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PAULO FREIRE , “ PEDAGOGIA DA AUTONOMIA” SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA EDUCATIVA CAPÍTULO 1 - NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA A reflexão crítica da prática é uma exigência da relação teoria/ prática, sem a qual a teoria irá virando apenas palavras, e a prática, ativismo. Há um processo a ser considerado na experiência permanente do educador. No dia-a- dia ele recebe os conhecimentos – conteúdos acumulados pelo sujeito, o aluno, que sabe e lhe transmite. Neste sentido, ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Ensinar é mais que verbo-transitivo relativo, pede um objeto direto: quem ensina, ensina alguma coisa; pede um objeto indireto: à alguém, mas também ensinar inexiste sem aprender e aprender inexiste sem ensinar. Só existe ensino quando este resulta num aprendizado em que o aprendiz se tornou capaz de recriar ou refazer o ensinado, ou seja, em que o que foi ensinado foi realmente aprendido pelo aprendiz. Esta é a vivência autêntica exigida pela prática de ensinar-aprender. É uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética. Nós somos “seres programados, mas, para aprender” (François Jacob). O processo de aprender pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente que pode torná-lo mais e mais criador, ou em outras palavras: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve a “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto. 1. ENSINAR EXIGE RIGOROSIDADE METODOLÓGICA O educador democrático, crítico, em sua prática docente deve forçar a capacidade de crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão. Trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis, é uma de suas tarefas primordiais. Para isso, ele precisa ser um educador criador, instigador, inquieto, rigorosamente curioso, humilde e persistente. Deve ser claro para os educandos que o educador já teve e continua tendo experiência de produção de certos saberes e que estes não podem ser simplesmente transferidos a eles. Educador e educandos, lado a lado, vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber. É impossível tornar-se um professor crítico, aquele que é mecanicamente um memorizador, um repetidor de frases e idéias inertes, e não um desafiador. Pensa mecanicamente. Pensa errado. A verdadeira leitura me compromete com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito. Só pode ensinar certo quem pensa certo, mesmo que às vezes, pense errado. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiados certos de nossas certezas. O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos a beleza de estarmos no mundo e com o mundo, como seres históricos, intervindo no mundo e conhecendo -o .Contudo, nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho, e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã.Ensinar, aprender e pesquisar

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PAULO FREIRE , “ PEDAGOGIA DA AUTONOMIA” SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA EDUCATIVA CAPÍTULO 1 - NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA A reflexão crítica da prática é uma exigência da relação teoria/ prática, sem a qual a teoria irá virando apenas palavras, e a prática, ativismo. Há um processo a ser considerado na experiência permanente do educador. No dia-a-dia ele recebe os conhecimentos – conteúdos acumulados pelo sujeito, o aluno, que sabe e lhe transmite. Neste sentido, ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Ensinar é mais que verbo-transitivo relativo, pede um objeto direto: quem ensina, ensina alguma coisa; pede um objeto indireto: à alguém, mas também ensinar inexiste sem aprender e aprender inexiste sem ensinar. Só existe ensino quando este resulta num aprendizado em que o aprendiz se tornou capaz de recriar ou refazer o ensinado, ou seja, em que o que foi ensinado foi realmente aprendido pelo aprendiz. Esta é a vivência autêntica exigida pela prática de ensinar-aprender. É uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética. Nós somos “seres programados, mas, para aprender” (François Jacob). O processo de aprender pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente que pode torná-lo mais e mais criador, ou em outras palavras: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve a “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto. 1. ENSINAR EXIGE RIGOROSIDADE METODOLÓGICA

O educador democrático, crítico, em sua prática docente deve forçar a capacidade de crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão. Trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis, é uma de suas tarefas primordiais. Para isso, ele precisa ser um educador criador, instigador, inquieto, rigorosamente curioso, humilde e persistente. Deve ser claro para os educandos que o educador já teve e continua tendo experiência de produção de certos saberes e que estes não podem ser simplesmente transferidos a eles. Educador e educandos, lado a lado, vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber. É impossível tornar-se um professor crítico, aquele que é mecanicamente um memorizador, um repetidor de frases e idéias inertes, e não um desafiador. Pensa mecanicamente. Pensa errado. A verdadeira leitura me compromete com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito. Só pode ensinar certo quem pensa certo, mesmo que às vezes, pense errado. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiados certos de nossas certezas. O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos a beleza de estarmos no mundo e com o mundo, como seres históricos, intervindo no mundo e conhecendo -o .Contudo, nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho, e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã.Ensinar, aprender e pesquisar lidam com dois momentos do ciclo gnosiológico: o momento em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente, e o momento em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. É a prática da “do-discência” : docência- discência e pesquisa. 2. ENSINAR EXIGE PESQUISA Não há ensino sem pesquisa, nem pesquisa sem ensino. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e para comunicar o novo. 3. ENSINAR EXIGE RESPEITO AOS SABERES DO EDUCANDO A escola deve respeitar os saberes socialmente construídos pelos alunos na prática comunitária. Discutir com eles a razão de ser de alguns saberes em relação ao ensino dos conteúdos. Discutir os problemas por eles vividos. Estabelecer uma intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos. Discutir as implicações políticas e ideológicas, e a ética de classe relacionada a descasos. 4. ENSINAR EXIGE CRITICIDADE Entre o saber feito de pura experiência e o resultante dos procedimentos metodicamente rigorosos, não há uma ruptura, mas uma superação que se dá na medida em que a curiosidade ingênua, associada ao saber do senso comum, vai sendo substituída pela curiosidade crítica ou epistemológica que se rigoriza metodicamente. 5. ENSINAR EXIGE ESTÉTICA E ÉTICA Somos seres históricos – sociais, capazes de comparar, valorizar, intervir, escolher, decidir, romper e por isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser

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humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado. Pensar certo demanda profundidade na compreensão e interpretação dos fatos. Não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. Coerência entre o pensar certo e o agir certo. Não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda, assumir a mudança operada 6. ENSINAR EXIGE A CORPOREIFICAÇÃO DA PALAVRA PELO EXEMPLO O professor que ensina certo não aceita o “faça o que eu mando e não o que eu faço”. Ele sabe que as palavras às quais falta corporeidade do exemplo quase nada valem. É preciso uma prática testemunhal que confirme o que se diz em lugar de desdizê-lo. 7. ENSINAR EXIGE RISCO, ACEITAÇÃO DO NOVO E REJEIÇÃO A QUALQUER FORMA DE DISCRIMINAÇÃO - O novo não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, nem o velho recusado, apenas por ser velho. O velho que preserva sua validade continua novo. A prática preconceituosa de raça, classe, gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Ensinar a pensar certo é algo que se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho; exige entendimento co-participado. É tarefa do educador desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzindo nele compreensão do que vem sendo comunicado. O pensar certo é intercomunicação dialógica e não polêmica. 8 ENSINAR EXIGE REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A PRÁTICA - Envolve o movimento dinâmico, dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. É fundamental que o aprendiz da prática docente saiba que deve superar o pensar ingênuo, assumindo o pensar certo produzido por ele próprio, juntamente com o professor formador. Por outro lado, ele deve reconhecer o valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição. Através da reflexão crítica sobre a prática de hoje ou de ontem é que se pode melhorar a próxima prática. E, ainda, quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a razão de ser como estou sendo, mais me torno capaz de mudar, de promover-me do estado da curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Decido, rompo, opto e me assumo. 9. ENSINAR EXIGE O RECONHECIMENTO E A ASSUNÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL - Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar condições para que os educandos em suas relações sejam levados à experiências de assumir-se. Como ser social e histórico, ser pensante, transformador, criador, capaz de ter raiva porque capaz de amar. A questão da identidade cultural não pode ser desprezada. Ela está relacionada com a assunção do indivíduo por ele mesmo e se dá, através do conflito entre forças que obstaculizam essa busca de si e as que favorecem essa assunção. Isto é incompatível com o treinamento pragmático, com os que se julgam donos da verdade e que se preocupam quase exclusivamente com os conteúdos. Um simples gesto do professor pode impulsionar o educando em sua formação e auto-formação. A experiência informal de formação ou deformação que se vive na escola, não pode ser negligênciada e exige reflexão. Experiências vividas nas ruas, praças, trabalho, salas de aula, pátios e recreios são cheias de significação. CAPÍTULO 2 - ENSINAR NÃO É TRANSFERIR CONHECIMENTO . . . mas, criar possibilidades ao aluno para sua própria construção. Este é o primeiro saber necessário à formação do docente, numa perspectiva progressista. É uma postura difícil a assumir diante dos outros e com os outros, face ao mundo e aos fatos, ante nós mesmos. Fora disso, meu testemunho perde eficácia. 1. ENSINAR EXIGE CONSCIÊNCIA DO INACABAMENTO - Como professor crítico sou predisposto à mudança, à aceitação do diferente. Nada em minha experiência docente deve necessariamente repetir-se. A inconclusão é própria da experiência vital. Quanto mais cultural o ser, maior o suporte ou espaço ao qual o ser se prende “afetivamente” em seu desenvolvimento. O suporte vai se ampliando, vira mundo e a vida, existência na medida em que ele se torna consciente, apreendedor, transformador, criador de beleza e não de “espaço” vazio a ser preenchido por conteúdos. A existência envolve linguagem, cultura, comunicação em níveis profundos e complexos; a “espiritualização”, possibilidade de embelezar ou enfear o mundo faz dos homens seres éticos, portanto capazes de intervir no mundo, de comparar, ajuizar, decidir, romper, escolher. Seres capazes de grandes ações, mas também de grandes baixezas. Não é possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, decidir, lutar, fazer política. Daí a imperiosidade da prática formadora eminentemente ética. Posso ter esperança, sei que é possível intervir para melhorar o mundo. Meu “destino” não é predeterminado, ele precisa ser feito e dessa responsabilidade não posso me eximir. A História em que me faço com os outros e dela tomo parte é um tempo de possibilidades, de problematização do futuro e não de inexorabilidade. 2. ENSINAR EXIGE O RECONHECIMENTO DE SER CONDICIONADO

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É o saber da nossa inconclusão assumida. Sei que sou inacabado, porém consciente disto, sei que posso ir mais além, através da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente. Lutando deixo de ser apenas objeto, para ser também sujeito da História. A consciência do mundo e de si como ser inacabado inscrevem o ser num permanente movimento de busca. E nisto se fundamenta a educação como processo permanente. Na experiência educativa aberta à procura, educador e alunos curiosos, “programados, mas para aprender”, exercitarão tanto melhor sua capacidade de aprender e ensinar, quanto mais se façam sujeitos e não puros objetos do processo. 3. ENSINAR EXIGE RESPEITO À AUTONOMIA DO SER DO EDUCANDO . . . à sua dignidade e identidade. Isto é um imperativo ético e qualquer desvio nesse sentido é uma transgressão. O professor autoritário e o licencioso são transgressores da eticidade. Ensinar, portanto, exige respeito à curiosidade e ao gosto estético do educando, à sua inquietude, linguagem, às suas diferenças. O professor não pode eximir-se de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, nem de ensiná-lo. Deve estar respeitosamente presente à sua experiência formadora. 4. ENSINAR EXIGE BOM SENSO - Quanto mais pomos em prática de forma metódica nossa capacidade de indagar, aferir e duvidar, tanto mais crítico se faz nosso bom senso. Esse exercício vai superando o que há de instintivo na avaliação que fazemos de fatos e acontecimentos. O bom senso tem papel importante na nossa tomada de posição em face do que devemos ou não fazer, e a ele não pode faltar a ética. 5. ENSINAR EXIGE HUMILDADE, TOLERÂNCIA E LUTA EM DEFESA DOS DIREITOS DOS EDUCADORES - A luta dos professores em defesa de seus direitos e dignidade, deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto prática ética. Em conseqüência do desprezo a que é relegada a prática pedagógica, não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Necessito cultivar a humildade e a tolerância, afim de manter meu respeito de professor ao educando. É na competência de profissionais idôneos que se organiza politicamente a maior força dos educadores. É preciso priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política, e repensar a eficácia das greves. Não é parar de lutar, mas reinventar a forma histórica de lutar. 6. ENSINAR EXIGE APREENSÃO DA REALIDADE - Preciso conhecer as diferentes dimensões da prática educativa, tornando-me mais seguro em meu desempenho. O homem é um ser consciente que usa sua capacidade de aprender não apenas para se adaptar, mas sobretudo para transformar a realidade. A memorização mecânica não é aprendizado verdadeiro do conteúdo. Somos os únicos seres que social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Para nós, aprender é aventura criadora, é construir, reconstruir, constatar para mudar, e isto não se faz sem abertura ao risco. O papel fundamental do professor progressista é contribuir positivamente para que o educando seja artífice de sua formação, e ajudá-lo nesse empenho. Deve estar atento à difícil passagem da heteronomia para a autonomia para não perturbar a busca e investigações dos educandos 7. ENSINAR EXIGE ALEGRIA E ESPERANÇA - Esperança de que professor e alunos juntos podem aprender, ensinar, inquietar-se, produzir e também resistir aos obstáculos à alegria. O homem é um ser naturalmente esperançoso. A esperança crítica é indispensável à experiência histórica que só acontece onde há problematização do futuro. Um futuro não determinado, mas que pode ser mudado. 8. ENSINAR EXIGE A COVICÇÃO DE QUE A MUDANÇA É POSSÍVEL É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é, está sendo. Meu papel histórico não é só o de constatar o que ocorre, mas também o de intervir como sujeito de ocorrências. Constato não para me adaptar, mas para mudar a realidade. A partir desse saber é que vamos programar nossa ação político-pedagógica, seja qual for o projeto a que estamos comprometidos. Desafiando os grupos populares para que percebam criticamente a violência e a injustiça de sua situação concreta; e que também percebam que essa situação, ainda que difícil, pode ser mudada. Como educador preciso considerar o saber de “experiência feito” pelos grupos populares, sua explicação do mundo e a compreensão de sua própria presença nele. Tudo isso vem explicitado na “leitura do mundo” que precede a “leitura da palavra”. Contudo, não posso impor a esses grupos meu saber como o verdadeiro. Mas, posso dialogar com eles, desafiando-os a pensar sua história social e a perceber a necessidade de superarem certos saberes que se revelam inconsistentes para explicar os fatos. 9. ENSINAR EXIGE CURIOSIDADE - Procedimentos autoritários ou paternalistas impedem o exercício da curiosidade do educando e do próprio educador. O bom clima pedagógico-democrático levará o educando a assumir eticamente limites, percebendo que sua curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro, nem expô-la aos demais. Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, não aprendo nem ensino. É fundamental que alunos e professor se assumam epistemologicamente curiosos. Saibam que sua postura é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou ouve. O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu objetivo. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica e se “rigoriza”, tanto mais epistemologicamente

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vai se tornando. Um dos saberes fundamentais à prática educativo-crítica é o que adverte da necessária promoção da curiosidade espontânea para curiosidade epistemológica. CAPÍTULO 3 - ENSINAR É UMA ESPECIFICIDADE HUMANA 1. ENSINAR EXIGE SEGURANÇA, COMPETÊNCIA PROFISSIONAL E GENEROSIDADE - A Segurança é fundamentada na competência profissional, portanto a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor. A autoridade deve fazer-se generosa e não arrogante. Deve reconhecer a eticidade. O educando que exercita sua liberdade vai se tornando tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo as responsabilidades de suas ações. Testemunho da autoridade democrática deixa claro que o fundamental é a construção, pelo indivíduo, da responsabilidade da liberdade que ele assume. É o aprendizado da autonomia. 2. ENSINAR EXIGE COMPROMETIMENTO - A maneira como os alunos me percebem tem grande importância para o meu desempenho. Não há como sendo professor não revelar minha maneira de ser, de pensar politicamente, diante de meus alunos. Assim, devo preocupar-me em aproximar cada vez mais o que digo do que faço e o que pareço ser do que realmente estou sendo. Minha presença é uma presença em si política, e assim sendo, não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos, minha capacidade de analisar, comparar, avaliar; de fazer justiça, de não falhar à verdade. Meu testemunho tem que ser ético. O espaço pedagógico neutro prepara os alunos para práticas apolíticas. A maneira humana de se estar no mundo não é, nem pode ser neutra. 3. ENSINAR EXIGE COMPREENDER QUE A EDUCAÇÃO É UMA FORMA DE INTERVENÇÃO NO MUNDO - Implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto seu desmascaramento. Como professor minha prática exige de mim uma definição. Decisão. Ruptura. Como professor sou a favor da luta contra qualquer forma de discriminação, contra a dominância econômica dos indivíduos ou das classes sociais, etc. Sou a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Não posso reduzir minha prática docente ao puro ensino dos conteúdos, pois meu testemunho ético ao ensiná-los é igualmente importante. É o respeito ao saber de “experiência feito” dos alunos, o qual busco superar com eles. É coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço. 4. ENSINAR EXIGE LIBERDADE E AUTORIDADE - A autonomia vai se constituindo na experiência de várias e inúmeras decisões que vão sendo tomadas. Vamos amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser por si, é processo; é vir a ser. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca porque há sempre alguém decidindo por mim. Quanto mais criticamente assumo a liberdade, tanto mais autoridade ela tem para continuar lutando em seu nome. 5. ENSINAR EXIGE TOMADA CONSCIENTE DE DECISÕES - A educação, especificidade humana é um ato de intervenção no mundo. Tanto intervenções que aspiram mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, etc. quanto as que pelo contrário, pretendem imobilizar a História e manter a ordem injusta. A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política e sua raiz se acha na própria educabilidade do ser humano, que se funde na sua natureza inacabada e da qual se tornou consciente. O ser humano, assim se tornou um ser ético, um ser de opção, de decisão. Diante da impossibilidade da neutralidade da educação, é importante que o educador saiba que se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental ela pode. O educador crítico pode demonstrar que é possível mudar o país. E isto reforça nele a importância de sua tarefa político-pedagógica. Ele sabe o valor que tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo. Sabe que sua experiência na escola é um momento importante que precisa ser autenticamente vivido. 6. ENSINAR EXIGE SABER ESCUTAR - Aprendemos a escutar escutando. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, e sem precisar se impor. No processo da fala e escuta, a disciplina do silêncio a ser assumido a seu tempo pelos sujeitos que falam e escutam é um “sine qua” da comunicação dialógica. É preciso que quem tem o que dizer saiba, que sem escutar o que quem escuta tem igualmente a dizer, termina por esgotar sua capacidade de dizer. Quem tem o que dizer deve assim, desafiar quem escuta, no sentido de que, quem escuta diga, fale, responda. O espaço do educador democrático, que aprende a falar escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala. Não há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada. O professor autoritário que recusa escutar os alunos, impede a afirmação do educando como sujeito de conhecimento. Como arquiteto de sua própria prática cognoscitiva. 7. ENSINAR EXIGE RECONHECER QUE A EDUCAÇÃO É IDEOLÓGICA

Ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para opacizar a realidade, ao mesmo tempo que nos torna “míopes”. Sabemos que há algo no meio da penumbra, mas não o divisamos bem. Outra possibilidade que temos é a de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida.

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Por exemplo, o discurso da globalização que fala da ética, esconde porém, que a sua ética é a do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar se optamos, na verdade, por um mundo de gente. A teoria da transformação político-social do mundo, deve fazer parte de uma compreensão do homem enquanto ser fazedor da História, e por ela feito, ser da decisão, da ruptura, da opção. Seres éticos. Os avanços científicos e tecnológicos devem ser colocados a serviço dos seres humanos. Para superar a crise em que nos achamos, impõe-se o caminho ético. Como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico. Ele nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas. No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. Me predisponho a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da realidade, por um lado; e por outro, a uma desconfiança metódica que me defende de tornar-me absolutamente certo de certezas. 8. ENSINAR EXIGE DISPONIBILIDADE PARA O DIÁLOGO Como professor devo testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, analisar um fato. Aberto ao mundo e aos outros, estabeleço a relação dialógica em que se confirma a inconclusão no permanente movimento na História. Postura crítica diante dos meios de comunicação não pode faltar. Impossível a neutralidade nos processos de comunicação. Não podemos desconhecer a televisão, mas devemos usá-la, sobretudo, discuti-la. 9. ENSINAR EXIGE QUERER BEM AOS EDUCANDOS Querer bem aos educandos e à própria prática educativa de que participo. Essa abertura significa que a afetividade não me assusta, que não tenho medo de expressá-la. Seriedade docente e afetividade não são incompatíveis. Aberto ao querer bem significa minha disponibilidade à alegria de viver. Quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e minha docência, tanto mais alegre e esperançoso me sinto.__________________________________________________________________________________________________

Livro: O Construtivismo na Sala de Aula Capítulo: 7 - A Avaliação da Aprendizagem no currículo escolar - Uma perspectiva construtivista Autores: César Coll, Elena Marim 1. Nos últimos anos a avaliação e as atuações ou decisões associadas a elas se tornam um dos focos prioritários de atenção, pois há poucas tarefas onde há tantas duvidas e contradições. 2. E desculpa dizer que faltam propostas teóricas,metodológicas ou instrumentais sobre o tema 3. Expressões e conceitos como os de avaliação inicial, formativa e somatória passam a fazer parte de nossas abordagens profissionais. 4. Há diferentes tipos de avaliação que podem e devem desempenhar funções diferentes, portanto e necessário utilizar procedimentos e técnicas de avaliação diferenciadas. 5. Não basta avaliar as aprendizagens dos alunos, mas tb. nossa própria atuação como professores e as atividades que planejamos e desenvolvemos com eles. 6. As dificuldades são maiores quando nos assumimos construtivistas por quê a) Nessa ótica o aluno só aprende quando constrói significados atribuindo sentido ao conteúdo e a pratica de avaliação que não nivele e nem uniformize b) Equilibrar respeito ao processo de construção de conhecimento pelo aluno com os critérios de avaliação de caráter geral previamente estabelecidos. c) Harmonizar o ponto em que se encontra cada aluno (a) com o maior nível possível de desenvolvimento da aprendizagem com uma avaliação que independemente da nossa vontade ter um certo caráter sancionado. Observação – o autor comparar a questão da avaliação com a mitogia grega. MITOLOGIA – OS 12 TRABALHOS DE HERCULES HERCULES - quando enfrentou a hidra de sete cabeças teve que cortar as sete cabeças com um só golpe para evitar que as cabeças renascessem. AVALIACAO - Nossa hidra tem mais cabeças que a de Hércules. Ao avaliar, quando achamos ter resolvido um problema ou dúvida surge outro que ao resolve-lo, o primeiro ressurge com igual ou maior intensidade. Como fez Hercules com a Hidra, precisamos ver a avaliação de forma global identificando e abordando distintos aspectos, facetas e componentes , considerando as inter-relações entre as diferentes vertentes e planos da problemática de avaliação, sem conflitos, colocando cada ingrediente em seu lugar e distinguindo entre os problemas e contradições de fundo e àqueles que são apenas de uma confusão de níveis de analise de reflexão de ou de praticas. Obs: Ainda estamos longe de atingir essas potencialidades e na avaliação nem mesmo sabemos se todas as cabeças pertencem a mesma criatura mas devemos direcionar nossas reflexões e atuações nessa direção. 7. Nossos enfrentamentos cotidianos: a avaliação das aprendizagens dos alunos e seu papel e tratamento no processo de elaboração e concretização do currículo escolar com 3 âmbitos de referência para compreender a avaliação da aprendizagem escolar com ênfase maior nos dois primeiros:

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a) Práticas de avaliação em uso b) Referencial psicopedagógico e curricular c) Referencial normativo Para indicar diretrizes para guiar uma prática construtivista do ensino e da aprendizagem e as funções da avaliação da aprendizagem dos alunos na concretização do currículo escolar, com objetivo de rever ou pelo menos reconsiderar determinados aspectos das práticas de avaliação em uso. Fichamento elaborado por Luiz Carlos de Freitas, professor de História da Rede Municipal – setembro de 2008__________________________________________________________________________________________________

Dez competências para ensinar Philippe Perrenoud A especialização, o pensamento e as competências dos professores são objetos de inúmeros trabalhos, inspirados na ergonomia e na antropologia cognitiva, na psicologia e na sociologia do trabalho, bem como na análise das práticas. A obra de Perrenoud pretende ser um convite para uma viagem, e para debate, a partir de uma grande constatação: os programas de formação e as estratégias de inovação fundamentam-se, com demasiada freqüência, em representações pouco explícitas e, insuficientemente, negociadas do ofício e das competências subjacentes, ou, então, em referenciais técnicos e áridos, cujos fundamentos os leitores normalmente não assimilam. O ofício de professor não é imutável e por isso suas transformações passam, principalmente, pela emergência de novas competências reconhecidas, por exemplo, para enfrentar a crescente heterogeneidade dos efetivos escolares e a evolução dos programas. Para Perrenoud, todo referencial tende a se desatualizar pela mudança das práticas e, também, porque a maneira de concebê-las se transforma. Ele escolhe como referencial aquele que acentua as competências julgadas prioritárias por serem coerentes com o novo papel dos professores, com a evolução da formação contínua, com as reformas da formação inicial, com as ambições das políticas educativas. Enfim, um referencial compatível com os eixos de renovação da escola; individualizar e diversificar os percursos de formação, introduzir ciclos de aprendizagem, diferenciar a pedagogia, direcionar-se para uma avaliação mais formativa do que normativa, conduzir projetos de estabelecimento, desenvolver o trabalho em equipe docente e responsabilizar-se coletivamente pelos alunos, colocar as crianças no centro da ação pedagógica, recorrer aos métodos ativos, aos procedimentos de projeto, ao trabalho por problemas abertos e por situações-problema, desenvolver as competências e a transferência de conhecimentos, educar para a cidadania. Em um inventário não definitivo, nem exaustivo, são tratadas dez grandes famílias de competências. O autor nos alerta para o fato de nenhum referencial poder garantir uma representação consensual, completa e estável de um ofício das competências que ele operacionaliza. O referencial escolhido associa a cada competência principal algumas competências mais específicas, que são, de certa forma, seus componentes principais. Seguem-se abaixo as dez famílias propostas pelo autor com um referencial que servirá para seu melhor entendimento e para a formação de representações cada vez mais precisas de competências em questão. A noção de competência é designada pelo autor como uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situação, baseando-se em quatro aspectos: 1. as competências não são saberes ou atitudes, mas mobilizam, integram e orquestram tais recursos; 2. essa mobilização só é pertinente em situação, sendo cada situação singular, ainda que se possa tratá-la em analogia com outras, já encontradas; 3. o exercício da competência passa por operações mentais complexas subentendidas por esquemas de pensamento que permitem determinar (mais ou menos conscientemente e rapidamente) e realizar (de modo mais ou menos eficaz) uma ação relativamente adaptada à situação; 4. as competências profissionais constróem-se, em formação, mas também ao sabor da navegação diária de um professor, de uma situação de trabalho à outra. Administrar a progressão das aprendizagens mobiliza cinco competências mais específicas: 1. conceber e administrar situações-problema ajustadas ao nível e às possibilidades dos alunos; 2. adquirir visão longitudinal dos objetivos de ensino; 3. estabelecer laços com as teorias subjacentes às atividades de aprendizagem; 4. observar e avaliar os alunos em situações de aprendizagem, de acordo com uma abordagem formativa; 5. fazer balanços periódicos de competências e tomar decisões de progressão. Na maioria das vezes, descrever uma competência equivale a evocar três elementos complementares: 1. os tipos de situações nas quais há um certo domínio; 2. os recursos que mobiliza, os conhecimentos teóricos ou metodológicos, as atitudes, o “saber fazer” (savoir-faire) e as competências mais específicas, os esquemas motores,

os esquemas de percepção, de avaliação, de antecipação e de decisão; 3. A natureza dos esquemas de pensamento que permitem a solicitação, a mobilização e a orquestração dos recursos pertinentes em situação complexa e em tempo real. PHILIPPE PERRENOUD 10 NOVAS COMPETÊNCIAS PARA ENSINAR 1. organizar e dirigir situações de Aprendizagem · conhecer, para determinada disciplina, os conteúdos a serem ensinados e sua tradução em objetivos de aprendizagem; · construir e planejar dispositivos e seqüências didáticas 2. administrar a progressão das aprendizagens: · adquirir uma visão longitudinal dos objetivos do ensino; · observar e avaliar os alunos em situações de aprendizagem, de acordo com uma abordagem formativa. 3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação: · fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos portadores de grandes dificuldades; · desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de ensino mútuo. 4. envolver os alunos em sua aprendizagem e em seu trabalho: · suscitar o desejo de aprender, explicitar a relação com o saber, o sentido do trabalho escolar e desenvolver na criança a capacidade de auto-avaliação; · favorecer a definição de um projeto pessoal do aluno. 5. Trabalhar em equipe: · enfrentar e analisar em conjunto situações complexas, práticas e problemas profissionais; · administrar crises ou conflitos interpessoais.

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6. participar da administração da escola: · organizar e fazer evoluir, no âmbito da escola, a participação dos alunos; · coordenar, dirigir uma escola com todos os seus parceiros (serviços para escolares, bairro, associações de pais, professores de língua e cultura de origem). 7.informar e envolver os pais: · dirigir reuniões de informação e de debate; · envolver os pais na construção dos saberes. 8. utilizar novas tecnologias: · utilizar as ferramentas multimídia no ensino; · explorar as potencialidades didáticas dos programas em relação aos objetivos do ensino.

9.enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão: · lutar contra os preconceitos e as discriminações sexuais, étnicas e sociais; · desenvolver o senso de responsabilidade, a solidariedade e o sentimento de justiça. 10. administrar sua própria formação contínua: · saber explicitar as próprias práticas; · acolher a formação dos colegas e participar dela · negociar um projeto de formação comum com os colegas.

PERRENOUD, PHILIPPE ENSINANDO AS COMPETÊNCIAS DESDE A ESCOLA PORTO ALEGRE, ART MED, 1999 Ao desenvolverem-se competências, desiste-se de transmitir conhecimentos? Quase que a totalidade das ações humanas exige algum tipo de conhecimento, às vezes superficial, outras vezes aprofundado, oriundo da experiência pessoal, do senso comum, da cultura partilhada ou da pesquisa tecnológica ou científica. São múltiplos os significados da noção de competência. Aqui ela será definida como sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles. Assim é, por exemplo, que conhecimentos bastante profundos são necessários para: analisar um texto e reconstituir as intenções do autor; traduzir de uma língua para outra; argumentar com a finalidade de convencer alguém cético ou um oponente; construir uma hipótese e verificá-la; identificar, enunciar e resolver um problema científico; detectar uma falha no raciocínio de um interlocutor; negociar e conduzir projeto coletivo.

Existe um grande dilema com relação à função da Escola, questiona-se se os alunos freqüentam a escola para adquirir conhecimentos ou para desenvolver competências. A competência pode ser definida como eficácia para resolver um certo tipo de situação, alicerçando-se em conhecimentos. As ciências cognitivas têm conseguido, progressivamente, distinguir três tipos de conhecimentos: - Conhecimentos Declarativos: descrevem a realidade sob a forma de fatos, leis constantes ou regularidades; - Conhecimentos Procedimentais: descrevem o procedimento a ser aplicado para obter-se algum tipo de resultado.(Conhecimentos metodológicos); - Conhecimentos Condicionais: determinam as condições de validade dos conhecimentos procedimentais.

NOÇÃO DE COMPETÊNCIA São três as pistas falsas de noção de competência, que não acrescentam muito para a compreensão dos problemas: 1. competência apenas para insistir na necessidade de expressar os objetivos de um ensino em termos de condutas ou práticas observáveis (tradição pedagógica); 2. oposição entre competência e desempenho, sendo o segundo o indicador mais confiável do que o primeiro; 3. concepção clássica que considera a competência uma faculdade genérica de qualquer mente humana. ESQUEMAS E COMPETÊNCIAS Só haverá competência estabilizada quando a mobilização dos conhecimentos superar a reflexão ao alcance de cada um e acionar esquemas constituídos. Ocorre que, ocasionalmente, relacionam-se os esquemas com simples hábitos. Podemos, sim, considerar que os hábitos são esquemas simples e rígidos, porém, nem todo esquema é um hábito. Existe a mobilização instantânea, onde a competência assume a aparência de um complexo esquema estabilizado. Por outro lado, situações onde essa mobilização não é tão evidente, necessitam de uma maior reflexão, de uma consulta de referências ou até de pessoas-recursos. Existe ainda a situação intermediária, cuja deliberação rápida e segura permanece perceptível tanto pelo ator como pelo observador. Um especialista é competente porque ao mesmo tempo: - domina com rapidez e segurança as situações mais comuns, por ter à sua disposição esquemas complexos que entram imediata e automaticamente em ação, sem vacilar e sem reflexão real;

- com um esforço razoável de reflexão, é capaz de coordenar e diferenciar rapidamente seus esquemas de ação e seus conhecimentos para enfrentar situações inéditas. - Segundo Boterf (1994, 1997), que desenvolveu a idéia fundamental de "mobilização", competência é um "saber-mobilizar".

O QUE ESTÁ EM JOGO NA FORMAÇÃO As competências são importantes metas da formação, podendo responder a uma demanda social dirigida para a adaptação ao mercado e às mudanças, além de fornecer os

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meios para apreender a realidade e não ficar indefeso nas relações sociais. Dois princípios, um otimista e um pessimista, baseados neste assunto, podem ser citados: - a evolução do sistema educacional rumo ao desenvolvimento de competências talvez seja a única maneira de "dar sentido à escola", para salvar uma forma escolar que está se esgotando sem que seja percebida, de imediato, alguma alternativa visível; - esta evolução é difícil, pois exige importantes transformações dos programas, da didática, da avaliação, funcionamento de classes e dos estabelecimentos, ofício de professor e aluno. Essas transformações sugerem a resistência passiva ou ativa por parte dos interessados que preferem a continuidade das práticas adquiridas à eficácia da formação.

PROGRAMAS ESCOLARES E COMPETÊNCIAS Toda competência está ligada a uma prática social de certa complexidade. Está ligada a um conjunto de gestos, posturas e palavras inscritas na prática que lhes confere sentido e continuidade. Uma competência, não necessariamente, está ligada a uma prática profissional. No ambiente das formações escolares gerais, a questão é muito diferente, pois elas não levam a nenhuma profissão em particular, nem a um conjunto de profissões. A partir desse problema, o princípio de identificação das situações a partir das quais poderiam ser detectadas competências, podemos distinguir duas estratégias: - enfatizar competências transversais; - fazer como se as disciplinas já formassem para as competências, cujo exercício durante a aula já prefiguraria a implementação na vida profissional ou na extraprofissional. Para escrever programas escolares que visam ao desenvolvimento de competências, pode-se tirar, de diversas práticas sociais, situações problemáticas das quais serão extraídas competências transversais. PRÁTICAS DE REFERÊNCIA E DE TRANSPOSIÇÃO A escola não se aventura no campo perigoso das práticas sociais e costuma contentar-se, ao propor um referencial de práticas transversais, com fórmulas cautelosas, no melhor dos casos acompanhadas de alguns exemplos apresentáveis. Tais programas não resolvem a questão da transposição didática. Se as competências são formadas pela prática, isso ocorre, necessariamente, em situações concretas, com conteúdos, contextos e riscos identificados. Quando o programa não propõe nenhum contexto, entrega aos professores a responsabilidade, o poder e o risco de determiná-lo. Isso agrada aos que desejam dar a eles a maior autonomia possível na escolha dos conteúdos e dos processos de formação. COMPETÊNCIAS E DISCIPLINAS Há aqueles que temem que desenvolver competências na escola levaria a renunciar às disciplinas de ensino e apostar tudo em competências transversais e em uma formação pluri, inter ou transdisciplinar. Esse temor é infundado: a questão é saber qual a concepção das disciplinas escolares que deve ser adotada. A escola não deve limitar-se a transmitir conhecimentos e a desenvolver algumas capacidades intelectuais muito gerais fora de qualquer referência a situações e práticas sociais, e não deve defender a construção de competências de alto nível, trabalhando-se a transferência e a mobilização dos conhecimentos em situações complexas, muito além dos exercícios clássicos de consolidação e aplicação. A insistência exclusiva sobre o transversal, no sentido de interdisciplinar ou de não-disciplinar, empobrece a abordagem por competências. TUDO DISCIPLINAR X TUDO TRANSVERSAL Há situações cujo domínio encontra seus recursos em uma única disciplina. As situações escolares são geralmente construídas para serem "intradisciplinares", e o mesmo ocorre com as situações de trabalho, quando a tarefa profissional coincide com uma disciplina. Em outras situações, o domínio encontra seus recursos em várias disciplinas identificáveis. É o caso de muitas situações de vida fora da escola, no trabalho ou fora do trabalho. Existem ainda situações cujo domínio não passa por nenhum conhecimento disciplinar, dependendo, unicamente, de conhecimentos fundados na experiência ou na ação de conhecimentos tradicionais ou profissionais, ou ainda, de conhecimentos locais difíceis de classificar de acordo com uma grade disciplinar. TRANSFERÊNCIA E INTEGRAÇÃO DE CONHECIMENTOS Muitos alunos não têm recursos pessoais, nem ajuda externa necessária para utilizar plenamente seus conhecimentos, quando essa mobilização não é objeto de nenhum treinamento. Sabe-se, portanto, que a transferência de conhecimentos ou sua integração em competências não são automáticas e passam por um trabalho, um acompanhamento pedagógico e didático, sem o qual nada ocorrerá, a não ser para os alunos com grandes meios para isso. CONSEQUÊNCIAS PARA OS PROGRAMAS Na falta de formar apenas competências, a escola poderia, além de fornecer conhecimentos, trabalhar capacidades descontextualizadas, porém contextualizáveis, tais como saber explicar, interrogar-se ou saber raciocinar. Deveria acentuar o treinamento de exercícios de capacidades isoladas, da ordem dos métodos ou habilidades gerais de pensamento e expressão. BLOCO DE COMPETÊNCIAS Um Bloco de Competências é um documento que enumera, organizadamente as competências visadas por uma formação. No ensino obrigatório, tende a garantir para cada indivíduo um "capital mínimo" de competência (SMIC - Estoque Mínimo Incompreensível de Competências). Um Bloco de Competências não é um programa clássico e não diz o que deve ser ensinado, mas sim, na linguagem das competências, o que os alunos devem dominar. As competências transversais estão intimamente ligadas às competências disciplinares, pois se encontram na intersecção de diferentes disciplinas. Englobam todas as interações sociais, cognitivas, afetivas, culturais e psicomotoras entre o aluno e a realidade em seu meio-ambiente. Entre as competências disciplinares, há distinção para competências globais (de integração, que reúnem e organizam um conjunto de conhecimentos, saber-fazer e saber-ser em suas dimensões transversais e disciplinares) e competências

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específicas (a serem desenvolvidas em situações de aprendizado para com o tempo, chegar a um domínio maior das competências de integração). Na concepção Belga, os Blocos não substituem nem os programas, nem os documentos pedagógicos. A escola balançará entre duas tentações: por um lado, desigualdades; por outro, controlar tudo, sob risco de encorajar uma transposição didática burocrática. Concluindo, o sistema educacional só pode formar competências em escolas se a maioria dos professores aderir livremente a essa concepção de sua tarefa. IMPLICAÇÕES DO OFÍCIO DE DOCENTE A verdadeira formação de competências supõe uma transformação da relação dos professores com o saber, de sua maneira de "dar a aula", de sua identidade e de suas próprias competências profissionais. Com isso, estamos a caminho de um ofício novo que tem como objetivo fazer aprender mais do que ensinar. Dessa forma, os professores são convidados a: - considerar os conhecimentos como recursos a serem articulados; - trabalhar regularmente por problemas; - criar ou utilizar meios de ensino alternativos; - negociar e conduzir projetos com seus alunos; - adotar e improvisar planejamento flexível e indicativo; - implementar e explicitar um novo contrato de trabalho; - praticar avaliação formadora em situação de trabalho; - dirigir-se para uma menor compartimentação disciplinar. PLANEJAMENTO FLEXÍVEL E IMPROVISO Seria ideal que os professores dedicassem mais tempo para um pequeno número de situações complexas do que abordar grande número de assuntos que podem ser percorridos rapidamente, para que dê tempo de terminar os materiais junto com o ano letivo. Para que isso possa acontecer, o docente deve: - ter tranqüilidade e controle das suas angústias pessoais; - instaurar vários regimes do saber; - fazer constante balanço em relação aos objetivos do ano para se ter controle do que será dado; - ter liberdade para com os conteúdos, extraindo apenas o essencial. MENOR COMPARTIMENTAÇÃO DISCIPLINAR Uma compartimentação disciplinar menos rígida exige uma formação disciplinar mais afinada dos professores. Dessa forma, os professores, segundo uma visão de competências, deveriam: - sentirem-se, primeiramente, responsáveis pela formação global dos alunos; - sempre que tivessem uma oportunidade, sair de seu campo de especialização para discutir com seus colegas outros assuntos e problemas envolvidos com a formação dos alunos; - perceber e valorizar as transversalidades potenciais nos programas e nas atividades didáticas; - não recuar diante de projetos ou de situações-problema; - trabalhar com balanços de conhecimentos e competências; - aceitar funções menos centradas em uma disciplina do que nos alunos. TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA É definida como a sucessão de transformações que fazem passar da cultura vigente em uma sociedade (conhecimentos, práticas, valores) ao que dela se conserva nos objetivos e programas da escola e, a seguir, ao que dela resta nos conteúdos efetivos do ensino e do trabalho escolar e, finalmente, ao que se constrói na mente de parte dos alunos. Componentes do Sistema Educacional que devem ser analisados: 1. reconstrução da Transposição Didática Para fazer dos conhecimentos sobre práticas e culturas fontes de transposição didática, é preciso que se tenha em mente duas idéias principais: - os alunos não devem ser preparados em função de visões precisas do que está para acontecer, mesmo porque, neste caso, nenhuma seria confiável; - não se deve limitar a formação de um pequeno número de competências transversais e muito gerais, pois é a partir destas que decorrem todas as ações eficazes, por diferenciação e generalização. Dessa forma, para enfrentar situações diversas, há a necessidade de competências também diversas, e essas não serão constituídas pela simples transferência de esquemas gerais de raciocínio, análise, argumentação, decisão. A escola só poderá preparar-se para a diversidade do mundo aliando conhecimentos e “savoir-faire” (saber-fazer) a propósito de muitas situações de vida de todos os dias; 2. Atenuação das Divisões Disciplinares Certas competências situam-se no cruzamento de pelo menos duas ou três disciplinas. Dessa forma, é possível casar disciplinas, onde uma fornecerá o domínio de ferramentas dos conteúdos da outra. 3. Rompimento do Círculo Fechado A escola deve evitar trabalhar em círculo fechado e não se interessar tanto pelo sucesso nos exames ou pela admissão no ciclo de estudos seguintes. Deveria sim, se interessar mais pelo uso dos conhecimentos escolares na vida. 4. Criar novas formas de Avaliação É impossível avaliar competências de maneira padronizada, portanto deve ser revisado o processo de avaliação e deve-se desistir da prova escolar clássica como paradigma avaliatório e renunciar à organização de um "exame de competências" , colocando-se todos os "concorrentes" na mesma linha de largada. As competências devem ser avaliadas segundo situações que fazem com que, conforme os casos, alguns estejam mais ativos do que outros, pois nem todos têm capacidade de fazer a mesma coisa ao mesmo tempo. 5. Reconhecer o fracasso, não construir nada sobre a areia A escola escolhe e proporciona seu próprio fracasso. Portanto, desenvolver uma competência não é contentar-se em seguir um programa, mas sim, não parar com sua construção e testagem. Deve-se sempre enfrentar um problema, pois este sim mostra que a ação pedagógica não alcançou sua meta. Deve-se, então, procurar novas estratégias, pois as bases fundamentais têm que ser realmente dominadas. 6. Diferenciar o Ensino Quando o ensino não é diferenciado, permite-se que os alunos mais favorecidos aprendam mais rápido e mais do que os outros. A diferenciação do ensino ataca esse mecanismo e procura neutralizá-lo com uma forma de "discriminação positiva". O desafio está em reunir, frente a uma mesma situação de aprendizado, alunos de diferentes níveis, sem que isso favoreça, sistematicamente, os favorecidos. 7. Transformar a ação dos docentes Enquanto os docentes não souberem realmente organizar e avaliar processos de projeto e situações-problema, os ministérios irão propor-lhes textos inteligentes que permanecerão sem eco. Portanto, a "revolução de competências" só acontecerá se, durante sua formação profissional, os futuros docentes experimentarem-se,

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pessoalmente. ESTRATÉGIAS DE MUDANÇAS A abordagem por competências na reformulação dos programas escolares talvez seja uma metamorfose de uma utopia muito antiga, que consiste em fazer da escola um lugar onde cada um aprenderia livre, e inteligentemente, coisas úteis da vida. Esta utopia na verdade, seria sociológica, na medida em que esse desenvolvimento supõe condições favoráveis em todas as classes, ou seja, a adesão de todos, a começar pelos docentes, para uma nova concepção de cultura, do saber, da ação, passando por uma mudança de identidade, por novas representações e novas qualificações profissionais. Não se pode desenvolver simplesmente uma estratégia de mudança que convenha, mas apenas lembrar algumas idéias que, apesar de simples, são difíceis de se implementar: - práticas e sistemas não evoluem rapidamente, deve-se portanto, buscar o tempo necessário; - nada muda sozinho, é necessário um processo coletivo; - nada se muda com medo ou sofrimento, muito menos indiferença, deve-se acreditar acima de tudo; - deve haver um processo de profissionalização do ofício de docente e a atitude dos formadores pode contribuir, positiva ou negativamente. ______________________________________________________________________________________________________1

Os sete saberes necessários à educação do futuro.Edgar Morin.Os sete saberes necessários à educação do futuro não têm nenhum programaeducativo, escolar ou universitário. Aliás, não estão concentrados no primário, nem nosecundário, nem no ensino universitário, mas abordam problemas específicos para cada umdesses níveis. Eles dizem respeito aos setes buracos negros da educação, completamenteignorados, subestimados ou fragmentados nos programas educativos. Programas esses que,na minha opinião, devem ser colocados no centro das preocupações sobre a formação dosjovens, futuros cidadãos.O Conhecimento.O primeiro buraco negro diz respeito ao conhecimento. Naturalmente, o ensinofornece conhecimento, fornece saberes. Porém, apesar de sua fundamental importância,nunca se ensina o que é, de fato, o conhecimento. E sabemos que os maiores problemasneste caso são o erro e a ilusão.Ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que a maioria contém erros eilusões. Mesmo quando pensamos em vinte anos atrás, podemos constatar como erramos enos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso é tão importante? Porque oconhecimento nunca é um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento é sempre umatradução, seguida de uma reconstrução. Mesmo no fenômeno da percepção, através do qualos olhos recebem estímulos luminosos que são transformados, decodificados, transportadosa um outro código, que transita pelo nervo ótico, atravessa várias partes do cérebro para,enfim, transformar aquela informação primeira em percepção. A partir deste exemplo,podemos concluir que a percepção é uma reconstrução.Tomemos um outro exemplo de percepção constante: a imagem do ponto de vista

da retina. As pessoas que estão próximas parecem muito maiores do que aquelas que estãomais distantes, pois à distância, o cérebro não realiza o registro e termina por atribuir umadimensão idêntica para todas as pessoas. Assim como os raios ultravioletas e2infravermelhos que nós não vemos, mas sabemos que estão aí e nos impõem uma visãosegundo as suas incidências. Portanto, temos percepções, ou seja, reconstruções, traduçõesda realidade. E toda tradução comporta o risco de erro. Como dizem os italianos“tradotore/traditore”.Também sabemos que não há nenhuma diferença intrínseca entre uma percepção euma alucinação. Por exemplo: se tenho uma alucinação e vejo Napoleão ou Júlio César,não há nada que me diga que estou enganado, exceto o fato de saber que eles estão mortos.São os outros que vão me dizer se o que vejo é verdade ou não. Quero dizer com isso queestamos sempre ameaçados pela alucinação. Até nos processos de leitura isto acontece.Nós sabemos que não seguimos a linha do que está escrito, pois, às vezes, nossos olhossaltam de uma palavra para outra e reconstrói o conjunto de uma maneira quasealucinatória. Neste momento, é o nosso espírito que colabora com o que nós lemos. E nãoreconhecemos os erros porque deslizamos neles. O mesmo acontece, por exemplo, quandohá um acidente de carro. As versões e as visões do acidente são completamente diferentes,principalmente pela emoção e pelo fato das pessoas estarem em ângulos diferentes.No plano histórico há erros, se me permitem o jogo de palavras, histéricos.Tomemos um exemplo um pouco distante de nós: os debates sobre a Primeira GuerraMundial. Uma época em que a França e a Alemanha tinham partidos socialistas fortes,potentes e muito pacifistas, e que, evidentemente, eram contrários à guerra que se

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anunciava. Mas, a partir do momento em que se desencadeou a guerra, os dois partidos selançaram, massivamente a uma campanha de propaganda, cada um imputando ao outro osatos mais ignóbeis. Isto durou até o fim da guerra. Hoje, podemos constatar com os eventostrágicos do Oriente Médio a mesma maneira de tratar a informação. Cada um preferecamuflar a parte que lhe é desvantajosa para colocar em relevo a parte criminosa do outro.Este problema se apresenta de uma maneira perceptível e muito evidente, porque astraduções e as reconstruções são também um risco de erro e muitas vezes o maior erro épensar que a idéia é a realidade. E tomar a idéia como algo real é confundir o mapa com oterreno.Outras causas de erro são as diferenças culturais, sociais e de origem. Cada umpensa que suas idéias são as mais evidentes e esse pensamento leva a idéias normativas.Aquelas que não estão dentro desta norma, que não são consideradas normais, são julgadas3como um desvio patológico e são taxadas como ridículas. Isso não ocorre somente nodomínio das grandes religiões ou das ideologias políticas, mas também das ciências.Quando Watson e Crick decodificaram a estrutura do código genético, o DNA (ácidodesoxirribonucléico), surpreenderam e escandalizaram a maioria dos biólogos, que jamaisimaginavam que isto poderia ser transcrito em moléculas químicas. Foi preciso muitotempo para que essas idéias pudessem ser aceitas.Na realidade, as idéias adquirem consistência como os deuses nas religiões. É algoque nos envolve e nos domina a ponto de nos levar a matar ou morrer. Lenin dizia: “Osfatos são teimosos, mas, na realidade, as idéias são ainda mais teimosas do que os fatos eresistem aos fatos durante muito tempo”. Portanto, o problema do conhecimento não deveser um problema restrito aos filósofos. É um problema de todos e cada um deve levá-lo emconta desde muito cedo e explorar as possibilidades de erro para ter condições de ver arealidade, porque não existe receita milagrosa.O Conhecimento Pertinente.O segundo buraco negro é que não ensinamos as condições de um conhecimentopertinente, isto é, de um conhecimento que não mutila o seu objeto. Nós seguimos, emprimeiro lugar, um mundo formado pelo ensino disciplinar. É evidente que as disciplinasde toda ordem ajudaram o avanço do conhecimento e são insubstituíveis. O que existe

entre as disciplinas é invisível e as conexões entre elas também são invisíveis. Mas isto nãosignifica que seja necessário conhecer somente uma parte da realidade. É preciso ter umavisão capaz de situar o conjunto. É necessário dizer que não é a quantidade deinformações, nem a sofisticação em Matemática que podem dar sozinhas um conhecimentopertinente, mas sim a capacidade de colocar o conhecimento no contexto.A economia, que é das ciências humanas, a mais avançada, a mais sofisticada, temum poder muito fraco e erra muitas vezes nas suas previsões, porque está ensinando demodo a privilegiar o cálculo. Com isso, acaba esquecendo os aspectos humanos, como osentimento, a paixão, o desejo, o temor, o medo. Quando há um problema na bolsa, quandoas ações despencam, aparece um fator totalmente irracional que é o pânico, e que,freqüentemente, faz com que o fator econômico tenha a ver com o humano, ligando-se,assim, à sociedade, à psicologia, à mitologia. Essa realidade social é multidimensional e o4econômico é apenas uma dimensão dessa sociedade. Por isso, é necessário contextualizartodos os dados.Se não houver, por exemplo, a contextualização dos conhecimentos históricos egeográficos, cada vez que aparecer um acontecimento novo que nos fizer descobrir umaregião desconhecida, como o Kosovo, o Timor ou Serra Leoa, não entenderemos nada.Portanto, o ensino por disciplina, fragmentado e dividido, impede a capacidade natural queo espírito tem de contextualizar. E é essa capacidade que deve ser estimulada edesenvolvida pelo ensino, a de ligar as partes ao todo e o todo às partes. Pascal dizia, já noséculo XVII: “Não se pode conhecer as partes sem conhecer o todo, nem conhecer o todosem conhecer as partes”.O contexto tem necessidade, ele mesmo, de seu próprio contexto. E oconhecimento, atualmente, deve se referir ao global. Os acidentes locais têm repercussãosobre o conjunto e as ações do conjunto sobre os acidentes locais. Isso foi comprovadodepois da guerra do Iraque, da guerra da Iugoslávia e, atualmente, pode ser verificado como conflito do Oriente Médio.A Identidade Humana.O terceiro aspecto é a identidade humana. É curioso que nossa identidade sejacompletamente ignorada pelos programas de instrução. Podemos perceber alguns aspectos

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do homem biológico em Biologia, alguns aspectos psicológicos em Psicologia, mas arealidade humana é indecifrável. Somos indivíduos de uma sociedade e fazemos parte deuma espécie. Mas, ao mesmo tempo em que fazemos parte de uma sociedade, temos asociedade como parte de nós, pois desde o nosso nascimento a cultura se nos imprime. Nóssomos de uma espécie, mas ao mesmo tempo a espécie é em nós e depende de nós. Se nosrecusamos a nos relacionar sexualmente com um parceiro de outro sexo, acabamos com aespécie. Portanto, o relacionamento entre indivíduo-sociedade-espécie é como a trindadedivina, um dos termos gera o outro e um se encontra no outro. A realidade humana étrinitária.Eu acredito possível a convergência entre todas as ciências e a identidade humana.Um certo número de agrupamentos disciplinares vai favorecer esta convergência. Énecessário reconhecer que na segunda metade do século XX, houve uma revolução5científica, reagrupando as disciplinas em ciências pluridisciplinares. Assim, há acosmologia, as ciências da terra, a ecologia e a pré-história.Tome-se como exemplo a cosmologia, que, efetivamente, utiliza a microfísica, osaceleradores de partículas para imaginar os primeiros segundos do universo. Ela utiliza aobservação e pratica uma reflexão filosófica sobre o mundo, assim como fizeram HubertReeves, Hawkins, Michel Cassé e tantos outros. Eles refletem sobre o universo incrível noqual vivemos. Mas o que é importante para a identidade humana é saber que estamos nesteminúsculo planeta perdidos no cosmos. Nossa missão não é mais a de conquistar o mundocomo acreditava Descartes, Bacon e Marx. Nossa missão se transformou em civilizar opequeno planeta em que vivemos.Por outro lado, as ciências da terra nos inscrevem neste planeta formado porfragmentos cósmicos, resultados de uma explosão de sóis anteriores. Resta saber comoestes fragmentos reunidos e aglomerados puderam criar uma tal organização, uma autoorganização,para nos dar este planeta. É necessário mostrar que ele gerou a vida, e a nóssomos, filhos da vida.A biologia, com a teoria da evolução, nos prova como trazemos dentro de nós,efetivamente, o processo de desenvolvimento da primeira célula vivente, que semultiplicou e se diversificou.

Quando sonhamos com nossa identidade, devemos pensar que temos partículas quenasceram no despertar do universo. Temos átomos de carbono que se formaram em sóisanteriores ao nosso, pelo encontro de três núcleos de hélio que se constituíram emmoléculas e neuromoléculas na terra. Somos todos filhos do cosmos, mas nostransformamos em estranhos através de nosso conhecimento e de nossa cultura.Portanto, é preciso ensinar a unidade dos três destinos, porque somos indivíduos,mas como indivíduos somos, cada um, um fragmento da sociedade e da espécie Homosapiens, à qual pertencemos. E o importante é que somos uma parte da sociedade, umaparte da espécie, seres desenvolvidos sem os quais a sociedade não existe. A sociedade sóvive com essas interações.È importante, também, mostrar que, ao mesmo tempo em que o ser humano émúltiplo, ele é parte de uma unidade. Sua estrutura mental faz parte da complexidadehumana. Portanto, ou vemos a unidade do gênero e esquecemos a diversidade das culturas6e dos indivíduos, ou vemos a diversidade das culturas e não vemos a unidade do serhumano.Esse problema vem causando polêmicas desde o século XVIII, quando Voltairedisse: “Os chineses são iguais a nós, têm paixões, choram”. E Herbart, o pensador alemão,afirmou: “Entre uma cultura e outra não há comunicação, os seres são diferentes”. Os doistinham razão, mas na realidade essas duas verdades têm que ser articuladas. Nós temos oselementos genéticos da nossa diversidade e, é claro, os elementos culturais da nossadiversidade.È preciso lembrar que rir, chorar, sorrir, não são atos aprendidos ao longo daeducação, são inatos, mas modulados de acordo com a educação. Heigerfeld fez umaobservação sobre uma jovem surda-muda de nascença que ria, chorava e sorria.Atualmente, estudos demonstram que o feto começa a sorrir no ventre da mãe. Talvezporque não saiba o que o espera depois... Mas isso nos permite entender a nossa realidade,nossa diversidade e singularidade.Chegamos, então, ao ensino da literatura e da poesia. Elas não devem serconsideradas como secundárias e não essenciais. A literatura é para os adolescentes umaescola de vida e um meio para se adquirir conhecimentos. As ciências sociais vêem

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categorias e não indivíduos sujeitos a emoções, paixões e desejos. A literatura, aocontrário, como nos grandes romances de Tolstoi, aborda o meio social, o familiar, ohistórico e o concreto das relações humanas com uma força extraordinária.Podemos dizer que as telenovelas também nos falam sobre problemas fundamentaisdo homem; o amor, a morte, a doença, o ciúme, a ambição, o dinheiro. Temos que entenderque todos esses elementos são necessários para entender que a vida não é aprendidasomente nas ciências formais. E a literatura tem a vantagem de refletir sobre acomplexidade do ser humano e sobre a quantidade incrível de seus sonhos. Como JamesJoyce, por exemplo, que, ao criar um personagem, mostrava que uma pessoa pode tersentimentos totalmente diversos. Ou como o herói de Dostoievski, em O Idiota que nãosabe se a jovem está apaixonada por ele e ao fim da trama, depois de ter sofrido muito,encontra um amigo que lhe diz: “mas que imbecil você é, não entendeu que ela o ama”.Isto pode acontecer com qualquer pessoa, é a dificuldade de saber o que o outro pensa esente.7Marcel Proust mostrou, em Um amor de Swan, o que ele chamava de intermitênciasdo coração, ou seja, que uma pessoa pode se apaixonar, esquecer-se da pessoa desejada evoltar a amá-la. Neste romance o herói sofre durante anos de ciúmes por causa de umamulher e quando ele já não está mais apaixonado, diz: “mas eu sofri tanto por uma mulherque não me amava e que nem era meu tipo”.Podemos, então, compreender a complexidade humana através da literatura. Apoesia nos ensina a qualidade poética da vida, essa qualidade que nós sentimos diante defatos da realidade. Como, por exemplo, os espetáculos da natureza: o céu de Brasília que étão bonito. A vida não deve ser uma prosa que se faça por obrigação. A vida é viverpoeticamente na paixão, no entusiasmo.Para que isso aconteça, devemos fazer convergir todas as disciplinas conhecidaspara a identidade e para a condição humana, ressaltando a noção de homo sapiens; ohomem racional e fazedor de ferramentas, que é, ao mesmo tempo, louco e está entre odelírio e o equilíbrio, nesse mundo de paixões em que o amor é o cúmulo da loucura e dasabedoria.O homem não se define somente pelo trabalho, mas também pelo jogo. Não só as

crianças, como também os adultos gostam de jogar. Por isso vemos partidas de futebol.Nós somos Homo ludens, além de Homo economicus. Não vivemos só em função dointeresse econômico. Há, também, o homo mitologicus, isto é, vivemos em função de mitose crenças.Enfim o homem é prosaico e poético. Como dizia Hölderling: “O homem habitapoeticamente na terra, mas também prosaicamente e se a prosa não existisse, nãopoderíamos desfrutar da poesia”.A Compreensão Humana.O quarto aspecto é sobre a compreensão humana. Nunca se ensina sobre comocompreender uns aos outros, como compreender nossos vizinhos, nossos parentes, nossospais. O que significa compreender?A palavra compreender vem do latim, compreendere, que quer dizer: colocar juntotodos os elementos de explicação, ou seja, não ter somente um elemento de explicação,mas diversos. Mas a compreensão humana vai além disso, porque, na realidade, ela8comporta uma parte de empatia e identificação. O que faz com que se compreenda alguémque chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no microscópio, mas saber o significadoda dor, da emoção. Por isso, é preciso compreender a compaixão, que significa sofrerjunto. É isto que permite a verdadeira comunicação humana.A grande inimiga da compreensão é a falta de preocupação em ensiná-la. Narealidade, isto está se agravando, já que o individualismo ganha um espaço cada vez maior.Estamos vivendo numa sociedade individualista, que favorece o sentido deresponsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e que,consequentemente, alimenta a autojustificação e a rejeição ao próximo.A raiva leva à vontade de eliminar o outro e tudo aquilo que possa aborrecer. Decerta maneira, isto favorece ao que os ingleses chamam de self-deception, isto é, mentir a simesmo, pois o egocentrismo vai tramando sempre o negativo e esquecendo dos outroselementos.A redução do outro, a visão unilateral e a falta de percepção sobre a complexidadehumana são os grandes empecilhos da compreensão. Outro aspecto da incompreensão é aindiferença. E, por este lado, é interessante abordar o cinema, que os intelectuais tantoacusam de alienante. Na verdade, o cinema é uma arte que nos ensina a superar a

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indiferença, pois transforma em heróis os invisíveis sociais, ensinando-nos a vê-los por umoutro prisma. Charlie Chaplin, por exemplo, sensibilizou platéias inteiras com opersonagem do vagabundo. Outro exemplo é Coppola, que popularizou os chefes da Máfiacom “O Chefão”. No teatro, temos a complexidade dos personagens de Shakspeare: reis,gangsters, assassinos e ditadores. No cinema, como na filosofia de Heráclito:“Despertados, eles dormem”. Estamos adormecidos, apesar de despertos, pois diante darealidade tão complexa, mal percebemos o que se passa ao nosso redor.Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não só os outros como a simesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a autojustificação, pois o mundoestá cada vez mais devastado pela incompreensão, que é o câncer do relacionamento entreos seres humanos.9A Incerteza.O quinto aspecto é a incerteza. Apesar de, nas escolas, ensinar-se somente ascertezas, como a gravitação de Newton e o eletromagnetismo, atualmente a ciência temabandonado determinados elementos mecânicos para assimilar o jogo entre certeza eincerteza, da micro-física às ciências humanas. É necessário mostrar em todos os domínios,sobretudo na história, o surgimento do inesperado. Eurípides dizia no fim de três de suastragédias que: “os deuses nos causam grandes surpresas, não é o esperado que chega e simo inesperado que nos acontece”. É a velha idéia de 2.500 anos, que nós esquecemossempre.As ciências mantêm diálogos entre dados hipotéticos e outros dados que parecemmais prováveis. Os processos físicos, assim como outros também, pressupõem variaçõesque nos levam à desordem caótica ou à criação de uma nova organização, como nas teoriassobre a incerteza de Prigogine, baseadas nos exemplos dos turbilhões de Born. Analisandoretroativamente a história da vida, constata-se que ela não foi linear, que não teve umaevolução de baixo para cima. A evolução segundo Darwin foi uma evolução composta deramificações, a exemplo do mundo vegetal e o mundo animal.O homem vem de uma dessas ramificações e conseguiu chegar à consciência e àinteligência, mas não somos a meta da evolução, fazemos parte desse processo. A históriada vida foi, na verdade, marcada por catástrofes.

No fim da era secundária, a queda do asteróide que matou os dinossauros eressecou a vegetação desses animais enormes, matando-os de fome deu oportunidade àproliferação dos mamíferos. Assim também ocorreu com as sociedades humanas. Todassofreram o colapso por uma razão ou outra. Nem mesmo o império romano, que pareciaeterno, conseguiu sobreviver. As sociedades andinas, que eram mais potentes que seuscolonizadores espanhóis e cujas capitais eram muita mais ricas que Paris, Madri ou Lisboa,foram destruídas por espanhóis que chegaram com cavalos e armas desconhecidas.As duas guerras mundiais destruíram muito na metade do século XX, depois daPrimeira Guerra Mundial. Três grandes impérios da época, por exemplo, o romanootomano,o austro-húngaro e o soviético, desapareceram.Isto nos demonstra a necessidade de ensinar o que chamamos de ecologia da ação: aatitude que se toma quando uma ação é desencadeada e escapa ao desejo e às intenções10daquele que a provocou, desencadeando influências múltiplas que podem desviá-la até parao sentido oposto ao intencionado.A história humana está repleta de exemplos dessa natureza. O mais evidente nofinal do século XX foi o projeto político de Gorbatchev, que pretendeu reformar o sistemapolítico da União Soviética, mas acabou provocando o começo de sua própriadesagregação e implosão.Assim tem acontecido em todas as etapas da história. O inesperado aconteceu eacontecerá, porque não temos futuro e não temos certeza nenhuma do futuro. As previsõesnão foram concretizadas, não existe determinismo do progresso. Os espíritos, portanto, têmque ser fortes e armados para enfrentarem essa incerteza e não se desencorajarem.Essa incerteza é uma incitação à coragem. A aventura humana não é previsível, maso imprevisto não é totalmente desconhecido. Somente agora se admite que não se conheceo destino da aventura humana. É necessário tomar consciência de que as futuras decisõesdevem ser tomadas contando com o risco do erro e estabelecer estratégias que possam sercorrigidas no processo da ação, a partir dos imprevistos e das informações que se tem.A Condição Planetária.O sexto aspecto é a condição planetária, sobretudo na era da globalização noséculo XX – que começou, na verdade no século XVI com a colonização da América e a

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interligação de toda a humanidade. Esse fenômeno que estamos vivendo hoje, em que tudoestá conectado, é um outro aspecto que o ensino ainda não tocou, assim como o planeta eseus problemas, a aceleração histórica, a quantidade de informação que não conseguimosprocessar e organizar.Este ponto é importante porque existe, neste momento, um destino comum paratodos os seres humanos. O crescimento da ameaça letal se expande em vez de diminuir: aameaça nuclear, a ameaça ecológica, a degradação da vida planetária. Ainda que haja umatomada de consciência de todos esses problemas, ela é tímida e não conduziu ainda anenhuma decisão efetiva. Por isso, faz-se urgente a construção de uma consciênciaplanetária.Conhecer o nosso planeta é difícil: os processos de todas as ordens – econômicos,ideológicos e sociais – estão de tal maneira imbricados e são tão complexos, que11compreendê-los é um verdadeiro desafio para o conhecimento. Ortega y Gasset dizia: “nãosabemos o que acontece, isto é o que acontece”.É necessária uma certa distância em relação ao imediato para podermoscompreendê-lo. E, atualmente, dada a aceleração e a complexidade do mundo, é quaseimpossível. Mas, faz-se necessário ressaltar, é esta a dificuldade. É necessário ensinar quenão é suficiente reduzir a um só a complexidade dos problemas importantes do planeta,como a demografia, ou a escassez de alimentos, ou a bomba atômica, ou a ecologia. Osproblemas estão todos amarrados uns aos outros.Daqui para frente, existem, sobretudo, os perigos de vida e morte para ahumanidade, como a ameaça da arma nuclear, como a ameaça ecológica, como odesencadeamento dos nacionalismos acentuados pelas religiões. É preciso mostrar que ahumanidade vive agora uma comunidade de destino comum.A Antropo-ética.O último aspecto é o que vou chamar de antropo-ético, porque os problemas damoral e da ética diferem a depender da cultura e da natureza humana. Existe um aspectoindividual, outro social e outro genético, diria de espécie. Algo como uma trindade em queas terminações são ligadas: a antropo-ética. Cabe ao ser humano desenvolver, ao mesmotempo, a ética e a autonomia pessoal (as nossas responsabilidades pessoais), além dedesenvolver a participação social (as responsabilidades sociais), ou seja, a nossa

participação no gênero humano, pois compartilhamos um destino comum.A antropo-ética tem um lado social que não tem sentido se não for na democracia,porque a democracia permite uma relação indivíduo-sociedade e nela o cidadão deve sesentir solidário e responsável. A democracia permite aos cidadãos exercerem suasresponsabilidades através do voto. Somente assim é possível fazer com que o podercircule, de forma que aquele que foi uma vez controlado, terá a chance de controlar.Porque a democracia é, por princípio, um exercício de controle.Não existe, evidentemente, democracia absoluta. Ela é sempre incompleta. Massabemos que vivemos em uma época de regressão democrática, pois o poder tecnológicoagrava cada vez mais os problemas econômicos. Na verdade, o é importante orientar e12guiar essa tomada de consciência social que leva à cidadania, para que o indivíduo possaexercer sua responsabilidade.Por outro lado, a ética do ser humano está se desenvolvendo através das associaçõesnão-governamentais, como os Médicos Sem Fronteiras, o Greenpeace, a Aliança peloMundo Solidário e tantas outras que trabalham acima de entidades religiosas, políticas oude Estados nacionais, assistindo aos países ou às nações que estão sendo ameaçadas ou emgraves conflitos. Devemos conscientizar a todos sobre essas causas tão importantes, poisestamos falando do destino da humanidade.Seremos capazes de civilizar a terra e fazer com que ela se torne uma verdadeirapátria? Estes são os sete saberes necessários ao ensino. E não digo isso para modificarprogramas. Na minha opinião, não temos que destruir disciplinas, mas sim integrá-las,reuni-las em uma ciência como, por exemplo, as ciências da terra (a sismologia, avulcanologia, a meteorologia), todas elas articuladas em uma concepção sistêmica da terra.Penso que tudo deva estar integrado para permitir uma mudança de pensamento;para que se transforme a concepção fragmentada e dividida do mundo, que impede a visãototal da realidade. Essa visão fragmentada faz com que os problemas permaneçaminvisíveis para muitos, principalmente para muitos governantes.E hoje que o planeta já está, ao mesmo tempo, unido e fragmentado, começa a sedesenvolver uma ética do gênero humano, para que possamos superar esse estado de caos ecomeçar, talvez, a civilizar a terra.

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Para onde vai a educação? Jean Piaget Tradução de Ivette Braga, 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. Palavras-chaves: educação; direito à educação; ensino-aprendizagem; conhecimento escolar. O livro aqui resenhado é obra de Jean Piaget, (1896-1980), que trata de compreender a forma como a criança adquire o conhecimento lógico-matemático. Como pesquisador, seus estudos têm como modelo as áreas da Matemática e da Física. Piaget lecionou nas Universidades de Genebra e de Paris. Este livro exprime o que o autor pensa a respeito do Ensino das Ciências, dos Direitos Humanos, inclusive o da gratuidade do ensino e de uma educação voltada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana levando em consideração a diversidade dos povos. A obra, ao longo de suas 80 páginas, está dividida em duas partes, sendo a primeira subdividida em dois tópicos, a segunda em cinco tópicos. Jean Piaget inicia a primeira parte com uma retrospectiva da educação, a fim de mostrar a necessidade

imperativa da transformação no modo de ensinar, a partir do entendimento da forma lógica de aprender dos alunos. Em seguida; ele propõe uma prospectiva na questão de como ensinar ciências, demostrando como ponto crucial as diferenças individuais de aptidão do aluno para determinados saberes, dependendo da adaptação ao tipo de ensino que lhe é oferecido, demonstrando que o fracasso escolar está muito mais ligado à rápida passagem que os professores fazem do aspecto qualitativo (lógico) para o quantitativo (numérico). Segundo o autor, a prática do ensino deveria utilizar o método ativo, por meio do qual a criança vai reconstruir e reinventar, não somente transmitir informações ao aluno. Para ele, o professor não deve se limitar ao conteúdo específico de sua disciplina, mas deve conhecer como ocorre o desenvolvimento psicológico da inteligência humana. Todo o processo de ensino deve estar alicerçado na experimentação por parte do aluno. Todo o processo de ensino deve estar alicerçado na experimentação por parte do aluno. O problema geral da Educação está centrado na preparação dos professores, que é o aspecto de real mudança em qualquer reforma pedagógica. Na segunda parte, ele aborda a questão dos direitos expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em que lhe é assegurado o pleno direito à educação e na qual os pais podem escolher o tipo de educação que desejam para seus filhos. Piaget advoga que esse direito não se restringe ao "pleno direito à educação" mas que esta seja uma educação de qualidade e voltada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana, levando em consideração a paz entre as várias nações. Para o desenvolvimento do ser humano é preciso atentar para os dois fatores que o condicionam: os fatores da hereditariedade e adaptação biológicas, e os fatores de transmissão ou de interação sociais. O autor ressalta a diferença entre as sociedades humanas e as sociedades animais, cujas principais condições sociais humanas são as técnicas de produção e a linguagem, que possibilita gerar os costumes e as regras. A concepção de que a lógica do conhecimento seria inata no indivíduo foi quebrada com as pesquisas piagetianas, cujos resultados apontaram que essa lógica se constrói na interação do sujeito com o meio, como um processo de desenvolvimento natural. Assim, a educação passa a ser vista como fundamental para a formação do desenvolvimento natural do indivíduo. O autor reflete sobre como a criança, até seus sete anos e conforme sua nacionalidade, tem como responsável pela sua educação a família e não na escola. Com isso, o autor quer nos lembrar que a família não deve ter somente o papel formador e a escola o papel de informar o aluno, mas que a escola, que também é responsável em educar, não fosse separada da vida.

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Discutindo o direito à educação, de acordo com o autor, na página 36, "... é preciso não se deixar iludir: tal situação de direito não poderia ainda corresponder a uma aplicação universal da lei, já que o número de escolas e de professores permanece insuficiente relativamente à população em idade escolar...". Piaget vem mostrar que o direito por si só não é o bastante, e que a gratuidade somente do ensino de primeiro grau, com um olhar de justiça social, não passa de uma mera afirmação social. Entretanto, para ele, não basta ampliar o ensino de primeiro grau e implantar o segundo com caráter gratuito, mas é preciso também implementar uma relação aluno/escola/aprendizagem, em que haja tarefas que levem o aluno a compreender e participar ativamente da vida social. Com relação aos pais, o autor reflete sobre como a família vem perdendo seu poder de escolha e controle para o estado; há famílias constituídas por bons pais e outros nem tanto. Ao lidar com os pais, principalmente quando da aplicação dos métodos ativos, deve-se levar em consideração que é mais fácil a estes compreenderem os métodos antigos do que uma nova proposta. A educação não deve se prestar a moldar o aluno de acordo com um modelo condizente com as gerações anteriores, mas em formar-lhe a personalidade. A respeito da educação moral, unicamente a vida social entre os próprios alunos, isto é, um autogoverno levado tão longe quanto possível e paralelo ao trabalho intelectual em comum, poderá conduzir a esse duplo desenvolvimento de personalidades, donas de si mesmas e de respeito mútuo. Mostra ainda que a questão da educação internacional é muito delicada, pois, deve levar em consideração as variadas culturas. O intercâmbio intercultural entre as sociedades faz-se principalmente pelo respeito aos diferentes grupos étnicos que a formam, de forma a conduzir a humanidade a uma paz mundial. Para isso é preciso levar em conta qual método deve ser aplicado para fazer de um indivíduo um bom cidadão. As ciências mostram o quão profundamente está enraizada a atitude egocêntrica no ser humano, e o quanto é difícil dela se desfazer, tanto pelo cérebro quanto pelo coração. O pensamento de Piaget, expresso nesse livro, leva-nos a refletir sobre a forma como a escola e a sociedade vêm lidando com a educação dos indivíduos, na qual, muitas vezes, não se leva em consideração a forma como estes desenvolvem sua inteligência. Mais grave ainda é a formação dos professores, que não foram desenvolvidos dentro de um processo ativo. Como este docente, assim formado, poderá ensinar seus alunos se ele mesmo não sabe como acontece a passagem do processo quantitativo para o qualitativo? Esta obra é indicada para todos os profissionais da educação que buscam entender um pouco mais sobre como se desenvolve o pensamento humano e refletir sobre como se

poderia estar agindo dentro de um processo educacional voltado ao desenvolvimento pleno da pessoa e da sociedade.