevistas, em que cinco perguntas sobre a implementação do sistema de cotas no Brasil são feitas a doze entrevistados, pelo PPCOR (LPP-UERJ)2 e pela equipe de imprensa da ASDUERJ. Em função da ampla representativi-dade de opiniões que as sessenta respostas permitem analisar, perguntamo-nos, com base numa perspectiva teórica discursiva (ORLANDI, 2001)3, que efeitos de sentido estariam sendo produzidos no discurso que as respostas engendram. Gostaríamos de destacar que o editorial, ao enumerar os temas acima, recorta um eixo do discurso das ações afirmativas que circula na sociedade, e não ou-tros, configurando uma textualização sobre o que ADVIR pode e deve falar.

1 Revista ADVIR nº 19, Rio de Janeiro, setembro de 2005.2 Programa Políticas da Cor, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado

do Rio de Janeiro.3 ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.

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Os entrevistados são chamados a falar de seis lugares sociais: 1 militante do movimento social por ações afirmativas para afrodescendentes, 2 secretá-rios do ministério da educação, 3 dirigentes de entidades representativas, 1 sub-reitora de universidade, 4 professores/pesquisadores de ensino superior, 1 estudante cotista. Esse conjunto de respostas compõe um objeto simbólico que produz sentidos em um dado momento histórico.

Assim, por exemplo, a primeira pergunta – sobre a qual vamos nos deter neste artigo – pede um balanço do processo de implementação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil, pedido que parece simples e óbvio, de acordo com um olhar que vê nas palavras um projeto de comunicação, em que inter-locutores falam sempre sobre o “mesmo”, compreendendo-se mutuamente. As respostas oferecidas pelos entrevistados, porém, como de resto qualquer uso da linguagem, chamam-nos à reflexão sobre essa transparência do dizer. Nossa abordagem desse texto não foi a de destacar conteúdos – o que foi respondido –, mas sim, numa perspectiva discursiva, a de analisar o processo de construção do que é dito e silenciado, processo que é constitutivo dos sentidos:

Essa posição da análise do discurso que, teorizando a interpreta-ção, propõe que se considere o sentido como “relação a”, com-preendendo que a língua se inscreve na história para significar: quando se fala, mobiliza-se, pois, um saber que no entanto não se aprende, que vem por filiação e que nos dá a impressão de ter sempre estado “lá”.O princípio dessas práticas de leitura consistiria em se levar em conta a relação do que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procu-rando “escutar” a presença do não-dito no que é dito: presença produzida por uma ausência necessária. Como só uma parte do dizível é acessível ao sujeito, com essa escuta o analista poderá ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os sentidos de “suas” palavras (ORLANDI, 1998, p. 10)4.

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Nesse caminho de análise, portanto, víamos que, em relação ao tópico central da pergunta – a implementação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil –, algumas respostas promoviam deslocamentos, pontos de deriva dos sentidos, propondo diferentes formulações, decorrentes da tensão dos proces-sos parafrástico e polissêmico que constroem uma compreensão do sistema de cotas. Nesse ponto, é importante destacar o que vem a ser essa tensão presente nos discursos:

Quando pensamos discursivamente a linguagem, é difícil traçar limites estritos entre o mesmo e o diferente. Daí considerarmos que todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásticos e processos polissêmicos. Os pro-cessos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A pa-ráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimen-tado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco (ORLANDI, 2001, p. 36).

É a partir desse viés de leitura que procuraremos apresentar algumas re-flexões sobre o debate acerca das cotas em um recorte discursivo, feito a partir da Revista ADVIR (2005).

Construção do dispositivo de análise: da entrevista ao discurso produzido na entrevista

Como dissemos, nossa atenção se voltou, de início, para o extenso con-junto da entrevista. Essa superfície linguística representa uma textualização da qual partimos para analisar o processo discursivo acerca dos sistemas de cotas. Era preciso assim, para encaminhar nossa análise, chegar a um objeto discursivo:

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Nosso ponto de partida é o de que a análise de discurso visa compreender como um objeto simbólico produz sentidos. A transformação da superfície linguística em um objeto discur-sivo é o primeiro passo para essa compreensão. Inicia-se o tra-balho de análise pela configuração do corpus, delineando-se seus limites, fazendo recortes, na medida mesma em que se vai incidindo um primeiro trabalho de análise (...) (ORLANDI, 2001, p. 66-67).

Chegar a um objeto discursivo, neste momento, significava, em especial, “desnaturalizar a relação palavra-coisa” produzida pelo sujeito, por esquecer que os sentidos de suas palavras não nascem com ele e que o modo como diz algo não é o único possível (ORLANDI, 2001, p. 34-35). Discursivizar o tex-to era um processo necessário, para que fosse possível explicitar e compreender efeitos de sentidos que se produziram naquela entrevista.

Nosso ponto de partida, portanto, foram as cinco perguntas e sessenta respostas. Dados a extensão desse texto e os limites deste artigo, procedemos a um recorte de modo a selecionar três respostas, referentes apenas à primeira pergunta. Esse recorte se orientou pelos seguintes critérios e etapas:

1. Seleção da pergunta Escolhemos privilegiar em nosso corpus a primeira pergunta da entrevista por sua abordagem geral, que contemplava de maneira mais próxima o tema focalizado pela revista: A implementação do sistema de cotas raciais e sociais tem aumentado significativamente no Brasil durante os últimos anos. Que balanço o(a) senhor(a) faria deste processo?

2. Seleção das respostasDiante das respostas dos doze entrevistados, optamos por selecionar três, considerando uma tríade representativa da instituição universitária, es-paço onde o sistema de cotas tem-se efetivado: o corpo discente, o corpo docente e o gestor das políticas de educação. Dentre as duas respostas de estudantes, optamos pela do presidente da União Nacional dos Estudan-tes – UNE e, dentre as duas de gestores públicos, escolhemos a do secre-tário nacional de educação superior (SESu-MEC), ambos representantes

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de âmbito nacional. Dentre as quatro respostas de professores, seleciona-mos a do que atua na área de políticas públicas, campo privilegiado em que se insere a discussão sobre o sistema de cotas no Brasil.

Neste ponto, apesar de um recorte de texto suficientemente delimitado, não tínhamos ainda um objeto discursivo. Analisar um texto, e compreender como ele funciona e produz sentidos, na perspectiva da análise de discurso, é tomá-lo como um objeto que materializa o encontro entre língua e história. É justamente nesse encontro que acontecem os processos de significação, e nosso recorte ainda não nos permitia olhar esse encontro. Partimos então para a construção de um dispositivo que nos permitisse não só reconhecer esses processos como também analisá-los.

(...) de acordo com E. Orlandi, um “dispositivo analítico” (...) [é] o conjunto de conceitos trabalhados em vista da questão do analista, da natureza do material e da finalidade da análise. Enquanto o dispositivo teórico refere-se a todo o quadro teóri-co da Análise de Discurso, o dispositivo analítico individualiza o quadro teórico, sendo construído a cada análise (NUNES, 2006, p. 16-17)5.

Mais uma etapa, além das anteriores, portanto, mostrava-se necessária para compreender a discursividade. Retomando o que dissemos na introdu-ção, víamos, nas respostas dos entrevistados, um deslocamento do tópico da pergunta. Líamos, no lugar de “implementação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil”, diferentes formulações relacionadas a esse tópico, e nos interrogamos sobre quais efeitos de sentido essas formulações produziam. As-sim, para construir nosso dispositivo analítico, procuramos responder à se-guinte pergunta: como funcionam discursivamente essas novas formulações, presentes nas repostas dos entrevistados, que reiteram ou ressignificam o tópi-co da pergunta feita pela revista?

5 NUNES, J. H. Dicionários no Brasil: análise e história do século XVI ao XIX. Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp – São José do Rio Preto, 2006.

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Paráfrase e polissemia: permanência e deslocamento de sentidos no processo discursivo do sistema de cotas

De acordo com Orlandi (2003, p. 275)6, “o sentido está sempre no viés. Ou seja, para se compreender um discurso é importante se perguntar: o que ele não está querendo dizer ao dizer isto? Ou: o que ele não está falando, quan-do está falando disso?” Com base nessa perspectiva, e pensando numa relação paradigmática, perguntamo-nos:

Com que novas formulações cada resposta retoma o tópico “implementação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil”, ou para dizer o mesmo, ou para dizer diferente, mas sempre tendo no horizonte essa primeira materialidade lin-guística, que aponta para determinados sentidos?

Ao reiterar ou ressignificar o tópico da pergunta, que posições-sujeito é possí-vel identificar nesse debate?

Ao propor uma pergunta, a revista procura circunscrever e delimitar um campo de sentidos sobre o qual se pretende falar. A formulação “A im-plementação do sistema de cotas raciais e sociais tem aumentado significativa-mente no Brasil durante os últimos anos. Que balanço o(a) senhor(a) faria deste processo?” coloca, de saída, uma afirmativa que constata uma dada realidade, sempre imaginária: a do aumento significativo da implementação do sistema de cotas raciais e sociais durante os últimos anos no Brasil. Esse dado não está problematizado na pergunta; trata-se de um processo em curso, a im-plementação, sobre o qual não se faz pairar dúvida. No ponto central dessa formulação, está o referente discursivo “sistema de cotas raciais e sociais”. Nas novas formulações presentes nas respostas, chamaram-nos atenção es-pecial os deslizamentos de sentido que pareciam ocorrer sobre o termo “sis-tema”. Se consultarmos, por exemplo, o Dicionário Aurélio Eletrônico7, um dos sentidos da palavra “sistema” remete a um conjunto de regras, procedi-mentos organizados que atendem a um fim e permitem um determinado funcionamento – sentido que parece estar relacionado ao termo “sistema” na pergunta.

6 ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 2003.7 FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4 ed. CD-ROM

versão 6.0. Curitiba: Positivo, 2009.

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Considerando o debate sobre cotas, é importante notar que, quando se fala “implementação de sistema de cotas”, não se está falando “luta por ação afirmativa”, ou “democratização do acesso ao ensino superior”, ou “política pública” – ou, ainda, retomando os pontos de controvérsia citados na intro-dução, não se está falando “favorecimento por cor de pele”. Todas essas ou-tras formulações são intercambiáveis, no conjunto do debate, mas atualizam diferentes redes de sentido – algumas até em disputa ideológica. De acordo com a revista, o debate sobre a temática está inconcluso, então ela propõe um “balanço”, uma avaliação do “sistema”.

Com essa remissão aos sentidos possíveis da palavra “sistema”, colocamos foco sobre o fato de que as palavras carregam uma história. Seus usos e percur-sos estão sempre vinculados aos sujeitos, também historicamente determina-dos. Toda palavra, ao ser empregada, já nasce em uma memória, já pertence a um interdiscurso:

Em sua definição, o interdiscurso é o já-dito que sustenta a pos-sibilidade mesma de dizer: conjunto do dizível que torna possí-vel o dizer e que reside no fato de que algo fala antes, em algum outro lugar. Toda vez que falamos, para que nossas palavras te-nham sentido, é preciso que já tenham sentido. Esse efeito é produzido pela relação com o interdiscurso, a memória discursi-va: conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos. Assim, ao falarmos nos filiamos a redes de sentido. Não aprendemos como fazê-lo. Isto fica por conta da ideologia e do inconsciente. E o fazemos em um gesto de interpretação na relação da língua com a história (ORLANDI, 1998, p. 9).

Ao formular a pergunta solicitando um balanço sobre o processo de im-plementação do sistema de cotas, nota-se que cada entrevistado, assumindo um determinado “gesto de interpretação”, reitera ou ressignifica o que seja esse processo. Esse trabalho de reiteração e ressignificação constitui uma forma de apropriação da linguagem que posiciona, ideologicamente, sujeitos nesse debate acerca das cotas.

É preciso delimitar que, em Análise de Discurso, a noção de sujeito é dis-cursiva, e não empírica. Não se trata aqui do secretário A, do estudante B ou

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do professor C, mas da(s) posição(ões)-sujeito que esse secretário, estudante ou professor assume – independentemente de suas intenções –, e dos sentidos que derivam de seus discursos. Segundo Orlandi (1998, p. 13), a “noção de sujeito não recobre uma forma de subjetividade mas um lugar, uma posição discursiva relativa a uma incidência da memória”.

A partir da compreensão sobre o que se está perguntando, procedemos ao recorte das sequências discursivas presentes nas respostas dos entrevistados, apresen-tadas na tabela abaixo. A organização da tabela procura evidenciar as várias formu-lações que constroem o referente discursivo “implementação do sistema de cotas”, realçando um eixo paradigmático de sequências possíveis de reiterar ou de ressigni-ficar esse referente. Nas subseções em seguida, fazemos a análise dessas sequências.

Revista ADViR 2005 – seção de Entrevistassequências discursivas relacionadas ao referente discursivo

“implementação do sistema de cotas raciais e sociais no Brasil”

ENTREVisTADo sEQUêNCiAs DisCURsiVAsPRESIDENTE DA UNE 1. a implementação do sistema de cotas

raciais e sociais no Brasil2. compreensão da sociedade e da uni-

versidade brasileira sobre a necessi-dade da democratização do acesso à universidade

3. as cotas4. medidas emergenciais5. as possibilidades e as oportunidades

dos jovens pobres e negros chegarem à universidade

6. a demanda7. este debate8. cotas para negros9. uma polêmica grande10. uma polêmica11. implementações das cotas12. a demanda13. passos significativos14. implementação das cotas raciais e

sociais no Brasil

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“sistema” no discurso das cotas de acesso à universidade pública

SECRETÁRIO NACIONALDE ENSINO SUPERIOR

1. sistema de reserva de vagas para alu-nos provenientes de escolas públicas, negros e indígenas

2. os vários processos [de implementa-ção das cotas] adotados [nas univer-sidades]

3. regulação das políticas de democrati-zação do acesso às IFES [Instituições Federais de Ensino Superior]

4. Programa Universidade para Todos5. implantação de política de inclusão

social e étnico-racial, no ensino su-perior, bem como sua regulação e expansão

PROFESSOR/PESQUISADOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS

1. política de ações afirmativas através das cotas

2. [limitação do alcance desse sistema como] medida pública do Estado

3. uma política por meio de bolsas de estudo no setor privado [a partir de um corte étnico]

4. política focalizada [pois sempre bene-ficia determinados indivíduos]

5. política de cotas no vestibular da UERJ6. bolsas no ProUni7. acesso diferenciado às universidades8. outro formato9. ação afirmativa10. política estrutural de mudança do

ensino médio11. o problema da cota12. a política de cotas (2 vezes)13. uma experiência estadunidense14. a política pública15. condições de acesso para os indivíduos

situados socialmente

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o dizer do estudante

Com o objetivo de elucidar o processo de construção do nosso dispositi-vo de análise com o recorte das sequências discursivas, reproduzimos a seguir apenas a resposta do presidente da UNE.

O aumento da implementação do sistema de cotas raciais e so-ciais no Brasil (1) reflete um pouco a compreensão da sociedade e da Universidade brasileira sobre a necessidade de democratização do acesso à Universidade (2). A universidade é a instituição de produção do conhecimento, do saber e ficou reduzida, e ainda é reduzida hoje, a um pequeno número de pessoas que conseguem ter acesso a ela. Hoje, no Brasil, somente 12% dos jovens de 18 a 24 anos têm acesso à universidade, na sua grande maioria jovens brancos que conseguem ter acesso a um bom ensino médio. E, nes-tes últimos anos, a boa qualidade no ensino médio, infelizmente, a gente tem encontrado nas instituições privadas. Então, as cotas (3) vêm do entendimento de que são necessárias medidas emergenciais (4) que possam aumentar as possibilidades e as oportunidades dos jovens pobres e negros chegarem à Universidade (5). Eu acho que é um balanço positivo, ainda tímido perto da demanda (6) que existe, mas entendo que a sociedade vem sendo ganha para este de-bate (7). Se você pensar, dez anos atrás quando se falava de cotas para negros (8), existia um sentimento muito negativo, a opinião pública era contrária. Hoje é uma polêmica grande (9). Mas, já se tornou uma polêmica (10), ou seja, existem opiniões a favor, opiniões contrárias, mas em alguns locais há avanços significativos na implementação das cotas (11). A demanda (12) ainda é muito grande, mas foram dados passos significativos (13), nos últimos anos, em relação à implementação das cotas raciais e sociais no Brasil (14). (Revista ADVIR, 2005, p. 84-85)

As sequências destacadas, à exceção da (1), que é uma retomada do tó-pico nos mesmos termos, constituem novas formulações. Essas reformulações não têm por função, numa perspectiva puramente textual, somente fazer pro-

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gredir o texto, retomando-se o que já foi dito. Na perspectiva assumida neste artigo, comprende-se que, a cada retomada, põe-se em funcionamento uma dinâmica de sentidos sobre os quais se pode ou se deve falar, tendo em vista uma dada posição do sujeito. Essas sequências podem ser agrupadas, sempre tendo como perspectiva os processos parafrásticos e polissêmicos a que já nos referimos. Assim, (1), (3), (11) e (14) organizam a exposição do entrevistado, mas sem se descolar do tópico, reiterando-o. É como se fosse um eco da per-gunta, uma ressossância de sentidos (SERRANI, 1993)8. Nas sequências (2) e (5), o sistema de cotas é significado como “necessidade de democratização do acesso à universidade”, no caso, para jovens pobres e negros, como se especifica em (5) e em (8). Trata-se aqui de remeter ao tópico da pergunta – afinal, o sistema é de cotas raciais e sociais –, mas o “sistema”, de sentido burocratizan-te, administrativo, regulador, é também reconhecido como “democratização”, “possibilidade”, “oportunidade”. O balanço, portanto, reconhece como po-sitivo o aumento significativo da implementação, reconhecimento declarado também em (13): trata-se de “passos significativos”. O mesmo pode-se dizer das sequências (6) e (12), em que a implementação do sistema de cotas é iden-tificada como uma grande “demanda” – está-se implementando aquilo que é tido como necessidade. É também aqui uma forma de reiterar o tópico da pergunta como algo semanticamente estabilizado: o aumento significativo nos últimos anos, declarado na pergunta, vai ao encontro dessa demanda.

Pode-se dizer que, até este momento da análise, as sequências presentes na resposta do presidente da UNE estão na ordem do mesmo, da paráfrase. As demais sequências – (4), (7), (9) e (10) – distanciam-se do funcionamento de reiteração da ideia desse “sistema” como algo estabilizado – como uma im-plementação que vem aumentando significativamente –, acentuando o caráter polissêmico da linguagem. Cabe, mais uma vez, destacar o funcionamento desses processos, nas de palavras de Orlandi:

A marca especificadora de minha filiação na Análise de Discur-so é minha proposta de considerar a relação contraditória entre a paráfrase e a polissemia como eixo que estrutura o funciona-

8 SERRANI, S. M. A linguagem na pesquisa sociocultural: um estudo da repetição na discursivi-dade. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.

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mento da linguagem (E. Orlandi, 1996). Aí está posta a relação entre o mesmo e o diferente, a produtividade e a criatividade na linguagem.Esta é uma relação contraditória porque não há um sem o ou-tro, isto é, essa é uma diferença necessária e constitutiva. Mas há outros sentidos nessa contradição que é preciso compreender.Em termos discursivos teríamos na paráfrase a reiteração do mesmo. Na polissemia, a produção da diferença.(...)Aquilo que, da situação, significa é já determinado pelo traba-lho da memória, pelo saber discursivo, ou seja, aquilo que já faz sentido em nós. O recorte significativo da situação – o que é relevante para o processo de significação – é determinado pela sua relação com a memória.Uma observação a fazer é a de que aí estamos incluindo o pró-prio sujeito, enquanto locutor. Assim, o que funciona no jogo entre o mesmo e o diferente é o imaginário na constituição dos sentidos, é a historicidade na formação da memória (Orlandi, 1998, p. 14-15).

No deslizamento de sentidos que observamos em relação a estas quatro últimas sequências, encontra-se justamente a incidência da memória, da histó-ria, que fazem recuperar um confronto de sentidos, até então apagado, posto na circulação do discurso das cotas. Apesar de, segundo a pergunta, haver “au-mento significativo da implementação do sistema de cotas nos últimos anos”, em (7), (9) e (10), o sistema de cotas é referido como “debate” e como “polê-mica”, ou seja, não há consenso, há posições discordantes. Deixamos por úl-timo a sequência (4), e não por acaso. Este parece ser um ponto de deriva dos sentidos, que o sujeito não pode controlar: há uma ruptura quando o sistema de cotas é referido como “medidas emergenciais”. O sistema, semanticamente estabilizado, cuja implementação teria aumentado significativamente nos últi-mos anos, que representa “democratização”, “atendimento de uma demanda”, é também significado como algo “eventual”, “temporário”, que atende a uma emergência. A “polêmica”, até então silenciada, no processo discursivo em análise, põe em confronto os sentidos de estabilização e os de provisoriedade.

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“sistema” no discurso das cotas de acesso à universidade pública

o dizer do secretário de educação

Com base na análise dos movimentos de paráfrase e polissemia, as se- quências recortadas da resposta do secretário do MEC mostram os resultados da implementação de uma política, no caso, a efetivação do sistema de cotas, que a pergunta tem como tópico. O sentido desse “sistema” é reiterado, no âmbito da gestão da SESu, como “sistema de reserva de vagas” (1), “processos adotados” (2), “regulação de políticas” (3) e “implantação de política” (5). Retorna-se a uma mesma significação que remete a algo estabilizado, em crescente processo de implementação. Em (3) e (5), vê-se que esse sistema significa democratização do acesso e inclusão social e étnico-racial. Com ele, visa-se à expansão (5) (em função da demanda?) e opera-se a regulação (5) de um sistema. E, especial-mente, não se deixa entrever qualquer polêmica nessas sequências. Não se trata de uma medida emergencial tão-pouco. Sistema e política estariam associados, sem espaço para equívocos, pois o gestor “propõe sentidos a partir de um lugar permanente que administra sentidos do lugar interpretativo da instituição e que eternaliza sentidos em sua imobilidade” (ORLANDI, 1998, p. 18).

No entanto, o gestor público faz menção a um programa específico, que é também um “sistema de cotas”, amplamente divulgado na sociedade brasi-leira, de uma “Universidade para Todos”, “pelo qual são destinadas bolsas de estudos, nas universidades particulares, para alunos de escola pública, negros e índios” (ADVIR, 2005, p. 87). Faz parte, portanto, da compreensão do ges-tor público uma universidade para todos (negros, índios, egressos da escola pública) localizada no setor privado. Em que pese o fato de a reserva de vagas proposta pela SESu também atingir as IFES, a designação “todos”, que na verdade são alguns, remetendo a instituições privadas, deixa antever uma série de deslizamentos sobre o sentido de “público”:

Se assim é, a própria língua funciona ideologicamente, ou seja, tem em sua materialidade esse jogo, o lugar da falha, do equí-voco: todo enunciado, dirá Pêcheux (idem), é linguisticamente descritível como uma série de pontos de deriva possível ofere-cendo lugar à interpretação. Todo enunciado está intrinseca-mente exposto ao equívoco da língua, sendo portanto suscetível de tornar-se outro. (ORLANDI, 1998, p. 11)

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o dizer do professor/pesquisador

A resposta do professor, de acordo com a análise das sequências discur-sivas, não só problematiza a ideia estabilizada de um sistema de cotas que a pergunta formaliza, como também confronta-se com a descrição desse sistema presente na resposta do secretário do MEC. Neste grupo de sequências, o pro-cesso parafrástico, até então dominante, é suspenso em favor da polissemia.

Salientamos que, logo de saída, nas sequências do professor, não se faz menção à própria palavra “sistema”. O sistema de cotas é referido, na maior parte das vezes, como política9 – é caso das sequências (1), (3), (4), (5), (10), (12) e (14). Em (9), é referido como “ação afirmativa”, o que também re-presenta um deslocamento. Com “sistema”, os efeitos de sentido produzidos estão na ordem do burocrático, do administrativo, e não exatamente na or-dem da política, mas na da implementação da política, bem como na de sua “regulação” e “expansão” (ver sequências (3) e (5) da resposta do secretário). Ao fazer emergir o sentido das cotas como política, e não como sistema, acreditamos ver, mais uma vez, o trabalho da memória e da história. É pos-sível falar das cotas, mas de uma perspectiva anterior, com “outro formato”, conforme destacado na sequência (8). Permanece-se no mesmo campo de de-bates, mas em espaços discursivos diferenciados (MAINGUENEAU, 1993, p. 116-118)10, em posições-sujeito distintas. É assim que esse “sistema de co-tas” é ressignificado, num deslizamento polissêmico, como “política de ações afirmativas através das cotas” (1), “política por meio de bolsas de estudo no setor privado [a partir de um corte étnico]” (3), “políticas de cotas no vesti-bular da UERJ” (5), “bolsas no ProUni” (6), em que os conectivos destacados possibilitam pensar em outros “formatos” possíveis de implementar um siste-ma de cotas. Por meio desses conectivos, mobilizam-se outras relações sociais e outras redes significantes, que problematizam a noção totalizante de sistema corrente nos dizeres anteriores.

9 Estamos entendendo, para os fins desta análise, política como o conjunto de obje-tivos que informam determinado programa de ação governamental e condicionam a sua execução, revelando uma determinada filiação ideológica. Não faz parte, con-tudo, dos limites deste trabalho, fazer um mapeamento de formações ideológicas.

10 MAINGUENEAU, D. Novas Tendências da Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1993.

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“sistema” no discurso das cotas de acesso à universidade pública

Esse lugar do outro enunciado é o lugar da interpretação, manifestação do inconsciente e da ideologia na produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos. É também em relação à interpretação que podemos considerar o interdiscurso (o ex-terior) como alteridade discursiva: “é porque há o outro nas sociedades e na história, diz M. Pêcheux (1990), correspon-dente a esse outro linguajeiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes” (ORLANDI, 2001, p. 59).

No percurso das sequências, “sistema” também é formulado como “polí-tica focalizada” (4), fazendo falar que não se trata de uma “Universidade para Todos”. E o “sistema de cotas”, na sequência (11), transmuta-se no “problema da cota” (11) e, fazendo romper mais uma vez a memória silenciada, é identi-ficado como “uma experiência estadunidense” (13).

Fazendo a linguagem caminhar ao encontro de uma memória polê-mica, em que outros efeitos de sentido são possíveis, “o aumento signi-ficativo da implementação do sistema de cotas” perde sua produtividade neste outro funcionamento discursivo, por meio do qual se propõe um novo sistema (uma nova política?), que possa se configurar em uma “me-dida pública de Estado” (2), em uma “política estrutural de mudança do ensino médio” (10) e em “condições de acesso para indivíduos situados socialmente” (15).

Considerações finais: adesão e oposição à posição-sujeito do gestor

Desejamos com este artigo apresentar uma breve análise do processo dis-cursivo acerca do sistema de cotas, a partir do recorte de uma textualização que se propôs a debater o tema – a seção de entrevista da Revista ADVIR, edição de 2005. Detivemo-nos em um fragmento específico dessa entrevista, composto por uma pergunta e três respostas acerca da implementação do sis-tema de cotas raciais e sociais no Brasil nos últimos anos. Desse fragmento, fo-

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ram recortadas sequências discursivas que constituíam novas formulações para o referente discursivo “sistema de cotas”. Por meio dessas formulações, em um trabalho de análise informado pela perspectiva teórica da Análise de Discurso, reconhecemos um movimento de reiteração dos sentidos que se configuravam na pergunta, mas também um movimento de ruptura, em que para “sistema de cotas” outros efeitos de sentido se colocavam.

Tendo em vista a análise que fizemos na seção anterior, consideramos que as sequências discursivas recortadas nas três respostas expressam um funcionamento do discurso das cotas marcado pela formação ideológica do gestor, aquele que implementa um dado “sistema”. No caso, a implemen-tação em debate é a descrita nas sequências da resposta do secretário de educação. Trata-se de um sistema voltado para um segmento da população de determinado perfil étnico-racial e social, e que só começa a “funcionar” a partir do momento em que essa população termina o ensino médio. Outro elemento importante que faz parte do sistema é uma “parceria” entre setor público e setor privado.

As sequências presentes nas duas outras respostas produzem efeitos de sentido relacionados a essa posição-sujeito do gestor. No caso do estudante, em larga medida, há uma adesão a essa posição, mas se faz presente também uma força de ruptura no momento em que esse modo de gerir se mostra como “medida emergencial” e como alvo de polêmica. Vislumbra-se, com isso, uma posição-sujeito que marca uma certa oposição.

Nas sequências recortadas na resposta do professor, mostra-se o distan-ciamento em relação a essa posição-sujeito do gestor. A oposição ao paradigma de gestão posto aponta para uma posição-sujeito de gestor de outra natureza, que não se dá na ordem do privado, quando oferece bolsas de estudo, nem do individual, quando visa a um grupo de corte étnico que consegue terminar o ensino médio.

Assim, parece-nos, nos limites do dispositivo analítico que construímos, que as novas formulações, ao deslocar sentidos, problematizam uma determi-nada forma de gestão, fazendo-nos refletir sobre os limites e possibilidades que o atual sistema de cotas apresenta à sociedade brasileira.

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ABSTRACT: This article presents an analysis of para-phrastic and polysemic processes related to the discur-sive referent “implementation of the racial and social quotas system in Brazil”, in an interview in the perio-dical Advir, issued by the “Associação de Docentes da UERJ” in 2005. This discourse analysis highlights some tensions around the subject-position present in the spe-ech of the administrator responsible for Brazilian edu-cational policies.

KEYWORDS: Discourse Analysis; paraphrastic and polysemic processes; quota system.

Recebido em: 13/03/2011Aprovado em: 05/05/2011