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Al

Palavra séria é a escrita, é a regra,a prova, o registro.Palavra falada é aventureira,dá o ar da graça,às vezes mexee faz pensar;deixa a semente e some- quem puderque faça uso.A palavra faladanão precisa vir do saber,pode muito bemvir da sabedoria.Falta de conhecimentonão é falta de inteligência.A gente aprende o quea escola não ensina e,onde falta o saber,nasce a sabedoria,que melhor recebe,melhor conduz emelhor propagaa palavra falada.

Mais uma cena rotineira dacidade grande

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Por: Eduardo Marinho

AGO-SET/2010

“Bom mesmo é...”

“Bom mesmo é pensar, não ficar discutindoos pensadores. Conhecer seus pensa-mentos, tudo bem, mas segui-los é desconfiarda própria capacidade de pensar. Quemdiscute demais os pensadores e ospensamentos já pensados, mesmo que emoutras condições, acaba não pensando porsi, atrelando seu próprio potencial e nãoproduzindo nada de novo – no máximo, re-arrumando velhas ordens”.

ProveitoPor: Eduardo Marinho

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Até onde você faz pensar o que você pensa? Até onde você escolhe o que você quer? Atéque ponto o sentimento é espontâneo, quando há música de fundo, tons de voz eambientação?

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PoetadaPor: Eduardo Marinho

Não há passado, nem futuro.O que há, de verdade, é o presente.Foi presente, o passado, quando houve;será presente, o futuro, quando houver.O presente é o ato, a hora de fazer,de escolher e exercer a consciência.O passado nos dá motivaçõese advertências.O futuro nos aguarda lá na frentee nos guarda todas as conseqüências.

Por Fabio da Silva Barbosa e Evandro dos Santos Pinheiro

Abriu o saquinho e pegou a pe-quena pedra. Olhou bem, mas sem muitademora. A latinha já estava pronta. A-jeitou na posição, colocou a boca e riscouo isqueiro. A fumaça que era inalada o fa-zia ficar ofegante e ao mesmo tempoligeiro. Nela, iam todos os seus proble-mas, angustias, medos... Tudo que acon-tecia a sua volta se fora em poucos minu-tos. Aproveitou a alteração de seu estadomental até o último instante. Mas a rea-lidade logo viria bater a sua porta. O mun-do se reintegrando. Precisava arranjaroutro daquele belo anestésico.

Revirou os bolsos e constatou queacabaram as últimas moedas. Tinha de darum jeito. Levantou cambaleante, segur-ando nas paredes. Olhou fixamente paraà porta daquele quarto fedorento em quevivia e tentou uma linha reta. Ao se apro-ximar da porta sentiu o efeito passar. Acompulsão o instigava a ir em busca demais. Danilo tinha apenas 13 anos, porém,já havia vivido situações de difícil com-preensão. Desceu as escadas às carreiras.Lembrou que o pai já não aparecia há maisde uma semana e pensou na última vezque viu sua mãe indo embora e o aban-donando com aquele verme.

Ao chegar à rua, olhou em volta.Havia um banco perto dali. Era época de

Vida?

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pagamento. Virada do mês. A operação seriafácil. Era só esperar algum mais velho sair dobanco com seus bolsos recheados dedinheiro e colocar suas mãozinhas de tesourapara funcionar.

O movimento de pessoas no bancoera grande. Nos caixas eletrônicos haviamfilas enormes. A grana de que precisavadeveria vir sem muitas dificuldades.Pensamentos confusos bombardeavam suamente. Cuidar de carro já fora época, o negó-cio era meter um 157. Der repente viu umcoroa saindo com passos apressados. Sentiuo cheiro da adrenalina no ar. Era por ele queesperava. Não podia estar enganado.

Os pensamentos começaram a clarear.Perseguiu sua vítima, a distância, por algunsquarteirões. A hora era aquela. Não podiavacilar. Aproximou-se rapidamente, mas semdar na pinta. Passou pelo coroa e pá... Umesbarrão e as mãozinhas escorregaram paradentro do bolso. O coroa segurou a mão quejá partia em retirada.

- Ladrão... É ladrão...Danilo jogou a vítima no chão e

saiu em disparada. As vozes semultiplicaram.

- Pega ladrão! Pega ladrão!Com uma rápida olhada, viu

algumas pessoas levantando osenhorzinho, que sumiu logo do seucampo de visão, por causa da rapaziadaque estava correndo atrás dele. Olhoupara frente e continuou correndo. Deumais uma olhada para trás. A multidãoconti-nuava na perseguição. Parecia termais gente.

- Pega ladrão! Pega ladrãoMais a frente havia um cru-

zamento, de perto avistou o sinal que seabria e a multidão que o perseguia, vinhalogo atrás. Era tudo ou nada. Passava ouseria pego. Teria que ser rápido. Emsegundos sentiu o vento do ônibuspassar como um tornado ao seu lado e,sem parar de correr, continuou sua sina.

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O sistema prisional deve ter trans-formadas todas as suas unidades emcentros de altos e profundos estudos dehumanidade. Desde o indivíduo, sua for-mação psicológica, social, instrucional, in-formacional, toda sua estrutura interna, emconjunto e relação com a estrutura social,política e econômica da sociedade; até omais alto nível de ensino e pesquisa, inte-grando escolas e academias nas atividadesde educação, sensibilização, conscien-tização, profissionalização e socialização.Tanto internos, quanto trabalhadores dosistema e estudantes e professores teriammetas e objetivos a alcançar, teriam um ca-minho de absorção e desenvolvimento pes-soal, profissional e social.

A triagem inicial seria feita porequipes multidisciplinares, para iniciar oestudo individual e determinar as ne-cessidades pessoais de cada ingresso. Amaior parte seria de escolaridade comum(no momento) e ensino e prática de profis-sionalização (conforme cada caso), a-crescido de ensino e prática da cidadania,de sensibilização pelas artes e práticas hu-manísticas (tarefas de solidariedade, porexemplo, com uma gama de opções).Atividades em tempo integral são im-prescindíveis, a folga é reduzida ao mínimonecessário, no sistema prisional. As equi-pes externas se revezariam.

Os casos especiais de desvio deconduta deveriam ser estudados em pro-fundidade, por profissionais, professorese estudantes universitários, na determi-nação das necessidades de cada um e suascondições de receptividade, seus graus de

Sugestões para umasociedade mais justa

- Sistema prisional -

Pensou na igreja, na escola, na família, massabia que tudo era muito distante. Vivia nomundo sem regras. A vida passara como umfilme sobre sua cabeça. Algo, ou alguém, osegurou pelo braço. Sentiu o corpo subindono ar e se chocando contra a calçada. Foilogo rodeado. Gritos indecifráveischegavam ao seu ouvido, enquanto eragolpeado por todos os lados. O Sol foisumindo... A boca ficando seca...

Horas depois, o assunto fora divul-gado. Repórteres policiais, jornalistas e polí-ticos se posicionaram a favor da reduçãoda maior idade penal. No hospital, o médicoolhava o garoto em coma. A prancheta fixavaum papel que dizia: Traumatismo Craniano.

- É ladrão. – comentou a chefe daenfermaria com o médico de plantão.

As pancadas que levou o deixou emcoma. Ao final da noite, o médico atestoumorte cerebral. Um enterro com poucosparentes e nenhum amigo se seguiu. Aliás,como muitos não sabiam, Danilo tinha osonho de ser jogador de futebol, mas a vidareservou caminhos diferentes. Quem sabese tivesse tido oportunidade?

Os dias passaram e com eles estãoindo nossas esperanças. A falta de amor,carinho e solidariedade arraigam na socieda-de a indiferença que faz pensar: “Não temosnada com isso e a culpa é do outro”. Fazen-do-nos acreditar que temos o direito de jul-gar e condenar de forma arbitrária e cruel.Que somos os certos. Os mesmos que julga-ram e puniram esse garoto na estória, se a-nulam ao verem políticos roubando dinheiropublico da educação, saúde, assistência so-cial, segurança... São milhões desviados e,a cada eleição, eles voltam. Temos de darum basta. Isso sim é revoltante. Uma si-tuação, onde pobres se matam, enquantouma classe média apática e alienada, assistea todo esse espetáculo sórdido na grandemídia, sem expressar mais que algumasqueixas sem efeito.

Por: Eduardo Marinho

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consciência, de sociabilidade, afetividade,agressividade, etc, etc. Para isso haveriaequipes multidisciplinares – psicologia,sociologia, antropologia, psiquiatria,relações humanas, comunicações, es-tatística, pedagogia, belas artes, letras, tudoaplicado no desenvolvimento integral doser humano. Desenvolver a humanidadedos presos, sua sensibilidade, seu escla-recimento, seus conhecimentos, e, aomesmo tempo, estudar cada caso, suasrealidades, suas situações e reações, seusestímulos e condicionamentos. Isso fariados presídios e casas de detenção centrosde integração social plena e centros de altose profundos estudos sobre a sociedade, acivilização, as estruturas coletivas e o serhumano. O que significa investir no e-quilíbrio da sociedade e em seu de-senvolvimento conjunto.

As penas seriam regidas pelo pri-ncípio do tempo mínimo necessário, comacompanhamento posterior no períodoinicial de liberdade, durante tempo a ser de-terminado pela equipe de análise multidis-ciplinar, ou fração destinada a essa tarefa.

Na atual conjuntura, um sistemaprisional democrático, plural e humano teriade se dedicar prioritariamente à recuperaçãode cidadania, de dignidade, dos destroçospsicológicos dos sabotados pela socieda-de, dos excluídos de tudo, menos dos servi-ços mais baixos e básicos, mal remuneradose paralelos à indigência provocada pela es-trutura desta mesma sociedade. A dívidacom essa parcela da população é enorme e

ancestral.O conhecimento acadêmico, se hu-

manizado, deve colocar maior ênfase na ne-cessidade do trabalho neste sentido em to-das as áreas do conhecimento, há espaço enecessidade de todas. Não apenas no siste-ma prisional, mas sobretudo nas comuni-dades mais pobres e criminalizadas, o inves-timento em desenvolvimento geral deve serprioritário. Não é por acaso que estascomunidades são as maiores fornecedorasde “clientes” ao sistema prisional, a relaçãoé íntima e o desenvolvimento, paralelo. Poresse caminho, a criminalidade seria reduzidade verdade e a sociedade se humanizaria.

O meio acadêmico não se dá conta,ainda, da enorme vantagem que haveria nassuas formações se houvesse um convíviopróximo da sua classe com as mais desfa-vorecidas. O desenvolvimento não é exclu-sividade da academia, é uma característicado ser humano. Se descessem do seu pe-destal acadêmico e conseguissem alcançara igualdade com os sabotados da sociedadepoderiam perceber o desenvolvimentohumano, nesse meio, seguindo por cami-nhos não vislumbrados, nem imaginados,produzindo saberes riquíssimos que o pre-conceito não permite dar proveito. Epoderiam cumprir sua obrigação moral coma maioria, por ter acesso a conhecimentos epatamares negados a essa maioria, seaplicando na melhoria da sociedade comoum todo.

E não se fala no que poderia ser feitocom o sistema dito “de segurança pública”.

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O único quenão estava com pressa

Por Fabio da Silva Barbosa

Algumas pessoas passavam apressadas,dando meia olhada. Não olhavam muitotempo para não sentirem a obrigação deajudar... Fazer alguma coisa... O corpo estavaestendido no chão. Será que estava vivo?Será que estava morto? Ninguém sabia, mastambém não tinham tempo para saber. Trêsdias depois alguém reparou na repetição dacena... O mau cheiro no ar... Ligou do orelhãopara não ter de esperar ambulância ou algodo gênero. Algumas horas depois o corpoestava coberto. Lá pela noite estava sendoremovido dali.

UM PUXÃO DEORELHAS

Por Fabio da Silva Barbosa

Gostaria de mandar uma idéia para osdonos de empresas de ônibus que vivemreclamando da vida e chorando miséria (oengraçado é que nunca vi um desses carasandando de ônibus. Estão sempre dentrode seus carros importados e com ar con-dicionado. ÊÊÊ vidinha apertada, a deles).PORRA!Vamos pelo menos detetizar os ônibus.Não é possível que com essas passagensabusivas ainda tenhamos que convivercom baratas, dividindo os incômodosbancos com a gente.E essa sacanagem de colocar o motoristatrabalhando por dois e ganhando menosque ganhava antes? Nunca passsou porsua cabeça que a segurança do pedestre ésua responsabilidade e que o motoristatem de estar plenamente concentrado noque está fazendo?Façam-me o favor.

Há profissionais muito bem pagos pra produzirem pensamentos para se pensar, desejospra serem desejados, sentimentos pra serem sentidos. E fazem tão bem esse trabalhoque nem se percebe, só se pensa, se deseja, se sente... e é tanta gente!

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ReflexõesPor: Eduardo Marinho

Perdeu o ônibus. Olhou para o relógioe viu que estava no atraso. A marmita caiu,vomitando todo o feijão passado.

- Puta que o pariu! - Assim não podiaser.

Meia hora depois, veio outro lotação.Foi para o meio fio e fez sinal. Espremeu-seentre os demais.

- Dá licença!?Engarrafamento, falta de ar.... Uma

hora de viagem. Pensou em quanto tinha nacarteira. “Melhor voltar a pé”. O caminho nemera tão longo.

- Com licença!? Desculpe amigo.Licença...

Desceu no ponto. Por pouco nãoperdia a descida. Dois minutos de caminhadaentre pedestres furiosos.

- Novamente atrasado, Juvenal!?- É que...- Eu sei, eu sei... Vai botar a culpa no

ônibus de novo. Sai mais cedo de casa, ué!Imagina se cada um que chegar aqui com umadesculpa...

- Mas...- Vai! Assume logo seu posto que hoje

não tô para conversa fiada! Vai ser des-contado!

- Mas...- Anda, Juvenal! Não se aproveita da

minha compreensão!

Por: Fabio da Silva Barbosa

Juvenal

O que fazemos, pensamos, sentimos, per-cebemos, valorizamos, desejamos, recebe-mos, oferecemos, tudo é plantio, uns mais,outros menos. Colhemos o tempo todo,como plantamos o tempo todo, mas a maio-ria nem percebe. Não temos um mundoperfeito, mas em aperfeiçoamento. Há mui-to trabalho há ser feito e sendo feito. Sem-pre houve. Quem sabe mais, tem obrigaçãomoral de ensinar quem quer saber. E querersaber é questão de inteligência, de dar al-gum valor à vida, dar sentido à existência.A geografia do Brasil é linda, mas está lon-ge de ser a única excelência. Esse laborató-rio universal de raças é um cadinho de apri-moramento humano. Culturas, etnias, mís-ticas, costumes de todos os lugares se mis-turam em algazarra pacífica. As centraisde violência e o terrorismo midiático aterro-rizam de tal maneira, que boa parte das pes-soas se trancam, física, moral e afetivamen-te. Aí estamos cegos para realidades quenos cercam e caímos no conto da mídia.Procuramos culpas e penalidades, negan-do nossa responsabilidade. São tantas ex-periências de vida rolando, situações for-tes, muitos e muitos milhões de aconteci-mentos ao mesmo tempo, difícil se sentirparte desse todo, mais fácil se isolar empequenos grupos. Mais estimulado. Maischato. E mais frustrante.

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Até que ponto nossos valores e desejos são realmente nossos? Até que ponto énossa própria consciência e sensibilidade que criam nossos planos e desejos, valores erazões para a existência? Somos bombardeados com valores impostos, pelo consciente,pelo inconsciente, pelo emocional, pelo ego, pelo sexo, pela vaidade, pelo espírito dedisputa. Foram desenvolvidas formas de criação, controle e condução do comportamento,da opinião e dos valores. Por acaso somos imunes ao assédio de televisão, rádio, out-doors, folhetos, jornais, revistas, veículos, lugares e meios usados para influenciar ocomportamento e a mentalidade humana? Seria o caso de cada um analisar seus própriosvalores, objetivos e opiniões sobre a realidade. E procurar os fundamentos, as fontes, asrazões e as conseqüências dos desejos, individuais e coletivos.

A sociedade é conseqüência do que somos, individualmente, dentro do coletivo.Não é possível se orgulhar de uma sociedade que ostenta tanta barbárie, miséria eignorância; ilhas com tanta fartura e ostentação, privilégios e desperdícios para poucos,uma grosseria, uma vergonha, uma insensibilidade, uma desumanidade. A maioria viveentre a ansiedade, a angústia e a miséria; entre a hipnose, a ignorância e as violênciascotidianas.

É preciso questionar a sociedade, sua estrutura injusta, covarde, hipócrita e suicida.É preciso se questionar a si mesmo, para perceber como reproduzimos os comportamentossociais induzidos, individualmente, nas nossas relações pessoais. E o quanto perdemoscom isso, na qualidade da existência e nas relações com o mundo.

A condução do quererPor: Eduardo Marinho

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Crônicas de estradaChovia muito. Quase não dava pra ver

o outro lado da rua. Entrei encharcado narodoviária de Barra Mansa, calças arregaçadas,descalço, sandálias havaianas presas nacintura, pela corda que servia de cinto eprendia, do outro lado, um rolo de fio de“alpaca” – arame cor de prata, que eu usavapra escrever nomes em forma de broches. Bolsade sisal atravessada do ombro, mochila médiaàs costas, cabelos longos e barba rala, tudopingando muito,subi as escadas que levavamao patamar das bilheterias e parei ao reco-nhecer, de longe, entre as duas figuras desta-cadas de verde, um conhecido da escola militar.Paletó verde-oliva, botões dourados, camisae gravata bege, duas estrelas em cada ombro.Um eu não conhecia, o outro fora meu colegade sala de aula e de setor na segunda compa-nhia. Adauto. Encostei numa pilastra ao ladodo fim da escada, sorrindo. Eu sabia que eleseguiria carreira. Imaginava toda a linha dosacontecimentos da vida dele. Terminara a es-cola que fazíamos, ingressara automaticamentena academia. Foi novamente bicho, calouro eveterano. Recebeu o espadim em solenidade etornou-se aspirante a oficial, por seis meses,eu acho. Daí a segundo tenente, por algunsanos e, automaticamente, “promoção” a pri-meiro tenente. Aí, mais anos passariam atéchegar a capitão. Depois disso, o critério daspromoções deixa de ser automático, passa aser “merecimento”, ou seja, relacionamentos,influências, “peixadas”.

Adauto ainda não me vira. Estavasentado de lado pra mim, esperava o outrocomprar as passagens no guichê. Eu, paradojunto à escadaria que acabara de subir. Derepente ele olhou direto pra mim- sem mereconhecer - mas, como estávamos distantesuns trinta metros, relanceou o olhar pro outrolado, em busca de algo perto dele que eu

pudesse estar olhando. Não encontran-do, olhou pra mim de novo, já começandoa achar estranho. Ele tinha a mesma cara,acrescentando um bigodinho fino sobreo lábio; eu estava irreconhecível para ele.Minha vida, meus valores, minha visãode mundo, minhas buscas, ele não faziaa menor idéia de nada. Minha imagem,pra ele, eu sabia estranhíssima, descalço,cabeludo, pingando e encarando. Naterceira olhada ele já tinha franzido assobrancelhas, quando chegou o outrotenente. Adauto falou algo perto do seuouvido e os dois me olharam. Falaramentre si, pegaram suas bagagens e vieramna direção da escada, agora os dois meencarando.

A tendência era a agressividade,mas o meu meio sorriso os desarmava.Quando passavam a dois metros de mim,soltei baixo e melódico “Adauto”... Eledeve ter tomado um choque, porque, comum pulo, agarrou meu braço, gritando“quem é você? QUEM É VOCÊ?” – “cal-ma, Adauto”- “de onde você meconhece?”- “larga meu braço, Adauto”– “DE ONDE VOCÊ ME CONHECE?”-“vai me agredir, Adauto? Vai me pren-der?” Ele se recompôs, constrangido,largou meu braço “não, tudo bem, masfala quem você é”. O outro tenente secolocara em posição de cortar uma rotade fuga, preferi não ver. “Sou o Marinho,da preparatória, lembra não?” Ele bus-cou nos arquivos mentais, ficou meioaturdido ao lembrar –“Marinho?”- mu-dou o tom pra estarrecido – “Mari-nho?!”- e, ao me olhar de cima a baixo,foi ficando penalizado –“Marinho!”. Suaexpressão era a da mais profunda deso-lação – “meu Deus! O que aconteceu comvocê? Como é que você caiu nessa?”-

Por: Eduardo Marinho

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AGO-SET/2010

eu continuava sorrindo, tranqüilo, ele de-monstrava confusão –“morreu alguém dasua família?”- eu ria, abertamente, “não,não”- “foi mulher?”- gargalhei -“quê isso,cara, eu tô bem, tô legal!”- “ah, não tá, não.O que aconteceu com você? Como é que cêcaiu nessa?”- “paga uma cerveja e eu te con-to”- “eu pago, cê tem que me contar que queaconteceu.”

Fomos a um boteco em frente à ro-doviária, Adauto e eu, o outro ficou. Sen-tados, com uma cerveja no meio, discorri paraele sobre minha trajetória até perceber quenão me enquadraria de maneira formal naestrutura social. “Por que não segui acarreira? Teria me tornado um oficial doexército”, era sua questão. Eu lhe disse comoencarava o papel dos militares na sociedade.Lembrei de como apontamos fuzis para umamultidão desarmada. Falei que os militares,com essa de não questionar ordens, nãodefendiam a população. Que as ForçasArmadas eram usadas pra manter privilégiosda minoria rica e reprimir qualquer revoltaou manifestação dos sabotados, da maioria.Ele não estava preparado. Não conseguiame encarar. Eu observava seus olhosinquietos procurando os debaixos dasmesas, as laterais do boteco, enquanto eufalava no uso dos militares para servir aosinteresses da minoria dominante. De como,

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em última análise, éramos jogados contraa população, espoliada das condiçõesbásicas de existência, a favor de umaconcentração absurda das riquezas dopaís, gerando miséria, ignorância, sofri-mentos sem conta para a maior parte.Adauto não chegou à metade do primeirocopo. Alegou estar em cima da hora, derepente, apertou rapidamente a minha mãoe saiu sem pagar a cerveja. Eu fiquei o-lhando aquele jovem oficial, túnica verde-oliva, botões dourados, quepe na cabeça,atravessando a rua debaixo de chuva, emfuga. Terminei a cerveja, paguei, fui ao an-dar de cima da rodoviária, comprei a pas-sagem pro Rio e desci à plataforma doônibus. Para minha surpresa, Adauto e seucolega estavam na fila do mesmo ônibus.Quando olhei uma segunda vez, Adautohavia sumido. Entrei na fila, no ônibus,sentei na poltrona. Quando o motor foiligado para a partida, entrou o Adauto,passou por mim com um aceno e um sorrisoamarelo e foi pro fundo do veículo. Eu nãohavia dormido à noite, apaguei antes dechegar à estrada; quando acordei, narodoviária do Rio, era o motorista que mesacudia –“chegou, chegou, rodoviária!”.Não havia mais ninguém no ônibus.Adauto tinha ido embora, com seu colegae sua confusão.