3
1 PERTURBAÇÕES ESPECÍFICAS DA LINGUAGEM Miguel Palha – Pediatra do Desenvolvimento Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS www.diferencas.net O Miguel disse as primeiras palavras já muito tarde, bem depois dos três anos de idade. Ele compreendia tudo o que se lhe dizia: obedecia a ordens e seguia instruções verbais relativamente complexas. Com a entrada para a creche, esperava-se que ele desemburrasse. Mas não: continuou a falar pouco e mal. Frases simples, com mais de dois elementos, só conseguiu dizer depois dos quatro anos. Brincava bem com as outras crianças e era um ás em puzzles e nas construções. Tinha um feitio fácil e não fazia muitas birras. Não tinha tiques, nem fixações ou fascínios por um determinado assunto ou objecto. Aos cinco anos, os pais, apreensivos, consultaram um pediatra e o diagnóstico foi óbvio para o especialista: Perturbação Específica da Linguagem de tipo Expressivo (já que a Compreensão Linguística não estava atingida). O pediatra propôs, para além da terapia da fala, um treino dos pré-requisitos da aprendizagem da leitura (com medo de que ele viesse a desenvolver, no primeiro ciclo da escolaridade, uma Dislexia). Os resultados não podiam ter sido melhores: aprendeu a ler antes da entrada para o primeiro ano da escolaridade e hoje, aos quinze anos de idade, o Miguel fala tão bem, com uma retórica tão apurada, que os seus amigos dizem que ele vai para vendedor ou para a política… O Fernando falou muito tarde. E também tinha muitas dificuldades em compreender o que se lhe dizia: parecia surdo. Aos três anos de idade, já na creche, dizia uma única palavra perceptível para os familiares; e não compreendia as ordens, mesmo as mais simples. Aos quatros anos, dizia sete palavras e continuava com muitas dificuldades na compreensão. Aos cinco anos de idade, o seu vocabulário aumentou muito e já conseguia dizer pequenas frases de três palavras; e começou, nesta altura, a utilizar os pronomes pessoais; e a compreensão verbal melhorou bastante. Mas sempre com uma linguagem inferior à dos outros meninos. O Fernando sempre foi muito simpático e reinadio. Um verdadeiro pândego, de acordo com todas as opiniões. Não havia melhor do que ele nos puzzles, nas construções e no computador. Só a linguagem é que o tornava diferente. Quando entrou para a escola, a aprendizagem da leitura foi uma verdadeira tragédia. O Pediatra do Desenvolvimento que o viu, lá em Angra do Heroísmo, foi peremptório: tratava-se de uma Perturbação Específica da Linguagem de tipo Misto. Foi elaborado um guião de intervenção dirigido às suas dificuldades de linguagem e de leitura, e os resultados, hoje, volvidos três anos, estão à vista: fala bem, até com alguma eloquência, e é um dos melhores alunos da classe. A vaidade com a sua retórica é tanta, que o Fernando, quando for mais velho, diz que quer ser político ou advogado… Em Desenvolvimento Infantil, fala-se de Perturbação Global do Desenvolvimento quando mais do que uma das diversas sub-áreas do desenvolvimento psicomotor (motricidade fina, motricidade grosseira, comportamento social, cognição não verbal, cognição verbal, linguagem) estão atingidas. Um exemplo paradigmático é o défice cognitivo (défice intelectual ou também chamado, impropriamente, atraso mental): há alterações, mais ou menos significativas, não só da cognição (intelectuais, da inteligência), mas também da linguagem, da motricidade fina, da autonomia, da motricidade grosseira, etc.

Perturbacoes especificas da linguagem

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Perturbacoes especificas da linguagem

1

PERTURBAÇÕES ESPECÍFICAS DA LINGUAGEM Miguel Palha – Pediatra do Desenvolvimento Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS

www.diferencas.net

O Miguel disse as primeiras palavras já muito tarde , bem depois dos três anos de idade. Ele compreendia tudo o que se lhe dizia: obedecia a ordens e seguia instruções verbais relativamente complexas. Com a entrada para a creche, esperava-se que ele de semburrasse. Mas não: continuou a falar pouco e mal. Frases simples, com mais de dois elementos, só conseguiu dizer depois dos quatro anos. Brincava be m com as outras crianças e era um ás em puzzles e nas construções. Tinha um feitio fácil e não fazia muitas birras. Nã o tinha tiques, nem fixações ou fascínios por um determinado assunto ou objecto. Ao s cinco anos, os pais, apreensivos, consultaram um pediatra e o diagnóstic o foi óbvio para o especialista: Perturbação Específica da Linguagem d e tipo Expressivo (já que a Compreensão Linguística não estava atingida). O pediatra propôs, para além da terapia da fala, um treino dos pré-requisitos da aprendizagem da leitura (com medo de que ele viesse a desenvolver, no primeiro ciclo da escolaridade, uma Dislexia). Os resultados não podiam ter sido melhores: aprende u a ler antes da entrada para o primeiro ano da escolaridade e hoje, aos qui nze anos de idade, o Miguel fala tão bem, com uma retórica tão apurada, que os seus amigos dizem que ele vai para vendedor ou para a política… O Fernando falou muito tarde. E também tinha muitas dificuldades em compreender o que se lhe dizia: parecia surdo. Aos três anos de idade, já na creche, dizia uma única palavra perceptível para os familiares; e não compreendia as ordens, mesmo as mais simples. Aos q uatros anos, dizia sete palavras e continuava com muitas dificuldades na co mpreensão. Aos cinco anos de idade, o seu vocabulário aumentou muito e já con seguia dizer pequenas frases de três palavras; e começou, nesta altura, a utilizar os pronomes pessoais; e a compreensão verbal melhorou bastante. Mas sempre com uma linguagem inferior à dos outros meninos. O Fernando sempre foi muito simpático e reinadio. U m verdadeiro pândego, de acordo com todas as opiniões. Não havia melhor do q ue ele nos puzzles, nas construções e no computador. Só a linguagem é que o tornava diferente. Quando entrou para a escola, a aprendizagem da leit ura foi uma verdadeira tragédia. O Pediatra do Desenvolvimento que o viu, lá em Angr a do Heroísmo, foi peremptório: tratava-se de uma Perturbação Específi ca da Linguagem de tipo Misto. Foi elaborado um guião de intervenção dirigi do às suas dificuldades de linguagem e de leitura, e os resultados, hoje, volv idos três anos, estão à vista: fala bem, até com alguma eloquência, e é um dos mel hores alunos da classe. A vaidade com a sua retórica é tanta, que o Fernando, quando for mais velho, diz que quer ser político ou advogado… Em Desenvolvimento Infantil, fala-se de Perturbação Global do Desenvolvimento quando mais do que uma das diversas sub-áreas do desenvolvimento psicomotor (motricidade fina, motricidade grosseira, comportamento social, cognição não verbal, cognição verbal, linguagem) estão atingidas. Um exemplo paradigmático é o défice cognitivo (défice intelectual ou também chamado, impropriamente, atraso mental): há alterações, mais ou menos significativas, não só da cognição (intelectuais, da inteligência), mas também da linguagem, da motricidade fina, da autonomia, da motricidade grosseira, etc.

Page 2: Perturbacoes especificas da linguagem

2

PERTURBAÇÕES ESPECÍFICAS DA LINGUAGEM Miguel Palha – Pediatra do Desenvolvimento Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS

www.diferencas.net

Entende-se por Perturbação Específica a situação em que está atingida, sobretudo, uma única das áreas do desenvolvimento psicomotor (as alterações têm de ser significativas de um ponto de vista clínico, académico, social, etc). Exemplifiquemos: se houver uma Perturbação Específica da Motricidade Fina, a criança poderá ter, tão-somente, dificuldades no desenho, na escrita, na utilização da tesoura, no empilhamento de cubos ou de outros objectos, etc, não associadas, pelo menos de uma forma suficientemente significativa, a quaisquer alterações de outras sub-áreas, como sejam a cognição ou a linguagem; nas crianças com uma Perturbação Específica da Motricidade Grosseira poderá haver, para além de um atraso nas datas das aquisições de determinadas capacidades motoras (sentar, andar, correr, saltar, andar de bicicleta, jogar futebol, saltar à corda, etc), um desajeitamento notório na maioria dos desempenhos motores; nas crianças com uma Perturbação Específica da Linguagem, poderá haver um atraso nas datas das aquisições das competências linguísticas, associado a uma ausência de linguagem ou a uma linguagem incompreensível ou imatura. Falemos de quatro Perturbações da Comunicação (há outras, embora menos frequentes e, talvez, menos importantes). Duas delas enquadram-se no conceito de Perturbação Específica anteriormente exposto. Têm sido propostos diversos sistemas classificativos para as Perturbações da Linguagem. Por razões óbvias, vamos apresentar uma classificação, para além de simples, muito consensual, baseada no CIM 10 da Organização Mundial de Saúde e no DSM IV da Associação Americana de Psiquiatria. Assim, há, basicamente, quatro grandes grupos de Perturbações da Comunicação: 1. Perturbação da Articulação Verbal; 2. Perturbação Específica da Linguagem Expressiva; 3. Perturbação Específica da Linguagem Receptiva e Expressiva (mista); 4. Gaguez. A Perturbação da Articulação Verbal é caracterizada, essencialmente, pela não aquisição ou pela incapacidade para a utilização das vocalizações apropriadas à idade e ao idioma (e ao sotaque), como, por exemplo, os erros na produção, no uso, na representação ou na organização de sons (substituições, por exemplo, do r pelo l ou omissões das consoantes finais). O nível linguístico (capacidade da compreensão e da expressão verbais) é adequado ou normal. Para que possamos afirmar que determinada criança tem uma Perturbação da Articulação Verbal, é necessário que a dificuldade na emissão dos sons interfira, de uma forma significativa, com o desempenho académico ou social. Se coexiste um défice cognitivo, um défice sensorial, um défice motor ou uma privação da estimulação, as alterações encontradas deverão ser superiores às geralmente associadas a cada uma destas situações considerada isoladamente. As alterações encontradas não podem ser directamente imputáveis a uma patologia neurológica, a anomalias anatómicas do aparelho fonador, a alterações sensoriais ou a factores ambientais. A prevalência é elevada: aproximadamente 2.5% na população pré-escolar (0.5% aos 17 anos de idade). Em determinados casos, parece haver uma tendência familiar para a ocorrência desta situação. Na Perturbação da Linguagem Expressiva (de uma forma simples, podemos avaliar a linguagem compreensiva perguntando à criança qual é, de entre diversos brinquedos, a bola; para a avaliação da expressão linguística, pedimos à criança que nos diga o nome de determinado brinquedo, como a bola, o carrinho ou o cavalo) os resultados obtidos em testes padronizados para a avaliação da linguagem expressiva estão substancialmente abaixo dos obtidos nos testes para a avaliação da capacidade cognitiva não-verbal (são, basicamente, os desempenhos cognitivos não "contaminados" pela linguagem, como, por exemplo, a construção de um puzzle após demonstração do examinador) e da linguagem receptiva (compreensão linguística

Page 3: Perturbacoes especificas da linguagem

3

PERTURBAÇÕES ESPECÍFICAS DA LINGUAGEM Miguel Palha – Pediatra do Desenvolvimento Centro de Desenvolvimento Infantil DIFERENÇAS

www.diferencas.net

dentro do normal). Manifestações comuns: vocabulário muito limitado, erros no uso das formas verbais, dificuldade na aquisição de novas palavras, dificuldade em recordar palavras ou em construir frases de complexidade adequada ao desenvolvimento e evolução linguística muito lenta. Estas alterações interferem com o desempenho académico ou social. Se coexiste défice cognitivo, défice sensorial, perturbação da articulação verbal ou privação da estimulação, o défice da linguagem expressiva é desproporcionalmente superior ao geralmente associado a cada uma das situações considerada isoladamente. A prevalência é de, aproximadamente, 3%-5% na população em idade pediátrica. Esta perturbação é, muitas vezes, reconhecida pelos 3 anos de idade. No final da adolescência, a maioria das crianças apresenta uma linguagem dentro do normal. Parece haver uma clara tendência familiar para a ocorrência desta perturbação. No que concerne à Perturbação Específica da Linguagem Receptiva e Expressiva (mista), os resultados obtidos num conjunto de testes padronizados para a avaliação da linguagem receptiva (compreensão linguística) e da linguagem expressiva (expressão linguística) estão substancialmente abaixo dos obtidos em testes de avaliação da capacidade cognitiva não verbal. Manifestações mais comuns: além das referidas para a Perturbação da Linguagem Expressiva, há dificuldade na compreensão das palavras ou de tipos específicos de palavras. Relativamente à categoria anterior, para além de uma dificuldade na expressão, há, também, uma evidente incompreensão, por parte da criança, do que se lhe está a dizer. Esta perturbação interfere significativamente com o desempenho académico ou social. É habitualmente diagnosticada antes dos 4 anos de idade. Acompanha-se, geralmente, de perturbações da articulação verbal. Coexistem, por vezes, perturbações da motricidade, enurese (não controlo do esfíncter vesical, ou seja da urina, sobretudo de noite) e perturbação de hiperactividade e défice de atenção. Geralmente, as capacidades cognitivas não-verbais estão dentro do normal, a menos que coexista défice cognitivo. A prevalência é de, aproximadamente, 3% na população em idade escolar. O prognóstico desta perturbação é mais reservado do que o da categoria anterior. Contudo, há, em muitos casos, uma recuperação total dos défices linguísticos. Tal como nas situações anteriormente mencionadas, parece haver uma tendência familiar para a ocorrência desta perturbação. Finalmente, a Gaguez corresponde, de uma forma básica, a uma alteração na fluência e na cadência do discurso (inapropriadas para a idade), caracterizada pela ocorrência frequente de um ou mais dos seguintes fenómenos: repetição de sons ou sílabas; prolongamento dos sons; interjeições; palavras interrompidas (pausas dentro de uma palavra); bloqueio silencioso ou audível (pausas preenchidas ou não dentro do discurso); circunlocuções (substituição de palavras para evitar palavras problemáticas); palavras emitidas com excesso de tensão física; repetição de palavras monossilábicas. A Gaguez interfere com o desempenho académico ou social. A Gaguez não se manifesta, geralmente, no decurso da leitura, do canto ou da comunicação com objectos inanimados. Esta perturbação poderá acompanhar-se por tiques, tremores e outros movimentos anómalos. A prevalência é de, aproximadamente, 1% e 0,8%, respectivamente na pré-puberdade e na adolescência. Tipicamente, as primeiras manifestações da Gaguez são notadas entre os 2 e os 7 anos de idade. Prognóstico: 80% recuperam totalmente antes dos 16 anos de idade. Parece haver uma tendência familiar para a ocorrência desta perturbação. A Gaguez deverá ser distinguida da Disfluência habitual das crianças com menos de 5 anos. Nestes casos, o desaparecimento das manifestações, poucos meses depois, é a regra.