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Vida nua, vida besta, uma vida Por Peter Pál Pelbart Ao reduzir a existência ao seu mínimo biológico, o biopoder contemporâneo nos transforma em meros sobreviventes O contexto contemporâneo se caracteriza por uma nova relação entre o poder e a vida. Por um lado, uma tendência que poderia ser formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto é, ele penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, pondo-as para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia. Sabemos, no entanto, que os mecanismos diversos pelos quais eles se exercem são anônimos, esparramados, flexíveis, rizomáticos. O próprio poder tornou-se "pós-moderno": ondulante, acentrado, reticular, molecular. Com isso, ele incide diretamente sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar. Se antes ainda imaginávamos ter espaços preservados da ingerência direta dos poderes (o corpo, o inconsciente, a subjetividade) e tínhamos a ilusão de preservar em relação a eles alguma autonomia, hoje nossa vida parece integralmente subsumida a tais mecanismos de modulação da existência. Até mesmo o sexo, a linguagem, a comunicação, a vida onírica, mesmo a fé, nada disso preserva já qualquer exterioridade em relação aos mecanismos de controle e monitoramento, se é que alguma vez tal exterioridade fosse cabível. Para resumi-lo numa frase: o poder já não se exerce desde fora, nem de cima, mas como que por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo. Não estamos mais às voltas com um poder transcendente, ou mesmo repressivo, trata-se de um poder imanente, produtivo. Como o mostrou Foucault, um tal biopoder não visa barrar a vida, mas tende a encarregar-se dela, intensificá-la, otimizá-la. Daí nossa extrema dificuldade em situar a resistência, já mal sabemos onde está o poder, e onde estamos nós, o que ele nos dita, o que nós dele queremos, nós nos encarregamos de administrar nosso controle, e o próprio desejo está inteiramente capturado. Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida como nessa modalidade contemporânea do biopoder. É onde intervém o segundo eixo que seria preciso evocar, sobretudo em autores provenientes da autonomia italiana. Resumo tal tendência da seguinte maneira. Quando parece que “está tudo dominado”, como diz um rap brasileiro, no extremo da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto é, “a vida”, revela no processo mesmo de expropriação, sua potência indomável. Tomemos apenas um exemplo. O capital precisa hoje não mais de músculos e disciplina, porém de inventividade, de imaginação, de criatividade, de força-invenção. Mas essa força-invenção, de que o capitalismo se apropria e que ele faz render em seu benefício próprio, não só não emana dele, como no limite poderia até prescindir dele. É o que se vai constatando aqui e ali: a verdadeira fonte de riqueza hoje é a inteligência das pessoas, sua criatividade, sua afetividade, e tudo isso pertence, como é óbvio, a todos e a cada um. Tal potência de vida 1

PELBART, Peter Pal. Vida Nua

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  • Vida nua, vida besta, uma vida Por Peter Pl Pelbart Ao reduzir a existncia ao seu mnimo biolgico, o biopoder contemporneo nos transforma em meros sobreviventesO contexto contemporneo se caracteriza por uma nova relao entre o poder e a vida. Por um lado, uma tendncia que poderia ser formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto , ele penetrou todas as esferas da existncia, e as mobilizou inteiramente, pondo-as para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, at a inteligncia, a imaginao, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando no diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que so os poderes?Digamos, para ir rpido, com todos os riscos de simplificao: as cincias, o capital, o Estado, a mdia. Sabemos, no entanto, que os mecanismos diversos pelos quais eles se exercem so annimos, esparramados, flexveis, rizomticos. O prprio poder tornou-se "ps-moderno": ondulante, acentrado, reticular, molecular. Com isso, ele incide diretamente sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, at mesmo de criar. Se antes ainda imaginvamos ter espaos preservados da ingerncia direta dos poderes (o corpo, o inconsciente, a subjetividade) e tnhamos a iluso de preservar em relao a eles alguma autonomia, hoje nossa vida parece integralmente subsumida a tais mecanismos de modulao da existncia.At mesmo o sexo, a linguagem, a comunicao, a vida onrica, mesmo a f, nada disso preserva j qualquer exterioridade em relao aos mecanismos de controle e monitoramento, se que alguma vez tal exterioridade fosse cabvel. Para resumi-lo numa frase: o poder j no se exerce desde fora, nem de cima, mas como que por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo. No estamos mais s voltas com um poder transcendente, ou mesmo repressivo, trata-se de um poder imanente, produtivo. Como o mostrou Foucault, um tal biopoder no visa barrar a vida, mas tende a encarregar-se dela, intensific-la, otimiz-la. Da nossa extrema dificuldade em situar a resistncia, j mal sabemos onde est o poder, e onde estamos ns, o que ele nos dita, o que ns dele queremos, ns nos encarregamos de administrar nosso controle, e o prprio desejo est inteiramente capturado. Nunca o poder chegou to longe e to fundo no cerne da subjetividade e da prpria vida como nessa modalidade contempornea do biopoder. onde intervm o segundo eixo que seria preciso evocar, sobretudo em autores provenientes da autonomia italiana. Resumo tal tendncia da seguinte maneira. Quando parece que est tudo dominado, como diz um rap brasileiro, no extremo da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto , a vida, revela no processo mesmo de expropriao, sua potncia indomvel.Tomemos apenas um exemplo. O capital precisa hoje no mais de msculos e disciplina, porm de inventividade, de imaginao, de criatividade, de fora-inveno. Mas essa fora-inveno, de que o capitalismo se apropria e que ele faz render em seu benefcio prprio, no s no emana dele, como no limite poderia at prescindir dele. o que se vai constatando aqui e ali: a verdadeira fonte de riqueza hoje a inteligncia das pessoas, sua criatividade, sua afetividade, e tudo isso pertence, como bvio, a todos e a cada um. Tal potncia de vida

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  • disseminada por toda parte nos obriga a repensar os prprios termos da resistncia.Poderamos resumir esse movimento do seguinte modo: ao poder sobre a vida responde a potncia da vida, ao biopoder responde a biopotncia, mas esse responde no significa uma reao, j que o que se vai constatando que tal potncia de vida j estava l desde o incio. A vitalidade social, quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampirizar, aparece subitamente na sua primazia ontolgica. Aquilo que parecia inteiramente submetido ao capital, ou reduzido mera passividade, a vida, aparece agora como reservatrio inesgotvel de sentido, manancial de formas de existncia, germe de direes que extrapolam as estruturas de comando e os clculos dos poderes constitudos.Seria o caso de percorrer essas duas vias maiores como numa fita de Moebius, o biopoder, a biopotncia, o poder sobre a vida, as potncias da vida1. Mas aqui isto ser feito sob um crivo particular, o do corpo. Pois tanto o biopoder como a biopotncia passam necessariamente, e hoje mais do que nunca, pelo corpo. Assim, proponho trabalhar aqui trs modalidades de "vida", isto , trs noes de vida, acompanhados de sua dimenso corporal correspondente, percorrendo de um lado a outro a banda de Moebius mencionada.

    O "muulmano" preciso comear pelo mais extremo -o "muulmano". Retomo brevemente descrio feita por Giorgio Agamben a respeito daqueles que, nos campos de concentrao, recebiam essa designao terminal2. O "muulmano" era o cadver ambulante, uma reunio de funes fsicas nos seus ltimos sobressaltos3. Era o morto-vivo, o homem-mmia, o homem-concha. Encurvado sobre si, esse ser bestificado e sem vontade tinha o olhar opaco, a expresso indiferente, a pele cinza plida, fina e dura como papel, j comeando a descascar, a respirao lenta, a fala muito baixa, e feita a um grande custo...O "muulmano" era o detido que havia desistido, indiferente a tudo que o rodeava, exausto demais para compreender aquilo que o esperava em breve, a morte. Essa vida no humana j estava excessivamente esvaziada para que pudesse sequer sofrer4. Por que os detidos dos campos chamavam de muulmano aqueles que tinham desistido de viver, j que se tratava sobretudo de judeus? Porque entregava sua vida ao destino, conforme a imagem simplria, preconceituosa e certamente equivocada de um suposto fatalismo islmico: o muslim seria aquele que se submete sem reserva vontade divina.Em todo caso, quando a vida reduzida ao contorno de uma mera silhueta, como diziam os nazistas ao referir-se aos prisioneiros, chamando-os de Figuren, figuras, manequins, aparece a perverso de um poder que no elimina o corpo, mas o mantm numa zona intermediria entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano: o sobrevivente. O biopoder contemporneo, conclui Agamben, reduz a vida sobrevida biolgica, produz sobreviventes. De Guantnamo Africa, isso se confirma a cada dia.

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  • Ora, quando cunhou o termo de biopoder, Foucault tentava discrimin-lo do regime que o havia precedido, denominado de soberania. O regime de soberania consistia em fazer morrer e deixar viver. Cabia ao soberano a prerrogativa de matar, de maneira espetacular, os que ameaassem seu poderio, e deixar viverem os demais. J no contexto biopoltico, surge uma nova preocupao. No cabe ao poder fazer morrer, mas sobretudo fazer viver, isto , cuidar da populao, da espcie, dos processos biolgicos, otimizar a vida. Gerir a vida, mais do que exigir a morte.Assim, se antes o poder consistia num mecanismo de subtrao ou extorso, seja da riqueza, do trabalho, do corpo, do sangue, culminando com o privilgio de suprimir a prpria vida5, o biopoder passa agora a funcionar na base da incitao, do reforo e da vigilncia, visando a otimizao das foras vitais que ele submete. Ao invs de fazer morrer e deixar viver, trata-se de fazer viver, e deixar morrer. O poder investe a vida, no mais a morte -da o desinvestimento da morte, que passa a ser annima, insignificante. Claro que o nazismo consiste num cruzamento extremo entre a soberania e o biopoder, ao fazer viver (a "raa ariana") e fazer morrer (as raas ditas "inferiores"), um em nome do outro.O biopoder contemporneo, segundo Agamben -e nisso ele parece seguir, mas tambm "atualizar" Foucault- j no se incumbe de fazer viver, nem de fazer morrer, mas de fazer sobreviver. Ele cria sobreviventes. E produz a sobrevida. No contnuo biolgico, ele busca at isolar um ltimo substrato de sobrevida. Como diz Agamben: "Pois no mais a vida, no mais a morte, a produo de uma sobrevida modulvel e virtualmente infinita que constitui a prestao decisiva do biopoder de nosso tempo. Trata-se, no homem, de separar a cada vez a vida orgnica da vida animal, o no-humano do humano, o muulmano da testemunha, a vida vegetativa, prolongada pelas tcnicas de reanimao, da vida consciente, at um ponto limite que, como as fronteiras geopolticas, permanece essencialmente mvel, recua segundo o progresso das tecnologias cientficas ou polticas. A ambio suprema do biopoder realizar no corpo humano a separao absoluta do vivente e do falante, de zo e bis, do no-homem e do homem: a sobrevida"6.Fiquemos pois, por ora, nesse postulado inusitado que Agamben encontra no biopoder contemporneo: fazer sobreviver, produzir um estado de sobrevida biolgica, reduzir o homem a essa dimenso residual, no humana, vida vegetativa, que o chamado "muulmano" dos campos de concentrao, por um lado, e o neomorto das salas de terapia intensiva, por outro, encarnam.A sobrevida a vida humana reduzida a seu mnimo biolgico, sua nudez ltima, vida sem forma, ao mero fato da vida, vida nua. Mas engana-se quem v vida nua apenas na figura extrema do "muulmano", sem perceber o mais assustador: que de certa maneira somos todos "muulmanos". At Bruno Bettelheim, sobrevivente de Dachau e Buchenwald, quando descreve o comandante do campo, qualifica-o como uma espcie de "muulmano", "bem alimentado e bem vestido". Ou seja, o carrasco ele tambm, igualmente, um cadver vivo, habitando essa zona intermediria entre o humano e o inumano, mquina biolgica desprovida de sensibilidade e excitabilidade nervosa. A condio de sobrevivente, de "muulmano", um efeito generalizado do biopoder contemporneo, ele no se restringe aos regimes totalitrios, e inclui plenamente a democracia ocidental, a sociedade de consumo, o

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  • hedonismo de massa, a medicalizao da existncia, em suma, a abordagem biolgica da vida numa escala ampliada.

    O corpoTomemos a ttulo de exemplo o superinvestimento do corpo que caracteriza nossa atualidade. Desde algumas dcadas, o foco do sujeito deslocou-se da intimidade psquica para o prprio corpo. Hoje, o eu o corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparncia, a sua imagem, a sua performance, a sua sade, a sua longevidade. O predomnio da dimenso corporal na constituio identitria permite falar numa "bioidentidade". verdade que j no estamos diante de um corpo docilizado pelas instituies disciplinares, como h cem anos atrs, corpo estriado pela mquina panptica, o corpo da fbrica, o corpo do exrcito, o corpo da escola. Agora cada um se submete voluntariamente a uma ascese, cientfica e esttica a um s tempo. o que Francisco Ortega chama de bioascese7. Por um lado, trata-se de adequar o corpo s normas cientficas da sade, longevidade, equilbrio, por outro, trata-se de adequar o corpo s normas da cultura do espetculo, conforme o modelo das celebridades.Como o diz Jurandir Freire Costa, a obsesso pela perfectibilidade fsica, com as infinitas possibilidades de transformao anunciadas pelas prteses genticas, qumicas, eletrnicas ou mecnicas, essa compulso do eu para causar o desejo do outro por si, mediante a idealizao da imagem corporal, mesmo s custas do bem-estar, com as mutilaes que o comprometem, substituem finalmente a satisfao ertica que prometem pela mortificao auto-imposta8. O fato que abraamos voluntariamente a tirania da corporeidade perfeita, em nome de um gozo sensorial cuja imediaticidade torna ainda mais surpreendente o seu custo em sofrimento.A bioascese um cuidado de si, mas, diferena dos antigos, cujo cuidado de si visava a bela vida, e que Foucault chamou de esttica da existncia, o nosso cuidado visa o prprio corpo, sua longevidade, sade, beleza, boa forma, felicidade cientfica e esttica, ou o que Deleuze chamaria a "gorda sade dominante". No hesitamos em qualific-lo, mesmo nas condies modulveis da coero contempornea, de um corpo fascista -diante do modelo inalcanvel, boa parcela da populao jogada numa condio de inferioridade sub-humana. Que, ademais, o corpo tenha se tornado tambm um pacote de informaes9, um reservatrio gentico, um dividual estatstico, com o qual somos lanados ao domnio da biossociabilidade ("fao parte do grupo dos hipertensos, dos soropositivos" etc.), isto s vem fortalecer os riscos da eugenia. Estamos s voltas, em todo caso, com o registro da vida biologizada Reduzidos ao mero corpo, do corpo excitvel ao corpo manipulvel, do corpo espetculo ao corpo automodulvel, o domnio da vida nua. Continuamos no mbito da sobrevida, da produo macia de "sobreviventes", no sentido amplo do termo.

    1 - No rastro de Foucault, Deleuze, Negri, Lazzarato e outros, tal mapeamento foi tentado em Vida Capital, So Paulo, Iluminuras, 2003.

    2 - G. Agamben, "Ce Qui Reste dAuschwitz", Paris Payot & Rivages, 1999.

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  • 3 - J. Amry, "Par Del le Crime et le Chatiment", Arles, Actes Sud, 1995

    4 - P. Levi, Isto um Homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 2000.

    5 - M. Foucault, "La Volont de Savoir", Paris, Gallimard, 1976, p 179.

    6 - G. Agamben, "Ce Qui Reste dAuschwitz", op. cit, p. 205.

    7 - Francisco Ortega, "Da Ascese Bioascese, Ou do Corpo Submetido Submisso do Corpo", in Imagens de Foucault e Deleuze, Rio de Janeiro, DP&A, 2002.

    8 - Jurandir Freire Costa, O Vestgio e a Aura: Corpo e Consumismo na Moral do Espetculo, Rio de Janeiro, Garamond, 2004.

    9 - Paula Siblia, O Homem Ps-orgnico, Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 2002.

    SobrevivencialismoQue me seja permitido alargar a noo de sobrevivente mencionada acima. Na sua anlise do 11 de Setembro, Slavoj Zizek contestou o adjetivo de covardes imputado aos terroristas que perpetraram o atentado contra as torres gmeas. Afinal, eles no tm medo da morte, contrariamente aos ocidentais, que no s prezam a vida, conforme se alega, mas querem preserv-la a todo custo, prolong-la ao mximo. Somos escravos, isto , somos escravos da sobrevivncia, at num sentido hegeliano. Nossa cultura visa sobretudo a sobrevivncia, pouco importa a que custo: sobrevivencialismo. Somos os ltimos homens de Nietzsche, que no querem perecer, que prolongam sua agonia, "imersos na estupidez dos prazeres dirios" - o Homo Otarius.A pergunta de Zizek a de So Paulo: "Quem est realmente vivo hoje? E se somente estivermos realmente vivos, se nos comprometermos com uma intensidade excessiva que nos coloca alm da "vida nua"? E se, ao nos concentrarmos na simples sobrevivncia, mesmo quando qualificada como "uma boa vida", o que realmente perdemos na vida for a prpria vida? E se o terrorista suicida palestino a ponto de explodir a si mesmo e aos outros estiver, num sentido enftico, "mais vivo"?1 E o autor pergunta: "No vale mais um histrico verdadeiramente vivo no questionamento permanente da prpria existncia que um obsessivo que evita acima de tudo que algo acontea, que escolhe a morte em vida?".No se trata, obviamente, de nenhuma conclamao ao terrorismo, mas de uma crtica custica ao que o filsofo esloveno chama de postura sobrevivencialista "ps-metafsica" dos ltimos Homens, e ao espetculo anmico da vida se arrastando como uma sombra de si mesma, nesse contexto biopoltico em que se almeja uma existncia assptica, indolor, prolongada ao mximo, onde at os prazeres so controlados e artificializados: caf sem cafena, cerveja sem lcool, sexo sem sexo,

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  • guerra sem baixas, poltica sem poltica -a realidade virtualizada.Para o filsofo, morte e vida designam no fatos objetivos, mas posies existenciais subjetivas, e, nesse sentido, ele brinca com a idia provocativa de que haveria mais vida do lado daqueles que de maneira frontal, numa exploso de gozo, reintroduziram a dimenso de absoluta negatividade em nossa vida diria com o 11 de Setembro, do que nos ltimos Homens, todos ns, que arrastam sua sombra de vida como mortos-vivos, zumbis ps-modernos.O autor chama a ateno para a paisagem de desolao contra a qual vem inscrever-se um tal ato, e sobretudo para o desafio de se repensar hoje o prprio estatuto do ato, do acontecimento, em suma, da gestualidade poltica, num momento em que a vitalidade parece ter migrado para o lado daqueles que, numa volpia de morte, souberam desafiar nosso sobrevivencialismo exangue. Seja como for, poderamos dizer que na ps-poltica espetacularizada, e com o respectivo seqestro da vitalidade social, estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo biolgico, merc da gesto biopoltica, cultuando formas de vida de baixa intensidade, submetidos morna hipnose consumista, mesmo quando a anestesia sensorial travestida de hiperexcitao. a existncia de ciberzumbis, pastando mansamente entre servios e mercadorias, e como dizia Gilles Chtelet, viver e pensar como porcos2. Vida besta esse rebaixamento global da existncia, essa depreciao da vida, sua reduo vida nua, sobrevida, estgio ltimo do niilismo contemporneo. vida sem forma do homem comum, nas condies do niilismo, a revista Tiqqun deu o nome de Bloom3. Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta, e que designa essas existncias brancas, presenas indiferentes, sem espessura, o homem ordinrio, annimo, talvez agitado quando tem a iluso de que com isso pode encobrir o tdio, a solido, a separao, a incompletude, a contingncia -o nada.Bloom designa essa tonalidade afetiva que caracteriza nossa poca de decomposio niilista, o momento em que vem tona, porque se realiza em estado puro, o fato metafsico de nossa estranheza e inoperncia, para alm ou aqum de todos os problemas sociais de misria, precariedade, desemprego etc. Bloom a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferena sem qualidades, em que ningum mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiveis e substituveis. Pouco importam os contedos de vida que se alternam e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom j incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoes de que recolhe ecos difratados.Quando a vida reduzida vida besta em escala planetria, quando o niilismo se d a ver de maneira to gritante em nossa prpria lassido, nesse estado hipntico consumista do Bloom ou do Homo Otarius, cabe perguntar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, e se a catstrofe no estaria a instalada cotidianamente ("o mais sinistro dos hspedes", como dizia Nietzsche a respeito do niilismo), ao invs de ser ela apenas a irrupo sbita de um ato espetacular.

    O corpo que no agenta mais

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  • O que poderia ainda nos sacudir de tal estado de letargia, lassido, esgotamento? H uma bela definio beckettiana sobre o corpo, dada por David Lapoujade. Somos como personagens de Beckett, para os quais j difcil andar de bicicleta, depois, difcil de andar, depois, difcil de simplesmente se arrastar, e, depois ainda, de permancer sentado... Mesmo nas situaes cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforo, o corpo no agenta mais. Tudo se passa como se ele no pudesse mais agir, no pudesse mais responder. O corpo aquele que no agenta mais4, at por definio. Mas, pergunta o autor, o que que o corpo no aguenta mais? Ele no agenta mais tudo aquilo que o coage, por fora e por dentro.Por exemplo, o adestramento civilizatrio que por milnios se abateu sobre ele, como Nietzsche o mostrou exemplarmente em Para a Genealogia da Moral, ou mais recentemente Norbert Elias, ao descrever de que modo o que chamamos de civilizao resultado de um progressivo silenciamento do corpo, de seus rudos, impulsos, movimentos5... Mas, tambm, a docilizao que lhe foi imposta pelas disciplinas, nas fbricas, nas escolas, no exrcito, nas prises, nos hospitais, pela mquina panptica...Tendo em vista o que foi mencionado acima, deveramos acrescentar essa terceira "camada": o que o corpo no agenta mais a mutilao biopoltica, a interveno biotecnolgica, a modulao esttica, a digitalizao bioinformtica, o entorpecimento sensorial. Em suma, e num sentido muito amplo, o que o corpo no agenta mais a mortificao sobrevivencialista, seja no estado de exceo, seja na banalidade cotidiana. O "muulmano", o "ciberzumbi", o "corpo-espetculo", "a gorda sade dominante", o "Bloom", por extremas que paream suas diferenas, ressoam no efeito anestsico e narctico, configurando a impermeabilidade de um corpo "blindado"6 em condies de niilismo terminal.Diante disso, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe mais prprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condio de corpo afetado pelas foras do mundo e capaz de ser afetado por elas: sua afectibilidade. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche todo sujeito vivo primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afeces, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multido de estmulos e excitaes que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher7. Nessa linha, tambm Deleuze insiste: um corpo no cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxignio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes -um corpo primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Mas no por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com seu estmago fenomenal, na pura indiferena daquele a quem nada abala...Como ento preservar a capacidade de ser afetado, seno atravs de uma permeabilidade, uma passividade, at mesmo uma fraqueza? Mas como ter a fora de estar altura de sua fraqueza, ao invs de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a fora, pergunta Nietzsche e, no seu rastro, Stiegler, Lapoujade? Gombrowicz referia-se a um inacabamento prprio vida, ali onde ela se encontra em estado mais embrionrio, onde a forma ainda no pegou inteiramente8, e a atrao irresistvel que exerce esse estado de Imaturidade, onde est preservada a liberdade de seres ainda por nascer... Porm, ser possvel dar espao a tais "seres ainda por

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  • nascer" num corpo excessivamente musculoso, em meio a uma atltica auto-suficincia, demasiadamente excitada, plugada, obscena, perfectvel? Talvez por isso tantos personagens literrios, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez, no limite do corpo morto. Para dar passagem a outras foras que um corpo excessivamente blindado no permitiria. Mas ser preciso produzir um corpo morto para que outras foras atravessem o corpo?Jos Gil observou o processo atravs do qual, na dana contempornea, o corpo se assume como um feixe de foras e desinveste os seus rgos, desembaraando-se dos modelos sensrio-motores interiorizados, como o diz Cunningham. Um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma, para ento poder ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. a, diz Gil, que esse corpo, que j um corpo-sem-rgos, constitui ao seu redor um domnio intensivo, uma nuvem virtual, uma espcie de atmosfera afetiva, com sua densidade, textura, viscosidade prprias, como se o corpo exalasse e liberasse foras inconscientes que circulam flor da pele, projetando em torno de si uma espcie de sombra branca9. No posso me furtar tentao, nem que seja de apenas mencionar, a experincia da Cia. Teatral Ueinzz, que coordeno em So Paulo, na qual reencontramos entre alguns dos atores ditos psicticos, posturas extraviadas, inumanas, disformes, rodeados de sua sombra branca, ou imersos numa zona de opacidade ofensiva10. O corpo aparece a como sinnimo de uma certa impotncia, mas dessa impotncia que ele extrai uma potncia superior, nem que seja s custas do corpo emprico.Pois s custas do corpo emprico que um corpo virtual pode vir tona. Desde o jejuador at o homem-inseto, os personagens de Kafka reivindicam um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que s comporta plos, zonas, limiares e gradientes. Como dizem Deleuze-Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham as hierarquias, preservando-se apenas as intensidades que compem zonas incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse corpo anarquista devolvido a si mesmo11, ainda que ele seja o de um coleptero. Criar para si um corpo sem rgos, encontrar seu corpo sem rgos a maneira de escapar ao juzo do pai, do patro, de Deus, uma maneira de fugir a todo um sistema do juzo, da punio, da culpa, da dvida.Ao invs da dvida infinita em relao instncia transcendente, o embate dos corpos, num sistema da crueldade imanente. H a, insistem os autores, nesse corpo desfeito e intensivo, tal como aparece em Kafka, uma vitalidade no-orgnica, inumana, e um combate: Todos os gestos so defesas ou mesmo ataques, esquivas, paradas, antecipaes de um golpe que nem sempre se v chegar, ou de um inimigo que nem sempre se consegue identificar: donde a importncia das posturas do corpo12. Mas o objetivo do combate, diferentemente da guerra, no consiste em destruir o Outro, mas em escapar-lhe ou apossar-se de sua fora. Em suma, o combate como uma poderosa vitalidade no-orgnica, que completa a fora com a fora, e enriquece aquilo de que se apossa.Mas o que essa vitalidade no-orgnica? Em Imanncia: Uma Vida, ltimo texto escrito por Deleuze, comparece um exemplo -o de Dickens. O canalha Riderhood est prestes a morrer num quase afogamento, e libera nesse ponto uma centelha de vida dentro dele que parece poder ser separada do canalha que ele , centelha com a qual todos sua volta se

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  • compadecem, por mais que o odeiem -eis a uma vida, puro acontecimento, em suspenso, impessoal, singular, neutro, para alm do bem e do mal, uma espcie de beatitude, diz Deleuze13.

    1 - S. Zizek, Bem-vindo ao Deserto do Real, So Paulo, Boitempo, 2003, p. 108.

    2 - G. Chtelet, "Vivre et Penser Comme des Porcs", Paris, Exils, 1998.

    3 - Tiqqun, "Thorie du Bloom", Paris, La Fabrique, 2000, e a revista Tiqqun , 2001.

    4 - David Lapoujade, O Corpo Que No Agenta Mais, in Nietzsche e Deleuze - Que Pode o Corpo, org. D. Lins, Relume Dumar, Rio de Janeiro, 2002, p 82 e seguintes.

    5 - Norbert Elias, O Processo Civilizador, vol I, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1994.

    6 - Juliano Pessanha, Certeza do Agora, So Paulo, Ateli Ed. 2002.

    7 - Barbara Stiegler, "Nietzsche et la Biologie", Paris, PUF, 2001, p. 38.

    8 - Witold Gombrowicz, "Contre les Potes", Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.

    9 - Jos Gil, Movimento Total, Lisboa, Relgio dgua, 2001, p. 153.

    10 - http://ueinzz.sites.uol.com.br/home.htm

    11 - G. Deleuze, Crtica e Clnica, So Paulo, Ed. 34, p. 149.

    12 - G. Deleuze, Crtica e Clnica, op. cit., p. 149-150.

    13 - G. Deleuze, "LImmanence, Une Vie", in Deux Rgimes de Fous , Paris, Minuit, 2003. O outro exemplo est no extremo oposto da existncia: os recm-nascidos, que, em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, so atravessados por uma vida imanente que pura potncia, e at mesmo beatitude. que tambm o beb, como o morimbundo, atravessado por uma vida. Assim o define Deleuze1: querer-viver obstinado, cabeudo, indomvel, diferente de qualquer vida orgnica: com uma criancinha j se tem uma relao pessoal orgnica, mas no com o beb, que concentra em sua pequenez a energia suficiente para arrebentar os paraleleppedos (o beb-tartaruga de Lawrence)2. Com o beb s se tem relao afetiva, atltica, impessoal, vital, pois o pequeno a sede irredutvel das foras, a prova mais reveladora das foras. como se Deleuze perscrutasse um aqum do corpo emprico e da vida individuada, como se ele buscasse, no s em Kafka, Lawrence, Artaud, Nietzsche, mas ao longo de toda sua prpria obra, aquele limiar vital e virtual a partir do qual todos os lotes repartidos, pelos deuses ou homens,

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  • giram em falso e derrapam, perdem a pregnncia, j no pegam no corpo, permitindo-lhe redistribuies de afeto as mais inusitadas. Este limiar, entre a vida e a morte, entre o homem e o animal, entre a loucura e a sanidade, onde nascer e perecer se repercutem mutuamente, pe em xeque as divises legadas por nossa tradio, e indica o que Deleuze pde chamar de uma vida.J podemos perceber a que ponto parecem vizinhas a tematizao do limite entre o humano e o inumano feita por Deleuze, para abordar o que ele entendia por uma vida, e aquela feita por Agamben, para abordar o que ele chamou de vida nua, seja no caso do "muulmano", seja no caso do neomorto. Talvez caiba formular aqui a questo crucial. Como diferenciar a decomposio e a desfigurao do corpo necessrias para que as foras que o atravessam inventem novas conexes e liberem novas potncias, tendncia que caracterizou parte de nossa cultura das ltimas dcadas, nas suas experimentaes diversas, das danas s drogas e prpria literatura, da decomposio e desfigurao que a produo do sobrevivente, ou a manipulao biotecnolgica suscita e estimula? Como diferenciar a perplexidade de Espinosa, com o fato de que no sabemos ainda o que pode o corpo, do desafio dos poderes e da tecnocincia, que precisamente vo pesquisando o que se pode com o corpo? Como descolar-se desta obsesso de pesquisar "o que se pode fazer com o corpo" (questo biopoltica: que intervenes, manipulaes, aperfeioamentos, eugenias...), e afinar "o que pode o corpo" (questo vitalista, espinosista)? Potncias da vida que precisam de um corpo-sem-rgos para se experimentarem, por um lado, poder sobre a vida que precisa de um corpo ps-orgnico para anex-lo axiomtica capitalistica.Mas talvez para que um plo aparea preciso, ao mesmo tempo, que o outro seja combatido, ou ao menos deslocado. Por exemplo, para que aquilo que Deleuze chamou de uma vida possa aparecer na sua imanncia e afirmatividade, preciso que ela se tenha despojado de tudo aquilo que pretendeu represent-la ou cont-la. Toda a tematizao do corpo-sem-rgos uma variao em torno desse tema biopoltico por excelncia, a vida desfazendo-se do que a aprisiona, do organismo, dos rgos, da inscrio dos poderes diversos sobre o corpo, ou mesmo de sua reduo vida nua, vida-morta, vida-mmia, vida-concha. Mas se a vida deve livrar-se de todas essas amarras sociais, histricas, polticas, no ser para reencontrar algo de sua animalidade desnudada, despossuda? Ser a invocao de uma vida nua, de uma zo, como diziam os antigos, contra uma forma de vida qualificada, contra bios? Diz Kuniichi Uno, a respeito: "Mas ele (Artaud) nunca perdeu o sentido intenso da vida e do corpo como gnese, ou auto-gnese, como fora intensa, impermevel, mvel sem limites que no se deixaria determinar nem mesmo pelos termos como bios ou zo. A vida para Artaud indeterminvel, em todos os sentidos, enquanto a sociedade feita pela infmia, o trfico, o comrcio que no cessa de sitiar a vida e sobretudo a do corpo"3. Bastaria meditar a frase enigmtica de Artaud: "Eu sou um genital inato, ao enxergar isso de perto isso quer dizer que eu nunca me realizei./ H imbecis que se crem seres, seres por inatismo./ Eu sou aquele que para ser deve chicotear seu inatismo". E Uno comenta que um genital inato algum que tenta nascer por si mesmo, fazer um segundo nascimento a fim de excluir seu inatismo. Pois ser inato no ter nascido.Pensemos em Beckett ouvindo Jung dizer, sobre uma paciente: o fato que ela nunca nasceu. E ele transporta essa frase para o contexto de sua

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  • obra. Ali, um eu que no nasceu escreve sobre aquele outro que, sim, nasceu. Essa recusa do nascimento biolgico no a recusa proveniente de um ser que no quer viver, mas daquele que exige nascer de novo, sempre, o tempo todo. O genital inato a histria de um corpo que coloca em questo seu corpo nascido, com as suas funes e todos os rgos, representantes das ordens, instituies, tecnologias visveis ou invisveis que pretendem gerir o corpo. Um corpo que, a partir ou em favor de um corpo sem rgos, desafia esse complexo sociopoltico que Artaud chamou de Juzo de Deus e que poderamos chamar de um biopoder.Essa recusa do nascimento em favor de um auto-nascimento no equivale ao desejo de dominar seu prprio comeo, mas de recriar um corpo que tenha o poder de comear, diz Uno. A vida este corpo, insiste ele, desde que se descubra o corpo em sua fora de gnese, por um lado, e desde que ele se libere daquilo que pesa sobre ele como determinao -guerra biopoltica. Talvez esse seja um dos poucos pontos em que concordamos com Badiou, quando afirma que, para Deleuze, o nome do ser a vida, mas a vida no tomada como um dom ou um tesouro, nem como sobrevida, antes como um neutro que rejeita toda categoria. Diz ele: Toda vida nua. Toda vida desnudamento, abandono das vestimentas, dos cdigos e dos rgos; no que nos dirigimos para um buraco negro niilista. Mas ao contrrio para sustentar-se no ponto em que se intercambiam atualizao e virtualizao; para um ser criador4. Mas ser que Badiou tem razo em designar essa vida como nua? Em todo caso, essa vida desnudada a que se refere ele no pode ser, como j Uno o havia notado, simples zo, a vida como fato, o fato animal da vida, ou a vida reduzida a esse estado de nudez biolgica anexada ordem jurdica pelo estado de exceo, ou destinada manipulao tecnocientfica pelo movimento niilista do capital.Uma vida tal como Deleuze a concebe a vida como virtualidade, diferena, inveno de formas, potncia impessoal, beatitude. Vida nua, ao contrrio, tal como Agamben a teorizou, a vida reduzida ao seu estado de mera atualidade, indiferena, disformidade, impotncia, banalidade biolgica. Para no falar na vida besta, exacerbao e disseminao entrpica da vida nua, no seu limite niilista. Se, no entanto, vida nua e uma vida so to contrapostas, mas ao mesmo tempo to sobrepostas, porque no contexto biopoltico a prpria vida que est em jogo, sendo ela o campo de batalha. Contudo, como dizia Foucault, no ponto em que o poder incide com fora maior, a vida, que doravante se ancora a resistncia a ele, mas justamente, como que mudando de sinal. Em outras palavras, s vezes no extremo da vida nua que se descobre uma vida, assim como no extremo da manipulao e decomposio do corpo que ele pode descobrir-se como virtualidade, imanncia, pura potncia, beatitude.Mesmo na existncia espectral do Bloom, de algum modo se insinua uma estratgia de resistncia: ele o homem sem qualidades, sem particularidades, sem substancialidade do mundo, onde j nem o biopoder pega -o homem enquanto homem, como nota Deleuze, o anti-heri presente na literatura do sculo passado, de Kafka a Musil, de Melville a Michaux e Pessoa, o homem sem comunidade, que por isso mesmo chama por uma comunidade por vir.Se os que melhor diagnosticaram a vida bestificada, de Nietzsche e Artaud at os jovens experimentadores de hoje, tm condies de retomar o

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  • corpo como afectibilidade, fluxo, vibrao, intensidade, e at mesmo como um poder de comear, no ser porque neles ela atingiu um ponto intolervel? No estaramos todos ns nesse ponto de sufocamento, que justamente por isso nos impele numa outra direo? Talvez haja algo na extorso da vida que deve vir a termo para que esta vida possa aparecer diferentemente... Algo deve ser esgotado, como o pressentiu Deleuze em Lpuis, para que um outro jogo seja pensvel.

    1 - G. Deleuze, Crtica e Clnica, op. cit.

    2 - G. Deleuze, Crtica e Clnica, op. cit., p. 151.

    3 - K. Uno, "Pantoufle dArtaud selon Hijikata", indito.

    4 - A. Badiou, "De la Vie Comme Nom de ltre", in Rue Descartes , n 20, PUF, 1998, p 32.

    .Este texto foi escrito a partir de palestra apresentada por ocasio do Festival Alkantara, em Lisboa, no contexto dos encontros propostos pela danarina Vera Mantero, no Teatro So Luiz, em junho de 2006..Peter Pl Pelbart doutor em filosofia e professor na PUC-SP. tradutor e estudioso da obra de Gilles Deleuze (traduziu para o portugus "Conversaes", "Crtica e Clnica" e parte de "Mil Plats"). Escreveu sobre a concepo de tempo em Deleuze ("O Tempo No-reconciliado", Perspectiva, 1998), sobre a relao entre filosofia e loucura ("Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazo", Brasiliense, 1989, e "A Nau do Tempo-rei", Imago, 1993) e publicou, mais recentemente, "A Vertigem por um Fio: Polticas da Subjetividade Contempornea", Iluminuras, 2000.

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