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BOLETIM CULTURAL CIRA 12 | Percursos do Património e da História 1 CIRA BOLETIM CULTURAL 12 (2014-2015) Percursos Do Património e da História Câmara Municipal de Vila Franca de Xira

Percursos Do Património e da História · de Conversa, que decorre no Núcleo de Alverca do Museu Municipal desde 2008, também com a colaboração de investigadores externos, com

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BOLETIM CULTURAL CIRA 12 | Percursos do Património e da História 1

CIRA BOLETIM CULTURAL 12

(2014-2015)

Percursos Do Património

e da História

Câmara Municipal de Vila Franca de Xira

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CIRA BOLETIM CULTURAL 12 (2014-2015)

Percursos Do Património e da História

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Ficha técnica

PropriedadeCâmara Municipal de Vila Franca de XiraPelouro da CulturaVice-Presidente - Fernando Paulo FerreiraDepartamento de Educação e CulturaDireção - Fátima Faria RoqueDivisão de Cultura Turismo Património e MuseusMuseu Municipal – Núcleo de Alverca (MM-NA)

EdiçãoCâmara Municipal de Vila Franca de XiraMuseu Municipal - NAwww.cmvfxira.pt Coordenação geralFátima Faria RoqueCoordenação da ediçãoGraça Soares NunesTextosDavid Silva, Graça Soares Nunes, João Miguel Salgado, Maria Adelaide Ferreira, Maria Paula Carvalho, Nuno J. C. Campos, Osvaldo Pires, Paulo Silva, Rute RamosDesign e paginaçãoCâmara Municipal de Vila Franca de Xira-DIMRP- Carla FélixEdição CD ROM 100 exemplaresData da ediçãoMaio de 2015

Os artigos são da inteira responsabilidade dos autores ISSN 2183-4679

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Índice

Apresentação

Presidente da Câmara Municipal

Alberto Mesquita ................................................................................................................................................ P 05

1. SALVAGUARDA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

A Muralha do Castelo de Alverca na Memória Coletiva Local – aspetos de conservação e restauro

Miguel Salgado ................................................................................................................................................... P 07

O projeto Geocaching no concelho de Vila Franca de Xira

Maria Adelaide Ferreira e Osvaldo Pires .............................................................................................................. P 05

2. DA ÉPOCA MEDIEVAL AO PERÍODO MODERNO

A beneficência em Alverca e os hospitais na Idade Média

Rute Ramos ........................................................................................................................................................ P 05

A heráldica carmelita

Nuno Campos ..................................................................................................................................................... P 05

A “CORNAGA” DE VILA FRANCA. Algumas notas em torno de um suposto mito fundacional

David Silva .......................................................................................................................................................... P 05

D. António de Ataíde (1500-1563), 1º Conde da Castanheira – Vida e Obra

Paulo Silva .......................................................................................................................................................... P 05

Etapas, setores e empresários do desenvolvimento industrial no Estuário do Tejo (1850-1890)

Graça Soares Nunes ............................................................................................................................................. P 05

A vinha da Quinta Municipal de Subserra através dos tempos

Maria Paula Carvalho ........................................................................................................................................... P 05

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APRESENTAÇÃO

A publicação periódica Boletim Cultural Cira 12 procura dar a conhecer ao público em geral e à comunidade científica, a investigação desenvolvida em torno das temáticas da história e património da região de Vila Franca de Xira, promovidas e desenvolvidas por colaboradores do município e, também, por investigadores externos.

A primeira edição desta revista data de 1986, havendo alguns números temáticos: o nº 7, dedicado ao antigo concelho de Povos; o nº 8, às Quintas de Recreio e Agrícolas do Concelho de Vila Franca de Xira e o nº 9, dedicado ao Projeto Sócrates - Museus, mediadores e educação de adultos, tendo sido cofinanciado pelo antigo Instituto Português de Museus, atual Direção Geral de Património Cultural (DGPC) /Rede Portuguesa de Museus.

O n.º 12 que agora se apresenta usufrui da pesquisa desenvolvida em torno do programa Tardes de Conversa, que decorre no Núcleo de Alverca do Museu Municipal desde 2008, também com a colaboração de investigadores externos, com o tema: Percursos Do Património e da História.

Nesta edição apresentamos um conjunto de trabalhos académicos e técnicos especializados, divididos em dois temas: A salvaguarda e educação patrimonial e Da época medieval ao período moderno.

O primeiro painel integra um conjunto de artigos sobre estudos de caso sobre património e as boas práticas de preservação, conhecimento e divulgação. No segundo expomos um conjunto de artigos de carácter histórico que vão desde o período medieval até ao período moderno.

A Cira 12 é a segunda edição digital, que será também disponibilizada nos sítios Web do município e em CD-ROM.

O Presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.

Alberto Mesquita

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1 SALVAGUARDA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

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A Muralha do Castelo de Alverca na Memória Coletiva Local – Aspetos de Conservação e Restauro.

João Miguel Salgado1

Resumo - Tendo em conta aquilo que se sabe sobre o antigo castelo de Alverca e a importância deste na memória coletiva da população da cidade, defende--se a conservação dos vestígios das muralhas ainda existentes e a valorização da área urbana antiga no alto de Alverca. É feita a descrição e o diagnóstico do estado de conservação das estruturas, bem como uma proposta fundamentada de intervenção de conservação e restauro.

Palavras-chave: Conservação e Restauro, argamassas, salvaguarda e reabilitação do património edificado.

Do castelo de Alverca do Ribatejo resta-nos a noção romântica de uma estrutura

militar da época medieval com muralhas a envolver todo o aglomerado urbano no alto

do morro. A memória coletiva da maioria dos alverquenses, nativos ou adotivos, apro-

xima-se certamente desta imagem. Se passearmos pelo alto do monte onde outrora se

impunha o castelo, verificamos a excelente vista panorâmica do horizonte quer a Sul

sobre as lezírias e o estuário do Tejo quer a Norte sobre toda a vertente dos montes da

serra da Aguieira. Assim, havendo a necessidade de construir uma estrutura militar nas

proximidades, vemos que seria aqui o local perfeito.

Na verdade, os vestígios que ainda hoje testemunham a sua existência, permitem-

-nos imaginar essa estrutura em blocos de pedra que protegia a povoação de possíveis

invasores. Os dois panos de muralha com o seu cunhal em grandes pedras aparelhadas

de calcário e um pequeno vestígio de uma estrutura de pedra semelhante, este mais

para o lado Oeste, no entroncamento da Rua do Outeiro na Rua do Moinho, permitem-

-nos conjeturar o percurso da antiga muralha do castelo (ver fotos 1, 2 e 3). A antiga

documentação que se conhece evocando o Castelo2 não nos permite avançar muito

mais no que diz respeito à sua configuração original.

1 Técnico Superior de Conservação e Restauro na Câmara Municipal de Vila Franca de Xira. Especialista em Conservação e Restauro de Pintura pela Escola Superior de Conservação e Restauro de Lisboa e licenciado em Conservação e Restauro no Instituto Politécnico de Tomar.2 Fragmentos de Alverca: História e Património, Setembro de 2009, págs. 35 e 36.

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Fig.1 - Vista dos vestígios da muralha no local onde o castelo se erguia. Foto – Miguel Salgado, 2014.

Fig.2 - Pequeno vestígio do que resta de uma estrutura em pedra muito semelhante à construção das muralhas do castelo. Situado no entroncamento da Rua do Outeiro com a Rua do Moinho. Foto – Miguel Salgado, 2014.

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Fig.3 - A linha vermelha representa uma proposta do percurso da muralha do castelo de Alverca (autoria da proposta de Anabela Ferreira). Orto foto mapa - CMVFX.

Sabemos que muito cedo o castelo perdeu a sua importância nas linhas defensivas,

caindo no esquecimento. Muito embora não se conheçam descrições factuais, percebe-

-se que após o terramoto de 1755 houve a necessidade de recuperar todo aquele espa-

ço, tendo-se construído sobre as suas fundações um conjunto de casas que desempe-

nharam um papel importante na vivência da povoação de Alverca. Um antigo esquiço3

que representa o mapa da zona do castelo, desenha-o já com a configuração de uma

casa (ver fotos 4 e 5) de acordo com o que hoje se observa nas construções existentes

em cima da muralha que resistiu ao tempo.

Muito importante para a compreensão das estruturas e modos de vivência do passa-

do é o trabalho de arqueologia, que aqui não foi descurado. Desde os anos 80 do século

passado decorreram três escavações arqueológicas4 nas imediações do castelo, sendo

uma delas na Travessa do Castelo e na Rua do Castelo sob a orientação dos arqueólogos

do município, Dr. João Pimenta e Dr. Henrique Mendes. Muito embora estes trabalhos

nos confirmem a permanência de ocupação humana desde o período romano, no que

diz respeito às estruturas do castelo e das muralhas não nos permitem ainda obter

conclusões. Em 2005, o município de Vila Franca de Xira promoveu um estudo urbanís-

tico5 que consistiu no levantamento pormenorizado e classificação de todo o parque

urbano da cidade de Alverca, incluindo cada casa do centro antigo, de forma que nesta

3 InformaçãoefotografiadodesenhocedidopelaDra.AnabelaFerreira.4 EscavaçãodeemergêncianaedificaçãodaIgrejadeJesusCristodosSantosdosÚltimosDias (Rui Parreira, 1986); Escavação na área da antiga Casa da Câmara(NunoGamboa,2004);Acompanhamentodeobradeaberturasdevalasnasruasadjacentes(JoãoPimentaeHenrique Mendes, 2006).5 Estudo de Salvaguarda do Centro Antigo da Cidade de Alverca (URBLEME, 2005).

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zona se possam identificar com clareza as casas com interesse urbanístico, arquitetu-

ral e cultural (ver foto 6). De acordo com este estudo, muitas das casas desta zona são

consideradas como de Valor Testemunho e Imóveis de Acompanhamento. No entanto

por se tratar de pequenas casas de construção popular sem grandes condições de ha-

bitabilidade e cujo valor comercial é desprezível, estão votadas ao abandono. Atenden-

do ao contexto do conjunto urbanístico, estas casas caracterizam os pequenos Largos

inseridos na presumida área antiga entre muralhas, como é o caso do Largo do Outeiro

bem como a própria Rua do Outeiro. Neste sentido, penso que não é justa a afirmação

de que do Castelo de Alverca só nos resta a toponímia, sendo certo que ainda subsiste

matéria para preservar e através dela salvaguardar todo o Centro Histórico de Alverca,

permitindo-nos a compreensão histórica e cultural deste espaço.

Fig.4 - Vista aérea da zona antiga de Alverca. No lado direito superior da imagem, observa-se a Igreja de São Pedro e mais em cima o aglomerado de casas construídas sobre as fundações do Castelo. Foto MMVFX.

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Fig.5 - Pormenor do antigo desenho que representa o Castelo com a forma de uma casa (canto inferior direito) e o traçado geométrico das ruas que lhe dão serventia. Foto - AN/TT. Núcleo Antigo, Tombos e Demarcações,Cx.271 Liv.25 (Parte. III) -1590.

Fig.6 - Mapa demonstrativo do levantamento e classificação dos edifícios existentes, Estudo de Salvaguarda do Centro Antigo da Cidade de Alverca (URBLEME, 2005).

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Considerando a forte presença destas estruturas na memória coletiva das pessoas

de Alverca, que lhes confere valor patrimonial, e sabendo do seu mau estado de con-

servação, que se evidencia nas fotografias aqui apresentadas, julgo que é indispensável

promover uma intervenção de conservação que restabeleça a coesão das estruturas e

minimize a erosão futura destas. A metodologia da intervenção deverá respeitar as téc-

nicas e os materiais que compõem os vestígios das muralhas, salvaguardado a sua inte-

gridade e, simultaneamente, favorecer a leitura visual destas estruturas, evidenciando

todas as características que chegaram à atualidade. Os materiais já aplicados nas várias

intervenções anteriores, quando tenham importância estrutural, deverão ser mantidos6,

sendo necessário melhorar alguns aspetos estéticos para estabelecer uma leitura do

conjunto o mais homogénea possível. Torna-se assim evidente que para a valorização de

toda a área envolvente é essencial a colaboração das entidades particulares que habi-

tam ou têm propriedades nas imediações dos elementos patrimoniais (ver fotos 7, 8 e 9).

Fig.7 - Aspeto da área envolvente, que carece ser beneficiada. Foto-Miguel Salgado,2014.

6 Excetuando as aplicações de cimento tipo Portland que deverão ser removidas se se reunirem as necessárias condições técnicas para aexecuçãodostrabalhos.

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Fig.8 - Aspeto da área envolvente, que carece ser beneficiada. Foto-Miguel Salgado,2014.

Fig.9 - Aspeto da área envolvente, que carece ser beneficiada. Foto-Miguel Salgado,2014.

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A intervenção de conservação que se propõe está de acordo com os princípios éti-

cos exigíveis a qualquer intervenção em objetos culturais. Muito resumidamente, os

materiais aplicados deverão ser reversíveis e compatíveis com os materiais constituin-

tes, e a intervenção deverá ser mínima, tendo como objetivo primeiro a consolidação

dos materiais existentes e a manutenção da integridade do objeto. Neste sentido, o

acompanhamento da obra por um técnico de conservação e restauro será indispen-

sável, uma vez que poderá ser necessário alterar metodologias ou procedimentos no

decurso dos trabalhos.

A área da muralha a intervencionar é essencialmente composta por duas grandes

paredes, uma virada a Este e outra a Norte, esta visível nas fotos abaixo (ver fotos 10 e

11). A superfície das muralhas aproxima-se dos 1000m.2 Mais a Oeste, pode observar-se

também o vestígio de uma estrutura em pedra de construção muito semelhante à da

muralha: trata-se do cunhal que remata duas paredes que sustentam uma casa mais

recente. Na parede virada para a rua, surge um friso que poderia ser o arranque para

uma estreita varanda (ver foto 12).

Fig.10 - Vista panorâmica a partir da Rua dos Lavadouros-Alverca. Foto-Miguel Salgado,2014.

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Fig.11 - Vista panorâmica a partir da Rua 9 de agosto de 1990. Foto-Miguel Salgado,2014.

Fig.12 - Vestígio da muralha do Castelo que se encontra mais Oeste. Foto-Miguel Salgado, 2014.

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A partir de uma breve observação no local foi possível diagnosticar o estado de de-

gradação avançado que a muralha apresenta. Encontram-se grandes áreas com ausên-

cia de blocos de pedra, e as juntas entre os blocos, incluindo os do cunhal, encontram-

-se abertas. Os rebocos ainda existentes apresentam um grau elevado de colonização

biológica e grandes áreas de argamassa em desagregação.

O envelhecimento das argamassas origina inicialmente a perda de adesão e de coe-

são provocando a queda do reboco (ver foto 13). Ao ficar a nu e desprotegida, a pedra

fica também ela sujeita à ação da erosão, tanto pelo vento como pelas águas pluviais. O

contínuo processo de erosão vai gradualmente contribuindo para a instabilidade estru-

tural da muralha. Inicialmente verifica-se o desgaste da argamassa das juntas, que vai

progredindo e retirando aos blocos de pedra a sustentação, originando a sua queda e

provocando assim depressões na parede. Estas irregularidades na superfície permitem

a progressão da erosão de forma mais acentuada. Este processo constante determinou

a perda total da parede da muralha e um forte desgaste no único cunhal visível. A pre-

sença de vegetação (plantas superiores) quer nos planos horizontais quer nos interva-

los dos blocos de pedra ao longo da parede favorece a desagregação das argamassas,

tornando-as mais vulneráveis à erosão climática (ver foto 14). Os blocos de pedra apre-

sentam, de uma forma geral, um desgaste acentuado, manifestando processos de esfo-

liação e de alveolização nas faces visíveis. Este desgaste é o responsável pelo formato

arredondado e superfícies com orifícios que os blocos apresentam (ver foto 15).

A muralha encontra-se bastante alterada pelas sucessivas intervenções anteriores

de consolidação da parede. A aplicação de pedra diferente da original e de tijolo, bem

como de argamassas de cimento tipo Portland ou argamassas de cal de coloração di-

ferente da aplicada na sua construção, desfavorece o conjunto, descaracterizando o

aspeto original da muralha (ver foto 16 e 17). No lado direito da muralha, onde surgem

edificações no plano superior, verifica-se a aplicação de reboco em toda a área da pa-

rede, com grandes interrupções e perdas de material. Mais à direita, no plano inferior,

encontram-se pequenas construções recentes com blocos de material comentício visí-

vel. No lado oposto existe um muro, constituído por vários materiais, que assenta so-

bre a rocha (ver foto 18 e 19). As paredes das pequenas construções recentes deverão

ser contempladas com a aplicação de reboco de cal hidráulica e caiadas de forma a

dissimular-se no conjunto.

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Fig.13 - Pormenor da muralha onde é visível a ausência de juntas entre os blocos de pedra, a perda de ma-terial devido à erosão e a presença de colonização biológica. Foto-Miguel Salgado, 2014.

Fig.14 - Aspeto da muralha onde se observa o crescimento de plantas infestantes de porte superior e colo-nização biológica nos rebocos. Foto-Miguel Salgado, 2014.

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Fig.15 - Neste pormenor da muralha a ação da erosão manifesta-se quer na perda de material quer nos pro-cessos de esfoliação e de alveolização da superfície das pedras. Foto-Miguel Salgado, 2014.

Fig.16 - Uma intervenção antiga que não respeitou as características da construção da muralha mas estabe-leceu a sustentabilidade suficiente para evitar a derrocada do elemento superior que sugere o arranque de um pavimento. Foto-Miguel Salgado, 2014.

Fig.17 - Aspeto desordenado da superfície da muralha onde se observa uma grande intervenção de conso-lidação do muro sem respeitar a tipologia de construção existente. Foram aplicadas pedras diferentes e foi usado cimento tipo Portland para preencher vazios na parede. Foto-Miguel Salgado, 2014.

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Fig.18 e Fig.19 - Edificações no plano superior da muralha e pequenas construções recentes. Observam-se grandes áreas de lacunas no reboco existente. Foto-Miguel Salgado, 2014.

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A execução do trabalho deverá passar sucessivamente por ações de desinfestação

das colónias biológicas e plantas superiores, ações de limpeza e remoção de matéria

orgânica nas juntas dos blocos de pedra e planos horizontais com depósitos, lavagem

dos rebocos existentes e preenchimento de todas as juntas e lacunas de reboco com ar-

gamassa de cal e areia. A intervenção proposta pode ser sistematizada resumidamente

na seguinte sequência de operações:7

a) Aplicação de biocida por aspersão, em toda a área de parede existente com e sem reboco, e aplicação de herbicida sobre as plantas infestantes. Esta operação deve ser repetida uma semana depois, seguindo-se um período de secagem de quinze dias. É essencial que se proceda a esta operação com tempo seco e vento fraco. Nesta fase a acessibilidade poderia ser assegurada sem se recorrer à montagem de andaimes.

b) Abertura de roços no pavimento térreo ao longo da muralha para escoamento con-trolado de águas utilizadas na limpeza e montagem de andaimes de acordo com a legislação em vigor.

c) Remoção de rebocos apodrecidos e limpeza manual de rebocos e das superfícies de pedra com escovas de pelo macio e médio, e com água corrente em abundância. Re-moção de plantas e matéria orgânica acumulada com passagem final de água.

d) Remoção de elementos metálicos, canos e cimentos que não têm funcionalidade.e) Aplicação de argamassa de cal e areia nas juntas de pedra e lacunas de reboco após

testes de constituição do traço da argamassa e testes colorimétricos, para aproxima-ção do traço da argamassa de tratamento à argamassa predominante existente na mu-ralha. Capeamento dos muros da muralha.

f ) Aplicação de argamassa de cal hidráulica convencional nas edificações recentes, nas paredes viradas ao observador.8

g) Aplicação com pincel de água de cal nos rebocos envelhecidos (como consolidante) e caiação geral. Operação a executar com os rebocos secos e de forma controlada para não sujar a superfície das pedras abaixo.

h) Capeamento do muro que se prolonga pelo lado esquerdo da muralha; beneficia-ção do piso adjacente à muralha e substituição de cercas de limite de propriedade.9

Após a execução dos trabalhos deverá ser estabelecido um plano de manutenção do

espaço que integre a aplicação de biocida e de herbicida anualmente quer diretamente

nos elementos constituintes da muralha quer nas áreas ajardinadas e zonas de lazer

envolventes a criar, bem como o desenvolvimento de um projeto de iluminação na área

de forma a evidenciar as muralhas no contexto urbano atual.

7 EstapropostadeintervençãofoiapresentadanumdocumentointernodoDepartamentodeEducaçãoeCulturadaCâmaraMunici-paldeVilafrancadeXiranoanode2013,apóssolicitaçãodaJuntadeFreguesiadeAlvercadoRibatejo.8Oenvolvimentodosproprietáriosdasedificaçõeseterrenosdaáreaenvolventeéessencialparalevaracaboostrabalhos.9 Idem

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Um especto da conservação e restauro das muralhas que levanta alguma polémica

é a aplicação de reboco na íntegra nos panos da muralha. Do ponto de vista da con-

servação do património cultural existem duas situações em que se pode defender a

necessidade de aplicar o reboco em toda a superfície das paredes. A primeira verifica-

-se quando a observação efetuado no local evidencia ser esse o acabamento original

da superfície da parede. Dado o estado de conservação das argamassas desta muralha,

não se podem fazer observações conclusivas. Uma segunda situação decorre do re-

conhecimento atual de que os rebocos eram efetivamente utilizados como forma de

proteção à construção, como se de uma pele se tratasse. Sabe-se ainda que a tipologia

das muralhas sem reboco consiste em blocos de pedra aparelhada e aplicada de forma

desencontrada criando uma malha ordenada formando linhas oblíquas onde a presen-

ça de argamassa é mínima. O mesmo não se passa quando está prevista a aplicação de

rebocos como forma de união e proteção da alvenaria aplicada. Neste último caso, as

pedras utilizadas não são uniformemente aparelhadas, estas são colocadas de forma

mais desordenada e a presença de argamassa e pequenas pedras para preenchimentos

de espaços vazios é preponderante (ver foto 20 e 21). No caso específico das muralhas

de Alverca observa-se que apenas o cunhal do troço maior se assemelha às característi-

cas do primeiro exemplo. Atendendo ao gosto romântico e à memória coletiva, onde a

aparência das muralhas deve incluir as pedras visíveis, poder-se-ia assumir um compro-

misso deixando as pedras do cunhal à vista. Esta questão exige um tempo de reflexão

por parte de todos nós.

Fig.20 - Observa-se os blocos de pedra geometricamente aparelhados e aplicados ordenadamente desen-contrados. Foto-Miguel Salgado, 2014.

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Fig.21 - Observa-se a aplicação desordenada dos blocos de pedra sugerindo que a intenção seria rebocar a parede na íntegra. Foto-Miguel Salgado, 2014.

Bibliografia de referência

Estudo de Salvaguarda do Centro Antigo da Cidade de Alverca, 1ª Fase - Diagnóstico, URBILEME, janeiro de 2005

(Texto Policopiado).

FERREIRA, Anabela, Fragmentos de Alverca: História e Património, Ed. Junta de Freguesia de Alverca do Ribatejo,

Setembro de 2009.

PIMENTA, João e MENDES, Henrique, Relatório da escavação e acompanhamento arqueológico no Castelo de Al-verca do Ribatejo (Vila Franca de Xira), Município de Vila Franca de Xira, Divisão de Património e Museus, janeiro de

2006 (Texto Policopiado).

PARREIRA, Rui, «Inventário do Património Arqueológico e Construído do Concelho de Vila Franca de Xira - Noticia da

parcela», Boletim Cultural 3, Ed. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1987/8, pág. 95.

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O Projeto Geocaching no Concelho de Vila Franca de Xira e a Educação Patrimonial

Maria Adelaide Ferreira 1 Osvaldo Pires2

Resumo- O Geocaching é um jogo (atividade lúdica) mundial com origem nos Estados Unidos da América, praticado por entusiastas da aventura e adrena-lina, equipados com aparelhos de GPS (Global Positioning System) que seguem os pares de coordenadas geográficas para o posicionamento final da cache ou «tesouro». Cada participante (geocacher), enquanto descobridor, procura as ca-ches escondidas por outros geocachers, e que podem ser localizadas/encontra-das através de pares de coordenadas geográficas disponibilizadas na página da Internet em: www.geocaching.com.

O Projeto Geocaching em Vila Franca de Xira foi lançado em 2012, no Dia Inter-nacional dos Monumentos e Sítios, 18 de abril, tomando como ponto de partida a dimensão internacional e as práticas locais, bem como as novas abordagens perante os novos desafios que vão surgindo para a prática da salvaguarda e divulgação do património.

O Geocaching, iniciado pelo Setor de Património do Museu Municipal em parce-ria com o Agrupamento de Escuteiros de Alhandra (CNE), visa a sensibilização dos públicos adeptos desta atividade, para a preservação ambiental e patrimo-nial do território concelhio.

Palavras-chave: Jogo, Terra, Aventura, Adrenalina, Desporto.

Nota IntrodutóriaA prática do Geocaching3 surgiu no ano 2000 nos Estados Unidos da América, pela

mão de Dave Ulmer. Em Portugal temos a referência do primeiro registo em junho de

2001. A atividade só se tornou possível devido ao fim da imposição da degradação do

sinal do sistema GPS denominado Selective Avail, em 1 de maio do mesmo ano. Dave

Ulmer colocou a primeira cache a 3 de maio de 2000, anunciando a sua localização no

nonewsgroup sci.geo.satellite-nav. A cache foi registada uma vez e encontrada duas ve-

zes no espaço de três dias.

1LicenciadaemHistóriaePós-graduadaemPatrimónioemProjetosCulturaispeloISCTE-InstitutoUniversitáriodeLisboa.TécnicaSuperior de História no Museu Municipal de Vila Franca de Xira. [email protected] 2 RepresentantedoAgrupamentodeEscuteirosdeAlhandra(CNE)[email protected] Geocaching–Atividadepraticadaaoarlivre.

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O Geocaching tornou-se assim popular, a custos reduzidos para os seus seguidores e

amigos das práticas de lazer ao ar livre. Esta atividade lúdica veio a obter um significa-

tivo crescimento em todo o mundo, conquistando cada vez mais adeptos, oferecendo

uma oportunidade de conhecer gente nova e novos lugares. Em janeiro de 2015 esta

atividade contava já com 2.546.279 caches ativas e com mais de 6 milhões de geocahers

em todo o Mundo. Portugal registava 31.994 geocaches ativas e registadas no site, re-

presentando cerca de 1.3% das caches existentes no Mundo.4

Fig. 1- Caches distribuídas por Portugal continental.

O que é o Geocaching?Geocaching é uma caça ao tesouro dos tempos modernos. Esta atividade ao ar livre

tem várias interpretações na sua classificação, inclusivamente entre os próprios geo-

cachers: desporto; caça; jogo; atividade; versão hi-tech da velhinha caça ao tesouro; ou

tão-somente pretexto para dar uns passeios ao ar livre, usufruindo da natureza na sua

plenitude.

A verdade é que a prática do geocaching pode obrigar a um esforço físico com algum

grau de dificuldade, dependente da localização da cache escondida, podendo também

exigir equipamento especial, tal como material técnico de escalada ou de mergulho.

Ainda assim, não deixa de ser acessível a todos aqueles que queiram desfrutar de um

belo passeio e conhecer novos locais com caraterísticas únicas, como por exemplo: os

parques públicos, monumentos, cidades, pequenos lugares, altas montanhas, ou mes-

mo os desertos longínquos.

4 Estesdadospodemservistosemwww.geocaching.com.

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GeocachesUma geocache ou simplesmente cache, consiste numa caixa hermeticamente fecha-

da e à prova de água, onde está escondido um pequeno «prémio», que é ocultado por

um geocacher para que outros geocachers o possam encontrar através das coordenadas

geográficas que estão publicadas numa página da Internet em: www.geocaching.com.

Apesar de as caches conterem pequenos objetos ou brinquedos, para recompensar

quem a encontrou (que deverá colocar algo para troca), muitas vezes o maior prémio é

a busca em si e o facto de, desta forma, ter a oportunidade de conhecer um local onde

nunca se tinha estado antes.

As geocaches têm uma escala de classificação que vai de 1 a 5, consoante o seu ní-

vel de dificuldade, ou seja o esforço necessário que um geocacher tem para encontrar

a cache e também de 1 a 5 conforme a complexidade do terreno e do acesso ao local

específico. O grau de dificuldade é assim diversificado. Existem caches escondidas em

parques públicos de fácil acesso, mas podem existir outras de uma grande comple-

xidade, que requerem do praticante uma boa preparação física quando este almeja

procurar o seu «tesouro» numa montanha, ou ilha ou mesmo nas profundezas de um

oceano.5 Cabe a cada um, decidir o tipo de cache que mais se adequa a seu estilo e

condição física. Para encontrar uma cache com a ajuda do GPS pode despender apenas

3 a 5 minutos, ou demorar várias horas ou vários dias, dependendo sempre da escolha

do geocacher.

Tipos de CachesAs geocaches podem estar escondidas em qualquer local, tanto podem estar per-

to da área de residência, submersas ou simplesmente numa rua da cidade. As ca-

ches implementadas no terreno têm sempre de atender à circunstância de dista-

rem entre si, obrigatoriamente, mais de 161 metros. Cada participante (geocacher)

procura a cache escondida e dispersa através de pares de coordenadas geográfi-

cas disponibilizadas na Internet. Existem diversos tipos de caches, sendo a mais co-

mum a chamada «Cache tradicional». Neste tipo de cache, o geocacher (owner)6

coloca um livro de registos, caneta ou lápis e uns pequenos brindes numa caixa her-

meticamente fechada, à prova de água. Depois de anotadas as coordenadas da cache

e em conjunto com outras informações sobre o local do esconderijo, estas são publica-

das, podendo ser vistas no Site internacional do Geocacching - www.geocaching.com.

Os geocachers – descobridores – leem as coordenadas no sítio da internet e, com os

5 Ageocachemaisprofundaestálocalizada2300mabaixodoníveldomar–pesquisaefetuadaporRicardoOliveiradoBancodeVoluntariado da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.6 Owner(dono)-Pessoaquecolocaacachenoterreno.

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recetores (GPS), procuram a cache e quando esta é encontrada, registam o achado na

respetiva página, ficando ao critério de cada geocachers retirar ou colocar objetos na

cache. Contudo, por norma, cada jogador troca objetos de pequeno valor, de modo a

haver sempre qualquer recordação para trazer.

É possível encontrar em algumas caches o que se denomina de travel bugs ou ge-

ocoins, ou seja, objetos que são movimentados de cache em cache, e cujos percursos

são registados online.

Podemos também encontrar outros tipos de caches:

Micro-cache – pequena caixa onde quase só cabe o livro de registos – as mais usuais

são caixas de rolo fotográfico de 35 mm;

Multi-cache - Este tipo de geocache envolve duas ou mais localizações distintas. A

primeira possui as coordenadas da seguinte e assim sucessivamente até se encontrar a

geocache final;

Cache - mistério - Este tipo de geocache envolve a descodificação de enigmas ou de

puzzles. Estes deverão ser desvendados para que os praticantes obtenham as coorde-

nadas finais da geocache principal;

Cache – evento – Um evento de geocaching pode ser organizada por geocachers

locais, ou associações de geocachers, com o intuito de promover o convívio e estreitar

laços de amizade entre todos os elementos da comunidade. A localização do evento é

fornecida pelas coordenadas publicadas;

Cache – virtual – As caixas virtuais consistem na descoberta de um local bonito ou

interessante ao invés de um recipiente. Os requisitos para registar uma cache virtual

podem ser diversificados, podendo ter uma ou mais perguntas sobre a sua localização.

Eartcache – É também um tipo de cache onde não se tem um recipiente físico. Uma

Earthcache é um lugar especial que as pessoas podem visitar para aprenderem mais so-

bre a ciência e os fenómenos naturais do nosso planeta. As páginas das Earthcaches in-

cluem um conjunto de explicações, juntamente com as coordenadas do local a visitar.

Ao visitarmos as Earthcahes podemos observar como o planeta foi formado por pro-

cessos geológicos ao longo dos anos, ou lidarmos com os recursos naturais. Em geral é

um local onde os cientistas conseguem reunir informações sobre a formação da Terra.

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Eventos A comunidade de geocachers é cada vez maior em todo o mundo, inclusive em

Portugal, mas além do desafio da busca de pequenos tesouros, esta comunidade gosta

de se juntar para confraternizar em eventos. Estes visam de uma forma geral, a prática

de uma atividade física ou são apenas encontros (meetup) para troca de experiências

e histórias passadas muitas vezes num picnic, caminhada ao ar livre, ou ainda fazendo

Cache in Trash Out (CITO).7

Este evento consiste na remoção do lixo das áreas onde se pratica geocaching, bem

como a remoção de espécies vegetais invasoras e tentativa de reflorestação ou cons-

trução de trilhos. Esta é uma das características que diferencia o geocaching de outras

atividades, o esforço e o empenho que os seus praticantes dedicam à limpeza de par-

ques ou praias no sentido de preservar a natureza, com o intuito de criar uma cons-

ciência ambientalista. É usual a realização de eventos CITO, listados em http://www.

cacheintrashout.com/ e que envolvem milhares de geocachers em todo o mundo, lim-

pando uma determinada área em particular.

Pequenos e diversos eventos realizam-se por todo lado e diversas vezes ao ano,

podendo ocorrer anualmente os chamados Mega Eventos. Estes são organizados com

vários meses de antecedência, contando muitas vezes com mais de 500 participantes

durante vários dias.

Regras BásicasPara a prática do Geocaching basta ter acesso à internet, um GPS e vontade de sair

do conforto do sofá partindo à aventura. No entanto, tal como para muitas das práticas

ao ar livre, esta atividade também carece de algumas regras básicas para que decorra

sem precalços.

• É importante que o equipamento, acessórios e mantimentos sejam adequados,

de acordo com o tipo de «caçada» que se vai realizar.

• É fundamental evitar ir sozinho. Esta atividade, para além de ser mais divertida e

gratificante ao fazer-se acompanhada, por permitir a troca de experiências, refor-

ça igualmente a segurança dos geocachers.

• É importante que os geocachers tenham consigo mapas da zona, pois o GPS in-

dica qual a direção a seguir para se chegar à cache, mas não contempla as infor-

mações sobre eventuais obstáculos que possam existir no caminho, tais como

vegetação densa, cursos de água ou variações bruscas e acentuadas do terreno.

7 CacheinTrashOut(Cito)-Encontrosdegeocachersqueincidemsobrealimpezadelixo,remoçãodeespéciesinvasoras,esforçosdereflorestaçãoouaconstruçãodetrilhos.

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• É essencial que o praticante leve consigo um reservatório com água potável; para

além de ser uma bebida insubstituível, pode também ser útil para limpar peque-

nas feridas no caso de haver ligeiros acidentes.

• É indispensável ler com atenção a informação disponibilizada na página da In-

ternet acerca da cache que se vai visitar. Há que ter em conta todas as dicas refe-

rentes à cache, seja aos registos anteriores, seja aos coeficientes de dificuldade

e terreno anunciados e os requisitos a que esta obriga. Evita-se assim, surpresas

desagradáveis.

• Por vezes o geocacher (descobridor) pode ter a tentação de alterar o esconderijo

da cache. É obrigatório deixar tudo exatamente como encontrou. Só deste modo

o próximo geocacher usufruirá da procura tal como foi idealizada pelo seu ow-

ner. Este estará aberto a sugestões que possam melhorar o esconderijo, podendo

ser feitas no seu registo de visita ou através do site.

• Os pequenos brindes colocados na cache devem respeitar sempre uma das re-

gras fundamentais do geocaching, que é de nunca deixar qualquer tipo de comi-

da dentro do recipiente, por se tornar um alvo fácil para os animais que a pode-

rão destruir. O não cumprimento desta norma pode ditar o fim de uma cache. As

lembranças poderão ser desde uma simples borracha, um PIN, lápis, baralho de

cartas, porta-chaves, etc.

• Depois de encontrar a cache é importante que todos os geocachers assinem o

logbook, colocando a sua identificação, data, e se for possível, escrever breves

palavras sobre o tesouro encontrado.8 Há quem utilize carimbos ou autocolantes

personalizados. Ao levar a lembrança que se encontra na cache todo o geocacher

deverá deixar outra de igual ou maior valor.

• De volta a casa, o geocacher deverá partilhar as suas impressões sobre a desco-

berta do dia. Para tal, deverá aceder à página da cache que se encontra em www.

geocaching.com, ir à opção log your visit, fazendo um dos seguintes registos:

Found it - Quando se encontrou a cache tal como planeado.

• Didn’t find it – Quando não se encontrou a cache, sendo que este tipo de registo

é importante, porque servirá para o dono da cache ter a perceção da «boa saúde»

da mesma. Se houver diversos geocachers a registar que não encontram a cache,

pode ser que tenha sido vandalizada, havendo então necessidade de a repor.

Attended it – Quando o geocacher participou num evento.

8 Seforumamicrocache,nemsempreépossíveldeixarmuitomaisescritoparaalémdonomeedata,porserexíguootamanhodologbook.

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Needs maintenance – Se a cache está a precisar de manutenção, que tanto pode ser

a necessidade de um logbook novo, de um lápis ou se o container se encontra em más

condições.

Needs archived – Por vezes o geocacher pode sugerir que a cache seja eliminada. A

decisão de arquivar a cache é uma opção radical que apenas poderá ser efetuada pelo

dono da mesma, ou por um dos voluntários que gerem o website.

Muitos geocachers relatam comentários bem-humorados, colocando fotografias da

aventura, tomando contudo as precauções necessárias para não desvendar os segre-

dos da cache visitada, para que todos os outros visitantes possam usufruir do prazer da

procura e dos aliciantes da caça ao tesouro.

Objetivos do Geocaching ConcelhioTomando como ponto de partida a dimensão internacional e as práticas locais,

bem como as abordagens perante os novos desafios que surgem todos os dias, a prá-

tica do Geocaching pode ser uma boa aliada na salvaguarda e divulgação do nosso

Património. Esta atividade foi iniciada em 2012 pelo Setor de Património do Museu

Municipal, em articulação com o Agrupamento de Escuteiros de Alhandra (CNE),9

no «Dia Internacional dos Monumentos e Sítios», 18 de abril, subordinado ao tema «Do

Património Mundial ao Património Local: Proteger e Gerir a Mudança».(Fig. 2 e 3).

Fig. 2- Envolvente do Centro Interpretativo do Forte da Casa.

Dentro do espírito das Comemorações desse dia, o Município de Vila Franca de Xira

tinha como objetivo primordial demonstrar a capacidade de utilização das inovações

tecnológicas das últimas décadas na educação patrimonial, com o papel que estas

desempenham na difusão da informação, possibilitando uma tomada de consciência

9 NestadatafoiassinadoumProtocolodecolaboraçãocomosEscuteirosdeAlhandra(CNE).

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ambientalista e a necessidade de preservar o património local, bem como a sua salva-

guarda, divulgação e valorização, acentuando os esforços que requerem a sua proteção

e conservação.

A vulnerabilidade e a necessidade de conceder uma atenção contínua ao património

em geral, em particular ao concelhio, estiveram também presentes na génese do proje-

to Geocaching. Promover o Património e a História do concelho de uma forma didática

mas simultaneamente divertida, foi também uma das necessidades deste projeto. Não

esquecendo que a diversidade do nosso Concelho deve ser conhecida e usufruída por

todos aqueles que nos visitam, mas também por aqueles que vivem neste território

para que o sintam cada vez mais como sendo seu e algo em que vale a pena apostar e

acreditar.

Criar situações de aprendizagem e de educação patrimonial dos diversos públicos,

nomeadamente os aderentes à atividade do Geocaching, é fulcral, uma vez que a pre-

servação ambiental e patrimonial está no ADN dos geocachers, com os seus bem-suce-

didos meetup’s e a realização dos eventos específicos para a remoção do lixo de áreas

a proteger, os famosos CITO.

Fig. 3 - Alunos do Agrupamento do Forte da Casa no 18 abril de 2012.

A partilha de experiências, o gosto pela aventura, assim como a descoberta de locais

com interesse histórico-patrimonial são uma constante do nosso geocaching concelhio.

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Fig. 4 - O Geocaching e a Educação Patrimonial.

Os relatos dos amantes desta caça ao tesouro assim o divulgam e o promovem nos

seus comentários online. As caches estão localizadas em locais ricos em memórias e

pontos históricos do nosso concelho (Fig.5). Exemplo disso são as caches instaladas no

Observatório de Paisagem do Monumento a Hercules, no Cais de Povos, no Parque de

Santa Sofia, na Fábrica das Palavras, etc.

O cidadão comum que está divorciado da arte e da ciência e não encontra, por ve-

zes, nos espaços museológicos uma resposta para as suas interrogações. O Geocaching

Concelhio, com novos espaços de animação/educação, pretende também, de modo

informal levar o conhecimento do Património para o dia-a-dia de cada um. Considera-

mos que o objetivo está a ser conseguido, embora algumas das caches sejam frequen-

temente vandalizadas por aqueles que não querem, ou não respeitam, ou somente por

desconhecimento da prática do geocaching, (Muggles).

Fig.5 – Caches no Concelho de Vila Franca de Xira, onde se incluem as do geocaching concelhio

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Caches Visitas reaisVisitas virtuais

Nacionais Internacionais

Real Fábrica dos Atanados 117 718 146Os Deuses devem estar loucos!!! 167 700 23

Espaço de Memórias 28 Sem contador Sem contador

Cais de Povos 129 728 136

Ermida de S. José 379 1076 58

Espetáculo na forca 78 747 49

Alto aí ó Massena! Por aqui não passas… 40 Sem contador Sem contador

Ponta de Erva 57 619 67

Centro Interpretativo do Forte da Casa 115 711 56

Ermida de Alcamé 102 688 16

Fonte Velha 19 123 10

Quinta do Pinheiro 23 102 2

Quinta do Cochão 22 99 6

Cevadeiro 13 277 13

Parque de Santa Sofia 20 277 13

Fábrica das Palavras 15 277 13

Fonte de Santa Sofia 8 277 13

Fig. 6 – Estatística das visitas das caches concelhias até 31-01-2015.

Considerações finais: As novas tecnologias fazem parte do dia-a-dia das gerações mais jovens, que estão

familiarizadas com diferentes tipos de ecrãs. Através de experiências pedagógicas ino-

vadoras podem-se aproximar as crianças e os jovens do património envolvente. É fulcral

potenciar as suas tendências captando-as para a Educação Patrimonial. Podemos assim

concluir que esta espécie de caça ao tesouro, onde o GPS tem um papel preponderan-

te, conquista cada vez mais adeptos por todo o mundo, incluindo no Concelho de Vila

Franca de Xira, oferecendo uma oportunidade de conhecer gente nova e interessada

em experiências interativas e dinâmicas que se revestem de novos significados e com

novos métodos de aprendizagem.

Humor, criatividade e espírito aventureiro são requisitos essenciais, para os novatos

ou mais experientes partilharem os seus saberes associados ao Património e simultane-

amente, preservar o ambiente e com ele o Planeta Terra.

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Webgrafia

Consulta efetuada no dia 21 de Janeiro de 2015 pelas 11h00.

http://www8.garmin.com/specs/geocaching.pdf

http://www.geocaching.com/guide/

http://www.geopt.org/

http://www.geocaching.com/seek/nearest.aspx?country_id=159&x=13&y=9

http://paleoviva.fc.ul.pt/Geolgps/Geolgps01/Geolgps01.htm

Consulta efetuada a 22-01-2015 – 15.54 h.

http://p3.publico.pt/vicios/em-transito/12707/geocaching-caca-ao-tesouro-dos-tempos-modernos

Consulta efetuada a 23-01-2015 – 10.45 h.

http://www.cienciaviva.pt/veraocv/2009/downloads/Manual_Geocaching_Earthcaching_GeolVerao_2009%283%29.pdf

Glossário

Geocacher– Pessoa que participa na atividade do Geocaching. Cache - Caixa hermeticamente fechada e à prova de água, onde está escondido um pequeno tesouro.Earthcache – Tipo de cache sem recipiente físico de cariz didático.Owner – Dono/Pessoa que coloca a cache no terreno .Travel bugs – Pequenos objetos que viagem.Geocoins – Brindes que se podem encontrar nas caches.Cache in Trash Out (Cito) – Encontros de geocachers que incidem sobre a limpeza de lixo, remoção de espécies invasoras, esforços de reflorestação ou a construção de trilhos.Cachar – Encontrar a cache.Logbook – Pequeno bloco que se encontra dentro da cache onde são registadas as visitas dos geocachers.Trackable – Consiste numa espécie de “peça de jogo” do Geocaching que pode ser achada dentro de uma ca-che ou num encontro de geocachers. A cada Trackable é atribuído um número de controlo que é utilizado para registar movimentos no site www.geocaching.com durante as suas viagens pelo Mundo.FTF – Primeiro geocacher a encontrar a cache.DNF- Did Not Find– Acrónimo usado quando um geocacher não encontra a cache.TFTC – Thanks for the Cache – Acrónimo usado pelos geocachers para agradecer a cache descoberta com um sucesso.Muggle – Não geocacher. Expressão baseada nos filmes de Harry Potter que designa um não mágico.Ground Zero (GZ) – O ponto onde o GPS indica que chegámos às coordenadas da Cache.

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2 DA ÉPOCA MEDIEVAL AO PERÍODO ROMANO

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Os campos do hospital: os bens do Hospital de Todos os Santos no Ribatejo (Séculos XVI-XVIII)

Rute Ramos1

Resumo - O Hospital de Todos os Santos, planeado por D. João II desde 1479 e inaugurado em 1501 por D. Manuel I, foi o maior e mais importante hospital português do Antigo Regime. Para sobreviver, a instituição recebeu bens pro-venientes dos hospitais integrados pela Bula de 13 de Agosto de 1479, legados não cumpridos, doações e privilégios concedidos pela Coroa e por particulares. Um património geograficamente disperso que contou com avultados bens no Ribatejo. É precisamente sobre as propriedades que o hospital tinha no Ribate-jo e o tipo de rendimento que daí resultou que este texto incide.

Palavras-chave: Hospitais, Assistência, Ribatejo, Património, Período Moderno.

O século XVI constitui um ponto de viragem na história da Europa que, a partir de

meados do século XV, começou a matizar a herança política, intelectual e espiritual da

Idade Média com novos pontos de referência que conduziram a mudanças e conflitos

políticos, económicos, sociais e ideológicos na centúria seguinte. No século XVI, a po-

pulação e a economia passaram por um crescimento estrutural difícil. As mudanças,

radicais em vários setores, introduziram complexas consequências sociais, que pena-

lizaram sobretudo os mais desfavorecidos que acorreram às cidades, à procura de tra-

balho, assistência ou esmola. Num cenário onde a pobreza era endémica, as guerras

e as epidemias, nomeadamente a Peste Negra, levaram ao aumento exponencial da

vagabundagem e da mendicidade que, consequentemente gerou a necessidade de al-

terar as respostas sociais, como as práticas de caridade e assistência. Moldados pelos

valores cristãos, os hospitais foram as instituições que, por excelência, deram resposta

às novas necessidades. Difíceis de contabilizar, devido à facilidade com que se criavam

e se extinguiam, eram seguramente milhares os hospitais que se encontravam por toda

a Europa.2 No fim do século XV, a cidade de Lisboa e termo teria quase meia centena

destas instituições3, algumas das quais no Ribatejo. Encontramos referência a hospitais,

1 DoutorandadoProgramaInteruniversitáriodeDoutoramentoemHistóriadaUniversidadedeLisboa(ICS),InstitutodeSuperiordeCiênciasdoTrabalhoedaEmpresa,UniversidadeCatólicaPortuguesaeUniversidadedeÉvora).UE-CIDEHUS(UniversidadedeÉvora--CentroInterdisciplinardeHistória,CulturaseSociedades)[email protected]ênciasDocumentaispelaFaculdadede Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.2 ABREU, Laurinda, O poder e os pobres. As Dinâmicas Politicas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal (Séculos XVI--XVIII), Lisboa, Gradiva, 2014,p. 39.3 SegundoJoséMariaAntónioNogueiraacidadedeLisboaetermoteria42hospitais,4gafariase13albergarias.NOGUEIRA,JoséMaria António, «Algumas Noticias Acerca dos Hospitais Existentes em Lisboa e suas Proximidades Antes da Fundação do Hospital de Todos osSantos–15deMaiode1492»,Esparsos. Arqueologia, Etnografia, Bibliografia e História, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934, p.130.

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em Alverca, Aldeia Galega, Salvaterra de Magos (Hospital dos Cordovelos), um hospital

e albergaria em Alenquer e uma gafaria na vila de Povos. A distinção entre estas casas

assistenciais nem sempre era fácil, uma vez que se caracterizavam por elevados níveis

de indiferenciação dos serviços que prestavam, exceto as gafarias, devido ao carácter

contagioso da doença.4 A missão destas instituições era prestar assistência aos pobres,

aos órfãos e aos enjeitados, às mulheres, aos viajantes e aos peregrinos e a presença de

profissionais de saúde e a utilização de medicamentos era pouco comum ao contrário

do que sucedia nos grandes hospitais europeus, como o Hôtel Dieu de Paris ou o Hos-

pital de Santa Maria Nuova, em Florença.

Fundados pela Igreja, pelos reis e, a maioria por populares, os hospitais foram as

instituições caritativas que receberam mais legados pios, isenções e benefícios fiscais.5

No caso destas instituições tratarem de fundações privadas com obrigações pias era

necessário, conforme o direito canónico, pedir autorização papal para aplicar os seus

bens de modo diferente do que aquele que fora inicialmente disposto pelos instituido-

res. Este facto motivou frequentes súplicas à Cúria Romana para que interviesse nestas

matérias.6 E a Cúria efetivamente interferiu, sendo de extrema importância o papel que

teve na reorganização da rede hospitalar em Portugal, permitindo unir nas principais

localidades do reino os vários hospitais existentes numa única instituição.

O corolário destas tendências ocorreu durante o reinado de D. João II com a constru-

ção do Hospital de Todos os Santos, um processo desencadeado pela bula EX Debito

Sollicitudinis, dada a 13 de Agosto de 1479, pelo papa Sisto IV, e que autorizava o ainda

príncipe D. João a construir um hospital em Lisboa, incorporando nele outros hospitais

e casas assistênciais da cidade. Temos conhecimento de terem sido integrados no novo

hospital 22 instituições e não os 43, como se tem repetidamente afirmado.7

A centralização dos hospitais foi acompanhada pela inquirição sobre o estado das

capelas, hospitais e albergarias. Conhecedor da situação de desgoverno em que vi-

viam muitos institutos pios, D. Manuel I implementou uma reforma a partir do Juízo

das Capelas de Lisboa. O processo iniciou-se com a verificação da administração de

capelas, procedendo-se ao tombamento dos bens e à avaliação da legitimidade da sua

posse pelos seus detentores.8 Como instrumentos legais, o rei utilizou o Regimento das

4 Hospital de leprosos.5 ABREU, Laurinda, O poder e os pobres…, p. 39.6 PAIVA,JoséPedro,«AntesdaFundaçãodasMisericórdias», em JoséPedroPaiva(coord),Portugaliae Monumenta Misericor-diarum, vol. 2, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2003, p.18.7 RelaçãodoshospitaisqueseanexaramaoHospitaldeTodososSantosdeLisboaeseusencargosqueoreimandoucumprir.ParteII,mç.7,n.º166[23-09-1503];AN/TT,Hosp.S.José,liv.11878 Oprocessodetombamentodosbensdoshospitais,confrariasecapelasiniciou-seaindaemfinaisdoséculoXV.Sobreoassuntoveja-seROSA,MariadeLurdes,«OEstadomanuelino:areformadecapelas,hospitais,albergariaseconfrarias»,O tempo de Vasco da Gama, dir.DiogoRamadaCurto,Lisboa,1998,p.205.

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Capelas, hospitais e albergarias e confrarias da cidade de Lisboa elaborado em 1504.

No diploma, o rei D. Manuel I estabeleceu o regimento do contador dos resíduos. Nele

se explicava que o oficial régio deveria exigir aos administradores de capelas a pro-

va do direito de deter os bens, os tombos dos mesmos e uma conduta administrativa

apropriada. Este processo demonstrou a afirmação da autoridade da Coroa no que até

então era responsabilidade eclesiástica. Dez anos depois, publicou-se o Regimento de

como os contadores das comarcas hão-de prover sobre as capelas, hospitais, alberga-

rias, confrarias, gafarias, obras, terças e resíduos, estendendo a todo o território as me-

didas anteriormente aplicadas a Lisboa.9 Desta forma, o rei procurou controlar os bens

vinculados a obrigações de missa, acabar com a apropriação indevida, mas sobretudo,

fazer reverter para o recém-criado hospital os rendimentos provenientes destes insti-

tutos.10 E, neste contexto, não podemos, de todo, esquecer as avultadas quantias que

passaram a entrar nos cofres da instituição a partir da segunda metade do século XVI

fruto da comutação de legados não cumpridos.11

Fig.1 - O Hospital de Todos os Santos. Painel de azulejos. (1ª metade do séc XVIII).

O Hospital de Todos os Santos, à semelhança de outros hospitais europeus seguiu a

matriz organizacional do Hospital de Santa Maria Nuova de Florença. (Fig.1) O hospital

do Rossio, tal como os seus congéneres, foi criado sob um conjunto de orientações

muito precisas quanto à forma de funcionamento, serviços que deveria prestar e popu-

lações a assistir. Para este fim, gradualmente, ensaiaram-se no hospital novas técnicas

para cuidar dos doentes, criaram-se condições específicas para tratar determinadas do-

enças como a sífilis e os insanos, organizou-se a escola de cirurgia e desenvolveram-se

9 Paraumaanálisedetalhadadestestextosnormativosveja-seROSA,MariadeLurdes,As almas herdeiras: fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma como sujeito de direito (Portugal, 1400-1521),Lisboa,UniversidadeNovadeLisboa,2005,TesedeDoutora-mento, pp.185-190.10 SÁ,IsabeldosGuimarães,«AReorganizaçãodacaridadeemPortugalemcontextoEuropeu(1490-1600)»,Cadernos do Noroeste, vol. 11 nº 2, 1998, pp. 44-50. 11 Se os administradores de capelas não mandassem celebrar as missas ou os clérigos e religiosos as não dissessem no tempo que ofundadordacapeladeterminouodinheirodessasmissasreverteriaparaoHospitaldeTodososSantos,queoutilizariaembenefíciodosdoentes. Este movimento iniciou-se a partir de 1545 quando o papa Paulo III mandou aplicar ao Hospital de Todos os Santos os legados não cumpridos da cidade de Lisboa e termo. Esta determinação que foi ampliada a toda a diocese meio século depois pela bula de Clemente VIII de 5 de Fevereiro de 1598.

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as práticas de anatomia e enfermagem. Proibiu-se, ainda, o hospital de receber pacien-

tes portadores de doenças incuráveis e/ou contagiosas ou de servir de recolhimento

de mendigos.

O Hospital de Todos os Santos, tal como foi delineado no regimento dado em 150412

pelo rei D. Manuel I, pressupunha a existência de uma base económica que pudesse res-

ponder aos objetivos propostos. A maioria dos privilégios, benefícios e isenções13 foi concedida nos reinados de D. Manuel I e D. João III, e mantiveram-se até ao século XVIII.14 Cada reinado foi uma oportunidade para se confirmar e, nalguns casos, acrescentar privilégios o que demonstra o reconhecimento, por parte dos monarcas, da grandeza e utilidade que a instituição teve no campo assistencial. O Hospital de Todos os Santos e a Misericórdia de Lisboa que o administrou15 foram muito favorecidos, aliás, como foram as várias misericórdias e outras instituições de cariz assistencial do reino que continuamente receberam e viram confirmadas distinções outorgadas em reinados anteriores.16 Esta situação deve-se ao facto dos monarcas assumirem a caridade e a assistência como campos do exercício do poder régio.

Um senhorio no Ribatejo

Os rendimentos dos bens de raiz, adquiridos no decorrer da primeira metade do

século XVI, eram a principal fonte de receita do hospital. No período moderno era fre-

quente as instituições assistenciais dependerem fortemente de rendas provenientes de

bens imóveis, como foi o caso do Hospital de Santa Maria Nuova, em Florença.17 O mes-

mo sucedia, como nos mostrou Matthew Thomas Sneider, em Bolonha com os hospitais

de Santa Maria della Morte, Santa Maria della Vita, San Biagio e San Francesco. A receita

que os hospitais recebiam dos prédios rústicos eram especialmente importantes para

a sua vida financeira. As propriedades eram arrendadas ou geridas diretamente pelos

hospitais e nelas eram produzidos grandes quantidades de cereais, vinho e madeira,

12 Publicado pela primeira vez por CORREIA, Fernando da Silva (Pref.), Regimento do Esprital de Todolos Santos de El Rey Nosso Senhor de Lisboa, Lisboa, Laboratório Sanitas, 1946.13 Sobreosprivilégiosconcedidosaohospitalveja-se,DAUPIÁS,Nuno,Cartas de privilégio, padrões, doações e mercês Régias ao Hospital de Todos os Santos (1492-1775): subsídios para a sua história, Lisboa, [s.n.], 1959.14 SendoqueasprimeirasdoaçõeschegaramlogopelotestamentodeD.JoãoII.CARVALHO,AugustodaSilva,Crónica do Hospital de Todos os Santos, Reprod. Fac-similada da ed. de 1949, Lisboa, [s.n.], 1992, p. 27.15 Em1564,aMisericórdiadeLisboaassumiuogovernodohospital.Inicialmente,aadministraçãodoHospitaldeTodososSantosesteveacargodeprovedoresdenomeaçãorégia,amaiorpartecapelãesdoreiouservidoresdacasareal.Em1530,JoãoIIIentregouogovernodohospitalàCongregaçãodeSãoJoãoEvangelista.SANTOS,SebastiãoCosta,Catálogo dos Provedores e Enfermeiros-Móres do Hospital Real de Todos os Santos e do Hospital de S. José,Porto,TipografiadaEnciclopédiaPortuguesa,1918.16 Sobreosprivilégiosconcedidosàsmisericórdiasveja-se,entreoutros,SÁ,IsabeldosGuimarães,«AsMisericórdiasdafundaçãoàUniãoDinástica»,emJoséPedroPaiva(coord),Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 1, Lisboa, União das Misericórdias Portugue-sas, 2002, p.21.17 HENDERSON,John,The Renaissance Hospital: Healing the Body and Healing the Soul, New Haven, Yale University Press, 2006, p.61.

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que se destinavam ao consumo dos doentes, sendo o excedente vendido.18 Também

em Paris, segundo Tim Mchugh, o Hôtel Dieu usufruía de avultados rendimentos de

propriedades rústicas que possuía nos arredores da cidade e no Norte de França, além

de um vasto conjunto de imóveis em Paris.19

Em menos de um século depois de abrir as portas, o Hospital de Todos os Santos

tornara-se detentor de vários prédios rústicos e urbanos, localizados especialmente na

cidade de Lisboa e termo.20(Fig.2)

Fig. 2 - Localização e tipologia das propriedades do hospital no Ribatejo (1568)

No Ribatejo encontramos sobretudo propriedades rurais, nomeadamente, terras lo-

calizadas em Santarém, Alenquer, Azambuja, Benavente, Samora Correia e Vila Franca

de Xira. Os corredouros situavam-se na Azambuja e em Vila Franca de Xira (Mentireira

e Albaçotim). Em Vialonga, o hospital tinha olivais na Rua Nova e no sítio de Alboeira e

mais dois na Azambuja. Em Alverca, um casal em À dos Melros, terras de pão em Arcena

e na Verdelha, uma vinha. O hospital tinha também um lagar de azeite na Calhandriz e

ainda quintas, em Vialonga e Alhandra.

18 SNEIDER,MatthewThomas,«TheTreasuryofthePoor:HospitalFinanceinSixteenth–andSeventeenth–CenturyBologna»inHENDERSON,John;HORDENPeregrine;PASTORE,Alessandro,The Impact of Hospitals 300–2000, Bern, Peter Lang, 2007, pp. 94-101.19 MCHUGH, Tim, Hospital Politics in Seventeenth-Century France: The Crown, Urban Elites and the Poor (History of Medicine in Context),Hampshire,AshgatePublishing,2006,pp.74-75.20 OsprimeirosregistossobreaspropriedadesdohospitalexistentesatualmentenoArquivodoHospitaldeSãoJoséremontamàprimeirametadedeXVIerespeitamaoslivrosdereceita,então,chamadosde«livrosdeforosefazendas».ComaentregadohospitalàMise-ricórdiadeLisboafoiorganizadooprimeirotombodohospital(1568)que,cremos,foiexecutadoentrefinaisdoséculoXVIeiníciosdeXVII.Otombocontinuouativopormaisdedoisséculos,sendo-lheacrescentadassucessivasverbasaté1852,alturaqueempassouaserconhecidocomo«TomboAntigo»eseprocedeuàsuareforma AN/TT, Hosp. S. José, liv. 1187; liv. 1179 a 1185.

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Noutros locais próximos da área geográfica definida, encontramos propriedades em

Bucelas, fruto do avultado património (terras, terras de pão e vinhas) vinculado à cape-

la de Pedro Gomes. Em Arruda dos Vinhos, uma vinha e oliveiras no sítio das Cardosas

Velhas. Em Loures possuía muitas casas. Já em Torres Vedras e Sobral de Monte Agraço

tinha sobretudo casais. Além destas, muitas propriedades em Arranhó, S. João da Talha

e Santa Iria.

A cobrança destes foros nem sempre era fácil. O aumento do património e a falta

de dispositivos coercivos eficazes para executar devidamente as cobranças levou o rei

Filipe I a autorizar que o hospital usasse os mesmos procedimentos da Fazenda Régia

na cobrança das suas rendas.21 Na prática, visava facilitar-lhe a administração da casa,

permitindo uma melhor arrecadação de rendas, a penalização de infratores e a resolu-

ção de conflitos. Em meados do século XVI, o hospital deveria receber dos foreiros que

tinha no Ribatejo cerca de 41.128 réis, 24 galinhas, 6 moios de trigo e um de cevada.22

Além dos foros, o hospital recebia muitos bens provenientes das lezírias que se encon-

travam arrendadas a lavradores.

«Pão e legumes que vieram do campo»No século XVI, o rei D. Manuel I doou ao hospital várias terras férteis na zona do

Ribatejo nomeadamnete, lezírias localizadas em Alcanena, Vila Franca, Azambuja e Sa-

mora Correia, campos especialmete aptos para a cultura de cereais, legumes e vinho.

O pão e o vinho constituiam a base da alimentação das populações, produtos que o rei

tratou de doar em abundância. Especialmente o trigo, considerado um cereal nobre,

era responsável pelo pão branco, não obstante de se confecionar o pão meado (trigo

e cevada). O pão feito unicamente de cevada era apenas utilizado pelos mais pobres,

não tinha bom gosto nem constituía uma boa nutrição. Para além do pão, os cereais

podiam ser consumidos sob a forma de papas e sopas. Já o vinho era a bebida alcoó-

lica de excelência, entrava na dieta alimentar de quase todas as pessoas. O vinho era

conhecido por dar força, não transmitir doenças e poder também ser utilizado como

remédio. Chegaram ao hospital, nos primeiros anos de quinhentos, cerca de 98 moios

de trigo, 15 de cevada e 44 tonéis de vinho doados pelo rei.

Em 1514, doou também D. Manuel I os dízimos e padroado da Igreja de São Barto-

lomeu do Paul da Ota. Dois anos depois, a Bula de Leão X autorizava a anexação da Igreja de São Bartolomeu do referido Paul ao Hospital de Todos os Santos,23 re-

21 Peloalvaráde18deAbrilde1586.Estanãofoidetodoumaconcessãoinvulgar,umaquevezalgumasmisericórdiashámuitoquehaviamalcançadoestaprerrogativa,entreelas,adeLisboaqueaconseguiraatítulopermanenteem1558. SÁ, Isabel dos Guimarães, «As Misericórdias da fundação à União Dinástica», p. 29.22 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 1187.23 AbulanãoseencontranoArquivodoHospitaldeS.José,emborahajareferênciaàsuaexistência.AN/TT,Hosp. S. José, cx. 500, mç 1, nº 7.

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partindo os dízimos entre o hospital e o Arcebispado, concretamente, dois terços para o hospital e um terço para o Arcebispado, sendo que ao hospital coube pagar os ordenados do cura da igreja e de um dizimeiro.

Os rendimentos provenientes destes dízimos tinham uma grande variação anu-al, tanto na quantidade como no tipo de cereal. No tempo em análise podiam rondar os 500 alqueires de cereais,24 maioritariamente trigo, mas também cevada,

centeio, milho, chícharos e tremoços. Estes valores tendem, no decorrer do século XVII e XVIII, para menos de 150 alqueires.25

Para além desta diminuição, nem sempre a cobrança destas rendas era sim-ples. Veja-se o caso ocorrido em 1687, quando o hospital recebeu menos 14 al-queires de trigo e o prioste justificou simplesmente dizendo que se tinham perdido no celeiro onde estavam recolhidos.26 Refira-se, no entanto, que, apesar de não cobrar os rendimentos, o hospital tinha que suportar os gastos com cura da igreja e o dizimeiro.

Para além dos cereais e do vinho de que já falamos, a carne27 completava a trilogia dos alimentos mais consumidos na instituição. Segundo o referido regi-mento do hospital, cada pessoa que servisse na instituição28 podia consumir por mês: três alqueires e meio de pão; 3 quartilhos de vinho por dia; e 1 arrátel de carne ou peixe por dia.29 Nos mesmos termos seguia a alimentação dos doentes «quando nam esteverem em cura» e tivessem de seguir alguma dieta especial.

O hospital recebia como pagamento de foros e rendas vários tipos de carne, nomeadamente a de carneiro,30 mas também recebia galinhas, frangos e capões. A quantidade de cereais, legumes e carne que a instituição recebia foi sempre muito

incerta.31 Inicialmente, a instituição arrecadava a terça ou quarta parte do que se pro-

24 Em1573,ohospitalrecebeu5moiosdetrigoe12alqueiresdetrigo,2moiose40alqueiresdemilho,24alqueiresdecevadae102alqueiresdecenteio.Em1591recebeu180alqueiresdetrigo,70alqueiresdecevada,36alqueiresdecenteio,36alqueiresdemilho,44alqueiresdechícharose1alqueiredetremoços. AN/TT, Hosp. S. José, liv. 575 e 585.25Em1630recebeu40alqueiresdetrigo,42alqueiresdecevada,31alqueiresdemilho,29alqueiresdecenteio;em1680auferia48alqueiresdetrigo,34alqueiresdecevada,14alqueiresdecenteioe6alqueiresdemilho;eem1730recebia2moiose4alqueiresdetrigoe7alqueiresdemilhoAN/TT,Hosp. S. José, liv.619, f.219; liv.668, f. 219; liv.717, f. 184.26 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 675, f. 219.27 Ascarnesconstituíamaprincipalfontedeproteínasepodiamserconsumidasdemúltiplasformas,fresca,seca,salgada,decon-servaeenchidos.Emépocasdediminuiçãodaraçãodecarne,oconsumodecarnefrescaficavamuitasvezesreservadoaosconvalescentes.BRAUDEL,Fernand, Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: As estruturas do quotidiano, vol. I, Lisboa, Teorema, 1992, p. 167.28 Amaioriadascercade50pessoasafetasaoserviçodohospitalcomianainstituição,exceção feita ao provedor, almoxarife, escrivão, físico,cirurgiões,boticário,barbeiro-sangradorehospitaleirocujaremuneraçãoeraunicamenteemdinheiro.29 Oqueequivaleriaa1300gdegrãopordia,7,5dlpordiadevinhoe459gdecarneoupeixe.SALGADO,AnastásiaMestrinho;SALGADO,AbílioJosé,Regimento do Hospital de Todos-os-Santos/pref.,transcrição,glossário,notaseíndiceremissivo,ComissãoOrgani-zadora do V Centenário da Fundação do Hospital Real de Todos-os-Santos, 1992, p. 14.30 Acarnedecarneiroeraamaisapreciadaetambémamaiscara,tendênciaverificadadesdeoséculoXVI.VELOSO,Carlos,A alimentação em Portugal no século XVIII nos relatos de viajantes estrangeiros, Coimbra, Minerva, 1992, p. 45.31 Em1551,ohospitalrecebeuderendasnaslezírias29moiose34alqueiresdetrigo,19moiose28,25alqueiresdecevada,1moio

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duzia nestas terras e mantinha ao seu serviço um almoxarife. Este cargo deveria ser

dado, segundo o regimento de 1504, a um «homem de bem e de fiamça e bem criado»

que ficaria responsável, entre outras, pela arrecadação das rendas, compras, recolha

de esmolas e pela criação dos enjeitados (dar a criar os meninos e pagar às amas). A

ocupação deste lugar revestia-se de alguma importância no hospital. O almoxarife era,

em muitas ocasiões, a imagem pública da instituição. Ocupava um lugar de confiança e

desempenhava funções de relevo. Para o auxiliar contava com um escrivão. Em 1564, os

negócios e as demandas da casa obrigaram a repartir estas funções com outras pesso-

as. As funções do almoxarife passaram a limitar-se à arrecadação das rendas nas lezírias

do Ribatejo uma vez que, para tratar dos foros, o hospital tinha outras duas pessoas.

Lidando com dinheiro e rendas, estes funcionários andavam frequentemente vigiados

pelos irmãos da misericórdia que os podiam acusar de falta de sinceridade nas contas

que davam à casa.32 A Misericórdia procurou extinguir este ofício quando os arrenda-

mentos passam a ser fixos. A dispensa deste cargo, cuja família mantivera por vários

anos, levou André Baracho Enserrabodes a um processo que durou cerca de dois anos

(1685-1687), e que acabaria por ser resolvido pela Mesa da Misericórdia a seu favor.33

E ainda que, com vozes em contrário, a dispensa deste cargo no hospital só foi consu-

mado em 1769.34

Uma parte dos cereais que o hospital recebia do Ribatejo destinava-se ao consu-

mo da casa (para alimentação dos doentes e pagamento de propinas aos servidores)

e outra parte era comercializada. A venda de produtos cerealíferos rendeu algumas

centenas de réis à instituição,35 sendo que o seu preço variava em função do valor de

mercado e da qualidade dos produtos: em meados do século XVI o trigo rondava os

100 réis e a cevada 50 réis; cem anos depois, o seu valor mais que triplicara.36 O hos-

pital raramente sabia com que dinheiro podia contar da venda destes produtos. Em

períodos de maior precariedade, os lavradores das lezírias solicitavam ao hospital que

e36alqueiresdemilho,25,25alqueiresdefavas,5panaisdepalhae3galinhasAN/TT,Hosp. S. José, liv. 566; em 1591 entrou na instituição 81moios e 43,25 alqueires de trigo, 24 moios e 1,25 alqueires de cevada, 5 moios e 27,4 alqueires de mistura, 2 moios e 17,25 alqueires de milho,8moiose37,25alqueiresdechícharos,3alqueiresdegrãos,0,75alqueiresdelentilhas,46panaisdepalhae50galinhasAN/TT,Hosp. S. José,liv.85;noanode1614hospitalrecebeuderendaseforosnaslezírias154moiose15alqueiresdetrigo,128moiose47,5alqueiresdecevada,35alqueiresdemilho,15moiose32,25alqueiresdemistura,14moiose6,75alqueiresdechícharos,9,25alqueiresdelentilhas,1moiose8,75alqueiresdegrãose40panaisdepalha.AN/TT,Hosp. S. José, liv. 604; Em 1664 recebeu 78 moios e 46,50 alqueires de trigo, 92 moios e 35,5alqueiresdecevada,1moioe6alqueiresdemilho,21alqueiresdeervilhas,15moiose20alqueiresdechícharos,33alqueiresdelentilhas,18,25alqueiresdegrãose9alqueiresdefeijãoAN/TT,Hosp. S. José, liv. 652.32 ServedeexemploocasodeLuísSilveira,sacadordosforosdohospitalquefoiacusadoporque«nãoserviacomsatisfaçãoeverdade»AN/TT,Hosp. S. José, liv. 941, f.302v.33 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 941, f.415.34 NamargemdapáginatemainformaçãoquepordespachodaMesadaMisericórdiade23deAgostode1769seaboliuestelugardeescrivãodaslezírias.AN/TT,Hosp. S. José, liv. 943, f.18.35 Em 1564 recebeu 197.990 réis da venda de cereais; em 1664 o seu valor foi 1.330.000 réis. AN/TT, Hosp. S. José, liv.567, f. 31- 43v; liv.652, f. 278-281.36 Valordereferênciaparaoanode1564.Nestemesmoano,avendadetrigovelhoefuradosofreuumabatimentode5réis,sendoportanto vendido a 95 réis o alqueire. AN/TT, Hosp. S. José, liv.567, f. 33 e 43; em 1664-1665 o trigo era vendido a 320 réis e a cevada entre 150 a 200 réis. AN/TT, Hosp. S. José, liv. 652, f. 278 e 278v.

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lhes reduzisse as prestações. 37 Em 1716, a Mesa da Misericórdia e Hospital de Todos

os Santos autorizaram que se esperasse oito anos por um pagamento de 209.450 réis

que devia Baltazar Banha de Macedo de umas terras das lezírias do Esteio Grande, em

Vila Franca de Xira.38 E, em 1727, tal como acontecera em 1708, a Mesa concedeu aos

lavradores das lezírias a quitação da quarta parte do que era suposto receber, devido

às más condições climatéricas, escassas colheitas e mortalidade de gado.39 Menos com-

placente foi o enfermeiro-mor D. Jorge de Mendonça que, em 1761, procurou a todo

o custo receber as rendas que tinha nas lezírias. Para tal, deu ordem para se efetuarem

penhoras40 e embargar o pão dos lavradores que deviam as rendas.41

A duração dos arrendamentos variava. Geralmente os arrendamentos nas lezírias du-

ravam 5 ou 9 anos,42 podendo prolongar-se por décadas. Como exemplo, Francisco de

Faria Barros e seu pai, João Marchante de Faria, eram lavradores das lezírias do hospital

havia mais de 30 anos. A continuidade do pagamento acordado e as benfeitorias que

fizeram à sua custa justificaram o pedido de dilação do prazo do arrendamento por

mais 9 anos.43 O mesmo motivo invocou o padre João Monteiro quando pediu a renova-

ção do arrendamento.44 Era, portanto, frequente os arrendatários fazerem benfeitorias na

propriedade, o que legitimava os pedidos de prolongamento dos prazos do arrendamento.

Conclusão No período moderno, sob o novo paradigma de assistência pública foi construído

em Lisboa o Hospital de Todos os Santos que se destacava no panorama nacional pela

sua dimensão, arquitetura e administração. Não há dúvidas quanto ao que se preten-

dia de Todos os Santos, um hospital moderno organizado segundo linhas terapêuticas

bem definidas, com pessoal médico especializado, direcionado exclusivamente para

cura de doentes.

O financiamento do hospital dependeu sobretudo da Coroa mas também de avul-

tados bens deixados por particulares que estavam consignados a legados pios. Um

património geograficamente disperso que contou com bens na zona do Ribatejo. Para

além do hospital possuir muitas propriedades, designadamente casas, terras, casais e

quintas, as terras férteis da região produziram também muito pão e vinho que, doado

37 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 941, f. 442; liv.942, f.151.38 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 942, f.88v.39 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 942, f.151.40 AN/TT, Hosp. S. José, liv. 943, f.42v.41 AN/TT, Hosp. S. José, liv.943, f.56v.42 AN/TT, Hosp. S. José, liv.566, liv. 585.43 AN/TT, Hosp. S. José, liv.942, f.186.44 NapetiçãoopadreJoãoMonteiropedeparaquelhesejaconcedidooarrendamentodascasaspertencentesaoHospitaltendoemcontaasbenfeitoriasquelhefezàsuaconta.AN/TT,Hosp. S. José, liv. 942, f.224v.

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por D. Manuel I, se destinou ao consumo dos milhares de doentes, profissionais de saúde e demais dependentes que continuamente beneficiaram da instituição.

Fontes

Arquivo Nacional Torre do Tombo

Hospital de S. José, liv.85; liv.566; liv.567; liv.575; liv.604; liv.619; liv.652; liv.668; liv.675; liv.717; liv.941; liv.942; liv. 943; liv.

1187. cx. 500, mç 1, nº 7.

Corpo Cronológico, Relação dos hospitais que se anexaram ao Hospital de Todos os Santos de Lisboa e seus encar-

gos que o rei mandou cumprir. Parte II, mç. 7, n.º 166.

Bibliografia

ABREU, Laurinda, O poder e os pobres. As Dinâmicas Politicas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal

(Séculos XVI-XVIII), Lisboa, Gradiva, 2014.

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O Cosmos Carmelita em S. Romão de Alverca. Uma leitura heráldica

Nuno CJ Campos*

Resumo-Este artigo é outra leitura do brasão carmelita, explicativo dos espa-ços monásticos da ordem. Lido como Paraíso/Monte Carmelo (Santa Ana/Serra de Sintra), também é sinónimo das origens (S. Romão/Alverca). Porque situado junto a um «litoral», o Rio Tejo, de onde emanou a «nuvem» carmelita.

Palavras-chave: Alverca, Carmelita, Heráldica, Humanidade, Memória

O Cosmos Carmelita em S. Romão de Alverca. Uma leitura heráldica

«Podereis ter lugares em os hermos, ou onde quer que vos forem da-dos, pertencentes & proveitosos à obseruancia de vossa Religião, segun-do ao Prior & frades for visto pertencer» (««Regra [Segunda] dos Fra-des da ordem da muito bemauenturanda madre de Deos sempre virgem Maria do Monte do Carmo»dadaporAlberto,PatriarcadeJerusalémaFr.Brocardo»,inFr.SimãoCoelho,Compendio das Chronicas da Ordẽ de Nossa Senhora do Carmo, sl, [Impressor] António Gonçalves, 1571)

1. Alverca: etimologia e espaço Graças à arqueologia, sabe-se que a região de Alverca desde o Paleolítico era povo-

ada.1 Se estes testemunhos arqueológicos e arquitetónicos conseguiram sobreviver ao

tempo, já a designação toponímica que os seus habitantes deram ao espaço perdeu-se

no tempo. Para o período de ocupação romana, no seio da comunidade de arqueólo-

gos e historiadores, não há consenso relativamente à localização da outrora Ierabriga

ou em Alenquer,2 ou próxima à atual Vila Franca de Xira.3

Já quanto à povoação antecessora a Alverca, pelas descobertas arqueológicas mais

recentes, ela ter-se-á desenvolvido nos terrenos entre o rio e a elevação que veio a

1 * Historiador/Mestre em Estudos de Património/Heraldista.RAIMUNDO,Orlando,Vila Franca de Xira. Saber mais sobre… História de Vila Franca de Xira, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal deVilaFrancadeXira,2012,«PrimitivosatraídospeloTejo.OsterraçosquaternáriosdeAlvercaeCastanheira»,pp.11-13(http://issuu.com/cmvfx/docs/vol_ix_-_hvfx/4-18.fev.2014).2 MANTAS, Vasco Gil, «AestradaromanadeOlisipoaScallabis.Traçadoevestígios»,in Cira Arqueologia Online, Vila Franca de Xira,MuseuMunicipalVilaFrancadeXira/CâmaraMunicipalVilaFrancadeXira,2012,pp.12-13;PIMENTA,JoãoeMENDES,Henrique,«AescavaçãodeumtroçodaviaromanaOlisipo-ScallabisemVilaFrancadeXira»,inRevistaPortuguesadeArqueologia,vol.10-nº2,Lis-boa,IGESPAR,2007,p.223;LOPES,LuísSeabra,«ItineráriosdaestradaOlisipo-Brácara:contributoparaoestudodaHispâniadePtolomeu»,in O Arqueólogo Português, Série IV, 13/15, 1995-1997, pp. 319, 324.3 GUERRA,Amílcar,«OtroçoinicialdaViaOlisipo-BracaraeoproblemadalocalizaçãodeIERABRIGA»,in idem, p. 36.

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ser conhecida por Castelo e próximo «a duas das principais vias de comunicação da

Antiguidade no extremo ocidente peninsular, o Rio Tejo e a estrada romana paralela a

este».4 A haver cada vez mais informações sobre a história desse povoado, ainda assim,

não se sabe qual o nome por que era conhecida.

Etimologicamente, a palavra «Alverca» é de origem árabe, a significar um recinto ou

espaço com água.5 Porque região assim identificada pelos árabes dadas as particulari-

dades existentes entre o rio e a terra e porque elas nunca se perderam, esta designação

toponímica passou a ser oficial, como assim o demonstram, por exemplo, dois docu-

mentos de finais do século XIII relativos a doações de propriedades em Aluerca.6

2. Porquê um convento carmelita em Alverca? 7

Sem mencionar Alverca, Duarte Nunes de Leão, em 1610, retratava a zona ribeiri-

nha do Ribatejo pelas vantagens da proximidade do rio:

Passando duas legoas abaixo de Santarem, vem a agoa do mar a receber este rio, e

vai alargando mais. E dai vai povoado de muitos lugares frescos de muitos arvoredos, e

mui boons edificios, que fazem ũa representação do paraiso terreal, até chegar a Lisboa.8

Relativamente a Alverca, Fr. Nicolau de Oliveira, em 1620, descreve-a no plano

sócio-económico – «O trato da gente desta Villa he viuer de suas fazendas, de que são

muy ricos, como de vinhas oliuaes, & terras de paõ»9 – perspetiva que é feita, em 1712,

pelo Pe. António Carvalho da Costa, embora também fale do Rio Tejo como elemento

da paisagem – «Villa, cercada toda de excelentes quintas, sobranceyras ao dito rio com

aprazivel vista, abundante de paõ, vinho, azeyte, & frutas».10

Estas descrições, isoladas ou em conjunto, permitem fazer uma aproximação à

história da criação do movimento carmelita, possibilitando que se faça um paralelismo

simbólico entre Alverca e o Monte do Carmo, a pátria carmelita:

4 PIMENTA,JoãoeMENDES,Henrique,«EvidênciasdeOcupaçãoRomananoMorrodoCastelodeAlvercadoRibatejo(VilaFrancadeXira)»,inal-madan,IIªSérie,n.º15,Almada,CentrodeArqueologiadeAlmada,Dezembro2007(al-madanonline/adendaelectró-nica),p.2;PIMENTA,J.eMENDES,H.,«Aescavaçãodeumtroçodavia…»,inRevistaPortuguesadeArqueologia…, pp. 222-223.5 MACHADO,JoséPedro,Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa,vol.I–A_D,3ªed.,Lisboa,LivrosHori-zonte,2003,«Alverca»,p.116.6 ANTT, Gavetas,«CartadeDoaçãofeitapelaCondessaD.Leonor,filhadeD.AfonsoIII,àOrdemdoHospital,detodososbensedireitosquetinhaemMontouto,Alverca,TorresVedras,Eixo,Arrifana,JulgadodeGaiaeemTerradeSantaMaria–18.set.1289»,Gav.6,Mç.1-nº 27; ANTT, Mosteiro de Santos o Novo,«DoaçãoquefezAfonsoLopesaoMosteiro,dosbensemAlvercaeemváriaspartesdoReinodePortugal–17.nov.1293»,MosteirodeSantos-o-Novo,nº1490.7 Este artigo seguedemuitopertooartigodeAnabelaFerreira(cf.FERREIRA,Anabela,«BrevehistóriadoconventodeS.Romão»,in CIRA. Boletim Cultural,nº11:doPatrimónioàHistória,VilaFrancadeXira,CâmaraMunicipaldeVilaFrancadeXira,2013,pp.107-123).

8 LEÃO,DuarteNunesdo,Descrição do Reino de Portugal,ColeçãoClássicosdaHistoriografia-3,3ªedição,Lisboa,CentrodeHistória da Universidade de Lisboa, 2002, p. 170.9 OLIVEIRA, Fr. Nicolau de, Livro das Grandezas de Lisboa,Lisboa,JorgeRodrigues,1620,«TratadoQuartodoSitiodeLisboa»,fl.82r.10 COSTA,Pe.AntónioCarvalhoda,Corografia Portugueza, e Descripçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal…, Tomo Terceyro,Lisboa,OfficinaRealDeslandesiana,1712,«CapitvloVIII.DaVilladeAlverca»,p.34.

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diuisou o criado & discipulo de Helias hũa Nuuẽzinha mui delica-

da, pequena & sotil a semelhança da pisada de hũ homẽ, a qual

sobia do mar (…) [e] naquele lugar (…) edificou o dito Propheta

[Elias] hũa casinha, ou choça onde morou, jũto com a qual estaua

hũa fonte que despois sẽpre se chamou a fonte de Helias, & onde

despois foi templo da Virgem, & solenissimo Moesteiro dos pa-

dres Carmelitas.11

Ou seja, de um espaço líquido (o rio/o mar) surgem fatores atmosféricos (a

humidade/a nuvem) que influenciam as regiões vizinhas (Alverca/Monte do Carmo),

potenciando-as para a fixação de populações e, por isso, a significarem o paraíso, es-

piritualmente representado, no caso concreto de Alverca, no Convento de S. Romão,

fundado provavelmente entre finais do século XVI e inícios do XVII.12

3. O significado institucional de um convento sem símbolos carmelitasFr. José Pereira de Santa Ana pode ser considerado o cronista principal da Ordem

Carmelita em Portugal ao longo de todo o século XVIII, como o demonstram os textos

das várias licenças dadas para a publicação da sua Chronica dos Carmelitas da Antiga, e

Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Dominios e onde é feita

a história da fundação e a descrição dos quatro primeiros conventos da ordem, Moura

(1250), Lisboa (1389), Colares (1457) e Vidigueira (1495).13

Destes conventos, os dois primeiros são os únicos em que aparecem referências a

elementos simbólicos identificativos à ordem: o convento de Moura, com um nicho a

encimar a entrada principal da igreja, com a imagem de

Nossa Mãy Santissima, e Senhora do Carmo (com seu Divino Filho

no braço) de admiravel escultura, não obstante ser antiga, e obrada em

pedra durissima. Ao pé desta Santa Imagem estão tres letras distinctas

na forma seguinte: S.U.Z. Na parte inferior dellas se lê o Elogio: Mater,

& decor Carmeli; 14

o de Lisboa, o único em que há uma menção explícita à heráldica carmelita, com a

indicação da localização de representações em dois sítios do edifício: umas armas de

11 COELHO, Fr. Simão, Compendio das Chronicas da Ordẽ de Nossa Senhora do Carmo, sl, [Impressor] António Gonçalves, 1571, «Cap.14»,pp.57-58.12 CASTRO,João Baptista de, Mappa de Portugal Antigo e Moderno,TomoII,Lisboa,OfficinaPatriarcaldeFranciscoLuizAmeno,1763,p.73; A. Ferreira, «art. cit.», in op. cit., p. 120.13 SANTAANNA,Fr.J.P.de,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Dominios,TomosPrimeiroeSegundo,Lisboa,OfficinadosHerdeirosdeAntonioPedrozoGalram,1745e1751.14 SANTAANNA,Fr.J.P.de,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Dominios,TomoPrimeiro,Lisboa,OfficinadosHerdeirosdeAntonioPedrozoGalram,1745,p.164.

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grandes dimensões, localizadas na capela-mor, no espaço do santuário onde se expu-

nham relíquias, apresentadas como que pedra de fecho do arco da entrada, viradas

para o cruzeiro;15 outras, nos barretes das abóbadas do refeitório.16 Relativamente aos

dois últimos conventos, o de Santa Ana de Colares e o de Nossa Senhora das Relíquias

da Vidigueira, Fr. José Pereira de Santa Ana não menciona a existência de heráldica car-

melita ou de outros elementos conotados com a ordem. Em todas as quatro descrições,

aparecem indicações a heráldica de pessoas lá sepultadas, normalmente associada à

heráldica de família.17

A existência ou não de representações de armas carmelitas naquelas quatro casas

permite que possam fazer-se duas leituras interpretativas. A primeira situa-se no âm-

bito da heráldica, a significar o fato de, ao longo dos séculos XIV/XV e dentro da famí-

lia carmelita, pelo menos em Portugal, elas ainda não serem devidamente entendidas

como a única forma simbólica identitária e institucional.18 A segunda leitura enquadra-

-se no plano institucional, a destacar o peso hierárquico da casa de Lisboa enquanto

sede da ordem no Reino de Portugal.

Para o Convento de S. Romão de Alverca, as fontes que falam dele nada informam

sobre a existência, ali, de representações heráldicas, limitando-se a dar a data da sua

fundação e qual a família padroeira.19 De acordo com as várias fontes citadas por Ana-

bela Ferreira, o convento, danificado aquando do sismo de 1 de novembro de 1755,

nunca chegou a recuperar, antes pelo contrário.20 Dentro do complexo do convento,

numa alameda próxima, havia uma fonte com a mesma invocação de S. Romão,21 tendo

sido o único testemunho a sobreviver até ao século XX,22 muito devido aos cuidados

havidos pela população.23 E é nesta fonte que se conhece o único testemunho heráldi-

co carmelita, colocado na sua parte superior (Fig. 1). Algures no século XX, esta pedra

de armas foi roubada.24

15 Idem, p. 590.16 Idem, p. 774.17 SANTAANNA,Fr.J.P.de,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Dominios,TomosPrimeiroeSegundo…18 PossivelmentecomoformadetentarprovaraantiguidadeoficialdasarmascarmelitasedelasemPortugal,Fr.JoséPereiradeSanta Ana, com base em «pinturas antigas»,massemindicarquais,recuaoseuusoaoiníciodoséculoXIV,noescudodoBispodadiocesedaGuardaeLamego,D.Fr.VascoMartinsdeAlvelos(†1313),primeirocarmelitaeleitoparaaquelecargo(SANTAANNA,Fr.J.P.de,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Dominios,TomoPrimeiro…,pp.223-225).19 FERREIRA,A.,«Brevehistóriadoconvento...»,in CIRA. Boletim Cultural,pp.107-123;comomeroacrescentoàsfonteshis-tóricas referidas pela autora, António de Oliveira Freire, em 1739, também se limita a citar o convento (cf. FREIRE, António de Oliveira, Descripçam Corographica do Reyno de Portugal,LisboaOccidental,OfficinadeMiguelRodrigues,1739,p.112).20 FERREIRA,A.,«art.cit.»,in op. cit., pp. 116-117.21 Idem, p. 114.22 Ibidem.23 Ibidem; podem ser apontadas várias razões para a preservação (aqui apresentadas da mais para a menos importante): razão de bem públicoqueafontetinhaparaaspessoas;ligaçõesreligiosasàfonteeàsreferênciasmilagrosasaelaassociadas;porfim,respeitopeloúnicotestemunhopatrimonialememorialdoconvento.24 Ibidem.

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3.1. Uma leitura e um comentárioEscudo com moldura,25 mantelado em ponta;26 três estrelas, duas em mantel, a dex-

tra e a sinistra, e a terceira em ponta do escudo. Cartela mista entre zoomórfica (con-

chas) e fitomórfica (ramos vegetais) (Fig. 2).

Comentário: É um escudo esculpido em baixo-relevo, não havendo qualquer sina-

lética gráfica identificadora de cromatismo. Quanto às três estrelas, as fotografias não

possibilitam determinar o número de raios. Toda a decoração que forma o brasão é

próxima do estilo barroco, permitindo-o datar para a primeira metade do século XVIII.

4. Os primeiros testemunhos da heráldica carmelita Dentro da ordem, refere-se que a representação heráldica carmelita mais antiga

conhecida date de algures do século XV, um desenho que ilustra o frontispício da obra

Vida de San Alberto de Sicilia de Fr. Juan de Novalaria, publicada em 1499 e encimado

pela legenda «Vexilvm Carmelitarvm». 27 (Fig. 3).

A preto e branco, este desenho não apresenta qualquer tipo de sinalética iden-

tificativa de cromatismo. O escudo é amendoado e mantelado, tendo, em chefe, uma

Nossa Senhora coroada de estrelas, sentada com o Menino ao colo e com os pés assen-

tes num escabelo em forma de crescente virado para cima. Dois tenentes, a dextra e a

sinistra, sustentam o escudo. Raios nimbam todo o emblema, saindo aparentemente

por trás do escudo. Encimam o escudo dois listéis, um seguro pela Senhora e o outro

pelo Menino, com inscrições latinas de lemas alusivos à ordem: a dextra, «Svm Mater et

Decor Carmeli» e, a sinistra, «Elias et Elisevs Proph. Dvces Carmelitarvm». Refira-se que

esta representação de Nossa Senhora com lema está próxima à imagem que encima

a entrada da igreja do carmelo de Moura e que José Pereira de Santa Ana descreve28

e é familiar à passagem do livro do Apocalipse - «Depois apareceu no Céu um grande

sinal: uma mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze

estrelas na cabeça».29

4.1 - A simbologia carmelita no espaço ibérico e as fontes bíblicas de inspiração

Datam da segunda metade do século XVI três obras das mais antigas com infor-

mações escritas ou desenhadas das armas carmelitas, uma portuguesa, da autoria do

25 NÓBREGA, Artur Vaz-Osório da, Compêndio Português de Heráldica de Família, sl, Medialivros, AS, 2003, p. 5.26 BANDEIRA,LuísStubsSaldanhaMonteiro,Vocabulário Heráldico,3ªed.,Lisboa,EdiçoesMamaSume,1985,pp.113,268.27 http://escudocarmelitano.blogspot.pt/2006/04/zelo-zelatus-sum-pro-domino-deo.html-17.jan.2013.28 SANTAANNA,Fr.J.P.de,op. cit., p. 164; cf. n. nota 13.29 «LivrodoApocalipse»(Ap.12,1),inNova Bíblia Sagrada,1ªedição,Lisboa/Fátima,DifusoraBíblica/CentroBíblicodosCapu-chinhos,1998,p.2042.

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carmelita Fr. Simão Coelho, editada em 1571,30 onde há uma representação iconográ-

fica das armas e uma descrição delas e as outras duas representações, espanholas, do

carmelita Fr. Diego de Coria Maldonado, a primeira numa obra impressa em 159131 e a

segunda numa outra, de 1598,32 sendo duas em desenho e uma em texto.

Em função das datas de impressão daquelas obras, tudo indica que a apresentação

portuguesa em desenho (Fig. 3) e em texto das «Armas da Ordem de Nossa Senhora do

Carmo»33 seja a mais antiga ao nível da Península Ibérica:

hum escudo, quarteado de branco & preto: & no meo do escudo em iguaes par-

tes duas Estrellas o escudo quasi todo branco, & no fundo hũa mostra preta, de modo

que ficam as duas partes do escudo parecendo duas asas. Este escudo tem a orladura

escaqueada de branco & preto a maneira de triangulos, (…). Sobre todo elle hũa Coroa

Real muy grande. E sostentam dous Anjos este escudo com as maõs. Tem esta mesma

Religiam por diuisa nossa Senhora madre de Deos sempre virgem Maria, com mos pees

em hũa nuuenzinha em postura que sobe, com hum Rotulo que diz – Datus Est ei Decor

Carmeli & Saron,34

com base em Isaías: «O deserto e a terra árida vão alegrar-se, a estepe exultará e dará

flores belas como narcisos. Vai cobrir-se de flores e transbordar de júbilo e de alegria.

Tem a glória do Líbano, a formosura do monte Carmelo e da planície de Saron».35

Das representações espanholas das armas carmelitas, as publicadas no Manual de

las Beatas y Hermanos terceros... dizem respeito a um escudo de negro, mantelado de

prata/branco e recortado na extremidade superior, a aparentar uma cruz latina; duas

estrelas de preto em chefe no mantelado. Bordadura gironada de prata/branco e negro.

Coroa ducal. Timbre, um braço vestido, empunhando espada rodeada por uma tarja

com lema inscrito em latim com carateres maiúsculos - «ZELO ZELATVS. SVM PRO DOM-

MINO DEO EXERSITV. N. […]. RESIVS». A ladear o braço armado doze aspas dispostas em

faixa curva, seis a dextra e seis a sinistra. Tenentes, dois anjos seguram o escudo (Fig. 3).

O lema, a sair da coroa, inspira-se no Livro I dos Reis:«Estou a arder de zelo pelo SENHOR,

o Deus dos exércitos...».36

30 COELHO, Frei Simão, Compendio das Chronicas da Ordẽ de Nossa Senhora do Carmo, sl, Antonio Gonçalvez, 1571.31 MALDONADO,FrayDiegodeCoria,Manual de las Beatas y Hermanos terceros, de la horden de la siempre Virgen, y madre de Dios, santa Maria del monte Carmelo, Sevilla, Fernando de Lara, 1591.32 MALDONADO,FrayDiegodeCoria,Dilvcidario y Demonstracion de las Chronicas y Antigvedad del Sacro Orden de la Siempre Virgen Madre de Dios Sancta Maria del Monte Carmelo,Cordova,CasadeAndresBarrera,1598,fls.90r.33 Legendaqueencimaodesenho.a34 COELHO, Fr. S., Compendio das Chronicas da Ordẽ de Nossa Senhora do Carmo..., «Cap. 18. Tratase nelle das armas & insinias daReligiamdenossaSenhoradoCarmo»,p.179.35 Is. 35, 2 (cf. Nova Bíblia Sagrada..., p. 1208).36 I Rs 19, 10 (cf. Nova Bíblia Sagrada..., p. 498).

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Já quanto às armas impressas no Dilvcidario y Demonstracion de las Chronicas..., a informação obtida teve como base um texto relativo às suas vertentes simbólicas, his-tóricas e divinas, possibilitando a seguinte leitura: escudo de negro, mantelado de prata («un monte que remata su escudo en figura piramidal en campo blanco»37) e recortado na extremidade superior em forma de cruz latina («La cruz que remata el monte cor-riendo sangre»38); duas estrelas de ouro em chefe no mantelado («tres estrellas las dos [de oro] en el campo blanco»39) e uma de prata no contrachefe do campo («y la vna en el pie del monte, esta estrella del monte que es blanca»40). Bordadura gironada de pra-ta e negro (««Los quadros blancos y negros que estan por orla de el escudo»41). Coroa representada por uma faixa curva de doze estrelas («[la] corona de doze estrellas»42). Timbre, um braço empunhando espada em chamas, rodeada por uma tarja com divisa inscrita em latim: «Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum» («El braço con ha espada que està encima de las dichas armas (...) en cima de la qual esta la llama de fuego (...) abueltas de la espada està vna lema que dize Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum»).43 É de referir que o desenho das armas que põe o «ponto final» a esta obra é diferente desta descrição, igualmente com bordadura, com coroa antiga aberta, mas sem timbre e suportado por dois tenentes. Quanto ao escudo, boleado de bico, negro e mantelado de branco, com recorte na extremidade superior em forma de cruz latina. Três estrelas, duas de negro no mantel e outra de branco no contrachefe

do escudo. Coroa ducal. O escudo está inserido em cartela com rolos de voluta (Fig. 3).

4.2 - As peças e os esmaltes principais e suas mensagens

4.2.1 - A bordadura, o branco/prata e o negro

No plano simbólico-memorial, os carmelitas Simão Coelho e Diego Maldonado

explicam as conotações existentes com a Ordem: os esmaltes branco/prata e negro do

campo do escudo associados às vestes dos monges, o primeiro à capa e o segundo ao

hábito.44 A antiguidade da Ordem também está patente na bordadura escaqueada com

aqueles dois esmaltes, a remeterem para os fundadores da Ordem,45 Elias e Eliseu, e

para o que eles vestiam.46

37 MALDONADO,Fr.D.deC.,Dilvcidario y Demonstracion de las Chronicas...,fls.90r.38 Idem,fls.90v.39 Idem,fls.90r;astrêsestrelassãoreferidas,quantoaosesmaltes,umadeprata,identificadacomMaria,eduascastanhas,identifi-cadascomEliaseEliseu(cf.«Carmelita(Ordem)–2.História:a)Geral»,inEnciclopédia Verbo Luso-Brasileira..., col. 5).40 Ibidem.41 Idem,fls.90v.42 Ibidem.43 Ibidem;tradução:«EstouabrasadodezelopeloSenhor,oDeusdosexércitos»(cf.«Primeiro Livro dos Reis» (I Rs. 19, 10), in Bíblia…, p. 396).44 COELHO, Fr. S., Compendio das Chronicas da Ordẽ de Nossa Senhora do Carmo...,p.179;MALDONADO,Fr.D.C.,Dilvcida-rio y Demonstracion de las Chronicas...,fl.90v.45 Idem, p. 182; Idem,fl.90v.46 Ibidem.

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Num outro patamar da simbologia, dos dois autores, Frei Simão Coelho foi mais

profundo na interpretação que fez, a apresentar o branco/prata e o negro como os

esmaltes identitários da Ordem – «Cores muy convenientes a esta Religião»47 – e refle-

tidos na sua vertente humana, num misto entre a psicologia e a espiritualidade, com o

branco/prata a significar a pureza de Nª Srª do Carmo e dos anjos, porque figuras inter-

cessoras entre a Humanidade e Deus48, e o negro a honestidade da Ordem e que os seus

membros devem ter49: «o vestido (…), no qual [acharão] a obrigação que [têm]. scilicet.

na capa a viuer limpa & castamente, & no habito a dar com honestidade exemplo aos

próximos, a que [têm] obrigação de edificar per razam do estado em que [vivem]».50

4.2.2 - A geografia carmelita, o branco/prata e o negro

Quanto ao mantelado de branco/prata, Fr. Simão Coelho e Fr. Diego Maldonado

falam dele e da sua mensagem simbólica, relacionada com a aliança entre Deus e os ho-

mens, com Fr. Diego Maldonado a ser mais explícito, ao valorizá-lo enquanto elemento

meteorológico – uma nuvem – que avança do mar para terra e que a cobre, o que é

fator para a criação de condições de sobrevivência.51 Já Fr. Simão Coelho desenvolve

a simbologia da cor negra, porque associada ao espaço montanhoso de Haïfa, em Isra-

el52, onde, na História, Deus e Elias se relacionaram e que se tornou, espiritualmente,

a pátria carmelita: «Pera demostrar o mesterio que vio (…) Helias no monte do Carmo,

quando auendo grande esterilidade sobre a terra de Israel pelo nojo que Deos tinha de

seus pecados a rogo daquele padre concedeo a chuua».53

4.2.3. O ouro e a prata/branco, as estrelas

Estes metais, em primeiro lugar, são apresentados, quer por Fr. Simão Coelho, quer

por Fr. Diego Maldonado, ao nível da simbologia espiritual e psicológica, como sinóni-

mos de exemplo de vida que cada membro de Ordem deve dar, tornando-se, assim, bri-

lho da Ordem e luz para os outros.54 Além desta leitura e numa associação com as estre-

las, há uma relação conotada à simbologia histórico-bíblica, pela sua identificação aos

profetas/fundadores da Ordem do Carmelo, Elias e Eliseu. Para o primeiro, eles estão

identificados com as duas estrelas de ouro: «metal mais precioso que todos os outros,

47 COELHO, Fr. S., op. cit., p. 179.48 COELHO, Fr. S., op. cit.,pp.179-180;MALDONADO,Fr.D.C.,op. cit.,fl.90v.49 COELHO, Fr. S., op. cit., p. 180.50 Idem, p. 182.51 MALDONADO,Fr.D.C.,op. cit.,fl.90r.52 «CARMES»,inGERHARDS,Agnès,Dictionnaire Historique des Ordres Religieux,sl,LibrairieArthèmeFayard,1998,p.125;zonamontanhosaasuldabaíadeSãoJoãodeAcreeafinalizarnumpromontóriojuntoaoMediterrâneo,entreaSamariaeaGalileia,carate-rizando-sepelaexistênciadegrutas(cf.«Carmelo»,inEnciclopédia Verbo Luso-Brasileira..., col. 10). 53 COELHO, Fr. S., op. cit., p. 189.54 COELHO, Fr. S., op. cit.,p.182;MALDONADO,Fr.D.C.,op. cit.,fl.90v.

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pera denotar a alteza da contemplação & perfeiçam da vida a que sam obrigados».55

Para o segundo, a estrela de prata está conotada com Elias, o «primero instituydor de la

vida casta en el mundo»,56 nada mencionando quanto às estrelas de ouro.

Já ao nível da história da Ordem Carmelita e de acordo com Fr. Simão Coelho, as

estrelas de ouro são apontadas como símbolos institucionais da presença carmelita,

uma na zona do Mediterrâneo Oriental e outra na zona do Mediterrâneo Ocidental.

Dentro de cada uma destas duas áreas geográficas, elas identificam-se humanamente

com o clero secular ou o regular, qualquer uma deles direta ou indiretamente ligados

com os Carmelitas. No Mediterrâneo Oriental, são apontados dois Cirilo: o primeiro, do

século V, o bispo da Alexandria que presidiu ao Concílio de Éfeso realizado em 43157 e

que trabalhou para que Maria fosse consagrada como Mãe de Deus;58 o segundo Cirilo,

este, monge carmelita, do século XIII, é identificado como sendo o terceiro Geral da

Ordem e o segundo depois da aprovação das Regras, dadas em finais do século XII ou

princípios do XIII pelo Patriarca de Jerusalém, Alberto.59 Para a parte do Mediterrâneo

Ocidental, são apresentados dois carmelitas sicilianos, ambos também do século XIII,

Ângelo60 e Alberto,61 sendo justificadas as suas menções pelos seus exemplos de vida,

o primeiro como mártir e o segundo pelos «seus merecimentos.»62

4.2.4 - A coroa real e o ouro

E são todos estes exemplos de vida cristã que, para Fr. Simão Coelho, justificam o

prémio de uma coroa real de ouro, quer para a Ordem enquanto símbolo de uma famí-

lia, quer para cada um dos seus elementos, pela honestidade havida e pelos testemu-

nhos dados em vida, o que constitui motivo para a receberem no «Reino de Deos».63

Assim, a coroa de ouro também tem uma finalidade pedagógico-catequética, ao lem-

brar a cada um «a gloria & bemauenturança que se dara a quele que pela fee de Christo

55 COELHO, Fr. S., op. cit., pp. 182-184.56 MALDONADO,Fr.D.C.,op. cit.,fl.90r.57 COELHO, Fr. S., op. cit., pp. 182-183.58 AnneCarrapontaparaqueocultoaMariatenhatidoinícionoséculoIV(cf.CARR,Anne, A Mulher na Igreja,sl,CírculodeLeitores,[1994/1995],p.268;jáHansKüngsugerequeestecultotenhacomeçadoentreosséculosIIIeIV,localizando-anazonaorientalmediterrânica,porseromundoherdeirodocultodasdeusas-mãe,comorigemnaÁsiaMenor(cf.KÜNG,Hans,O Cristianismo. Essência e História,sl,CírculodeLeitores,2002,p.423);aindadeacordocomHansKüng,aoficializaçãoteológicadesteprincípiomarianosóerapossívelemÉfeso,acidadeondesecultuavaa«GrandeMãe»,identificadacomasdeusasArtémisouDiana(Ibidem).59 Noanode1195,deacordocomFr.S.Coelho(cf.COELHO,Fr.S.,Compendio das Chronicas da Ordẽ de…,frontespícioep.183),ouentre1205e1214,osanosdagovernaçãodaquelepatriarca(«CARMES»,inGERHARDS,A.,Dictionnaire Historique des Ordres…, p. 125).60 SepultadoemAlicantedaSicília(cf.Ibidem);noCapítuloGeraldaOrdemrealizadoem1498,foiaprovadaasuafesta(cf.LÓPEZ--MELÚS,Pe.RafaelMaria(Carmelita),Los Santos Carmelitas-«SanAngeldeSiciliapresbitero»(carmelnet.org/chas/santos/angel2.htm-1.mai.2013).61 NaturaldeTrapana,naSicília,ondeestásepultado(cf.COELHO,Fr.S.,op. cit., p. 183); em 1296, foi eleito provincial da Ordem naSicília,emorreuem1307;afestaemsuahonrafoiautorizadaporbuladopapaSistoIV,em1476(cf.LÓPEZ-MELÚS,Pe.R.M.(Carme-lita), Los Santos…-«SanAlbertodeSiciliapresbitero»(carmelnet.org/chas/santos/albet2.htm-1.mai.2013).62 COELHO, Fr. S., Compendio das Chronicas da Ordẽ de…, p. 183; ao longo desta explanação, ele nomeia outros exemplos de religiosos.63 Idem, p. 184.

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trabalhar na quillo que em sua Regra lhes he mandado, na significação do escudo».64

Já segundo Fr. Diego Maldonado, a coroa está identificada pelas doze estrelas coloca-

das sobre a cabeça de Nossa Senhora - porque «la nube significa la virgen por esso po-

nemos la corona sobre la cabeça de la nube con doze estrellas»,65 - uma representação simbólica fundamentada no ApocalipsedeS.João.66

No âmbito da história da ordem, Fr. Diego Maldonado justifica a relação estreita

entre a coroa real e a Ordem Carmelita através da genealogia, ao estabelecer laços de

parentesco de Elias com Rei Salomão, filho de David:

También tienen corona nuestras armas, porque Helias fundador de la orden de el

Carmen fue nieto del Rey Salomon, hijo de su hija, y fue hijo mayor de el summo sa-

cerdote Achimas y hermano de el summo sacerdote Iojada llamado por otro nombre

Azarias.67

Ainda assim, já no século XVIII, apesar desta mesma relação genealógica se man-

ter, houve um desenvolvimento da ideia de realeza da Ordem, ao se estabelecerem

ligações parentais entre Elias e Maria, com o rei David a ser o elemento comum entre

os dois -

[descende] a Mãy de Deos da mesma Tribu [de Aram], e ascendencia de Elias; porque

se (…) descende de huma filha delRey Salamão o nosso Santissimo Patriarca, de David

descende, nobelissimo ascendente, a Senhora: resta só vernos como na Senhora se jun-

tarão estas duas Tribus de Judá, e de Aram. E foy assim: a Tribu de Judá por S. Joaquim,

e a Tribu de Aram por Santa Anna [os país de Maria],68 - o que constitui motivo, na he-

ráldica, para explicar a Ordem Carmelita com «Coroa fexada em cima das (…) Armas»,69

sendo a Bíblia o seu principal livro genealógico.

4.3 - Da antiguidade das armas à sua institucionalização

De acordo com Fr. Simão Coelho, não há possibilidades de se conhecerem as raízes

históricas das armas, o que é explicado por «não [se achar] quem [foi] o primeiro que

as recebeo, ou inventou, ou as deu».70 Já Fr. Diego Maldonado é da opinião de terem

64 Idem, p. 186.65 MALDONADO,Fr.D.C.,op. cit.,fl.90v.66 «Livro do Apocalipse» (Ap. 12, 1), in Bíblia…, p. 1622.67 MALDONADO,Fr.D.C.,op. cit.,fl.90v.68 LEOINDELICATO,Fr.Egidio,Jardim Carmelitano, Historia Chronologica, e Geografica. Noticias Sagradas, Domesticas, e Estranhas de vários sucessos da religião Carmelitana, Novamente cultivado, traduzido, e addiccionado no idioma Lusitano pelo M.R.P.M. Fr. Estevam de S. Angelio,PrimeiraParte,LisboaOccidental,RegiaOfficinaSylviana,edaAcademiaReal,1741,«Parte1.CapituloI:Addita-mentoao§II»,p.13.69 Ibidem.70 COELHO, Fr. S., Compendio das Chronicas da Ordẽ de..., p. 179.

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havido como armas antigas – «La cruz que remata el monte corriendo sangre, aunque

en estos tiempos no se pone por algunos en el escudo (y no se porque càusi) fue arma y

trofeo antiguo de esta orden, y assilos padres primitiuos la ponen (...)».71 Como reforço

da antiguidade histórico-bíblica das armas que apresenta e suportada nos elementos

que a compõem, destaca «que este escudo o armas son tomadas de todos los estados

que ha tenido nostra sagrada religion en los quales se ganaron todos estos trofeos que

en el van señalados».72

Não deixa de ser curioso que nenhum deles fala da emblemática heráldica con-

tida na obra de Fr. Juan de Novalaria. Se esta lacuna pode entender-se devido a um

possível desconhecimento da sua existência, também pode explicar-se por ela não ser

considerada com caráter oficial a toda a ordem, ainda que com significado institucional

identitário pela história e simbologia carmelita lá contida.

A institucionalização das armas carmelitas ter-se-á dado na última década do

século XVI, se se tiverem em conta as representações heráldicas existentes até aquela

data. A questão central poderá encontrar-se na evolução interna do escudo: pela per-

manência da partição do escudo – o mantelado – e o significado histórico-catequético

dado; pela retirada de elementos heráldicos primitivos, como foi o caso da representa-

ção antropomórfica de Nossa Senhora, mas que lá permaneceu, agora conotada com

o metal que ilumina o mantelado (prata/branco); pela introdução de novos elementos

como foram as estrelas, com o simbolismo histórico-bíblico que lhe foi dado desde

o início, evoluindo o seu número de duas para três. Ainda relativamente à inserção

de estrelas no escudo, pode dizer-se ter havido três fases, datadas: a primeira fase,

caraterizada pela sua ausência, de finais do século XV (1499); a segunda, caraterizada

pela introdução de duas estrelas no chefe do mantel, com exemplos conhecidos tanto

descritos como desenhados, entre 1571 e 1591; por fim, a terceira fase, de 1591 em

diante, com a introdução de uma terceira estrela, colocada no contrachefe do escudo,

conhecendo-se descrição e desenho, do ano de 1598,73 possivelmente como forma de

anular a novidade das armas da reforma carmelita, conhecidas provavelmente desde

158274 (Fig. 3).

Nesta representação de 1598, segundo Fr. Diego Maldonado, houve a reintrodu-

ção de um elemento, a cruz latina de negro, sugerida pelo recorte do mantel. Poderá

entender-se a recuperação deste móvel na heráldica carmelita dentro do ambiente de

tensão que, à época, se sentiria entre os dois ramos da família carmelita, com Fr. Diego

71 MALDONADO,Fr.D.C.,Dilvcidario y Demonstracion de las Chronicas...,fl.90v.72 Idem, fol. 90r.73 Ibidem.74 http://escudocarmelitano.blogspot.pt/2006/04/zelo-zelatus-sum-pro-domino-deo.html-17.jan.2013.

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Maldonado a ser da opinião de que a Ordem Carmelita Calçada era a única a ter legi-

timidade histórica para a usar – «La cruz que remata el monte (…) fue arma y trofeo

antíguo de esta orden» 75 – e não a Ordem Carmelita Descalça (Fig. 3). No século XVII e

a ter frontispícios de livros como fontes heráldicas, as duas correntes carmelitas portu-

guesas76 e espanholas usaram-nas indistintamente e com escudos de vários formatos.

Para o século XVIII, os frontispícios de várias publicações dos Carmelitas Calçados por-

tugueses apresentam-se com umas armas em escudo ovalado e em que o mantel é au-

sente de recortes em forma de cruz, encimado por coroa real e doze estrelas dispostas

em faixa curva77 (Fig. 3), próximas à das armas da fonte de S. Romão, estas sem coroa

ou faixa de estrelas (cf. Fig. 2). Umas e outras contrárias à descrição e explicação do

simbolismo apresentado no Jardim Carmelitano… .78 Desconhecendo-se qual a razão

para esta representação, terá sido uma forma de diferençar os carmelitas portugueses

dos espanhóis e dos carmelitas descalços?

5. Conclusão: Uma leitura da simbologia antropológico-teológica das armas

carmelitas Em jeito de explicação inicial, este estudo assenta na apreciação e comparação das

primeiras apresentações e leituras das armas carmelitas conhecidas do século XVI, da

autoria de dois monges carmelitas, Fr. Simão Coelho e Fr. Diego de Coria Maldonado.

Por ser o mais profundo na explicação simbólica delas, Fr. Simão Coelho tornou-se a

principal fonte.

No geral, em todas as explicações dadas por estas duas fontes quanto à simbologia

das armas carmelitas, dois conceitos estão presentes, um de âmbito geográfico e outro

temporal. Se historicamente localizado no Monte Carmelo, por ser o espaço conotado

com o nascimento da Ordem e da sua designação, num tempo que é datado com a vida

de Elias e Eliseu, já no plano sociológico, estes conceitos vieram a ser ampliados nas

suas dimensões espacial e temporal, com o espaço a ser considerado toda a Terra, ou

75 MALDONADO,Fr.D.C.,Dilvcidario y Demonstracion de las Chronicas..., fol. 90v.76 Pe.Fr.LuísdaApresentação,Vida e Morte do Padre Fr. Estevão da Pvrificação, Religioso da Ordem de N. Senhora do Carmo da Provincia de Portugal, Lisboa, Pedro Crasbeck, 1621.77 SÁ, Fr. Manoel de, Memorias Historicas dos Illustrissimos Arcebispos, Bispos, e Escritores Portugueses da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, reduzidas a Catalogo Alfabetico,LisboaOriental,OfficinaFerreyrenciana,1724;LEOINDELICATO,R.P.Fr.Egidio,Jardim Carmelitano, Historia Chronologica, e Geographica. Noticias Sagrada, Domesticas, e Estranhas de vários Successos da Religião Carmelitana. Oferecido a Maria Santissima, Mãe de Deos e dos Carmelitas, Traduzido e adicionado no idioma Lusitano pelo M. R. P. M. Fr. EstevamdeS.Angelo,PrimeiraParte,LisboaOccidental,RegiaOfficinaSylvanaedaAcademiaReal,1741;LEOINDELICATO,R.P.Fr.E., Jardim Carmelitano, Historia Chronologica, e Geographica. Noticias Sagrada, Domesticas, e Estranhas de vários Successos da Religião Carmelitana. Oferecido a S. Joseph, Primeiro Protector dos Carmelitas, Traduzido e adicionado no idioma Lusitano pelo M. R. P. M. Fr. Es-tevamdeS.Angelo,TerceiraParte,LisboaOccidental,RegiaOfficinaSylvanaedaAcademiaReal,1741;SANT’ANNA,Fr.JoséPereirade,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Dominios, Tomos Primeiro, Lisboa Occidental,OfficinadosHerdeirosdeAntonioPedrozoGalram,1745;SANT’ANNA,Fr.J.Pereirade,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Dominios,TomoSegundo,LisboaOccidental,OfficinadosHerdeirosdeAntonio Pedrozo Galram, 1751.78 LEOINDELICATO,R.P.Fr.E.,Jardim Carmelitano…,TerceiraParte,LisboaOccidental,RegiaOfficinaSylvanaedaAcademiaReal, 1741, pp. 443-447; possivelmente uma tradução do Dilvcidario y Demonstracion de las Chronicas...,deFr.DiegoMaldonado.

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seja, o local indiferenciado onde se encontre uma comunidade carmelita, e o tempo

a ganhar a dimensão de intemporalidade, ou seja, existindo, ontem, como hoje, uma

comunidade carmelita, assim as armas fazem sentido pela mensagem simbólica que

transmitem. Desta forma, pode, assim, dizer-se que, porque as armas nunca perdem

atualidade, elas entram numa outra dimensão espacial e temporal, intimamente rela-

cionadas com o fator psicológico, seja ele a título individual, seja ele a título coletivo,

tendo como pano de fundo uma mensagem de libertação.

Fr. Simão entende a razão de ser das armas carmelitas nas dimensões do indiví-

duo/religioso carmelita em relação com a instituição e a sociedade. Numa perspetiva

trinitária, ele apresenta o homem/monge antropologicamente formado de três ele-

mentos, aqui apresentados numa escala evolutiva, o elemento físico/institucional, o

elemento espiritual e, por fim, o elemento divino, com cada um destes elementos a ser

representado heraldicamente. O escudo é o homem/carmelita e os esmaltes – negro (a

honestidade dele consigo mesmo e com os outros), o branco/prata (a santidade que

pode alcançar) e o ouro (a nobreza de alguém que vive junto a Deus) – que iluminam

os elementos simbólicos que o compõem, eles representam aquelas três dimensões.

Mas o homem/carmelita precisa de quem o ajude na sua caminhada. Nas armas

carmelitas, encontram-se os tenentes de branco/prata, que amparam o escudo,79 ou

seja, os Anjos que intercedem junto a Deus por ele, cada um deles a simbolizar o amor

a Deus e o amor ao próximo.80

A santidade do homem/carmelita é alcançada por Deus, representada nas armas

pela coroa real de ouro, sinónimo da sua vivência junto do «Senhor Deus» e reconheci-

da pela comunidade/sociedade.

O Convento de S. Romão e Alverca são, simultaneamente, a via e o terminus da

viagem para a realização humana. Via, porque a relação que o Carmelita tem com as

populações de Alverca é a forma de ele chegar ao fim. Terminus, porque o Convento de

S. Romão/Alverca são o Carmelo, ou seja, são o exemplo do que é o Paraíso Terrestre,

assente numa relação estreita do Homem com a Natureza, atingindo a plenitude da

Criação, porque assim entendida como Obra de Deus.

79 Ibidem.80 Ibidem.

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Fig. 1 – Fonte de São Romão (c. 1950).Foto- CMVFX/MM-NA.

Fig. 2 – Pormenor do brasão carmelita existente na Fonte de São Romão (c. 1950). Foto- CMVFX/MM-NA.

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QUADRO EVOLUTIVO DAS ARMAS CARMELITAS

Século XV Ordem Carmelita

1499 (http://escudocarmelitano.blogspot.pt/2006/04/zelo-zelatus-sum-pro-domino-deo.html-17.jan.2013)

Século XVI

Ordem Carmelita Ordem Carmelita Descalça

1571 (FreiSimãoCoelho,Compendio das Chronicas da Ordẽ de Nossa Senhora do Carmo, sl, Antonio Gonçalvez,

1571)

1582 (http://escudocarmelitano.blogspot.pt/2006/04/zelo-zelatus-sum-pro-domino-

-deo.html-17.jan.2013)

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Século XVI

Ordem Carmelita

1591 (FrayDiegodeCoriaMaldonado,Manual de las Beatas y Hermanos terceros, de la horden de la siempre Virgen, y madre de Dios, santa Maria del monte Carme-

lo, Sevilla, Fernando de Lara, 1591)

1598 (FrayDiegodeCoriaMaldonado,Dilvcidario y Demonstracion de las Chro-

nicas y Antigvedad del Sacro Orden de la Siempre Virgen Madre de Dios Sancta

Maria del Monte Carmelo, Cordova, Casa de Andres Barrera, 1598)

Século XVIII

Ordem Carmelita

1724 (Fr. Manoel de Sá, Memorias Historicas dos Illustrissimos Arcebispos, Bispos, e Escritores Portu-gueses da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, redu-zidas a Catalogo Alfabetico,LisboaOriental,Officina

Ferreyrenciana, 1724)

1751 (Fr.JoséPereiradeSant’Anna,Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia nestes Reynos de

Portugal, Algarves, e seus Dominios, Lis-boaOccidental,OfficinadosHerdeirosde

Antonio Pedrozo Galram, 1751)Fig. 3 – Quadro evolutivo das armas carmelitas.

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Fontes e Bibliografia

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A “CORNAGA” DE VILA FRANCAAlgumas notas em torno de um suposto mito fundacional

David Fernandes da Silva1

Resumo: Partindo de um olhar sobre algumas características do território me-dieval de Vila Franca de Xira, procura-se verificar a possibilidade da existência de uma realidade territorial chamada Cornaga/Cornagua, com referências an-teriores e por vezes mitologizadas, relacionada ou interagente com o mesmo território, bem com suas as implicações linhagísticas, sociais ou de poder, ine-rentes ao domínio patrimonial do território.

Palavras chave: território, fundação, herdade, cornaga, linhagem.

“de Cornagaa que vocatur Sira”Este artigo não pretende ter o estofo de circunstanciar totalmente as questões em

torno da toponímia gentílica local ou sequer desenvolver apurado esmiuçamento no

que concerne à questão das origens da Cidade de Vila Franca de Xira, mas tão somente

reflectir um pouco sobre alguns aspectos documentais e (re)lançar questões que pode-

rão ser ulteriormente investigadas, num processo que visa perceber melhor as origens

e a “fundação” (num sentido cronológico mais lato) de Vila Franca de Xira.

Nessa medida, as notas aqui contidas, à semelhança do que intentámos nas notas

de pesquisa em torno da “fundadora concelhia” de Vila Franca de Xira, Dona Fruilhe Er-

miges de Ribadouro2, correspondem a “pré-artigos” de fundo, na tentativa processual

de entender e interpretar, à falta de bases documentais avultadas, o (re)nascimento da

Cidade e da região, nos primeiros séculos após a reconquista Cristã da área de Lisboa

e do vale do Tejo.

1. Questões de Toponímia Gentílica LocalUm dos “problemas” mais regulares para as memórias locais, começa com a signi-

ficação do próprio nome da localidade, do qual vem a derivar, por sufixação, os gen-

tílicos, que, de algo modo, vêm a tornar distintivo e identitário determinado aspecto

social, cultural, etc. Se é certo que “o nome de uma terra” não tem necessariamente que

significar nada de específico, é, porém, notória a busca mais ou menos incessante da

1 Licenciado emEstudos Portugueses, Pós-Graduado emHistória deArteMedieval.Técnico Superior de Cultura da Junta deFreguesiadeVilaFrancadeXira(“BancodaMemória”-ArquivoHistóricoParoquialDigital).2 SILVA,DavidFernandes,“FruilheHermigesdeRibadouro–notasparaacompreensãodafiguradaconcessoradoForaldeVilaFranca”, 800 anos do Foral. 1212-2012, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2013, pp. 70-75.

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percepção, em cronologias anteriores, daquilo que os avoengos quiseram transmitir,

ao “baptizar” uma localidade de determinado modo.

Isso é visível no caso de Vila Franca de Xira, em que o distintivo Xira, por não ser de

fácil acesso interpretativo, gerou o gentílico de origem erudita “xirense” (ou “cirense”),

em detrimento do corrente gentílico “vilafranquense”, o qual, ainda que confundível

com os gentílicos de outra qualquer “vila franca”, prevaleceu.

Excursando um pouco, mas com integração no contexto territorial, não conhecemos

registo do gentílico usado pelos naturais da antiga Vila de Povos, hoje integrada no

contexto da Cidade de Vila Franca de Xira, que presumimos seria “povosense” (e não

povoense, de “póvoa”).

A título de exercício reflexivo, dado que segundo algumas tradições renascentistas,

com ecos posteriores (porém sem comprovativo histórico e arqueológico – apesar das

evidências de um forte implantação humana na época romana) Povos seria identificá-

vel com Ierabrica, poderia ter prevalecido o gentílico “ierabricense”, do mesmo modo

que prevaleceu “conimbricense” para Coimbra (embora, de facto Coimbra fosse Æmi-

nium e não tenha prevalecido o “eminiense”), “calipolense” para os de Vila Viçosa ou

“scalabitanos” para os de Santarém.

No entanto, este prefixo “iera”, de Ierabrica, correspondendo a um topónimo pré-

-romano regional, prevaleceu ao que parece em “Xira”3. No entanto, sem invalidar esta

hipótese, veiculada por Amílcar Guerra, não é de excluir, até por confluência etimo-

lógica, que no termo medieval “Cira” (grafável Sira, Cira, Xira ou Zira) e a que Sousa

Viterbo4 atribui o senso medieval de brenha ou mato inculto, se possa ter articulado

mais do que uma origem, como é o caso de Xira poder advir do termo árabe “al-jazira”

(terra alagada, cabeças de ilhas, de onde vem o termo “lezírias”5) ou até poder advir de

“Sirus” ou “Siras” (distrito árabe, segundo Yakut, onde se incluía o Castelo de Povos, a

cujo alfoz pertenceria a zona de Vila Franca de Xira), como nos refere Helena Catarino

“deste modo, podemos até questionar se as duas Cira indicadas no foral de Vila Franca

não terão derivado dessa Sirus ou Siras [S.r.s] islâmica, cujo território corresponderia ao

controlado pelo castelo de Povos6”.

3 GUERRA,Amílcar,“ArespeitodonomedeVilaFrancadeXira,Boletim Cultural Cira 7, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1998, pp.1554 VITERBO,JoaquimdeSantaRosade,Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram,2ªed.revista,Lisboa,A.J.FernandesLopes1865.5 Vide NUNES, Graça Soares, Vila Franca de Xira. Economia e Sociedade na Instalação do Liberalismo (1820-1850), Vila Franca de Xira, Lisboa, Edições Colibri/ CM Vila Franca de Xira, 2006, p. 25.6 CATARINO,Helena,“OCastelodePovos-apontamentosobreoperíodoislâmicoemVilaFrancadeXira”,Senhor da Boa Morte: mitos, hist ória e devoção, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2000, p. 47.

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Como se pode ver a busca do sentido do nome continua bem presente no domínio

da pesquisa e das hipóteses. Mesmo o topónimo “Vila Franca”, aparentemente mais en-

tendível, oscila entre a possibilidade fundacional daquele núcleo urbano (distinto de

Xira, como se depreende do Foral de 1212) se poder atribuir aos “francos” (designação

genérica de um conjunto de povos do norte da Europa à época da reconquista cristã),

se referir a um conjunto de “franquias” (consignável em impostos, tributações, merca-

dos ou feiras francas), ou até a ambas.

2. O território medieval de Vila Franca de Xira

a) VILA FRANCA (a vila)

Não é particularmente fácil entender e balizar as realidades urbanas, rurais, fluviais

(e de fronteiras) do que seria a área de Vila Franca de Xira, na Idade Média, nomeada-

mente da vila de Vila Franca, sendo esta o que nós poderemos entender como o “núcleo

urbano antigo” de Vila Franca de Xira, e que parece vir aludida na “Carta de doação, feita

por D. Sancho I a Rolim e outros da Vila de Vila Franca [Azambuja], com seus termos”7,

em 1200. Com o tempo, veio também a definir-se esta vila como Vila Franca (de Xira),

do termo de Vila Franca (de Azambuja), provavelmente foreira do Castelo de Povos (a

quem D. Sancho I dá foro em 1195), o que se justifica a partir de aspetos relacionais,

linhagísticos e de partilhas familiares dos senhorios.

A eventual confusão entre “vilas francas” e outras realidades territorial agrava-se ain-

da mais na identificação das “personae” deste período medievo, desde logo e como

vimos em outro lugar, com a identificação deste D. Rolim com Childe Rolim (origem dos

senhores de Azambuja), que poderá ser eventualmente o D. Xira ou D. Cira/Sira, cava-

leiro bretão que ajudou D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa (1147). As crónicas

atribuem a este a doação régia de Azambuja e a terra que veio a ser Vila Franca de Xira,

a quem supostamente foi dado o nome de “Cornagua/Cornaga”, por ter sido “povoada

por gente da Cornualha”.

b) XIRA (a herdade)

Embora, já tivéssemos oportunidade de falar da realidade da Herdade de Cira que

depois se une a Vila Franca (nas determinações do Foral de 1212), convém recordar que

no contexto das fixações territoriais e manutenções das relações de poder, as proprie-

dades quintãs, como a Herdade de Cira ou Xira, ocupavam um lugar muito importante

e tinham um carácter de “bem/património”, que motivava a manutenção, a doação ou

7 ANTT, Gavetas, Gav. 3, mç. 11, nº6.

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dinâmicas de gestão, na medida em que a posse da terra arável era sinal de prestígio e

poder.

Esta Herdade de Cira (propriedade quintã na zona onde é hoje o Bom Retiro, Torre de

Cima, Bairro da Mata e Foros da Mata) tem uma importância essencial na compreensão

do território de Vila Franca de Xira, na Idade Média, constituindo um elemento “char-

neira” entre todos os outros elementos, na medida em que ela representa o “signum

potestatis” do(a) senhor(a) da terra, além de ser nela que estava a terra produtiva por

excelência, a estrutura de administração e poder, os celeiros, a adega, os moinhos, etc.

Esta Herdade estava na posse régia quando, em Abril de 1206, D. Sancho I, a concede

a Fruilhe Ermiges, ainda sua prima, atendendo que esta lhe “era muito próxima”8.

Nessa altura, Fruilhe era então casada com Fernando Ermiges de Baião (de quem

ainda era prima, por quem lhe havia de vir o senhorio de Vila Franca). Este, na altura

da concessão do Foral já deveria ter falecido, pelo que o Foral de Vila Franca de Xira é

concedido, em Novembro de 1212, por Fruilhe Ermiges e pelo seu filho menor, João

Fernandes.

Fruilhe era, assim, senhora de duas realidades distintas: Vila Franca e Xira, a quem

concede Foral conjunto e ordena: “mandamos que morem os moradores de xira ensem-

bra [conjuntamente] com os de vila franca nosa poboraçon”9.

A Herdade, além de símbolo de poder, seria seguramente, nem que fosse por ques-

tão de localização geográfica, “locus securitatis”, através da sua torre ou “castelo”: “a

atalaya da uila deuea de teenr dona froylli ermiget, e os homens de xira”, o que não

invalidava a “segurança” de Vila Franca (junto ao Tejo), por estrutura “amuralhada”: “o

enmiigo de fora nom entre aa uila sobre a defesa”.

A existência de uma torre ou algo estruturalmente semelhante é plausível, porque

além de estrutura de atalaia e vigia, a edificação de torres era prática comum para as-

sinalar visualmente as estruturas quintãs senhoriais, sendo a torre um sinal de poder10.

Do ponto de vista da “arqueologia semântica” ainda hoje, no Bom Retiro, temos os

topónimos: Casal da Torre, Quinta da Torre, Torre de Cima e Capelas, que se reporta à

memória “castrense” da Herdade e que ainda se espelha na memória heráldica do bra-

8 «EgoSancius…vobisdomneFroniliErmigiideillanostrahereditatedeCira.DamosvobisipsamhereditatemdeCira,scilicet,quantumnosibihabemus…Etconcedimusvobismattamuteamiurehereditarioinperpetuum…Hocsiquidemfacimusproptermultumser-viciumetbonumquodnobisfecistisetfacitisetquiaestismultumnaturalisnostra.»(Doaçãode1206),inSILVA,DavidFernandes,“FruilheHermigesdeRibadouro–notasparaacompreensãodafiguradaconcessoradoForaldeVilaFranca”,800 anos do Foral. 1212-2012, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2013, pp. 70-75.9 “Undedicimushabitatoribusdecira,uthabitentsimulinvillafrancainnostrapopulationedecira.”(Foralde1212),inSILVA,DavidFernandes,op.cit. ut supra.10 SILVA,JoséCustódioVieirada,“Atorreoucasafortemedieval”,El Museo de Pontevedra, vol. 53, Pontevedra, 1999, p. 99-115.

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são do municipal.

No entanto, a posse desta Herdade só sairá da sua alçada, quando em 1228, ela doou

à Ordem do Templo, onde se incluíam todas as suas posses na «hereditatem de Cira»:

“EmnomedeDeus.Ámen.Saibamtodosque,dehojeeparasempre,eu,D.FruilheErmiges,guiadaporinspiraçãodoDivino[…]dou,deminhaespontâneavontade,aDeuseaosIrmãosdaMilíciadoTemplodeSalomão[…]aminhaherdadedeCira,comtodososseustermos,novosevelhosecomsuaságuasepastosefontesequantoaítinha[…]econ-cedo,pararemédiodaminhaalma,demeumarido,demeusfilhosedemeusparentes[…]epelosmuitosegrandesbenefíciosquesempredelesrecebierecebo,porquemereceberamnasuasantaconfraternidade…”11

EstaHerdadecorrespondiaaumavastaáreaqueincluíaseguramenteoqueéhojeoBom Retiro, o Bairro da Mata, os Foros da Mata (total ou parcialmente) o Vale de Santa Sofia,confrontandonazonadeCardosas,notermodePovos,Arruda,estandoporperceberseincluíaouselimitavanaáreaqueéhojedeCachoeiraseCastanheira.

c) POVOS (o castelo)

No que concerne a Povos, de quem Vila Franca (de Xira) deveria ser foreira, a verda-

de é que, olhando o território, o que se conhece não é um foral medieval dado à Vila

(núcleo populacional que poderia e deveria existir, tal como Vila Franca de Xira, junto

ao Tejo), andando erradamente designado o Foro dos moradores do Castelo de Povos,

dado em 1195, por D. Sancho I, como um Foral, instituidor de um município, embora

em termos de determinativo legal tivesse muitas semelhanças: “do vobis hominibus at-

que vasallis et alumnis castellum de poboos, ad populandum iure hereditario (…) dare

et concedere vobis forum bonum”.

A averiguação da existência de núcleo urbano de Vila de Povos (junto ao Tejo), con-

temporâneo quer do Castelo de Povos, quer de Vila Franca (de Xira), poderia ajudar a

explicar a realidade desta Vila Franca (de Xira) estar sobre a alçada senhorial dos se-

nhores de outra Vila Franca (Azambuja), bem como tornar entendível algumas antigas

identificações do núcleo urbano da Vila com a suposta “Cornaga”, de que são exemplo

Alão de Morais e Duarte Nunes de Leão.

Além disso, no âmbito de um território castelejo, nada impede a existência de múlti-

plos núcleos populacionais (Vila Franca, Xira, Povos, etc.), como veio a acontecer poste-

riormente, no século XV/XVI com a distinção entre Castelo e Vila de Povos.

11 Cit. inSILVA,DavidFernandes.Ut supra.

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d) et alii

Além destas realidades que se conjugam directamente com “ Vila Franca”, faltar-nos-

-ia falar do território de Alcamé, em contexto lezireiro, zona territorial de risco (porque

situado na Linha do Tejo na época da reconquista), mas já presente nas Inquirições de

Afonso II, como paróquia moçárabe (?) sujeita à Ordem de Santiago, da qual pouco ou

nada sabemos, bem como um outro topónimo, que nos merecerá a reflexão seguinte:

CORNAGA.

3. Cornaga existiu de facto?Diz a Crónica de D. Afonso Henriques, de Duarte Nunes de Leão: “E os que quiseram fi-

car, (D. Afonso I) deu as terras, que lhes a eles contentaram, que foram as vilas, que ago-

ra são de Almada e Vila Franca, a que os ingleses a quem coube chamavam Cornualha,

e depois corromperão em memória da sua província: a qual vila hoje é Vila Franca…”

Como topónimo, termos semelhantes a Cornaga/Cornagam/Cornuaga não nos são

totalmente desconhecidos, incluindo fora de Portugal, havendo exemplos na Escócia

(zona de Nigg), ou na Itália (Culnaha e Cornagam são, por exemplo, nomes de localida-

des italianas no século XIII).

No contexto português há também várias “cornaguas”, no Concelho de Braga, no da

Lourinhã e no de Torres Vedras. A título de exemplo, o termo “Cornagam Vicum”, que

aparece na Acta Sanctorum de St. Egídio, designa uma vila/povoado chamada Cornaga

no termo de Óbidos, onde morava o famoso João de Alpoim. Na Idade Média, o Paúl

teria também a designação de Cornaga, bem como a actual Tornada, junto às Caldas.

No entanto, esta referência a Vila Franca (ou até mesmo Povos), como tendo sido to-

ponimizada como Cornaga parecia à primeira vista como algo improváve, sem provas

cabais ou documentais, o que nos levou a correr as chancelarias e arquivos nacionais

em busca de alguns indícios ou vestígios que o comprovassem ou desmentissem.

O que encontrámos superou grandemente, na medida em que encontrámos, não

uma, mas várias referências directas que, se não nos remetem para um determinado

núcleo, nos focalizam numa área: “Carta da Doação (cópia) da Herdade de Xira, em

Cornaga, concedida por D. Afonso III à Ordem do Templo”12; “Carta de Confirmação da

Doação (cópia) da Herdade de Xira, em Cornagam, concedida por Fernando Gomes à

Ordem do Templo”13; “Carta de Confirmação da Doação (cópia) da Herdade de Xira, em

12 ANTT, Leitura Nova, liv.53, f. 109v.13 ANTT, Leitura Nova, liv. 53, f. 109. (embora indexada separadamente corresponde ao mesmo doc. indicado na nota 16)

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Cornagam, concedida por D. Sancha Pais (transcreve-se Pires) à Ordem do Templo”14,

além das referências na “Carta (cópia) para os moradores de “Cira” não pagarem colhei-

ta, concedida por D. Afonso III à Ordem do Templo”15.

As duas primeiras anteriores assim indexadas na Chancelaria antiga reportam-se a

um mesmo documento, que existe tanto na forma original, como na sua transcrição na

Leitura Nova, que é a “Carta pela qual D. Fernando Gomes e D. Sancha Pais deixaram à

Ordem do Templo a Herança [Herdade] de Cornaga, renunciando a todos os seusdirei-

tos, datada de 18 de Dezembro de 1265”16. O original (fig.117) oferece algumas dificul-

dades de leitura, mas a sua transcrição (fig.218) torna-se mais simples pela comparação

com a versão da Leitura Nova, o qual passamos a transcrever:

14 ANTT, Leitura Nova, liv. 53, f. 109. (embora indexada separadamente corresponde ao mesmo doc. indicado na nota 16)15 ANTT, Leitura Nova, liv. 53, f. 2316 ANTT, Gavetas, Gav.7. mç. 3, nº14 (original) e ANTT, Leitura Nova, liv. 53, f. 109.17 ANTT, Gavetas, Gav.7. mç. 3, nº14.18 ANTT, Leitura Nova, liv. 53, f. 109.

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[À dita Ordem do Templo outra por que Dom Fernão Gomes e Dona Sancha Pires

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(assim e não “Pais”, como no documento original) sua mulher lhe leixaram a Herança

[Herdade] de Cornaga, que se chama Xira por conhecerem ser própria da dita Ordem e

haver tempo que a traziam e renunciaram a toda acção e direito, etc.]

“Noverint universi presentem paginam inspecturi, que Ego dominus Fernandus Go-

mecis Et ego Domina Santia Pais uxor ipsius Domini Fernandi Gomecii quitamus nos or-

dini Templi de Cornaga que vocatur Sira que est sua propia ipsius ordine Templi quam

nos tenimus alio tempore de ipso ordine & renunciamus omni accioni & omni iuri si-

quod habemus vel debebamus habere in ipso loco qui vocatur Sira quia nos recog-

nostimus qui ipsa Sira est ipsius Ordinis Templi Et qui nullum directum in ea habemus

Et mandamus Et concedimus qui ipse ordo faciat de ea: & disponat tamquam de pro-

pria hereditate quicquid sibi placuerit in aeternum. In cuius Rei testimonius fecimus in

de fieri ipsi ordini templi istam cartam per manus Salvatoris Didaci, publici tabellionis

Santaren & Sigilli Concilii eiusdem ville & nostros munimine Roborati. Et ego Rodericus

Menendi Alvazilis Santarenad rogatum predestor. Dominus Fernandi Gometis & Domi-

na Sancie Pais huic Carte Sigillum Santaren Concili aponifeci. Et ego Salvatoris Didaci

Publicis Tabellio Santarem: Rogatus hiis omnibus inter sui & hanc Cartam propria manu

subscripsi & in ea presene signum meum apossui in testimonium promissor. Actum

est hoc apud: Pigneirus xiii kalendas januarii era Mccciii qui presentes fuerunt Ioannes

_____ de Gollegana. Egas Laurentii filio quondam Laurentii ioannes de azinaga miles.

Alfonsus Piriz. Petrus Ioannis clericus domini Fernandi Gomecii. Petrus Ioannes laicus.

Et Petrus Laurentii: homines Domini Fernandi Gomecii. Frater Ioannes ordinii Templi

qui tunc temporis stabat in pigneiro.”

Segue a tradução (nossa) da Carta de Quitação da dita Herança/Herdade:

“Saibam todos os que virem este documento que eu, Dom Fernando Gomes, e eu,

Dona Sancha Pais, mulher do dito Dom Fernando Gomes, entregamos à Ordem do Tem-

plo, a Cornaga que se chama Sira que é da própria Ordem do Templo, a qual temos, pela

própria Ordem, há muito tempo, e renunciamos a todos os bens e todos os direitos que

temos ou que deveríamos ter nesse lugar que se chama Sira, pertencente à própria

Ordem do Templo e que nenhum direito nele temos e mandamos e concedemos que a

dita Ordem faça e disponha dela, bem como da própria herdade, para sempre, do modo

que lhe agradar. Em testemunho disto fazemos esta Carta à Ordem do Templo, pela

mão de Salvador Dinis, público tabelião de Santarém e o selo do Concelho da respecti-

va Vila e dos nossos selos firmados. E eu Rodrigo Mendes, Alvazil de Santarém, por me

ter sido pedido pelo que foi dito, aponho o selo do Concelho de santarém na carta de

Dom Fernando Gomes e e Sancha Pais. E eu Salvador Dinis, Público Tabelião de Santa-

rém. Por me ter sido por todos, pelo que atrás se diz, por minha própria mão assino esta

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Carta e nela aponho o meu selo, como confirmação de testemunho. Isto teve lugar no

Pinheiros a 13 dias das calendas (…) da era de 1303 (1265). Estiveram presentes João

______ da Golegã, Egas Lourenço, filho de Lourenço Joanes, cavaleiro da Azinhaga.

Afonso Pires, Pedro Joanes, clérigo de Dom Fernando Gomes. Pedro Joanes laico. E Pe-

dro Lourenço: homens de Dom Fernando Gomes. Irmão João da Ordem do Templo que

naquele tempo se encontrava no Pinheiro.

Esta Carta, dada no Pinheiro Grande (Chamusca), termo de Santarém, em finais de

1265 é de uma importância fulcral, na medida em que confirma aquilo que, à falta de

prova documental, poderia parecer mito, que Vila Franca é ou estava inserida numa

área chamada Cornaga, podendo ser ou não ser este o nome primitivo ou alternativo

da Herdade de Cira (referenciada em 1206 e 1212).

Por este documento, percebemos que o casal Fernão Gomes e Sancha Pais quitam a

posse de facto da Herdade de Cornaga, indicando que esta não era sua de iure, mas que

estava na sua posse.

Note-se que, um dado importante, nexológico da Herdade de Cira e da Herdade de

Cornagua, é a posse assumida e documentalmente definida nos âmbitos da Ordem do

Templo, ordem militar e religiosa, cuja história e papel está ainda por escrever de forma

cabal no que concerne à Linha do Tejo e à história local concelhia de Vila Franca de Xira.

Claro que isto não quer dizer, sobretudo porque há outros topónimos semelhantes

em Portugal, que esta “Cornaga/Cornagua” seja derivada da Cornualha, por serem dali

originários os “supostos” fundadores Vila Franca.

As referências a Cornaga/Cornagua como derivando de Cornualha e por ter sido

“fundada” por autóctones daí (nomeadamente cavaleiros que haviam tomado lugar na

conquista de Lisboa) são muito tardias (mesmo as estrangeiras, que são baseadas em

testemunhos tardios portugueses e não ao contrário), pelo que essa hipótese etimoló-

gica é hipotética, aparentemente absurda e derivada de uma necessária mitologização

que os antigos, sabendo da tradição toponímica ou tendo visto alguma referência do-

cumental, criaram com vista à explicação do nome Cornaga. Se assim fosse, as várias

Cornagas a nível nacional teriam tido origem em Cornishmen, o que não se verifica.

Sendo assim, teremos que procurar fazer um exercício sincretista entre aquilo que

são as características territoriais das Cornagas/Cornaguas nacionais e as suas probabi-

lidades etimológicas. Os elementos comuns parecer ser as confluências de cursos de

água, sendo que nas proximidades há sempre cursos de água, rios ou ribeiros, aperta-

dos em estruturas de terreno sobrelevado.

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Sendo assim, a mais séria probabilidade é derivar dos termos latinos “Cornua Aquam”,

que por crase e sucessiva corruptela deu Cornaga/Cornagua, com o sentido de um “cor-

no de água”, um “afunilamento” de estrutura de terra elevada, confinando uma porção

de água.

Olhando para a circunstanciação salientada dos documentos, e da circunstanciação

territorial (não havendo dúvidas que a nossa “Cornágua” é Xira – ou até Povos - ou na

zona que lhe está associada), teremos que procurar uma zona onde essa confluência

se faça.

Do ponto de vista territorial (embora hoje não seja muito visível) temos essa con-

fluência feita pelas Ribeira da Mata, Ribeira de Santa Sofia (Rio Barbas do Bode), e pela

Ribeira de A-de-Barrão, na zona do fértil Vale de Santa Sofia, além de outra hidrografia

que hoje pode não descobrir-se tão facilmente (conviria, por exemplo, averiguar as

conexões da Ribeira de Cachoeiras e o Rio Grande da Pipa, com estes cursos de água).

Acrescente-se que nos parece plausível a possibilidade da “ponta deste “corno de

água” territorial ser a zona chamada O Mirante, ponto elevado do Vale de Santa Sofia, de

onde se tem uma visão total, segura e avançada sobre todo o vale, que poderia ter sido

usada como atorreamento, num enclave entre o Bom Retiro e o Monte Gordo, abran-

gente visualmente o território mais rural, quintão e de montanha, sobre os cursos de

águas e sobre o Tejo, sendo que este rio e o seu vale eram, na época da Reconquista e

não só, uma zona imprescindível de controlo e de poder, com uma disposição geográ-

fica territorial muito diferente do que hoje apresenta19.

A Honra de Cornágua e Xira e as linhagens de Ribadouro e Baião Volvidos mais de sete séculos sobre as origens mais remotas de Vila Franca de Xira

torna-se complicado, à falta de (mais) fontes contemporâneas perceber as ligações fa-

miliares e linhagísticas, a partir da propriedade da terra, (bem como as outras estrutu-

ras de poder associadas), no que concerne à linha da Tejo e a área de Vila Franca de Xira.

Como já se viu em outro lugar20, o poder dos Ribadouro é notório no processo

contínuo de manutenção de senhorio (até por ser uma das cinco linhagens principais),

evidenciando-se no contexto local, numa primeira fase, a figura de Fruilhe Ermiges

de Ribadouro, como concessora do Foral medieval de Vila Franca de Xira, em 1212,

confluindo nela duas linhagens principais, Ribadouro e Bragançãos (por via paterna e

materna, bem como a própria Casa Real), ligando-se a ela a linhagem dos Baião (por via

19 MENDES,HenriqueePIMENTA,João.Vila Franca de Xira há três mil anos – o povoado de cabanas de Santa Sofia[JornaldaExposição], Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2012.20 VV.AA. 800 anos do Foral. 1212-2012 (CD), Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 2013.

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do casamento).

Recordando alguns dados sobre a figura, diremos que Fruilhe Ermiges de Ribadou-

ro, (c.1180, Penafiel - d.1229, Fonte Arcada), era filha de Ermígio Mendes de Ribadouro

(filho de Mendo Moniz, mordomo-mor de D. Afonso I, irmão de Egas Moniz, aio de D.

Afonso Henriques), governador de Penafiel, e Sancha Pires de Bragançãos. Casou com

Fernando Ermiges de Baião, viúvo de Maria Pais (de onde lhe advinha o Senhorio de Vila

Franca), de quem teve quatro filhos: Maria Fernandes, João Fernandes, Ermígio Fernan-

des e Soeiro Fernandes. Por ser bisneta de Afonso I e prima de Sancho I, Fruilhe recebeu

deste a herdade de Cira, em 1206, tendo disposto do senhorio para efeitos de foro, em

1212, e tendo-o doado, em 1228, à Ordem do Templo.

Ora, se saltarmos quase 50 anos, vemos como a Herdade de “Cornágua”, que se

poderia incluir ou ser nome alternativo da Herdade de Cira, estava nas mãos de Sancha

Pais e Fernão Gomes, embora, apesar de estar na sua posse, esta Cornágua e Xira per-

tenciam aos Templários (“de Cornaga que vocatur Sira que est sua propia ipsius ordine

Templi”), de onde se pode inferir que se não a mesma realidade, são realidades territo-

riais inclusas ou sobrepostas, de algum modo.

Excursando um pouco, ao falarmos da Herdade de Cira, à luz da confirmação da

existência de Cornágua, verificamos que, ao contrário do que a tradição cronística nos

indicava (que Cornágua tinha sido o primevo nome de Vila Franca/Xira), Cornágua ou é

uma “classificação geográfica” (à semelhança de “planície”, “vale”, etc.): “de Cornaga que

vocatur Sira” > “a Cornágua a que chamam Cira”; ou designa uma “área geográfica” sen-

do que o termo “Cira”, que designa quer a Vila Franca, quer define a “Herdade” (presente

na doação de 1206, no foral de 1212 e na doação de 1228) pode ser apenas um desig-

nativo da vasta área que nomeia a região: “in ipso loco qui vocatur Sira” > “no mesmo

lugar que chamam Cira”, parecendo a Cornágua ficar em Xira (embora possa ser que a

[Herdade] de Xira que fique na Cornágua).

Este casal, Sancha Pais e Fernando [Fernão] Gomes é sobejamente conhecido.

Sancha Pais era filha de Paio Viegas de Alvarenga, Senhor do Couto de Alvarenga, e de

Teresa Anes de Riba-Vizela, sendo trineta de Egas Moniz (e consecutivamente, prima de

Fruilhe Ermiges), Casou primeiramente com Nuno Mendes Queixada, tendo, por este

enlace. ligações aos Chacim. Dos vários filhos que Sancha Pais e Fernando Gomes tive-

ram sabemos que, pelo menos, Gil Barreto foi freire templário.

O nosso Fernando Gomes ou Fernão Gomes Barreto tinha bens patrimoniais repar-

tidos pelo norte do país, mas possuia também, com a sua família, a propriedade dos

Barretos em Santarém e sua área limítrofe.

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Como o seu pai, Gomes Mendes Barreto, que frequentou a corte de Sancho I, tendo

sido Mestre da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão e alcai-

de do castelo de Leiria em 1211, também Fernando Gomes aparece na cúria de Afonso

III, em 1248 e em 1254, tendo nesta última data, acompanhado o Rei em protesto pe-

rante Frei Roberto, bispo de Silves, no âmbito da sua eleição.

Estes Barretos, derivam da linhagem dos de Baião e descendem de D. Sancha Pais,

uma irmã de D. Gualdim Pais, Cruzado e Mestre Templário, Cavaleiro de D. Afonso I de

Portugal e fundador de Tomar. Sendo os Barreto “sobrinhos” de Gualdim Pais, não é de

estranhar que o pai de Fernando Gomes, Gomes Mendes Barreto, nos surja como Mes-

tre do Templo ou que um seu irmão, Paio Gomes Barreto seja freire do Templo.

Percebemos então que, à semelhança do que tinha acontecido com Fruilhe, esta-

mos numa esfera de movimentação de poder, que embora linhagística, orbita em torno

da Ordem do Templo.

O poder e prestígio que a Ordem de Cristo granjeava na época, à vez espiritual,

militar, social, defensivo, político, económico, etc., motivava que, em torno de uma de-

terminada propriedade e a honra que advinha da sua posse ou uso, se organizassem

estruturas clientelares em torno da mesma Ordem.

Assim sendo, tanto os Ribadouro como os Barreto se articulam com a Ordem do

Templo, numa lógica de sincretismo de poder, o que, desde logo nos permite perceber

a importância que Cornágua/Cira deveria ter no âmbito do património da região de

Lisboa e Vale do Tejo, para motivar esta interpenetração destas linhagens com a Ordem

do Templo.

Torna-se, pois, por demais evidente que é esta manutenção que conduzirá à cria-

ção da importante Comenda da Ordem do Templo/Ordem de Cristo, com especifici-

dades das ligações familiares inerentes, na estrutura organizativa, gestão e usufruto

de bens, um pouco como vai suceder séculos mais tarde com os Garção/Carvalho, nos

primeiros séculos de gestão da Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca de Xira (séc.

XVI-XVIII), pelo que se verifica imperioso, fazer um levantamento das fontes da Ordem

do Templo/Ordem de Cristo (ou Santiago, no caso das Lezírias), para a correcta e ampla

compreensão dos contextos de Vila Franca de Xira medieval.

Palavras finais Tendo em conta a reflexão anterior, ficamos a perceber várias coisas sobre a Cor-

nágua/Xira, sendo a primeira o facto de, na toponomização da região como “Cornágua”,

não ter havido ingleses, ou pelo menos não parece terem existido evidências dos ditos

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homens da Cornualha a “baptizarem” a região.

Segundo, ao contrário do que muitas vezes aparece indicado, não parece ter havido

supostas devoluções à Coroa do território de Cira pelos “francos” (os tais de D. Raulino

que receberam Azambuja e outras posses), evidenciando-se continuidade de manuten-

ção do senhorio da região, vilas e herdades, a que se agregam outros bens patrimoniais.

Terceiro, a posse de Cornágua/Xira é um evidente caso de tracto sucessivo linha-

gístico, no âmbito dos senhorios, com os Ribadouro e os Barreto (Baião) como protago-

nistas, sendo a Ordem do Templo, não apenas o garante da segurança e fixação, mas a

charneira de ligação familiar e de poder, no âmbito da propriedade de terra.

Quarto, verifica-se em Cornágua/Xira, que esta entra na posse dos Barretos, não só

pela proximidade com Santarém, mas também pela ligação linhagística evidente entre

este ramo familiar e a Ordem do Templo, comprovada pela Carta de Quitação de Corná-

gua/Xira, em 1265, já no Mestrado de D. Gonçalo Martins (1265-1271).

Quinto, (uma) Cornágua parece ser uma área geográfica muito lata (mas sempre

com o elemento fluvial agregado) com delimitações que podem, neste caso concreto, e

no sentido contrário à linha do Tejo ter termo na direcção de Arruda e Cardosas, de que

nos surgem evidências, em documentação posterior ao século XIV.

Sexta e concluindo, a Cornágua da área de Vila Franca de Xira, pelo menos na sua

parte de “cabo/ponta” parece corresponder a uma confluência de Rio Barbas do Bode,

Ribeira de A-de-Barrão e outros cursos, entre o que é hoje o Bom Retiro e o monte

Gordo, sendo o ponto de encaixe sobre o Vale de Santa Sofia, o chamado “Mirante”,

ponto alto na zona além da Quinta dos Desterro, na zona das antigas Quinta da Valença

e perto da Quinta dos Bairros (N. Sra. do Rosário), cuja prova ou negação terá que ser

verificada pela arqueologia espacial, in loco.

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D. António de Ataíde (1500-1563), 1º Conde da Castanheira – Vida e Obra.

Paulo Silva1

Resumo - D. António de Ataíde (1500-1563) foi o primeiro Conde da Castanhei-ra e Senhor das vilas de Povos e Cheleiros, e do morgado da Foz. Nasceu em 1500 e faleceu na vila da Castanheira a 7 de outubro de 1563. Este artigo explo-ra a proximidade com o rei e o poder que advém daí, transformando o 1º Conde da Castanheira num dos homens mais poderosos do seu tempo, destacando-se, igualmente, como mecenas.

Foi conselheiro de Estado, vedor da Casa Real, comendador de Langroina na Ordem de Cristo e alcaide-mor de Colares. Recebeu a primeira educação no Paço Real da Ribeira, sendo D. João ainda príncipe, com quem então mui-to convivera, devotava ao Príncipe D. João (futuro D. João III) grande amizade. Quando D. João subiu ao trono em Dezembro de 1521, por morte de seu pai, concedeu-lhe o título de Conde da Castanheira e nomeou-o embaixador em Paris para tratar de negócios da maior importância. Representou D. João III em Castela e na Alemanha, e em paga destes serviços, o rei nomeou-o, em 1532, conselheiro de Estado e vedor da fazenda, lugar que exerceu até 1557, ano em que faleceu aquele monarca. Foi um dos principais conselheiros do monarca, durante o seu reinado. Teve um papel central em questões cruciais do reinado de D. João III, como foram o povoamento, a instituição das capitanias-donata-rias e o governo-geral do Brasil e o abandono ou não das praças marroquinas.

Palavras- chave : D. António de Ataíde; Ataídes; Castanheira do Ribatejo; Con-de da Castanheira; D. João III.

1. Introdução D. António de Ataíde (1500-1563) foi o primeiro Conde da Castanheira e Senhor

das vilas de Povos e Cheleiros,2 e do morgado da Foz. Era filho de D. Álvaro de Ataíde,

senhor da Castanheira e de sua mulher D. Violante de Távora. Seus avós paternos eram

os condes de Atouguia e os maternos os do Prado. Nasceu em 1500 e faleceu na vila da

1 Técnico Superior de História, Museu Municipal de Vila Franca de Xira. [email protected]. Licenciado em História pela Universidade Autónoma de Lisboa “Luis de Camões”.

2 CheleirosfoiumafreguesiaportuguesadoConcelhodeMafra.AsuahistóriaficouligadaàpoderosafamíliadosAtaídes,senhoresdavilanoiníciodoSéculoXVIequedeixaramumanotávelmarcanasduasigrejasManuelinasqueaindaparcialmenteseconservamnocentrohistórico.

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Castanheira a 7 de outubro de 1563. Foi casado com D. Ana de Távora, filha de D. Álvaro

Pires de Castro, senhor do Mogadouro e de Mirandela, e de sua mulher, D. Isabel da

Silva, filha dos condes de Penela.

Foi conselheiro de Estado, vedor da Casa Real, comendador de Langroina3 na Or-

dem de Cristo e alcaide-mor de Colares. Recebeu a primeira educação no Paço Real da

Ribeira, sendo D. João ainda príncipe, com quem então muito convivera, devotava ao

Príncipe D. João (futuro D. João III) grande amizade. Tinham quase a mesma idade e a

convivência lhes granjeara mutuamente verdadeira afeição. Quando D. João subiu ao

trono em Dezembro de 1521, por morte de seu pai, concedeu-lhe o título de Conde da

Castanheira e nomeou-o embaixador em Paris para tratar de negócios da maior impor-

tância. Apesar de contar apenas 20 anos de idade, destacou-se neste cargo. Foi armado

cavaleiro em Tomar no ano de 1524. Representou D. João III em Castela e na Alemanha,

e em paga destes serviços, o rei nomeou-o, em 1532, conselheiro de Estado e vedor

da fazenda, lugar que exerceu até 1557, ano em que faleceu aquele monarca. Saindo

então da corte, retirou-se para a vila da Castanheira e ali faleceu.4

2. A Governação do Reino Integrante do círculo cortesão por nascimento, a proximidade física ao então fu-

turo monarca deverá ser levada em conta na compreensão das funções que D. João III

lhe atribuiu e do poder que na prática assumiu na governação e negócios da Coroa até

à morte do Rei. A influência que D. António de Ataíde tinha junto do príncipe era tão

grande que D. Manuel I chegou a manifestar algum desconforto e a mandar prender D.

António:

«el Rey que Deos tem [D. Manuel I] começou a ter descontentamento dos

que andauamos derredor del Rey Nosso senhor [D.João III]; e ? alguã maneira

teue razaõ, posto q? a el Rey Nosso senhor nunca passasse pella fantesia

decontenatarse de seu Pay, nem descontentallo; nem aos que eramos

fauoreçidos

delle [...] passaua pella fantesia atiçarem descõtentamento. E porem tam-

bem naõ

cuidauamos (hus pella pouca idade, de que eramos, e outros por algum

descuido, que nisto tiueraõ) no muito q? hia, em atè em nos se enxergar,

3 Langroina,LangroivaouLongroiva.ÉatualmenteumafreguesiadeMeda,distritodaGuarda.FoisededeConcelhoentre1120e1836.4 https://books.google.pt/books?id=-LVPAAAAcAAJ[HistoriaGeraldePortugal,eSuasConquistas,DamiãoAntóniodeCastro,1789,TypografiaRollandiana].

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q?em el Rey nosso senhor auia o cõtentam?to de seu Pay, que elle na verdade

sempre teue. Neste tempo começou el Rey Nosso senhor a ent?der em obras

de mançebo, e posto q? em todas foy sempre muy temperado, de alguas

moustrou el Rey, que Deos tem, descontentam?to, e teueo tambem do conde

de Sortelha, e de mim, de que em parte se seguio sermos, elle e eu presos, e

mãdados da Corte”5.

Foi um dos principais conselheiros do monarca, durante o seu reinado, sobre

assuntos tão variados como as vias de comunicação e transportes; técnicas militares,

navais e comerciais; às doenças. Teve um papel central em questões cruciais do reinado

de D. João III, como foram o povoamento, a instituição das capitanias-donatarias e o

governo geral do Brasil. D. António de Ataíde teve ainda um papel relevante na discus-

são sobre o abandono ou não das praças marroquinas.

Segundo Joaquim Veríssimo Serrão, a defesa perante o monarca do abandono das

praças portuguesas em Marrocos foi liderada pelo Conde da Castanheira6. Esta posição

está bem documentada na carta que D. António de Ataíde remeteu a D. João III, em 4

de Outubro de 1541, defendendo o abandono das fortalezas de Safim e de Azamor, em

Marrocos, e a concentração dos esforços de Portugal na Índia:

“Quando cuido nas coisas que Vossa Alteza é obrigado a suster, e no modo de

que está sua fazenda, representam-se-me tantas desesperações, que muitas vezes

me parece que vem mais de minha compleição melancólica, que doutra coisa. E já

me algumas vezes aconteceu para me tirar desta dúvida, buscar alguns homens de

muita idade e experiência para saber deles a diferença que há deste tempo ao pas-

sado, que eles tinham visto de mais necessidades. Os mais me diziam que nunca

tamanhas foram. E alguns hão que houve já outras tais, e que se remediaram. E

estes me parece que cuidavam pouco nelas. Porque de alguns anos a esta parte vão

elas sendo tão diferentes das passadas, que põe alguns costumes muito novos a esta

terra, com que Vossa Alteza e ela, a meu ver, não podem; e se se não buscar remé-

dio, hão-de poder cada vez menos. Uma foi começar-se a tomar dinheiro a câmbio.

E desde que se começou a tomar até agora, nunca se outra coisa fez; e quase se

não sustêm daí as despesas de Vossa Alteza. E porque ainda isto não bastava para

se remediarem, se começaram a vender juros. E posto que creio que são vendidos

quantos se podiam vender, algum serviço cuido que tenho feito a Vossa Alteza em

5 D.AntóniodeAtaíde,CopiaD`HvmPapel,EmQveDomAntonioD`AttaydeprimeiroCondedacastanheira,deurezãodesiaseusfilhos,edescendentes,[Lisboa,10deJaneirode1557];PELÚCIA,AlexandraMariaPinheiro,MartimAfonsodeSousaeasualinhagem:AelitedirigentedoimpérioPortuguêsnosreinadosdeD.JoãoIIIeD.Sebastião,Lisboa,UniversidadeNovadeLisboa,FaculdadedeCiênciasSociais e Humanas, 2007.6 Serrão,JoaquimVeríssimo,HistóriadePortugal.VolumeIII:OSéculodeOuro(1495-1580),Lisboa,EditorialVerbo,1978,págs.39-42, e nota 113 (na pág. 41).

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isso não ir mais avante, de que testemunhas: e o pior é que já agora não há quem o

compre. Porque, se no reino houvera pessoas de muito dinheiro, ainda se puderam

remediar as despesas com vender jurisdições, que agora parece tão abominável coi-

sa, como parecia venderem-se juros, quando se começaram a vender. E uma coisa e

outra o são muito: porque na verdade não se deviam de dar senão por serviços, nem

comprar com outra moeda. Assim que a meu ver destas coisas se não podem já va-

ler. E os câmbios também me parecem que hão de durar pouco; e muito mais pouco,

se virem que Vossa Alteza se não põe em ordem. Porque os mercadores não vivem

senão de olhar pelo modo da vida das pessoas com que contratam, e que podem

fazer meter na cadeia; e até pelos jeitos julgam se hão de fiar deles; quanto mais de

reis, que, por derradeiro, se lhe não podem pagar, não podem eles mais fazer nisso

do que fazem as partes que tem dinheiro na Casa da índia, que desejam bem de o

arrecadar.

E pois o suprimento das despesas assim está, e elas vão lavrando mais que her-

pes, devem de haver algum modo de se cortarem. Porque um homem permite cor-

tarem-lhe um dedo, por não perder a mão, e a mão por não perder o braço. E neste

negócio não receio que por não cortar uma coisa, se perca ela e outra, senão todas

totalmente e sem nenhum remédio. E as despesas de Vossa Alteza são as da India; e

cá no reino tenças e moradias, compras e tesouro, capela, guardas, relações, caça e

monte, música e ministros, e despesas extraordinárias, e lugares dalém, que ponho

por derradeiro para falar primeiro nas outras.

As da India a meu ver se devem de engrossar; e de quão desnecessária me pare-

ce a gente que Vossa Alteza mandou o ano passado, tanto me parece necessário ir

muita na armada que o ano que vem com a ajuda de Deus há de ir. Porque agora por

esta nau que da India partiu derradeiro escrevem novas de rumes, e parece razão,

porque está o Turco desocupado, o que não estava os anos passados, e com pouca

esperança das coisas da Alemanha, e desapressado de Coron. E às coisas da India se

deve acudir como a remédio de todas as outras. Assim que por muitas razões se deve

agora gastar mais.

Com as tenças se não deve de bulir, porque essa é a vida dos fidalgos e pessoas

principais de seus reinos, e muito poucas ou nenhumas há que não sejam muito bem

merecidas; e além disso é o mais barato soldo por que se podem achar soldados,

quanto mais tais pessoas como são as que as têm; e bem se viu agora em Safim, que

mil soldados custaram pouco menos ou por ventura mais de dez mil cruzados, e não

chegaram a tempo; e portugueses foram mais de mil com cem fidalgos, que se deti-

nham em Lisboa com tanto trabalho, como se embarcavam os soldados em Andalu-

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zia, e isto se paga com umas poucas de tenças; e as mais delas já dantes merecidas,

e fica o dinheiro no reino em em pessoas que quando vão a servir lhe não lembra

senão o amor que tem a Vossa Alteza com que o fazem. Em moradias me parece que

se pode poupar pouco, porque os fidalgos de seus reinos hão de viver com ele. E não

queira Deus que em seus dias se quebre um tão bom costume destes seus reinos. Ca-

valeiros, escudeiros e moços da câmara servem tanto, e em coisas para que são tão

necessários, que se faz provisão em os tomar. E isto vejo eu muito bem pelo carrego

que tenho, e creio que o provarei largamente, quando cumprir.

Os lugares dalém que Vossa Alteza tem no reino de Fez aproveitam para muitas

coisas muito grandes, e dão esperança doutras muito maiores; e umas e outras de

muito serviço de Nosso Senhor, e por estes frutos que se deles colhem e esperam, é

muita honra destes reinos susterem-se. Porque, a meu ver, entre os sisudos e hon-

rados, e ainda entre a gente comummente se chama vaidade o que se sustêm sem

fruto nem esperança dele. De se suster Safim se não seguem frutos honrados nem

proveitosos; e se sustêm com fazendas de órfãos e viúvas, a que Vossa Alteza não

paga o que deve; e dele tem o xerife muitos cristãos cativos, de que se tira muito

dinheiro destes reinos; lembrando-me também que não tem rio nem porto para se

poderem recolher fustas de mouros, nem na terra aparelho para as fazer, me parece

que Vossa Alteza o deve mandar derribar e deixá-lo de todo; e que o mesmo deve

mandar fazer de Azamor, mandando fazer uma fortaleza na barra que baste para

se não virem fustas meter no rio, nem poderem dele sair, que é a meu ver o fruto que

se agora colhe de Azamor, porque em tudo o mais está igual a Safim, senão quanto

está aventurado a o tomarem cada vez que quiserem, porque claro está que não

pode ser socorrido senão com outra tanta gente, como a que o tomou, que será má

de ajuntar em tanto curto tempo, como o em que se ele poderá defender”.7

D. António de Ataíde, no que respeita ao governo do Brasil, teve várias ações re-

levantes. Em 1529 enviou o seu primo Martim Afonso de Sousa, como comandante de

uma armada, para ir combater o corso dos navios franceses no Brasil e conquistar o

Rio da Prata.  Contando com escassos recursos financeiros e pretendendo incentivar a

ocupação da terra, por iniciativa do Conde da Castanheira, Dom João III doou quinze

capitanias na costa do Brasil, entre 1534 e 1536. Igualmente, D. António de Ataíde não

perdeu a oportunidade de consolidar interesses económicos particulares no Brasil en-

tre 1549 e 1552, recebendo em Sesmaria as Terras de Tatuapara8 e recebeu por doação

7 http://www.arqnet.pt/portal/discursos/outubro02.html8 Bahia.Brasil.

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Régia as Ilhas de Itaparica9 e Taramandiba.10

É interessante verificar, na atualidade, que há alguns brasileiros, que consideram

D. António de Ataíde como o “inventor do Brasil”. Vejamos este texto retirado de um

artigo de Eduardo Bueno, editado na Revista Época (uma das maiores revistas semanais

publicadas no Brasil, lançada em 1998), em 2001, que aborda esta corrente:

“Um dos mais extraordinários personagens do Brasil colonial permanece desconhecido

de 99,9% dos brasileiros. Seu nome não é encontrado em virtualmente nenhum livro didáti-

co, e mesmo os acadêmicos o ignoram quase por completo. No entanto, durante mais de 30

anos nada se fez no Brasil que não por ordem de dom Antônio de Ataíde. Entre 1525 e 1558,

Ataíde era de fato o homem que mandava no Brasil simplesmente porque era o homem que

mandava no rei.

Em 1530, partiu de Lisboa a primeira expedição colonizadora enviada ao Brasil. Quem a

organizou? Dom Antônio de Ataíde - que escolheu seu primo-irmão Martim Afonso de Sou-

sa para chefiá-la. Em 1534, a colônia foi dividida em capitanias hereditárias. Por ordem de

quem? De dom Antônio - que distribuiu os lotes entre seus colaboradores mais próximos.

Em 1549, fracassado o regime das donatarias, estabeleceu-se o Governo-Geral.

De quem foi a idéia? De Ataíde - que, além de nomear outro primo-irmão, Tomé de Sou-

sa, para o cargo de governador-geral, redigiu o “regimento” que tem sido chamado de “pri-

meira Carta Magna do Brasil”.

Quem, afinal, era dom Antônio de Ataíde e como chegou a adquirir tanto poder? Nas-

cido em 1502, era um fidalgo que virou o melhor amigo do então princípe-herdeiro dom

João (nascido em 1503). Os dois garotos passaram a infância e a juventude juntos. Tão

íntimos eram que, julgando que a influência de Ataíde sobre dom João “pudesse ser feitiço”,

o rei dom Manuel não só afastou o primeiro-amigo da corte como mandou prendê-lo. Mas

em fins de 1521 dom Manuel morreu. Ao assumir o trono, com o nome de dom João III, o

novo rei transformou Ataíde no homem mais influente de Portugal”11.

Em 1532 já tinha recebido um alvará para comercializar pimenta vinda da India.

Foi, também, um intermediário primordial perante o rei, das questões de “gestão de

recursos humanos” na corte e outras instituições: apoiou e promoveu a carreira militar

do futuro vice-rei da Índia D. João de Castro e apoiou a nomeação de António Pinheiro,

9 Bahia.Brasil.10 Minas Gerais. Brasil.11 http://www.morrodomoreno.com.br/materias/antonio-de-ataide-ou-conde-de-castanheira-o-homem-que-mandava-no-rei.html.

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em 1550 para cronista do Reino.

O Conde da Castanheira após a morte de D. João III, continua a manter alguma

influência na Corte – durante a regência da rainha D. Catarina (1557-1562) – mas o seu

poder vai sendo diluído e acaba por sair da Corte, quase no fim da sua vida.

3. O Patrocínio de Construções O Senhorio de terras constituía uma espécie de apresentação territorial da “ver-

dadeira nobreza”. Desta forma o patrocínio de construções nesses mesmos senhorios,

constituía a consolidação de uma estratificação social e ambição política, muito vinca-

da no início do reinado de D. João III. De acordo com esta lógica, D. António de Ataíde

iniciou o “enobrecimento” das suas terras12.

Em Agosto de 1532, D. António de Ataíde está empenhado em obras de reconstru-

ção na vila da Castanheira, onde, resultado do terramoto do ano anterior e segundo as

palavras de Gaspar Correia “ouuve casy tudo per terra em que morreram mujtas pessoas”.

Um dos exemplos dessa campanha é a Igreja de São Bartolomeu, Matriz da Castanheira

(1534).13

Fig.1 - Igreja de São Bartolomeu. Castanheira do Ribatejo. Foto- Amélia Gonçalves. 2014. CMVFX.

Numa carta de D. João III, afirma-se que na Castanheira existia um hospital secular

administrado pelos oficiais da Câmara, o qual ficara destruído pelo terramoto de 1531.

E que, à data, o Conde da Castanheira “para nobrecimento da dita Vila começava a fazer

nela um castelo”, necessitando para tal do espaço ocupado pelas ruínas do primitivo

hospital. Na mesma carta fica estabelecido o compromisso de D. António de Ataíde

doar dízimos ao novo hospital e de se empenhar pessoalmente na construção do mes-

mo. Em contrapartida, o hospital seria administrado por ele e pelos seus sucessores.14

12 Luzio,LuísaFrança,D.AntóniodeAtaíde,1ºCondedaCastanheiraeoPatrocíniodeArquiteturaaoRomanonaPrimeiraMetadedo Século XVI, Lisboa, Comunicação [Texto Policopiado], UNL-FCSH, 2004.13 Idem, p.1023.14 Idem, p. 1025 e p.1026.

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O arranque das obras do novo hospital terá ocorrido entre 1536 e 1538 segundo

D. João III “…e assim me disse que na dita vila da Castanheira se fazia hora hum esprital

para nelle serem os pobres recolhidos curados e remediados. Por serviço de nosso senhor e

por esta obra ser muito virtuosa piedosa e necessária”. A par do hospital, a construção da

Igreja da Misericórdia, à qual estaria anexo (e que ainda existia bastante destruída no fi-

nal do século XIX), foi igualmente patrocinada por D. António de Ataíde, como constava

numa lápide existente no edifício, na qual as duas construções eram datadas de 1544.

De ambas nada resta hoje, nem descrições que permitam identificar a arquitetura.15

Exemplos da dimensão jurisdicional são a construção do cais de Povos, bem como

da calçada que com ele comunicava. Estruturas edificadas, segundo palavras de D.

António de Ataíde, para puro benefício da povoação. No mesmo cais terá sido ainda

construída uma “ermjda de São Sebastião que se faz ao caez de pouos”. Não existem já

quaisquer vestígios do cais, da calçada ou da ermida.16

Um outro domínio que conheceu especial atenção por parte da nobreza portu-

guesa do século XVI, respeita à construção de espaços habitacionais – a casa continua

a ser expressão da ideia de “solar”, apresentando-se como testemunho visual do poder

senhorial. Para além das casas que D. António de Ataíde possuiria em Lisboa ““...em hua

parede que mandey fazer no terrejo das casas que forão de minha may que deos tem

que estão nesta Çidade de Lixboa na fregesya de São crjstouão…”, o Conde mandou

edificar na vila da Castanheira um “castelo”, que em 1537 estaria já em construção. Não

se sabe até que ponto este “castelo” foi concluído ou não, nem que espaço ocupava no

contexto urbano (a tradição oral aponta como local do baluarte um terreno fronteiro à

Igreja de São Bartolomeu).17

As ruínas ainda hoje visíveis junto à ermida do Senhor da Boa Morte (solar dos

Ataídes), são por vezes confundidas com o “Castelo” do conde da Castanheira, mas este

espaço não está mencionado no testamento de D. António de Ataíde e só aparece re-

ferido, juntamente com outras casas “junto do chafariz de Pouos”, num inventário que

se fez por morte de seu filho, também, D. António e 2º Conde da Castanheira, a 31 de

maio de 1614. Em ambos os casos, tudo leva a crer, que são edificações posteriores às

intervenções realizadas pelo 1º conde da Castanheira.18

D. António de Ataíde ainda mandou construir casas em Almeirim, Colares e Be-

navente. Algumas fontes afirmam que após o seu afastamento da corte, D. António de

15 Idem, p. 1026.16 Idem, p.1027.17 Idem, p. 1028.18 Idem, p. 1029.

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Ataíde terá passado a residir num local deserto, próximo do Convento de Santo Antó-

nio da Castanheira, em “humas casas, que sendo com este fim trazido pelo desengano,

não lhe fez a obra de grande architectura”, as quais teriam já desaparecido em 1740.19

O Convento de Nossa Senhora de Subserra da Castanheira, pertencia à Ordem Terceira

de São Francisco e fora fundado por D. Fernando de Ataíde, viria em 1541 a sofrer algu-

mas obras patrocinadas por D. António de Ataíde: conclusão do claustro, dormitórios,

casas da portaria, casa da roda e casas dos padres confessores. O convento foi demoli-

do em 1987, apenas dele se conservando algumas lápides funerárias dispersas no adro

da Matriz da Castanheira.20

Outra área privilegiada de encomenda, por parte da nobreza do século XVI, foi a

construção do túmulo. O convento de Santo António da Castanheira terá sido fundado

por Fr. Pedro de Alemancos, em 1402, e foram vários os reis que apoiaram este conven-

to: D. João II, D. Manuel e D. João III. Tendo conhecido igualmente o patrocínio de D.

Álvaro de Atouguia. É reconhecido a D. António de Ataíde, 1º Conde da Castanheira, o

maior investimento no edifício. Algumas fontes apontam D. António de Ataíde como

o promotor de um panteão funerário no Convento de Santo António da Castanheira:

“mandando fazer huma capella, se bem de pouca architectura, muy custosa para seu jazi-

go, e de seus descendentes”.21

Fig.2 - Convento de Santo António. Loja Nova. Amélia Gonçalves. 2014. CMVFX.

19 Idem, p. 1029, p. 1036.20 Idem, p.1038.21 Idem, p. 1039 e p. 1040.

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Será na Igreja deste convento que D. António se quis fazer sepultar, depois de ter

mandado erigir na igreja uma capela para jazigo familiar. Das obras que D. António

mandou realizar temos como testemunho mais antigo a Crónica de Frei Manuel da

Esperança (1656): “Quem mais o engrandeceo (o convento) nestes derradeiros tempos

foi o amor q lhe tinhão os Senhores da Casa da Castanheira, & mais em particular o

primeiro Cõnde D. António d`Ataíde, que nos mereceo com isso o nome de Padroeiro.

Privou muito com El rei D. João III em razão de sua grande prudência, & tanto que o vio

morto, quis também morrer aos despachos do reino, retirando-se da corte a estas par-

tes, onde veio esperar o tepo da sua morte para se lagrar da sepultura que elegeo na

sua capella mor, a qual tinha reparado com grandíssimas despesas. Mas muito maiores

foram as que fez seu filho D. Jorge de Ataíde Bispo de Viseu, Capelão Mor, o qual por

todas as vias autorizou este pae, digno de veneração (…) Demais disto se tornou a fazer

de novo a dita capela-mor, onde tomou pera si cova humilde na terra, & ao Conde seu

pae, & Condessa sua mãe D. Ana de Távora levantou nas paredes dous gloriosos supul-

cros com elegantes epitáfios.22”

4. Considerações Finais A figura de D. António de Ataíde não conheceu ainda um estudo biográfico, e as in-

formações que a historiografia portuguesa aborda são essencialmente das suas ações

enquanto vedor da fazenda a partir da década de 30 de Quinhentos. No entanto, os

dados obtidos sobre os cargos desempenhados e distinções obtidas levam à conclusão

de que o 1º Conde da Castanheira, foi um dos homens mais poderosos do seu tempo,

com uma relação muito próxima ao rei: quando em 1514 o príncipe D. João toma casa,

D. António de Ataíde é já um dos seus criados mais próximos.

Fig.3 - Fonte de Santa Catarina, com o brasão dos Ataídes. Castanheira do Ribatejo. Paulo Silva. 2008. CMVFX

22 RIBEIRO,JoséAlberto,«ACapelasepulcraldosAtaídenoConventodeSantoAntóniodaCastanheira»,Boletim Cultural Cira, nº 8, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1999, p.13.

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O Marquês de Castelo Rodrigo encomendou em 1627 a Fr. Luís de Sousa a produ-

ção da obra “A Vida de D. João III”, e este historiador não deixou de salientar este poder:

“…ninguém naquele tempo se aventajava nas partes de conselho e maduro juízo ao

grande conde da Castanheira”.23 Era entendido na época como o principal intermediá-

rio perante o rei. O próprio monarca nunca escondeu a consideração que tinha por D.

António (a par de D. Luís da Silveira, que viria a ser o conde de Sortelha), por exemplo,

em 1527, o rei envia D. António de Ataíde e D. Martinho de Portugal na embaixada ao

papa Clemente VII, recomendando D. João III ao pontífice o futuro conde da Castanhei-

ra, já identificado como pertencendo ao seu conselho e sublinhando o “merecimento

de dom António”.24

O Conde destacou-se, também, como mecenas. D. António era um homem bas-

tante influente e com poder económico suficiente para poder exercer uma atividade

mecenática no seu território. A este homem deve-se, por exemplo, a encomenda feita,

em 1550, a Leonardo Nunes da Crónica de D. João de Castro e dos feitos de D. Álvaro,

filho do Vice-Rei.25 O facto de ter viajado pelo estrangeiro proporcionou-lhe, decerto,

o conhecimento da arte de trabalhar “ao romano”, que quis usar como forma de pres-

tígio social e cultural. E, será sobretudo a partir de 1532, depois da obtenção do título

de Conde da Castanheira, que as povoações de Povos e Castanheira se tornarão numa

fábrica de lavrar à maneira de Itália.26

Bibliografia

LUZIO, Luísa França, D. António de Ataíde, 1º Conde da Castanheira e o Patrocínio de Arquitectura ao Romano na Pri-meira Metade do Século XVI, Lisboa, Comunicação [texto policopiado] baseada na investigação para a dissertação

de mestrado em História da Arte , UNL-FCSH, 2004.

MATTOSO, José, História de Portugal, No Alvorecer da Modernidade (1480-1620), Terceiro Volume, Lisboa, Editorial

Estampa, 1993.

PELÚCIA, Alexandra Maria Pinheiro, Martim Afonso de Sousa e a sua linhagem: A elite dirigente do império Portu-guês nos reinados de D. João III e D. Sebastião, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais

e Humanas, 2007.

RIBEIRO, José Alberto, «A Capela sepulcral dos Ataíde no Convento de Santo António da Castanheira», Boletim

Cultural Cira, nº 8, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1999.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, O Século de Ouro (1495-1580), III Volume, Lisboa, Editorial Verbo,

1978.

23 Luzio,LuísaFrança,D.AntóniodeAtaíde,1ºCondedaCastanheiraeoPatrocíniodeArquiteturaaoRomanonaPrimeiraMetadedo Século XVI, Lisboa, Comunicação [Texto Policopiado], UNL-FCSH, 2004, p. 1020. 24 Idem, p. 1016.25 RIBEIRO,JoséAlberto,«ACapelasepulcraldosAtaídenoConventodeSantoAntóniodaCastanheira»,BoletimCulturalCira,nº8, Vila Franca de Xira, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1999, p.13.26 Idem, p.13.

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Etapas, setores e empresários do desenvolvimento in-dustrial no estuário do Tejo (1850-1890)

Graça Soares Nunes1

Resumo: Os principais objetivos deste trabalho são a identificação e análise dos setores industriais, que se estabeleceram no estuário do Tejo, entre 1850-1890, na zona industrial de Lisboa, região de Vila Franca de Xira, tentando per-ceber se os mesmos contribuíram, ou não, para o desenvolvimento industrial do país.

Incluímos a caracterização dos industriais e indústrias, que se fixaram na zona, detetando a utilização e transmissão de conhecimento científico e de nova tecnologia, no contexto global da propagação intercontinental da revolu-ção industrial europeia.

Os principais setores industriais detetados foram: extração mineira, curtumes, têxtil, químico, cerâmico e alimentar. Analisámos as razões e a forma, como cada um destes sectores industriais se fixou nesta zona.

Palavras-chave: setores; industriais; indústrias; ciência; empresários.

Introdução A história da Sociedade Industrial deverá ser encarada como um processo global,

que integra não apenas a história das revoluções industriais, e da industrialização dos

continentes europeu e americano, mas também, as transformações económicas e so-

ciais que se verificaram no mundo inteiro.

As novas técnicas, aplicadas à agricultura, à manufatura e aos transportes, alteraram

as formas e os meios, das produções agrícolas e manufatureiras.

A vida das populações transformou-se de forma irreversível. O crescimento susten-

tado da população, e a produção por habitante, foram favorecidos e possibilitados pela

industrialização e urbanização das cidades. Eram estas as características do crescimen-

to económico da era moderna.

A revolução tecnológica apensa nos transportes e comunicações, marcou a tran-

sição para as economias de carácter moderno possibilitando através da redução dos

1 TécnicoSuperiorConservadordeMuseus,MuseuMunicipalNúcleodeAlverca.MestreemHistóriaRegionaleLocalpelaFa-culdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa.CursodeFormaçãoAvançadadoProgramaInteruniversitáriodeDoutoramentoemHistóriada Universidade de Lisboa (ICS), Instituto de Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Évora).InvestigadoradaUE-CIDEHUS(UniversidadedeÉvora-CentroInterdisciplinardeHistória,CulturaseSociedades).

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custos de transação, a ligação entre as economias periféricas e centrais. As grandes al-

terações na economia mundial, ocorridas no Século XIX, permitiram o estabelecimento

de mercados internacionais que ligaram as periferias ao centro.

A disseminação do processo da industrialização à escala planetária foi lenta e di-

ferenciada de continente para continente, e de região para região. Em muitos países

estas transformações ocorreram entre um ou dois séculos após a eclosão no país de

origem da Revolução Industrial, a Inglaterra.

Inserido no contexto europeu dentro dos mercados periféricos globais, Portugal so-

freu uma industrialização diferenciada e lenta, com algumas analogias com os países

mais próximos e periféricos, do sudoeste europeu.

A partir de 1840, a industrialização portuguesa emerge de forma mais regular, mas

não aparenta um desenvolvimento significativo, comparativamente aos países da Eu-

ropa central. Só na década seguinte, em plena Regeneração é que se verifica um cres-

cimento, que a partir da década de 70 é mais acentuado.

Na segunda metade do Século XIX, fixaram-se de forma definitiva, principalmente

na região de Lisboa, várias indústrias, no ramo da atividade têxtil, alimentar, produtos

químicos, cerâmica e cimento. Surgiram numa fase, em que o país no âmbito das rela-

ções externas desejava a afirmação da sua posição imperial no Mundo.

Encetaram-se então, medidas específicas para a defesa de novas opções económi-

cas que englobavam a utilização de novas tecnologias nos transportes, comunicações,

agricultura e atividades artesanais. Na sua maioria, as primeiras unidades fabris instala-

ram-se nas principais cidades, ou em redor das mesmas modificando-lhes a paisagem

e a vida das populações.

No estuário do Tejo, na zona industrial a norte de Lisboa, surgiram algumas indús-

trias, entre 1850-1890, fundadas maioritariamente, por empresários que pretendiam

investir nas novas formas de produção ou em outros meios de exploração económica,

que não fossem exclusivamente de carácter agrícola, mas que também a sustentassem.

Em muitos casos, existia uma ligação direta entre os novos proprietários agríco-

las, de origem burguesa, surgidos após a Revolução Liberal e os novos empresários

industriais. Estes industriais operavam basicamente na área da indústria têxtil, química

e moagem de cereais. Muitos exerciam a sua atividade nas duas áreas da atividade eco-

nómica – Agricultura e Indústria.

Desenvolveram o conhecimento científico e tecnológico, exercendo cumulati-

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vamente, cargos na gestão das empresas e na direção técnico-científica das mesmas.

Alguns colheram no estrangeiro os últimos ensinamentos científicos, e inovações

tecnológicas, aperfeiçoando-os e aplicando-os à indústria em Portugal, fizeram-se ro-

dear de homens da ciência e técnicos especializados, muitos de origem estrangeira,

(francesa, italiana, inglesa e alemã) com quem trabalhavam e recolhiam e partilhavam

conhecimentos científicos.

Estabelecemos o ano de 1890 como o ano de charneira, porque é geralmente con-

siderado o ano de início, da inversão das tendências baixas, da industrialização portu-

guesa, associadas às mudanças de ocorrência das crises de produção.

2. Empresários, industriais e homens da ciência. Etapas e setores do

desenvolvimento industrial no estuário do Tejo (1850-1890)

A industrialização portuguesa ocorrida no séc. XIX tem sido considerada de forma

diversificada pelos vários historiadores, que se têm debruçado sobre esta matéria. As-

sim, tendo como ponto de referência a realidade britânica, esta evolução da indústria

portuguesa é considerada por alguns autores como bastante lenta no contexto do de-

senvolvimento económico do país.2 Contudo, os últimos estudos sobre esta temática

apontam para um crescimento continuado, ao longo do séc. XIX, embora lento. Em

contraponto, outros estudiosos interpretam esse crescimento como uma sucessão de

avanços lentos e recuos, obedecendo às flutuações da política portuguesa e aos fatores

da conjuntura internacional.3

Os vinte anos que antecederam a primeira Guerra Mundial foram de crescimento

para as economias da periferia europeia, incluindo-se neste desenvolvimento a disse-

minação da tecnologia, nomeadamente o uso do vapor e a concentração de unidades

fabris nos centros urbanos.

Para Jaime Reis, após 1870, a economia portuguesa não gira apenas em torno do

setor agrícola, não podendo contudo afirmar-se que a mesma tenha sido conduzida

pelo sector industrial.4 Compara Portugal à Bulgária recorrendo a estudos de A. Gers-

chenkron e de P. Bairoch,5 demonstrando que Portugal apresentava níveis de desenvol-

2 Veja-seporexemplo:CABRAL,O desenvolvimento do capitalismo em Portugal no séc. XIX, Porto, 1976 e CASTRO A. de, A Revolução Industrial em Portugal no Séc. XIX, Porto, 1986.

3 Paraesclarecimentosobreestamatéria,veja-seLAINS,Pedro,«Aindústria»,HistóriaEconómicadePortugal.1700-2000,(0rg.Lains, Pedro e SILVA, Álvaro Ferreira da), vol. II, p. 260.4 REIS,Jaime,«AIndustrializaçãonumpaísdedesenvolvimentolentoetardio:Portugal,1870-1913»,AnáliseSocial,Vol.XXIII(6), 1987,-2º, 213.

5 Vid. BAIROCH, P., International industrialization levels from 1750-1980,(Cord)Patrick O´Brien, Ed. Routdlege, Lon-dres, 1998.

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vimento semelhantes ao da região dos Balcãs, e cerca de 50% inferiores aos de Espanha

e Itália.

O mesmo autor admite que, apesar de estas comparações enfermarem por alguma

fragilidade, não definem a atividade industrial portuguesa como incompleta, embora

esta não estivesse à altura, dos processos de industrialização da Rússia, Suécia e Alema-

nha. Em sua opinião, o processo de industrialização português, foi superior ao da pró-

pria Grã-Bretanha, França, Espanha e Itália, assemelhando-se ao da Hungria e Áustria.6

Apesar de um rápido crescimento industrial, este não foi suficiente para dar um

cunho diferente à economia portuguesa, em que o peso da indústria fosse equiparável

ao da agricultura.

Pedro Lains situa o crescimento industrial português, na taxa média anual de 2,5%,

na segunda metade do séc. XIX e na década anterior à primeira Guerra Mundial. O mes-

mo autor refere, que para que tal acontecesse, seria preciso que a fase de crescimento

mais lenta de 1850 a 1890 fosse continuada, por uma forte industrialização nas duas

décadas seguintes.7

Pedro José Marto Neves efetuou um estudo, sobre primeiros sinais de modernida-

de empresarial, na indústria transformadora portuguesa, no período temporal de 1880

até à Primeira Guerra Mundial.

Estabeleceu um padrão de referência para a definição de modernidade, baseado

nas grandes empresas, considerando que estas emergiram «com a segunda revolução

industrial».8 Estudou as 50 maiores empresas portuguesas, implementadas entre 1881

e 1917, tendo por base o número de trabalhadores.

Através da análise realizada, confirmou que o tecido empresarial português, antes

da 1ª Guerra Mundial, assentava num pequeno mercado semiperiférico. Não sendo o

nosso país, muito propício ao aparecimento, na data apontada, ao estabelecimento de

estruturas empresariais modernas. Não foram detetadas por esta investigação, nesse

período, na região do estuário do Tejo, indústrias com essas características.

Os estudos de caso poderão ajudar a esclarecer algumas das questões levantadas,

pelos diferentes autores, e contribuirão para o estabelecimento do mapeamento do

desenvolvimento industrial português. A análise dos diferentes setores industriais e a

6 Idem,pp.213 e 214.

7 Vid.LAINS,Pedro,Osprogressosdoatraso.UmanovahistóriaEconómicadePortugal,1842-1992,Ed.ICS,Lisboa,1993,p.137.

8 Vid.NEVES,PedroJoséMarto,Grandesempresasindustriaisdeumpaíspequeno:Portugal.Dadécadade1880à1ªGuerraMundial, (Tese de doutoramento, text. policop.), Universidade Técnica de Lisboa, Instituto Superior de Economia, Lisboa, 2007, p. 3.

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sua distribuição geográfica, poderá clarificar as diferentes fases de crescimento indus-

trial do país, identificando o tipo de sectores e a existência ou não de setores de ponta

e inovadores no contexto nacional e internacional.

Este trabalho contempla alguns destes pressupostos e centra-se na problemática

da identificação e caracterização dos principais setores industriais, da região de Vila

Franca de Xira, assentando no eixo temporal - 1850-1890, pelo facto de constituir uma

contextualização introdutória, ao um estudo de caso, da primeira indústria de cimento

do tipo portland, instalada em Portugal, em Alhandra no ano de 1894.

Tem por objetivos primordiais o reconhecimento dos sectores industriais que se

fixaram no país nesta região, e o estabelecimento da correlação dos mesmos com as

regiões industriais portuguesas, referenciadas e estudadas por David Justino.9

Para além dos propósitos enunciados, a identificação de setores inovadores da

industrialização portuguesa, que tenham por base a transferência de tecnologia e a

instalação de indústrias novas no contexto da industrialização portuguesa, é o intuito

final.

2.1 - Dos empresários agrícolas aos industriais e homens da ciência (1850-1890) Na segunda metade do século XIX, a falta de escolarização é apontada por autores

da época, como fator primordial para o não reconhecimento da atividade industrial,

como um dos setores emergentes da atividade económica. Oliveira Martins é um deles,

e, evocava essa contingência, como sendo a causa primordial para a não adesão às ide-

ologias modernas que grassavam por toda a Europa.

Expressava-se do seguinte modo:

«Dentro da Europa, Portugal é talvez a nação onde o sentimento das ideias modernas

menos se tem propagado. Encarando a nossa sociedade, podemos atribuir este facto à

falta de instrução pública e ao carácter próprio da vida económica».10

Este discurso é paradigmático de um sentimento comum, a uma nação de fraca escolariza-

ção, centrada em si própria, ainda com grandes expectativas nos territórios africanos, enten-

didos como o eldorado necessário e desejado, para fazer face às dificuldades económicas.

9 Vid.JUSTINO,David,AformaçãodoEspaçoEconómicoNacional.Portugal1810-1913,Vol.I,Ed.Vega,Lisboa,1988.

10 MARTINS,Oliveira«Fisionomiapolítico-socialdaNaçãoportuguesaeosocialismo»,(1873),Liberalismo, socialismo, republi-canismo. Antologia do pensamento político português (cord.)SERRÃO,Joel,edi.HorizonteUniversitário,Lisboa,1979.

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Na esfera política notava-se a ausência de um projeto estratégico de desenvolvi-

mento económico e industrial específico. Todavia, com o golpe militar desencadeado

pelo duque de Saldanha iniciou-se um novo período na vida parlamentar portuguesa,

designado por Regeneração que contemplou um amplo debate no parlamento, sobre

a economia portuguesa.

No discurso político da época, estavam comummente presentes duas ideias cha-

ve – a ideia de progresso e de civilização. Expressões cujo sentido mais amplo, continha

uma transformação à escala global, a que Portugal não podia ficar alheio, dentro do

contexto europeu.

Alexandre Herculano, José Estevão ou Oliveira Marreca, personificavam essa corren-

te ideológica, sendo pioneiros na sua defesa.11

Entre 1848-1851, Fontes Pereira de Melo em conjunto com outros jovens deputados,

foram os responsáveis pela integração continuada, destes dois desígnios nos discursos

políticos do país, fundamentando um programa em torno da distinção entre progresso

material e progresso moral.

Fontes apregoava: «Quero o progresso material do país; quero estradas; e não seria

um grande progresso termos estradas? ... Nós não podemos dar dois passos, sem que

pelo mau estado em que estão os caminhos tropecem os cavalos (…) Quisera porém

que desde já se melhorasse a indústria e a agricultura, porque realmente carecem de

muitos melhoramentos. Sr. Presidente, eu não quero só o progresso material, quero

também o progresso intelectual, quero o progresso da instrução pública, porque estou

persuadido que sem ele não pode haver liberdade no país ( …)».12

O seu conceito de progresso englobava o desenvolvimento da literacia e o incre-

mento do conceito de liberdade, proveniente do ideário liberal.

Outros deputados menos conhecidos, como por exemplo Cunha Souto Maior, em

intervenções a favor do livre-câmbio, associavam a reflexão sobre o progresso ao de-

senvolvimento económico do país.

Esse progresso era visto por este deputado, como a forma globalizante, que através

da revolução tecnológica vigente, permitiria a ampla liberalização das trocas comer-

ciais ao nível mundial. Num dos seus discursos aponta: « (…)O vapor, os carris de ferro,

a telegrafia eléctrica, hão-de mudar radicalmente a legislação e a existência actual da

11 Vid.JUSTINO,David,«OLivre-câmbioeofontismorevisitadosatravésdosdebatesparlamentares»,Desenvolvimento económico e mudança social. Portugal nos últimos dois séculos. Homenagem a Miriam Halpern Pereira, edi. ICS, Lisboa, 2009, p.52.

12 Idem, p. 53.

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sociedade. A história mostra, por assim dizer, em cada uma das suas páginas que o pro-

gresso é sempre precedido do progresso material. (...)».13

Estes depoimentos transmitiam claramente, uma ampla visão tecnológica assente no

desenvolvimento científico, que não tiveram a correspondente sustentabilidade política.

No período de incidência deste estudo, 1850 a 1890, destacaram-se alguns indus-

triais que inicialmente eram somente empresários agrícolas, e que no decurso da disse-

minação da industrialização à escala global, investiram na indústria e no conhecimento

científico.

Aproveitaram o contingente incentivo político da época, que apoiava a expansão

deste tipo de projetos industriais, como sinónimos de progresso material.

Muitos nunca abandonaram definitivamente o sector agrícola, aventurando-se no

sector da indústria de forma incipiente. Encarando esta nova opção de negócios, como

uma experiência pontual, mantendo outras atividades relacionáveis, no sector agrícola

e nos serviços, nomeadamente contribuindo para o desenvolvimento da área financeira.

Outros industriais investiram na indústria, encarando-a como a grande possibilidade

de desenvolvimento humano, assente na nova visão tecnológica e científica, tendo por

base a sua própria formação científica, adquirida no país e consolidada no estrangeiro.

O periódico Gazeta das fábricas, revista mensal da Associação Promotora da Indús-

tria Fabril, atesta a vontade dos empreendedores da indústria portuguesa, em desen-

volverem o conhecimento científico, tal como acontecia pela Europa e pelo mundo, e

bem patenteado nas exposições universais. O discurso introdutório desta revista espe-

cializada é apanágio desse interesse sobre a evolução do conhecimento técnico aplica-

do à indústria.

« (…)O periódico industrial, cuja publicação começa hoje, é destinado a dar notícia

do estado, e progresso da indústria nacional, e deve ao mesmo tempo promover este

progresso, anunciando as descobertas, e melhoramentos, das artes e ofícios, nos ou-

tros países, para que cheguem facilmente ao conhecimento de todos(…)».14

Ao nível internacional, e assumindo claramente a supremacia Britânica da nação or-

ganizadora, na nota de abertura da primeira Exposição Universal da Indústria, promo-

vida em Londres em 1851, o comissário da mesma, Henry Cole, enunciava:

13 Ibidem, p.54.

14 Gazeta das fábricas,Lisboa,V.1,n.1(Jan.1865)-v.2,n.7/8(Jul.Ago.),Ed.Typ.daSociedadeTypo-graphicaFranciscoPortuguesa,1865-1866.

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«(…)A história do mundo não regista evento comparável, na promoção da indústria

humana, como o de a Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as nações,

de 1851. Um povo extraordinário convidou todas as nações civilizadas para um festival,

para comparar os trabalhos de perícia humana. Foi realizado por organismos privados;

foi auto-suficiente e independente de impostos e do emprego de escravos que os gran-

des empreendimentos dos tempos antigos tinham exigido (…)».15

O marido da rainha Vitória de Inglaterra, o príncipe – Alberto de Saxe-Coburgo Gota,

foi o grande mentor da primeira exposição universal realizada em Londres na época

vitoriana.

As palavras de abertura, sobre a participação portuguesa, na exposição Universal

de 1851, são reveladoras da nossa fraca industrialização, mas denunciam algum mérito

na nossa representação, através dos produtos oriundos dos recursos naturais do país.16

Alguns empresários e cientistas, que incrementaram a industrialização em Portugal,

tinham uma visão global de progresso, centrada no desenvolvimento tecnológico e

científico, o Conde de Farrobo, e o 2º Visconde de Villa Maior, Júlio Máximo de Oliveira

Pimentel são dois seguidores dessa corrente ideológica.

Joaquim Pedro Quintela foi uma personagem incontornável da vida portuguesa, da

primeira metade do Séc. XIX. Nasceu e faleceu em Lisboa, respetivamente em 1801e1869.

Ostentou os títulos nobiliários, de 2º barão de Quintela e 1º Conde de Farrobo.

Como grande capitalista, possuía extensas propriedades na capital e arredores. O

seu vasto património era constituído basicamente por bens de raiz, fator que se justifi-

ca plenamente pelo facto de ter sido titular do morgado de Farrobo até 1863.17

Distinguiu-se igualmente pelo enorme gosto e empenho pelas artes.

Politicamente foi defensor da causa liberal e, em 1831, devido à grave crise financei-

ra que o país atravessava, D. Miguel decretou um empréstimo forçado, tendo o Conde

de Farrobo, recusado a sua contribuição, pelo que perdeu todos os privilégios, honras

e direitos, sendo obrigado a fugir.

15 LEITÃO, Nicolau Anderson, Exposições Universais. Londres, 1851. Ed. Expo 98. Lisboa, 1994, p.7. Idem p. 7.16 LEITÃO, Nicolau Anderson, Exposições Universais. Londres, 1851. Ed. Expo 98. Lisboa, 1994, p.7. Idem.«(…)acolecçãoenviadapelosexpositoresportugueseséextremamentericaemmatérias-primaseprodutos,eparecequeforamfeitosconsideráveisesforçospararepresentartantoquantopossívelosrecursosnaturaisdopaís,emboraassuascapacidadesdefabricoaindanãotenhamsidodesenvolvidas(…)»,p.7.17 LIMA,NunoMiguel,«HenryBurnaynocontextodasfortunasdaLisboaoitocentista», Análise Social, nº 192,Lisboa,2009, p.12.

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Fig. 1- Conde de Farrobo - BNL.

Todavia, não deixou de apoiar financeiramente a causa de D. Pedro, o que lhe valeu

um reforço da perseguição de que era alvo por D. Miguel. Em 1832 este monarca obri-

gou o Conde, por decreto, a sair da capital. Farrobo conseguiu iludir a ordem, escon-

dendo-se em casa de um súbdito inglês e continuando a apoiar a causa constitucional.

Após a vitória liberal, em 1833, D. Pedro elevou-o a Conde, e dois anos depois tor-

nou-se Par do Reino.

Como homem de negócios desenvolveu intensa atividade e foi grande impulsiona-

dor dos novos conhecimentos no âmbito da ciência.

Investiu em várias empresas nomeadamente: na empresa vidreira da Marinha Gran-

de; na fábrica de produtos químicos da Verdelha em Alverca; na mina de carvão de pe-

dra de São Pedro da Cova, em Gondomar; na fábrica de fiação de seda do Convento de

Santo António, em Vila Franca de Xira; nas companhias de seguros Bonança e União Co-

mercial; na Fundição Vulcano e na Companhia dos Caminhos-de-Ferro de Norte e do Leste.

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Fig.2- Quinta do Convento de Santo António onde funcionou a Fábrica de Seda do propriedade do Conde de Farrobo. Foto-MMVFX.

Foi ainda acionista dos Contratos do Tabaco, Saboarias e da Companhia das Lezírias

do Tejo e Sado.

Não foi considerado um industrial,18 uma vez que grande parte do seu património

era oriunda dos bens de raiz. Era grande apoiante das artes cénicas e do canto lírico,

particularmente da ópera, tendo sido empresário do Teatro de S. Carlos.

No entanto, deu grande contributo à introdução de novas ideias na área industrial,

sendo adepto da modernidade e inserção no país, de novas tecnologias e conhecimen-

tos científicos.

Júlio Máximo de Oliveira Pimentel foi segundo visconde de Vila Maior. Nasceu em

Torre de Moncorvo, em 1809 e faleceu em Coimbra em 1884.

18 Cof.LIMA,NunoMiguel, «HenryBurnayno contextodas fortunasdaLisboaoitocentista»,Análise Social, nº 192,Lisboa,2009.

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Era oriundo dos Oliveira Pimentel, família de Torre de Moncorvo que se notabilizou

na sublevação contra as invasões francesas no período da Guerra Peninsular.19

Fig.3 - JúlioMáximodeOliveiraPimentel.BNL.

Na Universidade de Coimbra, efetuou o curso de Matemáticas, dedicando-se às ci-

ências, nomeadamente à disciplina da química. Tornou-se promotor da evolução da

ciência e do ensino de Química.

Foi o primeiro lente catedrático da disciplina de química na Escola Politécnica. A sua

ação foi bastante importante, no ensino técnico do país, através da introdução de novas

dinâmicas e metodologias. Transmitiu excelentes conhecimentos técnico-científicos às

gerações futuras, primando pela prática científica e apelo da ciência como mentora do

desenvolvimento económico do país.20

19 Atravésdoseuavô,JoãoCarlosOliveiraPimentel,emaistardenasguerrasliberais,peloseutioClaudi-no Oliveira Pimentel.20 Vid.MATOS,AnaCardosode,«Entreolaboratório,aindústriaeaintervençãopolíticaeadministrativa.OquímicoJoséJúlioBettencourtRodriguesnaSociedadeportuguesadasegundametadedoséculoXIX», De-senvolvimento Económico e mudança social. Portugal nos últimos dois séculos. Homenagem a Miriam Halpern Pereira, edi. ICS, Lisboa, 2009,p.173.

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Contactou, por ocasião da exposição Universal de Paris de 1855, com os grandes

industriais da área da química, como por exemplo F. Kulmam, tendo conhecido na épo-

ca as grandes indústrias químicas estrangeiras, nomeadamente o modelo francês, que

descreveu no relatório que elaborou sobre a exposição Universal de Paris.

Nos diferentes discursos públicos transmitia a sua ideia de defesa do progresso

como mentor do futuro. Tinha uma boa opinião sobre os industriais estrangeiros, con-

siderando-os grandes idealistas e mentores do progresso da época em que viveram. O

exemplo pode ser dado pelo discurso que proferiu enquanto reitor da Universidade de

Coimbra em 1872: «(…) Os homens de a grande exposição dos trabalhos da indústria

de todas as nações eram tipicamente idealistas. O progresso da sua época assim os

fizera (…)»21.

Publicou numerosos trabalhos científicos, na sua área de eleição a química. Desta-

cando-se um tratado sobre química em três volumes.

Estudou as propriedades das águas minerais das mais importantes fontes termais

portuguesas (Gerês, Caldas da Rainha, etc.), e dedicou-se também ao estudo da viticul-

tura, ampelografia e enologia.

Na área da viticultura e vinificação, escreveu várias obras,22 e também, sobre a pai-

sagem vinhateira do Douro, deixou uma importante obra literária, em edição trilingue,

que é o Douro Ilustrado - Album do rio Douro e paiz vinhateiro (1876), em que descreve

o troço do Douro entre Barca de Alva e o Porto, sob a forma de impressões de viagem.

No campo político foi liberal convicto e exerceu vários cargos públicos: Diretor do

Instituto Agrícola (1857); Vereador e Presidente da Câmara de Lisboa (1858-59) e Reitor

da Universidade de Coimbra (1869-1884).

Como industrial, o seu grande projeto foi a instalação da indústria, Sociedade Geral

de Produtos Químicos, em 1859 na Póvoa de Santa Iria, da qual foi proprietário e Diretor

Técnico até 1862, ano da sua dissolução. Nesta data a fábrica foi comprada pelo indus-

trial francês Fernando Óscar Deligny.

O visconde de Vila Maior, integrou a representação portuguesa, nas exposições In-

ternacionais - Universais de Londres, em1855 e 1862, e em Paris nas de1867 e 1878.

21 PIMENTEL,JúlioMáximodeOliveira,Discurso pronunciado pelo reitor da Universidade de Coimbra, visconde de Villa Maior por ocasião da festa comemorativa da reforma da universidade em 1772, Ed. Imprensa da universidade, Coimbra, 1872, P2.22 Como por exemplo: O Manual de viticultura prática (1875); Memória sobre os processos de vinificação em-pregados nos principais centros vinhateiros do continente do Reino, ao Norte do Douro (2 vols., 1867, 1868); Tratado de vinificação para vinhos genuínos (2 vols., 1868, 1869); Ampelografia e enologia do país vinhateiro do Douro (1868).

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Em 1873 completou a delegação de Coimbra da primeira Comissão encarregue de estudar a

filoxera em Portugal. Mais tarde, presidiu à Comissão de estudo e tratamento das vinhas do Douro.

Verificámos que o seu percurso é nitidamente o de homem da ciência, como grande

investigador na área da química, e não tanto o de empresário industrial, tendo abandona-

do essa área, provavelmente, após a controvérsia que protagonizou, conjuntamente com

o químico e industrial, Sebastião Betâmio de Almeida, sobre a produção de soda na Póvoa

de Santa Iria, na década de 50, e que também abordava a produção de ácido sulfúrico na

fábrica da Verdelha em Alverca. Assunto sobre o qual discordavam completamente.

Para além dos já referenciados empresários e homens de ciência, detentores de em-

presas no estuário do Tejo, surgem também empresários estrangeiros de origem fran-

cesa, ligados à mineração e à indústria química, que investiram em Espanha e depois

em Portugal. Referimo-nos ao caso da família de industriais franceses, os Deligny, ho-

mens de negócios, ligados às indústrias de mineração e de produtos químicos.

Nesta região instala-se o industrial francês oriundo dessa família, Fernando Óscar

Deligny, efetuando a compra da Indústria de produtos químicos da Póvoa de Santa Iria.

Indústrias do estuário do Tejo fundadas na região de Vila Franca de Xira - 1850-1890

No Período de 1850 a 1890 são fundadas no estuário do Tejo na região de Vila Franca

de Xira, indústrias dos seguintes setores: têxtil, curtumes, química, alimentar, extrativo

e cerâmica. Existia também, alguma indústria mineira de extração de calcário betu-

minoso, que apesar de não ser de todo a de maior importância nesta região, também

existia e nos reconfirma os excelentes recursos naturais da zona.

As primeiras unidades fabris, que detetámos nesta zona, pertenciam ao 1º Conde de

Farrobo, grande capitalista, detentor de extensas propriedades na capital e arredores e

investidor na industrialização do país, incrementando a ciência e a técnica.

Investiu em várias indústrias onde se integram, a fábrica de produtos químicos da

Verdelha, em Alverca, e, a fábrica de fiação de seda do Convento de Santo António, em

Vila Franca de Xira.

No relatório sobre a exposição de produtos de indústria nacional, realizada em 22

de Junho de 1838, na cidade de Lisboa, a fábrica é caracterizada como sendo uma uni-

dade fabril de grande dimensão, tendo ficado muito dispendiosa ao seu proprietário:

« (…) A Fábrica da Verdelha do Sr. Conde do Farrobo, Estabelecimento dispendioso e

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colossal(…)23». Nesta exposição de produtos da indústria portuguesa, o Conde de Far-

robo apresentou três produtos químicos, considerados de grande valor para a época e

que eram empregues na altura nas artes ou em outras indústrias, como a do sabão, da

qual também foi acionista : «(…)óleo de vitríolo, que se achou ser límpido e cristalino

como água, e da graduação de 66 graus (…) tão perfeito como o estrangeiro, que for

bem fabricado, e que vende a 40 rs por arrátel. (…) O sulfato de ferro (caparroza verde):

que já não é caro, sendo como é de excelente qualidade, e a soda factícia; os seus es-

forços para fabricar no país este valioso, e interessante produto, que tanto uso tem nas

Fábricas de Vidro, Saboarias, e outras, posto que já estivesse bastantemente bom, ainda

se continua a aperfeiçoar, sem dúvida este nosso sócio é digno de grande elogio (…)»24.

Quanto à data exata da sua fundação, tudo leva a crer que é anterior a 1844, uma vez

que na exposição de produtos da indústria portuguesa, realizada em Lisboa em 1838,

já eram apresentados produtos desta fábrica. A potência das máquinas a vapor era de

8 cavalos e foram instaladas em 1844, tendo sido fabricadas em Portugal.25

Através do inquérito efetuado à indústria em 1852, pela Direção Geral do Comércio,

Agricultura e Manufaturas, pelos mapas das fábricas existentes, verificámos que a fá-

brica de Produtos Químicos da Verdelha mudou de proprietário, passando a ser detida

por uma companhia familiar, com a designação de - Inácio M. Inch e irmão.26 Tinha o

total de 47 operários, sendo 40 homens, 1 mulher e 6 menores de 16 anos. Nenhum dos

operários sabia ler e escrever27

Em 1834, após a extinção das ordens religiosas masculinas, os conventos foram ex-

tintos e os seus bens integrados nos designados Bens Nacionais. O convento de Santo

António da Castanheira, situado no concelho de Vila Franca de Xira, convento de frades

franciscanos,28 foi bastante afetado durante a Guerra Peninsular, aquando da 3ª invasão

francesa do General Massena.29 Tendo sido adquirido pelo Conde de Farrobo em hasta

pública, durante a venda dos Bens nacionais.

23 BNP, Relatório de produtos de industria portugueza, feita pela Sociedade Promotora da Industria Nacio-nal,Ed.TypographiadeJoséBaptistaMorando,1838.24 Idem, p.13.25 Cf.JUSTINO,David,AformaçãodoEspaçoEconómicoNacional.Portugal1810-1913,Vol.I,Ed.Vega,Lisboa, 1988, p. 92.26 ArquivoHistóricoeBibliotecadoMinistériodasObrasPúblicaseTelecomunicações,DirecçãoGeraldoComércio,Agriculturaemanufacturasrepartiçãodemanufacturas,2ªsecção,mapasdasfábricasexistentesnosdiversos distritos, 1853-1857.27 Idem.28 Fundadoem1402,por frades franciscanos fugidosàsperseguiçõesdocisma,queopunhaopapadeRomaaoPapadeAvinhão.29 «Grandedestroçoexperimentouem1810nainvasãodeMassena»,cf.AMARAL,JoãoJoséFerreiradaSilva,OfertashistóricasrelativasàpovoaçãodeVilaFrancadeXira,vol1,p.132.

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Nesse convento, o Barão de Quintela, instalou a sua fábrica de Fiação de Seda. Esta

é apresentada em 1851, na memória sobre a vila de Povos, da autoria do bacharel em

leis, João José Ferreira da Silva Amaral,30 como sendo um projeto de carácter agrícola

e industrial, ou seja aliando as duas vertentes «O Conde de Farrobo (…) lembrou-se de

um projecto agrícola, industrioso e fabril; plantação de amoreiras, criação do bicho-da-

seda, e a sua fiação; e para isso considerou deposto o edifício e a cerca do convento de

Santo António».31

Segundo o mesmo autor, Farrobo recrutou para a Direção italianos e máquinas a

vapor para mover as outras máquinas.32 Para além da instalação da fábrica, o espaço era

aproveitado do ponto de vista agrícola, através da cerca, horta e a plantação de amo-

reiras que eram a matéria-prima para a indústria da seda

Analisando o inquérito efetuado à indústria em 1852, pela Direção Geral do Comér-

cio, Agricultura e Manufaturas, através dos mapas das fábricas existentes, detetámos

a Fábrica de Fiação de Seda, do convento de Santo António. O número de operários, em

1852,eram: 1 homem, 16 mulheres e 6 menores de 16 anos. O nível de literacia destes

operários correspondia a que apenas «uma menor de 16 anos sabia ler e escrever».33

Esta referência revela-nos que esta unidade fabril tinha uma dimensão média, moti-

vo pela qual é mencionada no referido inquérito. A maioria do trabalho era desenvol-

vido por mulheres e crianças, sendo que apenas uma criança menor do sexo feminino

sabia ler.

Pela mesma fonte conhecemos a existência de uma fábrica de fiação de tecidos, em

Vila Franca de Xira, que empregava 1 homem, 16 mulheres e 6 menores de 16 anos,

apresentando o total de 43 operários. Nenhum deles sabia ler.

O inquérito de 1852 não efetuava um diagnóstico completo da indústria, uma vez

que o mesmo tinha por objetivos aferir o conhecimento, na época, da escolarização

das classes operárias, para a tomada de medidas pelo Governo no combate ao analfa-

betismo.

30 Estudante de Coimbra, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. Nasceu e viveu em vila Franca deXira,terraaquemdedicouduasmonografiashistóricasmanuscritas.31 Memóriahistóricadavillade,oudosPovoscomarcadoRiba-tejoProvínciadaExtremadura.PeloBa-charelJoãoJoséMiguelFerreiradaSilvaAmaral,AssociadoProvincialdaAcademiaRealdasSienciasdeLisboa,1851, p. 20.32 Vid.-AMARAL,JoãoJoséFerreiradaSilva,OfertashistóricasrelativasàpovoaçãodeVilaFrancadeXira, vols.1 p.133.33 ArquivoHistóricoeBibliotecadoMinistériodasObrasPúblicaseTelecomunicações,DirecçãoGeraldoComércio,Agriculturaemanufacturasrepartiçãodemanufacturas,2ªsecção,mapasdasfábricasexistentesnosdiversos distritos, 1853-1857.

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Este inquérito apresenta o número de estabelecimentos industriais existentes, a res-

petiva mão-de-obra e o tipo de produção. Levantando-se um problema de tipologia

classificativa da época, na medida em que apenas as indústrias que empregavam 10 ou

mais operários, é que eram consideradas fábricas. Ficando assim por mencionar as uni-

dades fabris que empregassem um número de mão-de-obra menor. Este documento

referenciava um total de 4621 operários para o distrito de Lisboa.

David Justino efetuou o cruzamento deste inquérito com outras fontes na zona in-

dustrial de Lisboa e arredores e detetou 73 estabelecimentos com o mínimo de 10 ope-

rários, num cômputo de 5 012 trabalhadores.

A zona industrial de Lisboa, onde se insere a região de Vila Franca de Xira, na década

de 50 do séc. XIX representava cerca de 30% do operariado português, apresentando

80% de potência das máquinas a vapor do continente.34

Em Povos, Vila Franca de Xira, existiu uma fábrica de curtumes fundada em 1729, por

João Mendes de Faria e Fagundes com benefício régio, a Real Fábrica de Atanados de

Povos. O Governador Civil no inquérito industrial de 1845 encontrou-a decadente.

Anos mais tarde, em 1856, a unidade fabril de carácter manufatureiro restabeleceu-

-se. Conheceu-se então, uma nova sociedade em nome de José Pedro de Faria La Cerda

& C.ª, que entretanto foi encerrada por falta de pagamento aos rendeiros e também

devido ao atraso tecnológico que atingira.35

Em 7 de Fevereiro de 1859, constituiu-se, a Sociedade Geral de Produtos Químicos,

pelo Crédito Móvel Português, com a finalidade de fabricar toda a qualidade de produ-

tos químicos, conforme o texto do decreto do governo com o qual eram apresentados

os estatutos da mesma: « (…)considerando as muitas vantagens resultantes de uma

companhia de semelhante natureza, destinada a fornecer os mercados com produtos

químicos mais perfeitos e por menor preço(…)».

34 Cf.David,Justinoop.cit.pp.119-120.35 Vid.CUSTÓDIO,Jorge,«Aquintadafábrica.ARealFábricadeAtanados,deJoãoMendesdeFariaeSucessores»,BoletimCulturalCira,8,edi.CâmaraMunicipaldVilaFrancadeXira,Lisboa1989.

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Fig.4 – Fábrica de Produtos Químicos. Sociedade Geral de Produtos Químicos. Foto - CMVFX.

Era uma unidade fabril de topo para a produção de químicos de base, como o ácido

sulfúrico, o carbonato e o sulfato de sódio. Foi instalada em Póvoa de Santa Iria, conce-

lho de Vila Franca de Xira, pelo grande químico português, o 2º Visconde de Villa Maior,

Júlio Máximo de Oliveira Pimentel. Para esta fábrica, estava prevista uma produção anu-

al, acima de 700 toneladas de ácido sulfúrico e 500 de soda.36

Esta fábrica foi inteiramente gerida pelo seu fundador, Júlio Máximo de Oliveira Pi-

mentel, homem promotor da evolução da ciência e do ensino da Química. Contactou

com os grandes industriais estrangeiros da área da química, como por exemplo F. Kul-

mam, tendo conhecido na época as grandes indústrias químicas estrangeiras, nomea-

damente o modelo francês, que descreveu no relatório que elaborou sobre a exposição

Universal de Paris em 1855.37

Pelo exposto, podemos concluir que é das fábricas que se fixaram na região que

recorreu aos ensinamentos mais modernos da ciência. Em 1861, a Fábrica de Produ-

tos químicos da Póvoa de Santa Iria é convidada para expor os seus produtos na ex-

36 Vid.CRUZ,Isabel,«DasVantagensdenãoserprecioso:AspetosdaexploraçãoeusodocobreemPortu-gal(1789-1889)»inSitio:WWWtriplov.com.37 Idem.

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posição industrial portuense. Ao que responde « (…)a administração desta fábrica fica

persuadida para aprontar e remeter com destino à Exposição Industrial portuense, as

amostras dos produtos fabricados neste estabelecimento, o que se fará dentro do prazo

competente(…)».38

Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, como diretor fabril, ficou encarregue de todos

os aspetos técnicos da fábrica. No entanto, atravessou vários problemas de instalação, e também no fornecimento de matérias – primas, o que levou presumivelmente à sua dissolução em 1862.

Através do Inquérito industrial de 1881,39 sabemos que a Indústria de Produtos Quí-micos da Póvoa foi comprada em 1867, pelo industrial francês Fernando Óscar Deligny,

que era um dos representantes dos concessionários da mina de S. Domingos.

Em 1868 passou a pertencer à firma, Deligny Frères & C.ª e a partir de 1881, voltou a ser do Sr. Fernando Óscar Deligny. Segundo os depoimentos dos senhores Antoine e Dijoud, diretores técnicos da fábrica e que responderam ao inquérito na ausência do seu proprietário, que se encontrava no estrangeiro em Paris.40 Muito provavelmente reco-lhendo novos ensinamentos técnicos na sua terra natal, para as indústrias de mineração

e produtos químicos da Póvoa.

O capital investido na fábrica era 72.000$000 réis, sendo 18.000$000 réis de capital circulante. Os produtos enumerados como produzidos na fábrica eram: ácido sulfúrico, com uma produção anual de 1.200 toneladas de sulfúrico a 66 e 60º; 24 toneladas de clorídrico a 22º e 90 a 100 de nítrico a 49º e em sais (carbonato de soda, 120 toneladas;

sulfato de ferro, 320 e cloreto de cálcio, 250 Kg .

A indústria de produtos químicos da Póvoa produzia somente para o mercado nacio-

nal, principalmente para Lisboa, Porto, Coimbra e Covilhã.

No que diz respeito às principais matérias-primas utilizadas, eram de origem estran-

geira, como por exemplo: o carvão de pedra, os tijolos refratários para altas tempe-

raturas, de origem inglesa; o nitrato de sódio, do Chile; e o chumbo proveniente da

França (material necessário para a construção e manutenção das câmaras de chumbo

no fabrico do ácido sulfúrico).

As matérias-primas de origem nacional eram: a hulha; a cal de Alcântara; o dióxi-

do de manganês, do Alentejo; o sal marinho, da Póvoa de Santa Iria, cré, do Rio Seco;

38 Ibidem.39 ArquivoHistóricoeBibliotecadoMinistériodasObrasPúblicaseTelecomunicações,RepartiçãodeEstatística, Inquérito Industrial de 1881.40 Idem. p. 1.

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chumbo; ferro de obra e pirites de ferro da mina de S. Domingos. As mesmas tinham

um consumo anual entre 900 a 1.200 toneladas.

A tecnologia que esta indústria possuía, era bastante complexa e completa. As princi-

pais máquinas eram: 2 caldeiras, da força de 40 cavalos cada uma; e uma máquina a va-

por da marca Farcot. Os processos de fabrico que utilizavam eram idênticos aos utiliza-

dos no estrangeiro, revelando um excelente conhecimento das inovações tecnológicas.

Os trabalhadores indiferenciados, trabalhavam de sol a sol, e eram todos pagos ao

dia auferindo a jorna. Todos os operários eram de origem portuguesa, e eram iletrados.

Não sabemos o seu número exato.

O desempenho económico, da empresa no ano de 1881, era considerado pelo seu pro-

prietário estável. As vendas situaram-se entre os 45.000$$000 réis e 60.000$000réis, o que

em sua opinião, era muito pouco, uma vez que o investimento efetuado era elevado.

Em relação à questão das pautas propostas pelo governo, o industrial francês Fer-

nando Óscar Deligny, enviou ao parlamento português uma petição, na qual requeria a

entrada livre no nosso país das matérias-primas estrangeiras. Supomos que a resposta

obtida não foi a mais favorável.

Em 1877, foi fundada por João da Silva Ferrão de Castello Branco, 1º Visconde de

Pedroso (1841-1896), na Póvoa de Santa Iria, a Companhia de Moagens de Santa Iria.

Era uma sociedade anónima de responsabilidade limitada. Produzia farinhas de todas

as qualidades e também sêmeas.

Esta indústria na fase inicial apresentava como capital investido a quantia de

55.000$000 réis, tendo sido aumentado posteriormente, em 1879.

A quantidade da produção média de trigo da fábrica era de cerca, de 25 000 litros de

farinha por dia, no valor aproximado de 417.000$000 réis. 50% dos produtos produzi-

dos, nesta fábrica eram consumidos na cidade de Lisboa e os restantes eram enviados

para, Coimbra, Porto, Braga e Viana.

As matérias-primas, que a fábrica utilizava, estavam dependentes das colheitas agrí-

colas. No ano de 1881, a colheita de trigo em Portugal tinha sido escassa, sendo neces-

sário recorrer ao trigo estrangeiro: «a fábrica tem trabalhado com seis partes de trigo

americano e uma parte de trigo nacional».41

41 ArquivoHistóricoeBibliotecadoMinistériodasObrasPúblicaseTelecomunicações,RepartiçãodeEstatística,InquéritoIndustrialde1881,p.198.

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Fig. 5- Companhia de Moagens de Santa Iria (Conhecida por Moinhos de Santa Iria). Foto MMVFX.

Noutros anos em que as colheitas de cerais eram escassas, e os preços aumenta-

vam, também importavam trigos da Rússia, Espanha e muito raramente de França.

Outra informação importante, transmitida pelo proprietário desta indústria, era so-

bre o transporte da matéria-prima, que habitualmente era feito em barco à vela, e no

ano de 1881, foi efetuado em barco a vapor, tendo chegado em melhores condições

e de forma mais rápida. Beneficiando desse modo da tecnologia aplicada à rede de

transportes, cujos custo, versus tempo e qualidade no transporte eram extremamente

vantajosos.

João da Silva Ferrão de Castello Branco solicitou igualmente, para fazer face a este

problema, uma estação de caminhos-de-ferro específica, com paragem junto à sua fá-

brica, indicando que estava disposto a doar para o efeito, um dos seus terrenos. Esta

petição foi atendida anos mais tarde.

Em relação à tecnologia utilizada pela fábrica de Moagens da Póvoa de Santa Iria, a mesma possuía duas caldeiras a vapor, uma de 70 cavalos, de origem inglesa, e ou-tra portuguesa, de 50 cavalos, originária da fábrica Dauphinet do Calvário em Lisboa. Tinha ainda 2 máquinas a vapor, uma de 14 cavalos de alta pressão francesa, e outra inglesa de 80 cavalos, também de alta pressão. Como aparelhos e máquinas considera-

dos especiais, tinha 13 moinhos com pedras francesas.

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O trabalho que desenvolvia era todo realizado na fábrica, efetuado de sol a sol. Algu-

mas vezes os trabalhadores faziam serões.

Todos os 30 operários desta indústria eram de nacionalidade portuguesa. Tinha 3

moleiros, 2 condutores de mós, 4 picadores de mós e 21 trabalhadores indiferenciados.

O Pessoal técnico era constituído por um moleiro chefe de origem francesa; um ma-quinista; um serralheiro; e um carpinteiro, portugueses. As grandes descargas de ma-téria-prima principalmente as do trigo, oriundas do transporte fluvial, eram feitas por

homens em regime de empreitada.

A situação financeira da fábrica na década de 80 era boa, não tendo falta de capital.

O proprietário explica no depoimento que prestou, no âmbito do inquérito indus-trial, que as fábricas estabelecidas fora de Lisboa pagavam mais impostos. Em sua opi-nião, para o desenvolvido do mercado externo e colonial, era necessário que o governo diminuísse os impostos aplicados sobre as farinhas exportadas, em pelo menos11 réis

por Kg de farinha.

Outro tipo de atividade económica, que também existia nesta região era a indústria extrativa. «A Norte do Tejo só há concedidas duas minas de calcário betuminoso que não parecem ter grande importância (…) A não ser o fabrico de cal, pode dizer-se que os trabalhos de pedreira são puramente e só feitos quando há construções que exigem

os materiais».42

As Pedreiras existentes no ano de 1889, na região de Vila Franca de Xira, são as se-guintes: Alverca – Casal do Álamo - pertença de António José Ferreira; no Olival das Torres; na Quinta do Bom Jesus no Sobralinho, na Quinta do Cabo em Vila Franca de Xira - propriedade de José Pereira Palha Blanco, e na Quinta do Palyart em Vila Franca

de Xira pertença de Joaquim Mendonça.

A extração de argilas, como matéria-prima, para o fabrico de telha e tijolo, nesta zona é também uma atividade económica bastante importante. Conquanto, era feita de uma forma bastante artesanal, sem o recurso aos novos ensinamentos da ciência e

da técnica.

«O que tem certa importância neste concelho é a exploração de argilas para o fabri-co de telha e tijolo. Alhandra é a localidade onde estão montadas as oficinas e fornos. É também ali que existem as barreiras de onde sai a matéria-prima, sendo muito elevada a produção daqueles materiais que dali saem para diversas construções. (…) Há nesta

42 BNP, - Ministério das Obras Públicas, Comércio e Industria. Inquerito industrial de 1890 – Vol. I Indús-trias extractivas Minas e Pedreiras, Lisboa Imprensa nacional.

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localidade três fábricas de tijolo e telha onde são empregados 4 000 a 5 000 metros cú-bicos de argila, sendo esta matéria-prima resultante do depósito de vasa que as águas do Tejo fazem anualmente nas depressões do terreno de lezíria onde estão estabeleci-

dos os fornos, fabrico, enxugadouros, (…)».43

O inquérito industrial, de 1890, revela-nos a existência de duas fábricas de cerâmica, fabrico de telha e tijolo em Alhandra, não existindo informações mais precisas sobre a sua localização e modo de funcionamento.

A partir da análise efetuada sobre as unidades fabris instaladas na região de Vila

Franca de Xira é possível delinear o quadro que se segue:

Quadro nº 1 | Fábricas detetadas entre 1850 -1890

Ano de Fundação/ e de laboração

FundadoresProprietários

Designação Local Ramo de atividade

1729-1856 José Mendes de Faria/José Pedro de Faria Lacerda

Real Fábrica de Atanados de Povos/ /José Pedro de Faria La

Cerda & C.ª,

Povos Vila Franca de Xira

Curtumes

1838-1852 1838-Conde de Farrobo

1852- Ignacio M. Inch e irmão

Fábrica de Produtos Químicos / Quinta

da Verdelha

Alverca do Ribatejo

Química

1851-1854 Conde de Farrobo Fábrica de Fiação de Seda do Convento

de Stº António

Cachoeiras Vila Franca de Xira

Têxteis

1852 -------------------- Fábrica de Fiação de Tecidos

Vila Franca de Xira Têxteis

1859-1881 1859-Júlio Máximo de Oliveira Pimentel

1867- Fernando Óscar Deligny

1868- Deligny Frères & C.ª

1881- Fernando Óscar Deligny

Sociedade Geral de Produtos Químicos

Póvoa de St.ª Iria Química

1877-1890 1877-João da Silva Ferrão de Castello

Branco, 1º Visconde de Pedroso

1890-Pedro Gomes da Silva

Companhia de Moagens de Santa Iria

Póvoa de St.ª Iria Alimentar

1890 ------------------- Fábrica de Cerâmica Telha e Tijolo

Alhandra Rua Direita

Cerâmica

1890 J. F. Ralha Fábrica de Cerâmica Alhandra Rua Direita

Cerâmica

43 BNP, - Ministério das Obras Públicas, Comércio e Industria. Inquerito industrial de 1890 – Vol. I Indús-trias extractivas Minas e Pedreiras, Imprensa nacional, Lisboa.

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ConclusãoAs primeiras unidades industriais instaladas fora dos grandes centros, mas dentro da

sua influência, ou seja nas zonas que as envolvem, como é o caso de Vila Franca de Xira,

eram geralmente indústrias que beneficiavam, dos aspetos das boas acessibilidades,

ao nível dos transportes, tirando proveito, do meio fluvial (Rio Tejo), do caminho-de-

-ferro, e das vias terrestres principais (Estrada Real e outras). Este fator cruzava-se, com

a existência de matérias-primas, mais acessíveis através do meio de transporte mais

barato, e da mão-de-obra mais económica e disponível em meios rurais.

Neste caso, o local/regional constituía o Pólo mais próximo, onde os centros urbanos

aplicavam o capital. Os empresários industriais, que instalaram as suas indústrias nes-

ta periferia urbana, são originários maioritariamente, da grande urbe lisboeta, sendo

alguns de origem francesa. Na ótica de David Justino, estamos perante uma região po-

larizada, onde a capital, assume claramente o papel de centro difusor para a periferia.

As indústrias detetadas nesta região no período de 1850 a 1890 são, na generalidade

apostas na nova tecnologia emergente, do período Fontista e Regenerador, em que

se difundia o progresso da ciência e técnica do país, entre as décadas de cinquenta e

setenta do Século XIX.

Foram fundadas por empresários e homens da ciência, portugueses e franceses, com

especial interesse na modernização tecnológica do país, que sob a influência da dis-

seminação da industrialização pelo mundo, nomeadamente pela periferia europeia,

criaram ou modernizam algumas empresas, enfatizando alguns sectores de ponta, da

indústria portuguesa.

Destacamos a emergente indústria química, que se revela em primeiro lugar na fá-

brica de produtos químicos da Verdelha, instituída pelo Conde de Farrobo, e moder-

nizada pelo Sr. Inácio Inch. Ou o estabelecimento da Sociedade Geral de Produtos de

Produtos Químicos na Póvoa de Santa Iria que é outro exemplo. Criada, pelo proemi-

nente químico Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, é continuada pelo empresário fran-

cês, Fernando Óscar Lindy, investidor das indústrias extrativa e química, grande co-

nhecedor e impulsionador, dos progressos da ciência e da tecnologia na Europa, e em

especial em Portugal, através da fundação desta unidade fabril de produtos químicos.

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Parte inferior do formulParte inferior do formulárioParte inferior do formulário

Parte superior do formulário

Parte inferior do formulário

Parte superior do formulário

Jornais

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O Diário de Lisboa, Lisboa, 1880-…..

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BOLETIM CULTURAL CIRA 12 | Percursos do Património e da História 115

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Desenvolvimento Económico e mudança Social. Homenagem a Miriam Halpern Pereira

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VINHAS & VINHO DA QUINTA DE SUBSERRA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Maria Paula Boloca Carvalho1

1

Fig. 1- Aspeto patrimonial, figura em alto-relevo, da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mário Saraiva Pinto. 28 de abril de 2013.

A Quinta de Subserra, situada na encosta nascente do Vale da Ribeira de Santo Antó-

nio, em Subserra, em São João dos Montes, no concelho de Vila Franca de Xira, foi fundada

no séc. XVII e, desde então até ao início do século XX, os seus proprietários estiveram

ligados à nobreza. É essencialmente constituída por uma capela, vários edifícios,

entre os quais um solar ou casa apalaçada, adega, jardins, fontes, pomares e vinha.

1 LicenciadaemEngenhariaAgro-Alimentar,naáreadeEnologia.TécnicaSuperiornaCâmaraMunicipaldeVilaFrancadeXira.ResponsávelpelaVinhaepeloVinhodaQuintaMunicipaldeSubserra,assimcomopelasuaDinamizaçãoCultural.Autoradeváriosartigostécnicoseculturaissobrevinhos,publicadosemrevistasdaespe-cialidade,edetextosparateatro,entreosquais,umapeçainspiradanahistóriadovinhodaQuintadeSubserra,aqualaífoilevadaà[email protected]

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Fig. 2- Aspeto do interior do Palácio da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 13 de junho de 2014.

Após a morte, em 1920, da Marquesa de Subserra, Bemposta e Rio Maior, D. Maria

Isabel de Lemos e Roxas de Carvalho e Menezes de Saint-Léger, a Quinta fica em poder

de um sobrinho (filho de uma irmã do marido, que, após a morte da mãe, fora criado

pela tia). Nascida em 1841, a Marquesa (viúva de D. António José Luís de Saldanha Oli-

veira Juzarte Figueira e Sousa (1836-1891) - 1º Marquês e 4º Conde de Rio-Maior, for-

mado em Direito, Par do Reino (hereditário), Oficial-mor da Casa Real, Deputado, Pre-

sidente da Câmara de Lisboa e Provedor da Santa Casa da Misericórdia, de quem não

teve descendentes) não volta a casar. Alguns anos depois, o sobrinho vende a Quinta

a pessoas não pertencentes à família. A propriedade mudou de mãos várias vezes até

que, em 1980, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira a adquire a João Guedes de

Sousa, o seu dono à época.

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Fig. 3- Vista panorâmica da vinha da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mário Saraiva Pinto. 7 de abril de 2013.

Não se sabe ao certo qual a área da Quinta de Subserra, à data da morte da Mar-

quesa, crendo-se que seria de cerca de 200 ha. Por outro lado, sabe-se que grande par-

te da propriedade foi desagregada, e entregue para pagamento de dívidas de jogo, que

o sobrinho, ao longo do tempo, fora contraindo. Era uma propriedade em que as vinhas

tinham grande dimensão (estendendo-se desde a serra até perto da estrada nacional

que passa ao lado da vila de Alhandra), em comparação com os 5,5 hectares que hoje

restam de área vitícola (numa superfície total atual de 17 ha). Os grandes volumes de

vinho que eram produzidos e comercializados, quer para Lisboa, quer para fora do país,

são, também, prova da sua grandeza

Fig. 4- Aspeto do jardim e escadaria de acesso ao tanque dos peixes da Quinta Municipal de Subserra. Foto:  Mª Paula B. Carvalho. 20 de dezembro de 2012.   

Logo após a inauguração, em 1856, daquele que foi o 1º troço de linha de ca-

minho-de-ferro em Portugal (que ia de Lisboa ao Carregado), parte dos vinhos ven-

didos para Lisboa começaram a ser escoados por aquele meio de transporte, seguin-

do outra parte por via fluvial. Nessa época, muito do vinho desta região, era vendido

para fazer aguardente destinada à produção de Vinho do Porto. Embora não se co-

nheçam provas documentais para esse destino, relativamente ao vinho da Quinta de

Subserra, é de supor que algum dele fosse também produzido com tal objetivo, aten-

dendo ao grande volume produzido, e ao facto de ser prática corrente no Ribatejo.

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Fig. 5- Aspeto de uma videira decorativa da vinha da Quinta Municipal de Subserra . Foto:  Mª Paula B. Car-valho. 11 de dezembro de 2013.   

A primeira vinha, plantada num terreno próximo, foi adquirida pela Quinta em

1697 (como o atesta uma escritura datada de 26 de Abril desse ano).

Não era invulgar, à época, as propriedades serem uma espécie de conjunto gregá-

rio, constituído por várias parcelas provenientes de propriedades vizinhas, propiciando

muitas vezes a sua expansão para zonas que, depois, em termos de escrituras, ficavam

com descrições pouco precisas. O acumular de terras na mesma propriedade gerava,

até, uma certa confusão, em termos de designação e identificação. Assim, se chega

aos nomes dados às vinhas então existentes em Subserra, como no caso da “Vinha das

Faias”, designada na descrição predial como: vinha situada por cima do lugar da Coxõa,

no limite de Subserra, e que confina, a Norte, com a quinta da Marquesa de Rio Maior

Bemposta e Subserra, alugada a João Miguel, que paga um foro de nove alqueires ou

cento e vinte e quatro litros e dois decilitros de trigo. Poderemos ainda citar outros

exemplos de vinhas pertencentes à quinta, mas exploradas por terceiros, segundo foro

atribuído: “Vinha dos Santiagos”; “Vinha do Theodoro”; “Vinha da Caldeireira”; “Vinha

da Serra” (próximo do olival); “Vinha de Tráz” ( junto dos mortórios), terra de semeadura

pegada com vinha que tem oliveiras (foi comprada por 200.000 mil réis e avaliada em

250.000 mil réis).

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Fig. 6, Fig.7, Fig.8 – Escritura da aquisição de uma vinha pela Quinta Municipal de Subserra, datada de 26 de Abril de 1697. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 10 de Julho de 2014

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Fig. 9 –  Tília e videiras decorativas junto do portão principal da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 11 de Dezembro de 2013

Não se sabe se a cultura da vinha teve sempre continuidade, ou se, atravessando a his-tória e os séculos, sofreu, tal como a propriedade, danos, paragens e abandono (o palácio sofreu tais danos com o terramoto de 1755, que teve de ser reedificado, em 1821; houve também obras de reparo na capela, quando os avós maternos da Marquesa regressaram do exilio, forçado pelas ligações de simpatia às tropas napoleónicas do general Pamplona)

Também não dispomos de informação de quando se começaram a vinificar as uvas.

Os primeiros documentos alusivos, existentes no Arquivo Municipal de Vila Franca de

Xira, não são esclarecedores relativamente à vinificação, apesar de serem já do séc.

XIX. Só a partir dos anos 80 desse século seguem uma cronologia precisa, contendo

bastante material de grande interesse histórico sobre a vinha e o vinho, exibindo uma

escrita bem organizada, em termos da gestão agrícola e da manutenção e tratamentos

aplicados às vinhas. São descritos todos os custos com os produtos para os tratamentos

às vinhas além das quantidades adquiridas, assim como relativamente à plantação de

bacelos, mergulhia, cava, poda, empa, com descrições muito pormenorizadas destes

trabalhos. Têm, também, a escrita organizada, no que concerne aos volumes dos vinhos

obtidos, sua venda e seu armazenamento, feito na Casa d’Agôa, atual Casa da Água,

assim chamada porque junto ao edifício passa água, que vem de nascentes da serra.

Razão por que também se guardavam aqui os vinhos, pela frescura do ambiente.

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Fig. 10 –  Manhã com nevoeiro na Quinta Municipal de Subserra. Foto Mª Paula B. Carvalho. 19 de Dezembro de 2014

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Fig. 11 – Aspeto do interior do Palácio da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 13 de Novembro de 2014

Fig. 12 – Palácio da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mário Saraiva Pinto. 20 de Março de 2015

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BOLETIM CULTURAL CIRA 12 | Percursos do Património e da História 125

Do levantamento feito aos documentos, não foi encontrada qualquer descrição so-

bre as castas existentes, à exceção do Arinto e Muscatel (atualmente grafado Moscatel).

Relativamente aos tipos de vinhos produzidos, são apenas mencionados: Arinto, Mus-

catel, Abafado branco, Abafado tinto, Vinho tinto e Vinho branco.

É, aliás, nesta época que a Quinta vive o seu período áureo, com a permanência

na mesma dos seus proprietários, os Marqueses de Bemposta, Subserra e Rio Maior. To-

davia, a Marquesa, desde os cinco anos de idade, viera de Lisboa, com seus pais e avó,

viver para a Quinta de Subserra.

Fig. 13 –  Alameda de acesso à saída principal da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 11 de Dezembro de 2013

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“De Dezembro de 1846 a Janeiro de 1847, houve uma série de tremores de terra no

Ribatejo. Acabáramos nós de instalar-nos definitivamente em Subserra…”, lamentava-

-se a Marquesa.

Não se sabe a data de construção da adega atualmente existente na Quinta de

Subserra, não só porque os elementos que a constituam sugerem épocas diferentes,

como não foi encontrado nenhum documento que ateste a sua fundação. Crê-se, no

entanto, ter existido uma outra adega, referida no ano de 1898 em apontamentos da

Marquesa, a qual, pelos elementos dados, não corresponde à adega onde é laborada a

produção de vinhos nos dias de hoje.

Fig. 14 –  Brasão da Família Roxas, na entrada norte da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mário Saraiva Pinto. 20 de março de 2015.

A Marquesa de Subserra foi a última dos Roxas (apelido espanhol, de origem no-

bre). Tratavam-na por Maria, sabia bordar, falava francês e, do salão do palácio, olhava

as vinhas enquanto tocava piano. Casou dentro da Quinta de Subserra, na capela de

São José (construída em 1633, e que, ainda hoje, se mantém quase inalterada), a 4 de

Setembro de 1861, com António, 1º Marquês e 4º Conde de Rio-Maior, a quem sobrevi-

veu 29 anos, pois enviuvou a 4 de Fevereiro de 1891, tendo falecido a 16 de Dezembro

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BOLETIM CULTURAL CIRA 12 | Percursos do Património e da História 127

de 1920. Durante a vida atravessou cinco reinados: D. Maria II, D. Pedro V, D. Luís I, D.

Carlos I e D. Manuel II. Estava de visita a Lisboa aquando do regicídio. Dizia que “a vida

em Subserra” era “de uma serenidade patriarcal”, mesmo com “ o Ms. Auguste”, cozinhei-

ro francês, “a emborrachar-se”.

Seu pai, Teodoro Estêvão Hyde de Neuville de Larue (1º Conde de Saint Léger, 2º

Conde e 1º Marquês da Bemposta) passava muito tempo nas vinhas, e outro tanto na

Companhia Inglesa das Índias, onde se encontrava com Almeida Garrett. Nos longos

serões de Inverno, sua mãe, D. Maria Mância de Lemos Roxas Carvalho e Menezes Pe-

queno Chaves Teixeira Vaia (2ª Condessa de Subserra) alternava com seu pai na brilhan-

te leitura dos grandes escritores da época.

Talvez do gosto pela leitura, que lhe foi incutido pelos pais, e da sua sensibilidade,

também lhe surgiu a ideia da escrita. Escreveu e encenou várias peças de teatro, que

foram representadas pelos da casa, no palácio de Subserra.

Quando ia ao alto da serra, nos seus passeios pela Quinta, Maria dizia estar nas

alturas poéticas da sua contemplação, e contava que daí admirava a beleza do panora-

ma: “(…) em poucos sítios se estende tão bem a majestade do Tejo; vê-se o rio enorme,

estendendo as suas águas azuladas até Lisboa, ladeado pela mancha uniforme das le-

zírias…”

Era conhecida na corte como “a menina de Subserra” e, em 1886, entrou para o

Paço como Dama Camarista da Rainha D. Maria Pia de Sabóia.

O marido foi Presidente da Câmara de Lisboa e passava muitos períodos no parla-

mento. Quando assim era, Maria escrevia-lhe, pondo-o ao corrente dos acontecimen-

tos na Quinta, como nesta carta, em que menciona as vinhas da Quinta de Subserra:

Subserra, 19 Junho de 1865

Meu querido António do coração

É hoje a última vez que te escrevo, pois na quarta-feira espero em Deus voltar para Lisboa, manda-me buscar de tarde às sete e meia aos Cais dos soldados; está-me custan-do imenso não te ver. Parece-me que há muitos dias que te deixei. Quando passo pelo teu quarto e não te vejo, aperta-se-me deveras o coração. Não é sentimentalismo, é só a alma que fala.

Como posso eu fazer escárnio de uma coisa que me dá tanto gosto! Ver-te estudar, tra-

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balhar, mostrar a tua inteligência ao público, e os teus bons sentimentos, dar desenvolvi-mento à tua caridade socorrendo tantas misérias e procurando melhorar a sorte física e moral de tantos inocentes, e amontoar sobre a tua cabeça as bênçãos do Céu, que posso eu desejar mais?...

Começaram hoje as ceifas. As vinhas novas estão lindas, as velhas têm alguma molés-tia desde estas chuvas. Continuam a enxofrar.

Tua do coração

(…)

Maria

Fig. 15 - Aspeto do jardim da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 4 de Dezembro de 2012  

Pediram-lhe autorização e colaboração para que se escrevessem as suas memórias.

Aceitou dizer o que lhe pareceu interessante para o domínio público e guardou para si o

restante, que ficou para sempre submerso no seu coração, quando se lhe apagou a luz.

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Fig. 16 – Aspeto das plantas exóticas que ornamentam um dos muros da Quinta Municipal de Subserra. Foto: Mª Paula B. Carvalho. 20 de Fevereiro de 2012

Quando, em 1980, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira adquire a Quinta de

Subserra, estava plantada uma vinha, a partir da qual se continuou a fazer vinhos. Mas,

as doenças que a afetaram, obrigaram à definição de um programa de reconversão,

com o seu arranque total.

Em 2008, a vinha começou a ser replantada. A reestruturação fez-se em três fases,

e terminou no ano de 2014.

Abrangendo uma área total de 5,5 hectares de plantação, as castas escolhidas fo-

ram as seguintes:

Tintas – Castelão; Touriga Nacional; Alfrocheiro; Syrah; Merlot e Cabernet Sauvignon. Brancas – Moscatel de Alexandria; Fernão Pires e Arinto.

Fig. 17 -AspetoparcialdavinhadaQuintaMunicipaldeSubserra.Foto:MárioSaraivaPinto.5deJulhode2014

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A produção total de vinho é ainda muito baixa, sendo, relativamente ao vinho

tinto, maioritariamente proveniente de 1 ha de Castelão, que constituiu a 1ª fase da

implantação da nova vinha, combinado com uma pequena percentagem de Touriga

Nacional.

As restantes castas tintas foram apenas plantadas na 3ª e última fase da reestrutu-

ração da vinha, em 2014.

O vinho tinto de Subserra apresenta uma estrutura encorpada, com alguma com-

plexidade, que se combina bem com pratos de carne bem condimentados.

O vinho branco, elaborado a partir da combinação das três castas, Moscatel, Fer-

não Pires e Arinto, exibe aromas primários e alguma frescura.

Fig. 18 -AspetodapaisagemvistadaQuintaMunicipaldeSubserra.Foto:MªPaulaB.Carvalho.28deJaneirode 2013

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BOLETIM CULTURAL CIRA 12 | Percursos do Património e da História 131

BIBLIOGRAFIA

Fontes

Manuscritas

Arquivo Municipal de Vila Franca de Xira

- Fundo: Marqueses de Rio Maior - Quinta de Subserra (Anos 1832/1919)

Correspondência recebida

- Fundo Local: Marqueses de Rio Maior - Quinta de Subserra (Anos 1836/1939)

Docs. Vinha / Vinho

Impressas

- COLAÇO, Branca de Gonta, Memórias da Marquesa de Rio Maior, Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 2005)

Agradecimentos: Dra. Manuela Corte-Real, Responsável pelo Arquivo Histórico Municipal de Vila Franca de Xira; Dra.

Graça Soares Nunes, Técnica Superior, Conservadora de Museus do Museu Municipal -Núcleo de Alverca.

Quinta Municipal de Subserra, Março de 2015

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CIRA BOLETIM CULTURAL 12

(2014-2015)

Percursos Do Património

e da História

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Câmara Municipal de Vila Franca de Xira