Por um "Do-In Antropológico": Pontos de Cultura e os Novos Paradigmas nas Políticas Públicas Culturais

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    FACULDADE DE CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    POR UM DO-IN ANTROPOLGICO

    Pontos de Cultura e os novos paradigmas nas polticas pblicas culturais

    ARIEL NUNES

    Goinia/2012

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    FACULDADE DE CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    POR UM DO-IN ANTROPOLGICO

    Pontos de Cultura e os novos paradigmas nas polticas pblicas culturais

    ARIEL NUNES

    Orientador: Prof. Dr. Gabriel O. Alvarez

    Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Antropologia Social daUniversidade Federal de Gois para obtenodo grau de Mestre em Antropologia Social

    Agosto/2012

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    POR UM DO-IN ANTROPOLGICO

    Pontos de Cultura e os novos paradigmas nas polticas pblicas culturais

    Dissertao defendida no Programa de Ps Graduao em Antropologia Social da

    Universidade Federal para a obteno do grau de Mestre em Antropologia Social

    _______________________________________________________________

    Professor Dr. Gabriel Omar Alvarez UFG

    Presidente da Banca

    _______________________________________________________________

    Professor Dr. Renato Athias UFPE

    _______________________________________________________________

    Professora Dra. Joana Aparecida Fernandes Silva UFG

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    preciso ter humildade, portanto. Mas, ao mesmo tempo, oEstado no deve deixar de agir. No deve optar pela omisso. No deveatirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulao e execuode polticas pblicas, apostando todas as suas fichas em mecanismosfiscais e assim entregando a poltica cultural aos ventos, aos sabores e aoscaprichos do deus-mercado. claro que as leis e os mecanismos deincentivos fiscais so da maior importncia. Mas o mercado no tudo.No ser nunca. Sabemos muito bem que em matria de cultura, assimcomo em sade e educao, preciso examinar e corrigir distoresinerentes lgica do mercado que sempre regida, em ltima anlise,pela lei do mais forte. Sabemos que preciso, em muitos casos, ir almdo imediatismo, da viso de curto alcance, da estreiteza, dasinsuficincias e mesmo da ignorncia dos agentes mercadolgicos.Sabemos que preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carncias.

    O Ministrio no pode, portanto, ser apenas uma caixa de repassede verbas para uma clientela preferencial. Tenho, ento, de fazer aressalva: no cabe ao Estado fazer cultura, a no ser num sentido muitoespecfico e inevitvel. No sentido de que formular polticas pblicas paraa cultura , tambm, produzir cultura. No sentido de que toda polticacultural faz parte da cultura poltica de uma sociedade e de um povo, numdeterminado momento de sua existncia. No sentido de que toda polticacultural no pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da culturadesse mesmo povo. Mas, tambm, no sentido de que preciso intervir.No segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarearcaminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espcie de"do-in" antropolgico, massageando pontos vitais, masmomentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural dopas. Enfim, para avivar o velho e atiar o novo. Porque a culturabrasileira no pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialticapermanente entre a tradio e a inveno, numa encruzilhada de matrizesmilenares e informaes e tecnologias de ponta.

    Trecho do discurso de posse do Ministro Gilberto Gil 2/01/2003

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    Bem devagar o Pescador se aproxima, pega o seu arpo eprepara-se para lan-lo (...). Mas no momento do golpe, o Sol manda umbrilho forte, um pedao de seu corpo-fogo, para o cu da boca doCalango. Sentindo em sua boca o poder do fogo, o filho da Terra estirasua lngua. O brilho do Sol reluz da boca do Calango e cega o Pescadorpor um instante, ofuscando-lhe as vistas. Mesmo assim o Pescador lanao seu radiante arpo. O arpo atinge de raspo o dorso do Calango, eatravessa o rio, fazendo um enorme buraco ao tocar o cho. O Pescadorcorre e mergulha no Rio, pega seu arpo afim de ainda alcanar oCalango. Mas quando esse tira o arpo sente o mundo tremer. O Rioferido pela arma do caador, faz surgir das suas guas um imensoElefante com uma Tromba Dgua gigantesca (...).O Calango Voadoresconde o arpo em uma nuvem e esta fica to carregada que at hoje aoprimeiro atrito de outra nuvem, solta raios pra todos os lados. Dizem queo Elefante e o Pescador foram brigando at o mar e toda vez que o Mar seenche, tenta jog-lo pra c, mas depois que perde a fora e se esvazia, orio o manda de volta pra l, numa disputa de fora sem fim (...). Emperodo de chuva no cerrado, at hoje, grandes elefantes surgem com suastrombas dgua, arrastando tudo que h pelo leito. Todo ano, quando oCalango Voador resolve matar sua sede e esfriar sua lngua, que fica secae quente por causa do pedao do sol que traz em sua boca, um perodo deseca acontece e castiga o cerrado e as guas diminuem de volume.Quando enfim o Calango mata sua sede e pra de beber toda a gua dorio, as guas sobem novamente, enchendo as corredeiras e as cachoeiras.Foi assim, de amor e desamor, de temor e destemor, que surgiu o CalangoVoador, reverenciado rebento, filho da Terra e do Sol, afilhado do Ar,lendria criatura, mito dos ritos de c.

    Trecho do mito do Seu Estrelo e do Calango Voador.

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    AGRADECIMENTOS

    A realizao deste trabalho no teria sido possvel sem a colaborao e o apoio doPrograma de Ps Graduao em Antropologia Social PPGAS-UFG, no qual estivevinculada como aluna de Maro de 2011 a Agosto de 2012. O meu ingresso ao Mestrado

    em Antropologia marcou um momento de construo de dilogos com novos interlocutores.Dentre estes interlocutores, agradeo especialmente a Gabriel Omar Alvarez, que foi meuorientador durante todo o meu processo de formao como antroploga. Enquanto aluna,suas aulas sobre o mtodo etnogrfico me estimularam a realizar meu primeiro trabalho decampo. Enquanto orientanda, seu apoio e ateno na leitura das verses desta dissertaoforam fundamentais para a concluso desta pesquisa. Agradeo aos meus professores docurso de Mestrado: Joana Fernandes, Roberto Cunha, Monica Pechincha e Maria LuizaRodrigues, com os quais dialoguei em salas de aula e em corredores da Faculdade, e quemuito contriburam para ampliar minhas reflexes antropolgicas e para construo do meuobjeto de pesquisa. Ao Coordenador do curso de Ps Graduao em Antropologia Social,Manuel Ferreira Lima Filho, com quem sempre mantive dilogos horizontais e que meapoiou nas minhas produes acadmicas, meus cordiais agradecimentos.

    Agradeo a todas as pessoas que fizeram parte da pesquisa de campo. ChicoSimes, pela hospitalidade e pelo compartilhamento de idias. A Walter Cedro, com quemdialoguei sobre minha pesquisa e que me apresentou aos ponteiros e artistas da regioCentro-Oeste; dentre eles estendo meus agradecimentos Virglio Alencar, Marcos Teles,Amanda Ricoldi e Hlio Martins. Agradeo aos artistas e colegas que compem os GruposSeu Estrelo e o Fu do Terreiro, Mamulengo e Presepada, Carroa de Mamulengos e aoCentro Cultural Eldorado dos Carajs. Agradeo tambm a Clio Turino, pelocompartilhamento de mesas e idias, e pela receptividade minha pesquisa. Queroagradecer ainda aos colegas e interlocutores que conheci na Fundao Casa de Rui Barbosa,especialmente a Lia Calabre e Walmir de Souza.

    Aos ingressos e egressos do PPGAS/UFG Rosana Schmidt, Cludia Vicentini,Nilauder Guimares, Marcelo Perilo, Igor Almeida, Olvia Bini, Reigler Pedroza, BrunaPenha, Warley Costa e Rafael Santana pelas conversas, pelos dilogos tericos e pelaamizade construda durante meu curso do Mestrado. Meu sincero agradecimento a PedroMarx e Hlio Neiva, por compartilhar amizade, carinho e apoio durante o meu intensoprocesso de aprendizagem. Sinto-me agradecida e feliz por ter divido com vocs minhasconquistas e tenses. A Marcos Ferreira, amigo, antroplogo e o primeiro incentivador aomeu ingresso no Mestrado em Antropologia Social. E a todas as pessoas que, por algumarazo, mantive o anonimato nesta pesquisa.

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    RESUMO:

    As polticas pblicas culturais tradicionalmente priorizaram a alta cultura e o folclore comoprincipais manifestaes da cultura brasileira. A partir da gesto do Ministro Gilberto Gil(2003-2008) observamos mudanas nos modos de formular e fazer poltica pblica cultural,e so nestas mudanas que o trabalho se concentrou. A principal inovao poltica destagesto a implantao do Programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, que operamatravs da gesto compartilhada entre Governo Federal e sociedade civil. Neste trabalhoanalisamos a execuo dos Pontos de Cultura enquanto poltica pblica cultural, assimcomo seus modos de organizao em redes sociais e virtuais. Trata-se de um estudoantropolgico dos Pontos de Cultura atravs dos artistas e da suas relaes com o ProgramaCultura Viva, Ministrio da Cultura e Secretarias de Cultura, Municipais e Estaduais. Aetnografia se constitui em entrevistas abertas e a observao participante nos Pontos deCultura, na rede virtual dos Pontos e nos encontros presenciais entre ponteiros, polticoslocais e representantes do MinC, denominados de Teias. O trabalho de campo seconcentrou nos coordenadores dos Pontos de Cultura, conhecidos como ponteiros. Estesponteiros so aqui compreendidos como os principais articuladores entre Pontos de Cultura,poder pblico e sociedade.

    Palavras chave: Pontos de Cultura, Ponteiros, Diversidade Cultural e Antropologia.

    ABSTRACT:

    The public cultural policies traditionally increased the high culture and folklore as the mainmanifestations of Brazilian culture. Since the management of the Minister Gilberto Gil(2003-2008) we situate changes in the ways of making public policy culture. The mainaction of this management policy is the implementation ofCultura Viva and the Pontosde Cultura, operating through the shared management between federal government andcivil society. In this work we analyze the implementation of public cultural policy, as wellas their modes of organization in social and virtual networks. The ethnography constitutesan open-ended interviews and participant observation in the Pontos de Cultura, in theirvirtual network, and the meetings between Pontos de Cultura, local politicians andrepresentatives of the Ministry of Culture, called Teias. The fieldwork focused on thecoordinators of the Pontos de Cultura, known as ponteiros. These ponteiros are includedhere as the main mediators between Pontos de Cultura, government and society.

    Keywords: Pontos de Cultura, Ponteiros, Cultural Diversity e Anthropology.

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    SUMRIO

    Lista de Abreviaturas............................................................................................................10

    Apresentao.........................................................................................................................11Metodologia..........................................................................................................................16

    CAPTULO IETNOGRAFIA DOS PONTOS

    1.1 Ponto de CulturaInveno Brasileira.............................................................................201.1.2 Ponto de Cultura Crimia Resistncia Comunitria e Ponto de Cultura Repblica doCerrado.................................................................................................................................251.1.3 Ponto de CulturaEldorado dos Carajs......................................................................27

    CAPTULO IIPOLTICAS PBLICAS CULTURAIS E DIVERSIDADE CULTURAL

    2.1 Breve histrico das polticas pblicas culturas brasileiras..............................................312.2 Polticas pblicas culturais a partir de 2003: Idealizao e implantao dos Pontos deCultura..................................................................................................................................372.3 Polticas de diversidade cultural: Debate nacional e internacional.................................41

    CAPTULO IIIETNOGRAFIA DA REDE VIRTUAL E DA TEIA CENTRO-OESTE

    3.1 Os ponteiros: articulaes em rede e nas Teias...............................................................463.2 O grupo virtual PC-Gois na rede virtual dos Pontos de Cultura: Por uma etnografiavirtual....................................................................................................................................503.3 Etnografia da Teia Cuiab 2011: Observao de um ritual poltico...............................543.4 Os Pontos de Cultura como Poltica Nacional................................................................61

    CAPTULO IVRELEXES DE CAMPO

    4.1 Transies: O atual contexto do Programa Cultura Viva................................................674.1.1 Articulaes entre ponteiros: observaes a partir dos grupos virtuais.......................704.1.2 Articulaes entre ponteiros e gestores pblicos: observaes a partir das Teias.......714.1.3 Articulaes entre ponteiros e comunidade/localidade ...............................................724.2 Desafios aos Pontos de Cultura.......................................................................................734.3 Pontos de Cultura: o fim do encantamento?...................................................................754.4 Entre ser pesquisadora, artista e pblico: Digresses.....................................................77

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    BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................80

    ANEXO I: PROGRAMAO DA TEIA-CUIAB 2011...................................................84

    ANEXO II: REGIMENTO INTERNO DO IV FRUM REGIONAL DOS PONTOS DE

    CULTURA DO CENTRO-OESTE......................................................................................87ANEXO III: MITO DO SEU ESTRELO E DO CALANGOVOADOR..............................................................................................................................92

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    LISTA DE ABREVIATURAS:

    AGEPEL: Agncia Goiana de Cultura Pedro Ludovico TeixeiraANCINE: Agncia Nacional do CinemaBACs: Bases de Apoio Cultura

    CNPdC: Comisso Nacional dos Pontos de CulturaCFC: Conselho Federal de CulturaCNC: Conselho Nacional de CulturaCNDA: Conselho Nacional de Direito AutoralCNRC: Centro Nacional de Referncia CulturalEMBRAFILME: Empresa Brasileira de FilmesFCB: Fundao do Cinema BrasileiroFICART: Fundo de Investimento Cultural e ArtsticoFUNARTE: Fundao Nacional de ArtesFUNDACEN: Fundao Nacional de Artes CnicasFNC: Fundo Nacional de CulturaINC: Instituto Nacional do CinemaINCE: Instituto Nacional do Cinema EducativoINL: Instituto Nacional do LivroIPHAN: Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico NacionalIHGB: Instituto Histrico e Geogrfico BrasileiroMEC: Ministrio da Educao ou Ministrio da Educao e CulturaMES: Ministrio da Educao e SadeMinC: Ministrio da CulturaONU: Organizao das Naes UnidasPNC: Poltica Nacional de Cultura ou Plano Nacional de CulturaSAI: Secretaria de Assuntos Internacionais/MinCSAV: Secretaria do AudiovisualSECULT-GO Secretaria de Cultura do Estado de GoisSEFIC: Secretaria de Fomento e Incentivo CulturaSEPHAN: Secretaria de Patrimnio Histrico e Artstico NacionalSCC: Secretaria de Cidadania Cultural/MinCSID: Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural/MinCSPC: Secretaria de Polticas Culturais/MinCSPHAN: Servio de Patrimnio Histrico e Artstico NacionalSPPC: Secretaria de Programas e Projetos Culturais/MinCSNT: Servio Nacional do TeatroUNESCO: Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura

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    Apresentao:

    Este trabalho fruto de minha experincia com artistas populares, agentes culturais

    e representantes polticos que fazem (ou fizeram) parte do Programa do Governo

    Federal/MinC Cultura Viva, mais especificamente, dos Pontos de Cultura. Os Pontos de

    Cultura esto inseridos em uma poltica pblica cultural estruturada na gesto

    compartilhada entre poder pblico e sociedade civil. Para compreender a dinmica desta

    gesto, realizei um trabalho de campo concentrado nos coordenadores dos Pontos de

    Cultura, tambm conhecidos como ponteiros. Estes ponteiros so aqui compreendidos

    como mediadores entre poder pblico e Pontos de Cultura, so atores-chave desta poltica

    pblica cultural inaugurada em 2004. A pesquisa de campo se desenvolveu entre Julho de

    2011 e Maio de 2012 e contou com visitas aos Pontos de Cultura de Goinia e Braslia,participao em grupos virtuais dos ponteiros, entrevistas abertas com ponteiros e demais

    envolvidos no Programa Cultura Viva, e a observao direta nos encontros regionais entre

    ponteiros, polticos locais e representantes do MinC.

    Entre os Pontos de Cultura que fazem parte desta pesquisa, est o Seu Estrelo e o

    Fu do Terreiro, que abre este trabalho. O grupo do Seu Estrelo criou um mito prprioo

    mito do Calango Voador - a partir dos elementos do cerrado e da cultura brasiliense, que

    cantado e danado ao som do samba pisado, gnero musical tambm criado pelo grupo. O

    Seu Estrelo e o Fu do Terreiro , que existe desde 2004, oferece ao pblico oficinas de

    teatro e dana popular, percusso e confeco de figurinos e bonecos. Em 2007, o Seu

    Estrelo foi premiado como grupo de cultura popular tradicional pelo MinC, e em 2010,

    atravs do Edital de abertura dos Pontos de Cultura, o grupo se conveniou ao Ministrio

    para se tornar um Ponto de Cultura da cidade de Braslia. O Seu Estrelo marca uma

    perspectiva peculiar sobre a cidade: os artistas propem a criao de uma identidade

    brasiliense; uma identidade hbrida, atravessada pelos batuques do maracatu, do cavalo

    marinho de Recife e com referncias ao circo e ao terreiro. Ao som dos baques, a

    construo da cidade de Braslia narrada e re-criada de forma ldica. A memria da

    cidade resgatada atravs das tradies populares que so evocadas e reproduzidas pelo

    grupo. Tico Magalhes, vindo de Recife, o criador do grupo e do mito do Calango

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    Voador. Segundo ele, o maracatu tem como base um mito, enquanto que os personagens e

    os ritmos correspondem s marcas da histria local.

    O grupo do Seu Estrelo narra, canta, brinca e dana a cidade Braslia atravs de um

    conjunto hbrido onde mitos, lendas e ritmos so (re) criados, inventando tradies.

    Atravs do mito, do ritmo e dos personagens, a memria da cidade de Braslia

    reconstruda. No trecho abaixo, observamos o confronto entre homem e natureza diante do

    progresso e da construo de Braslia:

    E assim rapidamente, cercada de sacrifcios estava pronta fabulosaCONTRUO. Uma Criatura Moderna, que levava dentro dela a esperana doshomens. Seu Estrelo e o Calango Voador comandariam os seres da Mata, todosestavam prontos para confronto (...) Hoje, estes homens e mulheres danam ecantam pra Seu Estrelo, trazendo para perto deles e para dentro da COISA afora da natureza. Recebem, hora dentro da COISA hora fora, Seu Estrelo e suaFalange. Contam e transmitem em suas brincadeiras, para seus filhos e seu povo,a histria do Calango Voador. Alimentados de Seu Estrelo, nutrem-se daesperana de que um dia o Calango novamente aparecer e junto com outroshomens encantaro novamente a GRANDE COISA, dando fim guerra entre aTriste Criatura Comedora de Homens e a Natureza (III Parte do Mito do SeuEstrelo:A Mata e a triste criatura comedora de homens).

    Este Ponto de Cultura uniu o terreiro e o picadeiro para narrar o mito do calango

    voador. Os ensaios ocorrem aos Sbados, dentro da casinha, como dizem, e os

    instrumentos musicais s saem de l para tocar para Seu Estrelo. A casinha o espao do

    Ponto de Cultura e possui grande importncia para o grupo, dentro da casinha que oprocesso produtivo acontece, para ns, um lugar sagrado. Os personagens tambm so

    sagrados para os participantes do grupo. Na roda, as figuras so seres que vm para brincar,

    divertir e ajudar a contar o mito. O respeito s figuras se mostra tambm nas apresentaes

    fora da casinha. O grupo s se apresenta em ambientes adequados preparao da roda e

    chegada dos personagens. Quando o lugar no oferece as condies necessrias para a

    apresentao da roda, o grupo opta pela sambada (apresentao apenas da batucada, sem os

    personagens).O grupo do Seu Estrelo, enquanto Ponto de Cultura est inserido em uma poltica

    pblica cultural interessada em localizar e reconhecer culturas populares e manifestaes

    culturais ditas no-clssicas, ou que no fazem parte de uma alta cultura. O exerccio

    de buscar e potencializar estas prticas culturais indica a emergncia de uma poltica

    pblica cultural no Brasil focada na diversidade cultural em suas mltiplas expresses. O

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    princpio do Programa de potencializar as culturas locais que j existem, tornando-os mais

    prximos de uma produo artesanal do que industrial. Conforme definiu o ento

    Ministro Gilberto Gil, os Pontos de Cultura foram criados para fazer com os pequenos

    grupos se apropriem cada vez mais dos espaos pblicos e que sejam protagonistas na

    proteo e promoo da diversidade (Gil, 2008).

    Na inteno de observar os modos de execuo desta poltica pblica cultural, o

    trabalho de campo se iniciou com visitas e acompanhamento das atividades dos Pontos de

    Cultura. No caso do Seu Estrelo, tive a oportunidade de assistir duas apresentaes do

    grupo em Goinia, pois estavam em uma turn pelo Centro-Oeste denominada Caravana

    Seu Estrelo - que contava com o apoio financeiro do Ministrio da Cultura- FUNARTE. A

    primeira apresentao foi um show musical, sem a participao dos personagens. A

    apresentao restringia-se a batucada do samba pisado. No camarim do Teatro do MartimCerer, ao final do show, me apresentei ao grupo e a Tico Magalhes. Quando o perguntei

    o porqu da no apresentao dos personagens, Tico me respondeu sorrindo: aqui no d,

    indicando que o teatro do Martim Cerer no era o espao adequado para a roda e a

    apresentao das figuras.

    No dia seguinte, o grupo se apresentou no seu formato completo na Casa da

    Juventude (CAJU), tambm em Goinia. Antes da apresentao falei rapidamente com

    alguns integrantes do grupo e quando pedi para falar com Tico, tive a impresso de ouvir

    uma voz de um dos colegas que estavam no camarim improvisado: a antroploga est aqui

    querendo falar com o Tico. Pediram-me para falar com ele no final do espetculo.

    Quando o espetculo comeou, Tico Magalhes estava para mim, irreconhecvel,

    cheguei a pensar que fosse outro ator. No lugar do rapaz tmido e de pouca fala que tinha

    conhecido um dia antes, estava na minha frente um personagem de voz alta, altamente

    expressiva, com o rosto encoberto por uma tinta escura. Tico se transformara em negro.

    Com todo figurino, Tico comeou o espetculo mais ou menos assim: Hoje todos vocs

    vivero uma experincia indita, uma experincia antropolgica... Vocs no vo acreditar!

    Vocs vo poder contar para seus filhos e netos e vo poder colocar em suas pesquisas

    acadmicas que o calango voador existe!

    E o espetculo comeou. Utilizando elementos da dana, do teatro, do terreiro e

    com a base na brincadeira inspirada no folclore do cavalo marinho, a roda preparava os

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    espectadores para a chegada do calango voador. As figuras possuam caractersticas

    prprias e traziam consigo os elementos para que a roda acontecesse e o para o calango

    chegar. Dentre os personagens: Aia, me de Seu Estrelo e responsvel por lavar a roda para

    purific-la; Seu Estrelo, que toma conta da roda; Luzbelo, dono dos sonhos e responsvel

    por juntar o mudo real com o mundo dos sonhos; e a Calhandra, feiticeira que d a

    permisso para buscarem o calango. No mito tambm existem figuras com intuito de

    atrapalhar a preparao da roda, como o guarda Grande Coisa (que chega para acabar com a

    festa) e Z Cad, um cavalheiro que chega 50 anos depois da construo da cidade

    querendo ser candango. Ao final do espetculo, o calango voador realmente aparece em

    uma dana rtmica embalada pelo som do grupo, o samba pisado. Aps a apresentao, de

    mais ou menos 2 horas e meia, fui conversar com o grupo. Tico j estava sem o figurino,

    sem maquiagem e quase sem voz. Falou-me que a cultura popular est conectada com opassado e com o futuro e que as polticas pblicas culturais devem valorizar as tradies.

    Quando expliquei sobre a minha pesquisa, Tico me disse: "A discusso importante, mas

    temos que pensar alm das teorias e das polticas, temos olhar para o que o povo vive e para

    o que o povo faz. Sobre o tema dos Pontos de Cultura, Tico afirmou que apesar das

    dificuldades inerentes aos Pontos de Cultura, enquanto tivermos a casinha e a gente puder

    abrir uma roda e brincar, a gente mantm nossa arte e passa para nossos filhos.

    Durante a pesquisa de campo convivi com artistas, ponteiros, gestores e envolvidos

    com os Pontos de Cultura e com o Programa Cultura Viva. As opinies e os pontos de vista

    de cada um me ajudaram a refletir sobre os Pontos de Cultura enquanto um novo paradigma

    nas polticas pblicas culturais. No que eu tenha percebido um consenso entre todos eles,

    ao contrrio, percebi que cada um possui um olhar bastante peculiar sobre o Programa e

    sobre as polticas pblicas culturais. Os Pontos de Cultura descritos nesta pesquisa

    correspondem a uma periferia, a um beco, a uma Universidade ou a uma casinha que

    produz sua arte de forma particular.

    Na inteno de analisar as particularidades e os modos de organizao de cada

    Ponto de Cultura, descrevo no primeiro captulo deste trabalho a entrada ao campo e

    minhas primeiras aproximaes com os ponteiros. Inicio o captulo lanando a etnografia

    dos Pontos de Cultura aqui pesquisados, suas atividades e seu pblico, no intuito de

    evidenciar como cada Ponto de Cultura compreende, produz (e reproduz) sua cultura.

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    reforada ao saber da rede virtual dos Pontos de Cultura e das Teias. O que chamo de rede

    virtual dos Pontos de Cultura refere-se dinmica dos grupos virtuais protagonizados

    pelos ponteiros. Estes grupos virtuais podem ser temticos ou relativos a alguma regio,

    estado ou municpio. Apesar de bastante heterogneos, o que esses grupos virtuais possuem

    em comum o fato de todos estarem conectados entre si. Possuem um modo de

    organizao em rede virtual que se aproxima do que Deleuze chamou de rizoma - um

    sistema a-centrado no hierrquico (...) unicamente definido por uma circulao de estados

    (Deleuze e Guattari, 1995, p.32).

    O que defino como rede virtual dos Pontos de Cultura tambm pressupe um

    espao pblico virtualou ciberespao (Ribeiro, 2000) que possui ao menos duas funes

    importantes: a) ser um espao de comunicao entre ponteiros - o que evidencia os modos

    de organizao virtual dos Pontos de Cultura. b) atuar como ferramenta poltica dosponteiros, o que indica a existncia de um ativismo distncia (Gustavo Lins, 2000).

    Pude observar que os grupos virtuais tecem uma extensa rede virtual multifocal

    protagonizada pelos ponteiros. A rede virtual dos Pontos de Cultura corresponde, portanto,

    a um modo de organizao, um espao de comunicao e de reivindicao dos ponteiros.

    Esta etnografia virtual me proporcionou uma aproximao ainda maior do cotidiano

    administrativo dos ponteiros, e foi aqui realizada atravs do grupo virtual PC-Gois, no

    qual tive a oportunidade de ser includa.

    Nas visitas aos Pontos, na Teia Centro-Oeste e na rede virtualdos Pontos de Cultura

    observei os modos como esta poltica cultural executada no seu cotidiano, como estas

    prticas se distanciam e se aproximam da proposta inicial do Programa dos Pontos de

    Cultura. Comeavam a surgir da duas principais perguntas norteadoras da pesquisa: a

    primeira, sobre o modo de organizao dos Pontos de Cultura e, a segunda, sobre o impacto

    dos Pontos de Cultura nas polticas pblicas culturais.

    Para explorar estas perguntas norteadoras, o conceito de broker(Wolf, 1955 e 1956)

    foi aqui utilizado como ferramenta metodolgica para analisar as intermediaes entre

    gestores, artistas, ponteiros e sociedade civil. Um broker, como mediador entre os atores

    orientados para a comunidade e os atores orientados para a nao (Wolf, 1956), ocupa

    uma posio estratgica entre instncias locais e a instncia nacional. Operando como

    brokers, os ponteiros correspondem aos principais sujeitos mediadores das relaes locais

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    com o Estado e poder pblico. Esta abordagem inspirada no conceito antropolgico de

    Wolf nos permite analisar os ponteiros atravs das suas relaes entre localidades e o

    Estado. Portanto, as intermediaes estabelecidas atravs dos brokers constituem processos

    polticos de nvel local e supra-local, que ocorrem dentro e fora das instituies, entre

    Estado e sociedade civil.

    Processos supra-locais so aqui definidos como nveis intermedirios entre o local

    e o nacional. No mbito local, consideramos as relaes entre ponteiros e o pblico que

    faz parte do Ponto de Cultura; e ainda, ponteiros, polticos e instituies locais. Entretanto,

    as relaes estabelecidas pelos Pontos de Cultura se estendem para alm de suas

    localidades e dialogam diretamente com representantes de estados e regies do pas,

    caracterizando relaes supra-locais. Estas intermediaes nos conduzem a um problema

    clssico da Antropologia: sobre as relaes entre as instncias locais e supra-locais, ouentre saberes e prticas locais e a poltica de Estado (Wolf, 1955; Steward, 1972; Alvarez,

    2009). As mltiplas articulaes entre ponteiros, poltica cultural e sociedade civil

    evidenciam uma complexa rede que integra instncias locais e supra-locais intermediadas

    porbrokers. Os modos de organizao em rede dos Pontos de Cultura indicam a existncia

    de um espao pblico mediado por vrios atores em diferentes posies, que relacionam

    mltiplos nveis locais e supra-locais. A categoria de espao pblico ser aqui utilizada em

    dois momentos: primeiro, para analisarmos o espao pblico virtual dos ponteiros. O

    segundo, para compreendermos as relaes em rede que so performaticamente

    estabelecidas nas Teias. Portanto, a categoria de espao pblico aqui utilizada como um

    modo de organizao social.

    Um cenrio presencial observado durante a pesquisa foi a 4 Teia Centro-Oeste,

    ocorrida nos dias 22, 23 e 24 de Junho de 2011, na cidade de Cuiab-MT. Esta experincia

    me permitiu observar a dinmica entre ponteiros, polticos locais e estaduais, representantes

    do Ministrio e de suas Secretarias. As Teias compem diferentes grupos, sejam artistas,

    ponteiros, polticos, representantes do MinC, simpatizantes de partidos, produtores,

    gestores e administradores da rea cultural. Este encontro pode ser observado como um

    ritual poltico, um poderoso aparelho comunicacional multimdia que pe em evidencia, faz

    sensvel, uma determinada comunidade de comunicao (Cardoso de Oliveira, 2006;

    Alvarez, 2000; Leach, 1966; Peirano, 2000; Turner, 2005). O encontro hbrido da Teia

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    Cuiab me permitiu observar as redes de relaes que vo alm dos ponteiros e que se

    estendem para diferentes grupos que ocupam diferentes posies sociais. A Teia um

    encontro poltico entre ponteiros e gestores pblicos, mas tambm um momento para

    apresentaes culturais pblicas, performaticamente apresentadas pelos Pontos de Cultura

    durante todos os dias da Teia. As apresentaes so abertas e funcionam como uma

    vitrine onde os espectadores so os gestores pblicos, polticos locais e a populao em

    geral.

    Tanto nas Teias como na rede virtual dos Pontos de Cultura, os ponteiros so chaves

    para as relaes entre os Pontos, e dos Pontos com os gestores pblicos. Mas os ponteiros

    tambm so responsveis pela escrita e inscrio dos projetos, pela programao dos

    gastos, programao das atividades e as prestaes de conta de seus respectivos Pontos.

    Realizam o trabalho administrativo de manuteno dos Pontos ao mesmo tempo em quearticulam politicamente com outros rgos pblicos e com o Ministrio da Cultura. A

    pesquisa se concentrou nos ponteiros, nos seus modos de organizao e de execuo desta

    poltica pblica. Todavia, os ponteiros operam em vrios nveis de articulao, que vai

    desde os prprios espaos dos Pontos de Cultura, suas relaes em rede virtual, at os

    encontros e negociaes com polticos locais, estaduais e com o prprio Ministrio da

    Cultura. Por ser um campo multi-local, a pesquisa se desenvolveu em vrios lugares e em

    diferentes situaes. As experincias de campo nos permitiram compreender o modo de

    organizao dos Pontos de Cultura, e tambm, contextualizar o atual cenrio poltico-

    cultural brasileiro.

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    CAPTULO I

    ETNOGRAFIA DOS PONTOS

    1.1 Ponto de Cultura Inveno Brasileira:

    O primeiro Ponto de Cultura que visitei foi o Inveno Brasileira, localizado no

    Mercado Sul, em Taguatinga-DF. O Ponto era ento coordenado por Chico Simes,

    educador comunitrio, organizador de encontros sobre cultura popular, e entusiasta do

    projeto inicial dos Pontos de Cultura. Atualmente, o Inveno Brasileira no assina

    convnio como um Ponto de Cultura, mas mantm atividades culturais no mesmo espao.

    O grupo Mamulengo e Presepada coordenado por Chico Simes e Walter Cedro, docontinuidade s atividades do Inveno Brasileira. Alm das apresentaes dos

    mamulengos, (um tipo de fantoche tpico da cultura nordestina, especialmente do estado e

    Pernambuco), oInveno Brasileira constitui um espao de convivncia e de formao de

    agentes culturais comunitrios.

    Chico Simes e seu grupo Mamulengo e Presepada possuem uma longa

    experincia na rea cultural. Desde 1983, viajam nacionalmente e internacionalmente para

    divulgar tradies culturais como o bumba-meu-boi e mamulengo Chico Simes e seu

    grupo j realizaram mais de duas mil apresentaes pelo Brasil, e em suas palavras: mais

    vinte outras pelo mundo. A partir da convivncia com o amigo Carlos Babau,

    (responsvel pelo grupo Carroa de Mamulengos), Chico viajou trs anos pelo nordeste

    brasileiro e participou de oficinas coordenadas pelo Mamulengo S Riso em Olinda-PE.

    O grupo Mamulengo Presepada comeou a atuar em Braslia em 1985. Mestre Slon, do

    Mamulengo Inveno Brasileira, Carpina- PE presenteou o grupo com os primeiros

    bonecos.

    O espao do Inveno Brasileira est situado em uma pequena rua na ComercialSul, em Taguatinga. Este espao era um antigo mercado da cidade. O beco, como

    costumam dizer, uma ruazinha com casas comerciais antigas, uma ao lado da outra. Em

    cada uma, ocorre uma atividade diferente. O Inveno Brasileira fica em uma destas casas

    que por sinal, vizinha ao ateli de Seu Joo Mestre Dico - um exmio violeiro e luthier

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    de violas, contrabaixos e violes. No beco h ainda outra casa onde um grupo de teatro

    costuma ensaiar, e outra portinha onde ocorrem encontros de jovens do Centro de Mdia

    Independente de Braslia. Existem outras casas fechadas, aparentemente desabitadas.

    Logo que cheguei no beco ainda pela manh, conheci alguns integrantes das casas

    e a partir de entrevistas abertas e conversas informais percebi que Chico Simes era uma

    referncia para os jovens com quem eu estava conversando. Era minha primeira ida a

    campo e naquele momento estava to preocupada em encontrar o ento gestor do Ponto

    que demorou um pouco para eu perceber que o ponteiro, antes de ser um gestor um

    artista. Quando o Chico Simes chegou ao beco j era hora do almoo e convidou todos

    que estavam noInveno Brasileira a almoarem no restaurante ao lado. Foi em uma mesa

    para quatro cadeiras e seis pessoas que almoamos e iniciamos a conversa tmida sobre

    cultura e suas polticas. Quando falava em termos de poltica cultural os colegas meolhavam, olhavam entre si e me pediam para observar melhor a cultura popular ao invs das

    suas polticas.

    Ao longo do dia ficamos no Ponto conversando organizando o som e o palco para as

    apresentaes que ocorreriam em poucas horas. Ao fim da tarde, a imagem que eu tinha

    construdo de gestor de Ponto de Cultura, austero e formal, foi totalmente desconstruda.

    Estava diante de artistas muito mais preocupados em executar a sua arte do que executar

    uma poltica pblica cultural.

    Neste dia da visita ao Ponto de Cultura Inveno Brasileira era a data de reabertura

    do espao. O Ponto no estava em funcionamento porque no tinha refeito o convnio com

    o Ministrio da Cultura. Ao perguntar sobre a no atualizao do convnio, Chico

    argumentou sobre os entraves burocrticos presentes no edital dos Pontos de Cultura tal

    como as prestaes de contas dos Pontos. Era a primeira vez que ouvia sobre as

    dificuldades de execuo e manuteno do Programa, pois o levantamento bibliogrfico e

    os dados que eu havia ento pesquisado no indicavam este tipo de informao. Chico

    comentou que qualquer detalhe pode ser um motivo para que convnio seja suspenso. Ao

    longo da conversa percebi que para se tornar e se manter como um Ponto de Cultura era

    preciso enfrentar uma srie de arranjos burocrticos de abertura e manuteno dos Pontos,

    alm do enfrentar os atrasos no pagamento das parcelas do convnio e os entraves

    burocrticos para prestao de contas.

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    Pensando nos impasses burocrticos do Programa fui assistir a apresentao. Vrias

    crianas comiam pipoca e bebiam suco enquanto observavam atentamente o teatro dos

    bonecos. Diante disto, um dos colegas do Ponto me indagou: como a gente estava dizendo,

    sobre as prestaes de contas... Como ns podemos prestar conta desta pipoca e do suco

    comprado na vendinha ao lado, que nem nota fiscal tem? Aps a apresentao, repeti o

    comentrio do colega com o Chico, que logo emendou com outra pergunta: e ento, se um

    Ponto perde o convnio, ele deixa de ser Ponto de Cultura? Como um Ponto deixa de ser

    Ponto? Ponto Ponto! De fato, esta seria esta a filosofia dos Pontos de Cultura, afinal, os

    Pontos j existem, eles s so reconhecidos e conveniados institucionalmente com o MinC.

    Chico Simes j est na rea cultural h mais de vinte anos e atravessou diversas

    fases da poltica cultural no pas, conquistando premiaes pelos seus trabalhos1. O

    Programa Cultura Viva viria a potencializar trabalhos como do Chico - e de vrios outrosartistas que no foram premiados ou que no foram includos nas antigas polticas

    pblicas culturais. Sobre a no conquista dessa meta do Programa Cultura Viva, Chico me

    comentou: O principal enfrentamento dos Pontos de como sobreviver ao prprio

    crescimento, as leis atuais no atendem nossos mestres, no dialogam com a realidade.

    Este era o tom das conversas que tive com o Chico e que, dois anos antes de conhec-lo, j

    havia feito a mesma crtica na Teia Braslia 2008 - quando foi coordenador desta Teia.

    Apesar de no ter participado da Teia Braslia 2008, verifiquei que as crticas apontadas

    pelo Chico naquele ano, ainda so atuais e repercutem at este ano de 2012.

    Outra crtica apontada por Chico Simes foi sobre o modo como foi disponibilizado

    o kit multimdiaaos Pontos de Cultura. A gente se tornou Ponto de Cultura e tnhamos que

    trabalhar com cultura digital, porque estava l no edital e tinha que contar no plano de

    trabalho. No trabalhvamos com isso, ningum nos explicou nada... software livre...

    ningum sabia nada. Pegou todo mundo de surpresa. Hoje j superamos isso e a cultura

    digital atualmente um tema importante para ns. Mas a gente teve que correr atrs.

    Comecei a question-lo sobre a importncia do protagonismo dos artistas e da

    sociedade civil nas polticas pblicas culturais. Chico se definiu como um fronteirio que

    1. Chico e seu grupo participaram de importantes eventos culturais, ganhou diversos prmios, entre eles:Prmio Betinho, pelo trabalho desenvolvido com crianas que vivem nas ruas de Braslia - 1994. Prmio demelhor ator e melhor espetculo infantil no Festival Nacional de Teatro Florianpolis 1997. PrmioBolsa Virtuose do Ministrio da Cultura, para pesquisar na Europa a tradio do teatro de bonecos - 1998.Prmio Dramaturgia FUNARTEMinistrio da Cultura2003 (2 colocado Regio Centro- Oeste).

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    prope dilogos entre o estado e o povo. A expresso me ajudou a refletir sobre a posio

    estratgica destes artistas, da sua proximidade com o conceito antropolgico de broker,

    como articuladores das relaes entre poltica pblica cultural e a arte. Depois da primeira

    visita aoInveno Brasileira, retornei a Taguatinga algumas vezes para dar continuidade s

    conversas com Chico Simes. Entre idas e vindas a Taguatinga, percebi que Chico possui

    um know-how das polticas pblicas culturais brasileiras, que conhece e aponta para os

    modos de se pensar e executar estas polticas. O mestre dos mamulengos e da tradio oral

    se revelou nesta pesquisa, como um importante articulador entre a arte e a poltica pblica

    cultural, apesar de afirmar que atualmente oInveno tem vnculos muito espordicos

    com o governo".

    Na minha ltima ida Taguatinga quase no conversei com Chico Simes, mas tive

    a oportunidade de conhecer Mestre Babau e seu grupo Carroa de Mamulengos, queestavam hospedados na casa de Chico. O Carroa dos Mamulengos uma famlia de

    brincantes e mamulengueiros que apresentam sua arte em praas, feiras, ruas, teatros e

    festivais. A famlia da Carroa dos Mamulengos composta por oito filhos, Carlos Babau e

    sua esposa, Shirley Frana. Com o nascimento dos filhos, o grupo incorporou as crianas

    dentro de uma conscincia que arte e vida se complementam2. Durante a minha

    hospedagem na casa de Chico Simes observei que a famlia de Babau uma extenso da

    arte que produzem. Nesta noite, enquanto conversava com alguns artistas que estavam na

    casa de Chico, uma grande roda se formou e iniciamos nossa conversa. Na extenso da

    roda, dois jovens artistas ensaiavam uma bela dana com espadas, marcando os ritmos e

    sons com estes instrumentos. Do outro lado, eu estava sentada ao lado de Carlos Babau e

    outros colegas do Inveno Brasileira. Um dos colegas do Inveno me apresentou a

    Carlos como a pesquisadora sobre os Pontos de Cultura e polticas pblicas culturais. De

    incio, Carlos Babau no me recebeu com muita simpatia e comeou a discorrer crticas

    sobre os Pontos de Cultura, afirmando que tudo isso bobagem e saiu dizendo que ia

    dormir.

    Na manh seguinte, encontrei Carlos na rea externa da casa, sentei prximo dele e

    disse que gostaria de ouvir as crticas sobre os Pontos de Cultura, que sua opinio tambm

    2 Frase retirada do site do grupo: http://www.carrocademamulengos.com.br/historico.asp. Acesso em:09/08/2012

    http://www.carrocademamulengos.com.br/historico.asphttp://www.carrocademamulengos.com.br/historico.asp
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    era importante para a minha pesquisa. Ele comeou a conversa dizendo que no concorda

    com este tipo de poltica porque torna o artista dependente do governo, e que o artista deve

    ser em essncia, livre. Um artista que no consegue reunir pblico em sua volta em uma

    praa, que no consegue viver da sua prpria arte de forma independente... esse cara no

    artista. Criticou veementemente o Programa Cultura Viva ironizando que para quem quer

    trocar seu carrinho popular por um sedam, ou para quem quer gastar dinheiro pblico com

    viagens e encontros entre os ponteiros... eles devem achar muito bom. Eu no. No

    concordo e no compactuo com isto.

    As opinies de Carlos Babau me fizeram refletir sobre tantos artistas que no so

    apoiados por polticas pblicas culturais. Lembrei-me de artistas e amigos de Goinia que

    tem uma posio resistente ao apoio institucional. Lembrei-me dos circuitos culturais que

    fao parte. Tantos lugares que fui (e ainda vou), organizados por pessoas sem nenhumvnculo governamental. Sesses de cinema, saraus, teatro de rua, apresentaes musicais;

    muitas vezes com a minha participao, cantando, tocando, recitando, organizando... Como

    contrabaixista refleti sobre os eventos que me apresentei, alguns com cach ou apoio

    institucional, outros no. Compreendi que eu estava situada entre o circuito cultural

    independente e o institucionalizado. Refleti sobre o tema da pesquisa em minha prpria

    experincia, como pblico e como artista. Muito embora eu tenha escolhido os Pontos de

    Cultura para pesquisa, convivi e ainda convivo com inmeros artistas que se mantm

    distantes ou resistentes a qualquer poltica pblica cultural.

    As opinies dos artistas que no so apoiados institucionalmente me ajudaram a

    refletir sobre a prpria poltica pblica cultural. Como diria meu amigo Wander Segundo,

    dono de um selo de gravao independente de Goinia como eu vou pedir apoio

    institucional se eu no concordo com o governo? Como vou ter incentivo se eu no falo do

    pequi e do cerrado? Comecei a refletir sobre a autonomia dos artistas e em que medida

    estes seriam dependentes do Estado. Estas conversas chocaram minhas experincias

    artsticas com o trabalho antropolgico. Lembrei-me das aulas do curso de Antropologia

    sobre a pesquisa etnogrfica - que impe ao pesquisador um deslocamento de sua prpria

    cultura. Acho que entendi esta expresso. Era justamente o que estava ocorrendo comigo.

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    1.1.2 Ponto de Cultura Crimia Resistncia Comunitria e Ponto de Cultura

    Repblica do Cerrado

    As visitas aos Pontos de Cultura foram realizadas em um perodo de transio de

    gestes do Ministrio da Cultura, (entre 2011 e 2012). O trabalho de campo nos Pontos de

    Cultura ocorreu no final da gesto do Ministro Juca Ferreira, sucessor do Ministro Gilberto

    Gil. No decorrer da pesquisa observei que, a partir da gesto da Ministra Ana de Holanda

    (2012) a no-continuidade dos convnios com os Pontos de Cultura se tornou mais

    freqente. Este tipo de situao ocorreu com o Inveno Brasileira e com outros dois

    Pontos em Goinia: o Ponto de Cultura Crimia Resistncia Comunitria e o Ponto de

    Cultura3Repblica do Cerrado. Apesar de no ter visitado estes dois ltimos Pontos de

    Cultura, tive a oportunidade de conversar com os respectivos coordenadores e ponteiros. OCrimia Resistncia Comunitria uma ONG que se conveniou como Ponto de Cultura

    entre 2006 e 2008 e neste ano de 2012 retoma suas atividades, no mesmo local - no Setor

    Crimia Leste, periferia da regio norte de Goinia. O espao do Crimia est voltado para

    aes culturais que visam gerao de emprego atravs do desenvolvimento local e

    sustentvel, envolvendo a comunidade da regio em oficinas e atividades culturais. As

    conversas com a coordenadora do Crimia se aproximaram da crtica de Chico Simes,

    sobre os procedimentos burocrticos dos Pontos de Cultura: Quero buscar novas formas de

    sobrevivncia dentro do bairro, nem quero re-assinar [o convnio como Ponto], d trabalho

    demais... Por enquanto estou fazendo projetos isolados, outros editais, porque o dos Pontos

    de Cultura muito burocrtico... O MinC lana editais em forma de prmios e estes so o

    menosburocrticos de todos. Em seguida perguntei: por que os prmios no precisam

    prestar contas? Ela me confirmou que sim.

    O Crimia e o Inveno Brasileira continuam em atividade, mas os coordenadores

    no possuem o interesse em manter-se conveniado como Ponto de Cultura. Este tipo de

    posio me fez questionar sobre o trabalho administrativo e o trabalho artstico dos

    3Os Pontes de Cultura foram criados em 2004 para articular os Pontos de Cultura, difundir as aes dosPontos e estabelecer a integrao e o funcionamento da rede dos Pontos de Cultura. J os Pontes de CulturaDigital foram lanados em 2007 e possuem as mesmas funes dos Pontes de Cultura porm, com a

    peculiaridade de utilizar predominantemente os meios digitais na promoo de suas atividades (Fonte: site doPrograma Cultura Viva: http://www.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-de-cultura/pontoe/ Acesso em:9/8/2012)

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    Na ocasio foi entregue Ministra oManifesto dos Pontos de Cultura, e tambm foi

    protocolada uma carta indicando nomes para compor as comisses de acompanhamento dos

    editais e dos Pontes de Cultura. Em resposta, Ana de Hollanda afirmou que os dirigentes

    do MinC reconheceram a importncia dos Pontos de Cultura, mas pediram a compreenso

    dos ponteiros diante do aperto financeiro que o Ministrio enfrentava no seu primeiro ano

    de Ministra. Quero que entendam que no m vontade da nossa parte e que o dinheiro

    no est sendo desviado para outras reas, comentou a Ministra. Como alternativa falta

    de recursos para efetuar o imediato pagamento dos editais atrasados, a Ministra ofereceu a

    manuteno de um permanente dilogo com o setor, na busca de alternativas e solues. O

    encontro marcou um dilogo direto entre ponteiros e a Ministra, mas posteriormente

    observei que as reivindicaes dos ponteiros no foram totalmente acertadas e resolvidas.

    Acompanhei descontinuidade nos convnios dos Pontos de Cultura e o no-lanamento deeditais e prmios tais como os Pontinhos de Leitura, o Prmio Cultura Populares, o Projeto

    Agente Escola Viva e a suspenso da revista Escola Viva todos integrados ao Programa

    Cultura Viva/MinC.

    1.1.3Ponto de Cultura Eldorado dos Carajs:

    O segundo Ponto de Cultura que visitei foi o Centro Cultural Eldorado dos

    Carajs, localizado no centro da cidade de Goinia. O nome refere-se aos 19 sem-terra

    massacrados em uma ao policial no municpio de Eldorado dos Carajs, sul do Par. A

    diretoria deste Ponto composta por mais de dez pessoas entre professores, artistas e

    militantes de movimentos populares e sindicais. A coordenao-geral do Ponto fica a cargo

    da Ana Lcia, historiadora, professora aposentada e aqui compreendida como principal

    ponteira e articuladora. Este Ponto de Cultura promove cursos, seminrios, produo de

    shows, oficinas e exibio de filmes. O pblico alvo so os alunos da rede de ensino

    pblico. O Eldorado dos Carajs tambm um Ponto de Cultura Digital. Ocorrem dentre

    outras atividades, saraus, mostras de cinema e cursos; dentre eles, o Como Funciona a

    Sociedade Capitalista. s quintas feiras ocorrem atividades musicais como a apresentao

    de grupos de samba e chorinho.

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    Quando cheguei ao Ponto de Cultura Eldorado dos Carajs, no era dia de atividade,

    mas alguns integrantes do Ponto estavam na casa. Fui recebida por um dos colegas em uma

    biblioteca bastante peculiar. Observei que na maior parte dos livros apareciam nomes de

    Marx, Lnin... Enquanto me apresentava e caminhava pela casa, observei que logo na

    entrada que d acesso ao quintal v-se uma imagem na parede de Che Guevara. Foi em

    frente esta imagem que perguntei a um dos integrantes do Ponto: qual o principal

    objetivo de vocs?. A resposta veio de um dos colegas de cabelos compridos: de incitar

    o senso crtico nos nossos adolescentes. Ana Lcia, ouvindo a conversa de dentro de uma

    pequena sala disse: porque aqui assim, o sujeito j d de cara com o Che, se quiser

    entrar, que entre. No decorrer da conversa pude perceber que os doze gestores possuam

    em comum a militncia pelos mesmos ideais. Observei que o Ponto de Cultura, alm de

    muito organizado nas atividades que prope, possui um plo ideolgico marcante. OEldorado me fez refletir que os Pontos de Cultura so diferentes entre si, possuem misses

    e ideologias diferentes.

    Ao adentrar no Eldorado dos Carajs, fui apresentada Ana Lcia, que estava

    diante de uma tela do computador e, em suas palavras: fazendo mil coisas ao mesmo

    tempo. Nossa conversa foi rpida, talvez devido ao volume de tarefas que a ponteira

    estava fazendo; talvez porque no estava com interesse em ser entrevistada por uma

    mestranda em Antropologia. Retornei aoEldorado dos Carajs outras vezes, nas quintas-

    feiras, dias de apresentao musical. No tive a oportunidade de conversar com Ana Lcia,

    pois estava sempre atarefada nestes eventos, andando por todos os lados, atendendo os

    convidados, ajudando a organizar o som, a comida, observando os alunos... No era o

    melhor momento para conversarmos, mas dialoguei com alguns jovens, majoritariamente

    alunos da rede pblica que compareciam a estes eventos. Um dos colegas afirmou: estou

    ajudando aqui e estou muito feliz, Ana Lcia meio brava, mas ela me incentiva... Ano que

    vem vou tentar vestibular na UFG, difcil passar l n? A gente que pobre tem que ralar

    tanto.... Com o tempo fui observando que Ana Lcia mesmo brava, como disse o

    colega, mas possui comprometimento e carinho com os jovens com quem trabalha.

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    Tive a oportunidade de conversar com Ana Lcia s em Abril de 2012 - quando

    organizou a vinda do idealizador dos Pontos de Cultura cidade de Goinia, Clio Turino6.

    O projeto inicial dos Pontos de Cultura foi cunhado nos anos 90, numa parceria do Clio

    Turino com o antroplogo Antnio Augusto Arantes, na poca Secretrio de Cultura em

    Campinas-SP (Turino, 2000). Sua gesto na Secretaria de Cidadania Cultural/ MinC

    marcou novos modos de se fazer poltica pblica cultural no Brasil, muito embora esta

    mesma poltica encontre hoje vrios desafios. Clio Turino aqui interpretado como um

    broker que ocupa uma posio estratgica entre as culturas do Brasil escondido e as

    polticas de Estado.

    Desde a minha primeira conversa com Chico Simes eu estava em busca de uma

    entrevista com Clio Turino e, na sua vinda Goinia tive a oportunidade de conhec-lo e

    compartilhar uma mesa com Ana Lcia, Clio Turino e o Deputado do Estado de Gois,Mauro Rubem. Na conversa compartilhada estava em pauta a funo de uma pesquisa

    acadmica. Ana Lcia afirmava que pesquisas acadmicas no poderiam causar mudanas

    nas polticas culturais. Disse-me que conhecia vrios pesquisadores que trabalham com o

    tema do Cultura Viva, que as pesquisas ficam engavetadas, e que no provocam aes

    polticas. O que realmente transforma a organizao e a mobilizao popular; ao invs

    de teorias, afirmou. No tinha muito a dizer neste momento, apenas a escutei, me

    lembrando do texto de Rocha e Eckert (2008) onde afirmam que a disposio de escutar o

    outro exige um aprendizado a ser conquistado a cada campo, a cada entrevista, a cada

    experincia de observao (Eckert e Rocha, 2008). Ouvi. Muito embora, no final da

    conversa, afirmei aos que estavam na mesa que se ao menos eu conseguir provocar

    dilogos entre a poltica cultural e artistas atravs de uma pesquisa acadmica; se isto

    acontecer euj estarei segura de que meu trabalho valeu a pena.

    Depois que Ana Lcia e o Deputado se despediram, permaneci na mesa com Clio

    Turino, com quem tive uma longa conversa sobre a minha pesquisa e sobre suas opinies

    acerca do atual quadro das polticas pblicas culturais. Turino afirmou que os Pontos de

    6Clio Turino escritor, graduado em Cincias Sociais e Mestre em Historia. Foi Secretrio Municipal deCultura de Campinas/SP, Diretor do Departamento de Programas de Lazer na Secretaria de Esportes, durantea gesto de Marta Suplicy, e Secretrio da Secretaria de Cidadania Cultural/ MinC (2004 - 2010), perodo quetrabalhou com o Ministro Gilberto Gil. Dentre as obras publicadas por Clio Turino est Pontos de Cultura, oBrasil de baixo para cima, uma referncia para pesquisadores sobre os Pontos de Cultura e o ProgramaCultura Viva.

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    Cultura esto embasados na idia da autonomia e participao da sociedade, objetivam

    revelar um Brasil escondido. A meta seria de inverter os modos de se fazer poltica

    pblica cultural e comear a faz-la de baixo para cima. Afirmou que um dos principais

    impasses para o programa a descontinuidade desta poltica e reconheceu que atualmente o

    Programa enfrenta problemas diante do aparelho estatal brasileiro. Conversamos sobre as

    experincias dos Pontos de Cultura na Amrica Latina. Guatemala, Argentina, Peru,

    Colmbia e Mxico se inspiraram no modelo dos Pontos de Cultura brasileiros e esto

    desenvolvendo Programas semelhantes. Ao final, disse-me que as pesquisas acadmicas

    sobre os Pontos de Cultura podem ajudar a ampliar a discusso sobre as polticas pblicas

    culturais e afirmou que tinha interesse em conhecer uma abordagem antropolgica sobre o

    Programa. As conversas com Clio Turino e com os ponteiros que conheci nesta etapa da

    pesquisa me permitiram comparar a proposta do Programa com o cotidiano dos ponteiros.Percebi que Ana Lcia, Virglio Alencar e Chico Simes poderiam ser compreendidos

    como brokers que articulam instncias locais a programas nacionais. As visitas aos Pontos

    de Cultura me permitiram conhecer os principais interlocutores dos Pontos de Cultura: os

    ponteiros. Estes interlocutores correspondem a atores fronteirios entre poltica pblica

    cultural e sociedade civil. Cada Ponto opera como um local de expresso da diversidade

    cultural; possui um olhar particular sobre cultura, seja a partir do teatro, do circo, da cidade

    ou de um ponto de vista ideolgico. Cada ponteiro efetua operaes locais e supra-locais,

    operando como atores polticos para a efetivao desta poltica pblica.

    As mltiplas formas de expresso e grupos variados compem um mosaico

    diversificado que caracteriza os Pontos de Cultura. A proposta dos Pontos de se fazer uma

    poltica pblica cultural para alm dos bens produzidos e incluir diferentes grupos da

    sociedade nos meios de produo, difuso e fruio cultural. Este modelo de poltica

    cultural, ao mesmo tempo em que compartilhado com a sociedade, tambm prope

    reformulaes na participao do Estado para execuo desta poltica. Para

    compreendermos melhor por que esta poltica cultural considerada inovadora,

    destacaremos no prximo captulo o histrico das principais aes polticas no campo da

    cultura. Este histrico, descrito em ordem cronolgica, nos permitir observar os

    paradigmas que precedem a atual poltica cultural.

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    CAPTULO II

    POLTICAS PBLICAS CULTURAIS E DIVERSIDADE CULTURAL

    2.1 Breve histrico das polticas pblicas culturais

    Assim como o Estado-Nao procura delimitar e zelar por suas fronteirasgeopolticas, ele tambm se empenha em marcar suas fronteiras culturais,estabelecendo o que faz e o que no faz parte da nao. Atravs desse processose constri uma identidade nacional que procura dar uma imagem comunidadeabrangida por ela (Oliven, 2006, p. 20)

    Neste tpico trabalharemos com uma sntese da primeira etapa desta pesquisa: o

    levantamento bibliogrfico acerca do histrico das polticas pblicas culturais no Brasil.

    Desenvolvi este histrico a fim de situarmos continuidades e descontinuidades nas aespblicas no mbito da cultura. Em seqncia, descreverei o momento de implantao do

    Programa Cultura Viva a fim de situar as reformulaes no conceito de cultura e de suas

    polticas pblicas. O que teria ocorrido no cenrio poltico brasileiro antes da implantao

    do Programa Cultura Viva?

    A resposta sugere uma viagem na histria poltico-cultural do pas. Na historiografia

    brasileira, Srgio Buarque de Holanda (1991) afirma que a cultura brasileira durante o

    perodo colonial foi marcada pela influncia direta da cultura portuguesa, e que as aes

    polticas eram direcionadas s manifestaes culturais de Portugal. Para o autor, os

    portugueses insistiram na criao de uma nao portuguesa em territrio brasileiro, e como

    no conseguiram reproduzir o Portugal no Brasil, investiram na tradio [portuguesa]

    como a nica defesa possvel para nossa desordem (Holanda, p. 33, 1991). As aes

    polticas para a cultura, durante o perodo colonial, remetem tradio portuguesa no

    Brasil; j que neste perodo ainda havia a proibio da metrpole portuguesa quanto

    criao de instituies de ensino, de editoras, de jornais e de qualquer instituio produtora

    de bens simblicos na colnia americana (Barbalho, p. 2, 2007). A partir de 1808, com avinda da Corte ao Brasil, situamos um impulso inicial na ao poltico-cultural: a criao da

    Biblioteca e do Museu Nacional, do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e das

    primeiras bolsas de estudos concedidas a artistas. Os artistas e pensadores brasileiros da

    Primeira Repblica ocuparam cargos no funcionalismo pblico, mas estes cargos raramente

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    Com o fim da Segunda Guerra (1945), e durante os anos 50 e 60 ocorre a retomada

    da produo dos aparelhos de rdio, TV e equipamentos de transmisso. um perodo de

    projeo do Cinema Novo e da Bossa Novaambos movimentos marcados pela presena

    de uma elite intelectual branca e acadmica. Conforme aponta Simonard (2006):

    Durante os anos 50 e 60 esta elite intelectual apresentavam-se como os legtimosrepresentantes das aspiraes da nao... O Estado era visto como um aliado, eao mesmo tempo, objetivo final de suas prticas polticas. Os intelectuais

    buscavam acessos ao aparelho estatal, ou ao menos, agir como conscinciacrtica e influente nos homens do governo. dentro desta perspectiva e destatradio vanguardista que os intelectuais de esquerda, inclusive aqueles queatuaram no cenrio artstico-cultural se inserem (Simonard, p. 15, 2006).

    J em 1953, o antigo Ministrio de Educao e Sade (MES) desmembrado, e

    cria-se o Ministrio da Sade (MS) e o Ministrio da Educao e Cultura (MEC).Posteriormente, com o golpe militar (1964), a cena cultural brasileira marcada pela

    censura e pelo desmantelamento da grande maioria dos projetos culturais que estavam em

    curso. O governo de Castelo Branco (1964-1967), que reprimia as atitudes contrrias ao

    governo, criou o Instituto Nacional do Cinema (INC) e o Conselho Federal de Cultura

    (CFC) este, constitudo por 24 membros indicados pelo Presidente da Repblica. Em

    1967 o CFC tomou posse com uma equipe formada por nomes como: Ariano Suassuna,

    Gilberto Freire, Rachel de Queiroz, Roberto Burle Marx e Joo Guimares Rosa

    intelectuais reconhecidos pela importncia e projeo nacional.

    O Conselho Federal de Cultura vinha substituir o antigo Conselho Nacional de

    Cultura (CNC), criado em 1938 e recriado em 1961. Dentre as atribuies do novo

    Conselho (CFC) estavam: formular a poltica cultural nacional, estimular a criao de

    conselhos estaduais e municipais, reconhecer instituies culturais e promover campanhas

    nacionais. Havia a primeira tentativa de (re) conhecimento das manifestaes culturais

    locais e regionais - apesar de se partir de generalismos como popular e erudito. O CFC

    foi o principal rgo de atuao governamental e permaneceu em funcionamento at 1990,

    quando foi dissolvido durante a gesto do Presidente Fernando Collor Mesmo com

    mltiplas atribuies, o rgo tinha carter normativo e de assessoramento do Ministro de

    Estado (Calabre, p.48, 2010).

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    Paralelo a este cenrio poltico nacional dos anos 50 e 60, h um marco

    internacional na institucionalizao da cultura que deve ser aqui relevado: a criao do

    Ministrio de Assuntos Culturais da Frana (Ministre des Affaires Culturelles), criado em

    1959 e que se tornou referncia para diversos pases ocidentais, inclusive para o Brasil. Este

    marco representa uma das primeiras experincias de institucionalizao da cultura de maior

    impacto e envergadura no cenrio europeu. Por ser o primeiro Ministrio da Cultura do

    mundo, a instituio criou modelos para outros governos e naes. Entretanto, conforme

    assinala Botelho (2001), por mais que a proposta deste Ministrio fosse a democratizao

    da cultura:

    A prtica redundou numa falsa democratizao, pois baseava-se na crena daaptido natural do ser humano em reconhecer o belo e a verdade apenas

    pela possibilidade de ter acesso s instituies de cultura erudita (Botelho, p. 80,2001).

    O Ministrio francs solicitou, em 1964, uma pesquisa sobre os hbitos culturais da

    Europa, cujo coordenador foi o socilogo Pierre Bourdieu. A pesquisa concentrava-se nos

    hbitos de freqncia aos museus, sistematizada na obra O Amor pela Arte. Os museus de

    arte na Europa e seu pblico (Bourdieu, 2007). Bourdieu criticou o paradigma de

    democratizao da cultura quando observou que a reduo nos preos dos ingressos aos

    museus no eram suficientes para se construir um pas culto; ao contrrio, afirmou que a

    diviso entre a cultura entre o popular e o erudito enfraqueceria as potencialidades dasociedade. Ao longo dos anos 60 e 70 este paradigma de democratizao cultural francs,

    foi alvo de crticas, especialmente sobre o aspecto centralizador da prpria concepo de

    arte e cultura (Lacerda, 2010). No decorrer dos anos 70, durante a gesto do Ministro

    francs Jaques Duhamel, o paradigma de democracia cultural foi paulatinamente

    substitudo pelo modelo de gesto compartilhada, inaugurado pelos centros de animao

    cultural (centres d'animation culturelle) na Frana. Os centros de animao cultural

    projetavam uma poltica pblica voltada produo cultural das localidades e

    participao popular na construo desta poltica pblica. O novo modelo francs de gesto

    compartilhada, novamente influenciou as polticas pblicas culturais do Ocidente. E neste

    perodo que organismos internacionais como a UNESCO cuja sede em Paris - se

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    a Lei 8.685, ou Lei do Audiovisual, que estimulava a produo de longas-metragens

    brasileiros. Entretanto a maior parte dos recursos ainda se concentrava no eixo Rio de

    Janeiro - So Paulo.

    O Ministrio da Cultura (MinC) recriado no primeiro governo do Fernando

    Henrique Cardoso (1994-1998). A gesto do ento Ministro Francisco Weffort foi marcada

    pela continuidade das polticas culturais implantadas no incio dos anos 90. Em 1995, o

    MinC reformula a lei Rouanet e introduz a figura do captador de recursos, um agente

    intermedirio entre o artista e o empresrio. Estes agentes por sua vez, viabilizaram a

    ligao de produtores culturais s grandes agncias de publicidade o que favoreceu as

    grandes empresas a adotarem seus marketings culturais (Cesnik e Malagodi, 1998), ou a

    bancos privados criarem instituies culturais (como o Ita Cultural, Centro Cultural Banco

    do Brasil). A estabilidade econmica do final dos anos 90 atraiu os investimentos privadosnas polticas culturais, mas revelou as desigualdades de incentivo nos estados brasileiros. O

    investimento privado ainda era muito direcionado ao Sudeste do pas.

    2.2 Polticas Pblicas Culturais a partir de 2003

    Idealizao e implantao dos Pontos de Cultura

    Conforme indica Clio Turino (2000), o projeto inicial dos Pontos de Cultura foi

    cunhado nos anos 90, numa parceria entre Turino e o antroplogo Antnio Augusto

    Arantes, na poca Secretrio de Cultura em Campinas-SP (Turino, 2000). A proposta das

    Casas de Cultura correspondia, nas palavras de Turino, ao germe do pensamento dos

    Pontos de Cultura. A idia das Casas de Cultura era de uma gesto compartilhada entre

    sociedade e Estado, desenvolvimento em rede e adaptao da realidade local. Uma casa

    desativada, um galpo, uma garagem ou um bairro distante da cidade, qualquer espao

    poderia se tornar uma Casa de Cultura. O programa se desestruturou na mudana de

    governo, E eu tambm fui mudando de rumo, em 2000, vim trabalhar em So Paulo, onde

    fui diretor de Lazer, at quando fui chamado para ir ao Ministrio da Cultura em 2003.

    (Turino, 2011). Em 2004, sob a coordenao de Clio Turino, o Ministrio da Cultura

    iniciou um conjunto de aes dentro do Programa Cultura Viva.

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    O aspecto mais interessante desse Programa trabalhar com mudanas deparadigma. Seu primeiro diferencial o acesso a partir da produo. Geralmentequando se fala em democratizao, pensamos em levar a cultura s comunidades.Mas partimos do inverso, partimos em busca da potncia. Pegamos o que ascomunidades j fazem, e a partir disso articulamos as aes. Normalmente, um

    projeto assim comearia pela construo de um prdio, mas abolimos isso e nosvoltamos para outro foco: investir no fluxo. So as pessoas que garantem acultura, no a estrutura fsica (Turino, 2009) 11.

    O primeiro edital dos Pontos de Cultura foi lanado em 2004, momento em que a

    recm-criada Secretaria de Programas e Projetos (SPP) discutia a proposta das BACs

    Bases de Apoio Cultura. As BACs propunham a construo de centros culturais pelo

    Brasil. Estes centros culturais seriam estruturas pr-montadas com teatro, estdio e salas

    para oficinas e shows. O projeto das BACs fazia parte do Programa Cidade Aberta, que

    segundo a portaria n525, de 18 de dezembro de 2003 tinha o objetivo de elevar as

    iniciativas culturais perifricas atravs do apoio institucional. O projeto das BACs foi

    formalmente extinto atravs da portaria n 156 de 6 de Julho de 2004, momento em que se

    revogou a portaria n 525 e se implantou o Programa Cultura Viva. Neste mesmo ano Clio

    Turino, j Secretrio da SPP/MinC, relatou que as BACs eram um projeto arquitetnico

    sem conceito, uma estrutura sem fluxo (Turino, 2009). Sob a mesma argumentao, um dia

    antes do encerramento das inscries para o primeiro edital dos Pontos de Cultura, o ento

    Ministro, Gilberto Gil, em um encontro de artistas em Berlim pronunciou que:

    O Programa Cultura Viva , sobretudo, uma poltica pblica de mobilizao eencantamento social. Mais que um conjunto de obras fsicas e equipamentos, eleenvolve a potencializao das energias criadoras do povo brasileiro (Gil, 2004).

    No mesmo ano de 2004 tambm foram criados os Pontes de Cultura, responsveis

    pela articulao dos Pontos de Cultura e pela capacitao de produtores e gestores culturais.

    Segundo dados da Secretaria de Cidadania Cultural, cada Ponto de Cultura recebe recursos

    de at R$ 500 mil, por meio de edital pblico, para desenvolver programao integrada,

    adquirir equipamentos e adequar instalaes fsicas. Os Pontes de Cultura atuam na

    dinamizao dos contatos entre os Pontos e na implantao de aes do Programa. Os

    Pontes de Cultura existem desde 2004, quando foi publicado o primeiro edital. O segundo

    foi em 2007, quando passaram tambm a ser contemplados os Pontes Digitais, que

    11. Trecho da entrevista concedida ao blog Acesso, disponvel em: http://www.blogacesso.com.br/?p=2046Acesso em: 20/04/2012

    http://www.blogacesso.com.br/?p=2046http://www.blogacesso.com.br/?p=2046
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    possuem as mesmas funes dos Pontes de Cultura, porm com a peculiaridade de utilizar

    predominantemente os meios digitais na promoo de suas atividades (fonte: site da SCC,

    junho de 2010).

    Ainda em 2004, atravs da Secretaria da Cidadania Cultural (SCC/MinC) e da

    Secretaria de Articulao Institucional (SAI/MinC), tambm foram lanados editais para

    premiaes destinadas aos Pontinhos de Cultura. A premiao destinada a estimular e

    consolidar aes que estruturem uma poltica nacional de transmisso e preservao da

    cultura da infncia, que fortaleam e garantam os direitos da criana segundo o Estatuto da

    Criana e do Adolescente (fonte: site da SCC). Os Pontinhos de Cultura visam desenvolver

    conjuntamente com instituies pblicas e entidades sem fins lucrativos a elaborao de

    atividades para a implementao e difuso dos direitos da criana e do adolescente,

    principalmente no que tange o direito de brincar enquanto patrimnio cultural. Alm demapear as aes existentes, possibilitar que novos recursos e capacidades enriqueam as

    prticas sociais dos saberes e fazeres ldicos, de forma a potencializar e ampliar o fazer

    artstico e a formao dentro de uma poltica pblica de ao contnua junto s

    comunidades. A proposta de se usar software livre para a ao de Cultura Digital do MinC

    tambm foi lanada no ano de 2004. A verso brasileira do Creative Commons12 foi

    apresentada pelo criador da licena, Lawrence Lessig, em 4 de junho de 2004 no 5 Frum

    Internacional de Software Livre, realizado em Porto Alegre entre os dias 2 a 5 de junho de

    2004.

    Sumariamente falando, o primeiro ano do governo do Presidente Luis Incio da

    Silva (2003) foi marcado pela reestruturao do MinC por meio do Decreto 4805/03, que

    configurou a seguinte estrutura: uma Secretaria Executiva, com trs diretorias (Gesto

    Estratgica, Gesto Interna e Relaes Internacionais). Seis Representaes Regionais (em

    12 Conforme aponta o site www.creativecommons.org.br, o Creative Commons um projeto global, presenteem mais de 40 pases, que cria um novo modelo de gesto dos direitos autorais, permitindo que autores e

    criadores de contedo possam permitir alguns usos dos seus trabalhos por parte da sociedade. Segundo oscriadores deste projeto, a razo para o surgimento do Creative Commons o fato de que o direito autoral

    possui uma estrutura que protege qualquer obra indistintamente, a partir do momento em que a obra criada.Qualquer contedo encontrado na Internet ou em qualquer outro lugar protegido pelo direito autoral. Issosignifica que qualquer utilizao depende da autorizao do autor. Muitas vezes isso dificulta umadistribuio mais eficiente das criaes intelectuais, ao mesmo tempo em que impede a realizao de todo o

    potencial da Internet. H autores e criadores intelectuais que no s desejam permitir a livre distribuio dasua obra na Internet, mas podem tambm querer autorizar que sua obra seja remixada ou sampleada. Esse ocaso, por exemplo, de artistas como o Gilberto Gil que disponibilizou canes para distribuio, remix esampling, atravs do Creative Commons. (Fonte:www.creativecommons.org.brAcesso em: 16/08/2012)

    http://www.creativecommons.org.br/http://www.creativecommons.org.br/http://www.creativecommons.org.br/http://www.creativecommons.org.br/
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    Minas, Par, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e So Paulo) e seis

    Secretarias (Secretaria de Polticas Culturais (SPC), a Secretaria de Articulao

    Institucional (SAI), a Secretaria de Fomento e Incentivo Cultura (SEFIC), a Secretaria de

    Programas e Projetos Culturais (SPPC) atualmente nomeada de Secretaria de Cidadania

    Cultural (SCC) - a Secretaria do Audiovisual (SAV) e a Secretaria de Identidade e

    Diversidade Cultural (SID). Pela primeira vez o Ministrio da Cultura realizou concursos

    pblicos para cargos administrativos e fez convnios com o IBGE e o IPEA - que

    promoveram pesquisas, estatsticas e a formulao de indicadores para auxiliar na criao

    de polticas pblicas. A reforma da Lei Rouanet contou com participao da sociedade a

    partir dos seminrios Cultura para todos" realizados nas seis Representaes Regionais.

    Neste mesmo ano o Ministrio promoveu fruns de discusses entre artistas de diversos

    segmentos e a sociedade em geral.O Programa Cultura Viva foi inaugurado com cinco aes: Pontos de Cultura,

    Escola Viva, Ao Gri, Cultura Digital e Agente Cultura Viva. Todas estas aes

    vinculadas aos Pontos de Cultura e articuladas por eles. Com o desenvolvimento do

    Programa Cultura Viva, outros prmios e aes foram concebidos. O Programa se estendeu

    com a criao do Mais Cultura (2007), que possibilitou que a Secretaria de Cidadania e

    Cultura (SCC/MinC) firmasse convnios com estados e municpios. Estes convnios

    descentralizaram os recursos do Programa e reforaram as redes dos Pontos de Cultura

    conveniadas aos estados e municpios. A partir da parceria entre o Mais Cultura e o Cultura

    Viva, a seleo de Pontos de Cultura passou a ser realizada com os estados ou os

    municpios e no mais diretamente ao Ministrio da Cultura. Com o Mais Cultura, o MinC

    tambm estabeleceu parceria com outros Ministrios, com o Congresso Nacional, Bancos

    Pblicos e organismos internacionais.

    Atualmente O Programa Mais Cultura se dimensiona em trs estruturas articuladas:

    Cultura e Cidadania: que executa o Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Alm

    dos Pontos de Cultura, ainda coordena as aes dos Pontos de Leitura, Pontinhos de

    Cultura, Espao para Brincar Mais Cultura, Peridicos de Contedo Mais Cultura,

    Produo de Contedos para TV Pblica, Cine Mais Cultura, Vale Cultura e Agentes de

    Leitura. Cultura e Cidades: este eixo coordena as aes das Bibliotecas Mais Cultura,

    Espao Mais Cultura e Pontos de Memria (ligados museus, patrimnios e a memria de

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    comunidades populares). Cultura e Economia: coordena financiamentos por bancos

    pblicos para projetos culturais. Dentre os parceiros destas aes esto: o Banco do Brasil,

    a Caixa Econmica Federal, o Banco da Amaznia (BASA), o Banco do Nordeste (BNB) e

    o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDS) O Programa Cultura Viva se

    estende tambm aos Pontes e Pontinhos de Cultura. (Fonte: site Mais Cultura. Acesso em:

    5/08/2012).

    Alm da reestruturao administrativa, podemos afirmar que o Ministrio passou

    por uma reestruturao conceitual. Quando Gil (2003) afirma em seu discurso de posse

    que preciso intervir. No segundo a cartilha do velho modelo estatizante, para fazer uma

    espcie de do-in antropolgico, compreendemos que o Ministrio prope um novo paradigma para

    poltica pblica cultural. O Programa Cultura Viva mostra que as polticas culturais recentes

    esto mais direcionadas s localidades e s suas manifestaes culturais, distanciando-se deuma viso padronizada de cultura. Ao compararmos o Programa Cultura Viva com o

    histrico das polticas culturais brasileiras, observamos que seu principal aspecto inovador

    a integrao de segmentos da sociedade civil brasileira que at ento no participavam

    das polticas pblicas culturais. Sob os princpios de autonomia, protagonismo e

    empoderamento o Programa propunha a incluso de novos atores sociais. Surgia um novo

    paradigma nas polticas pblicas culturais ao mesmo tempo em que se revelava uma

    complexa relao entre Estado e sociedade civil.

    2.3 Polticas de Diversidade Cultural: Debate nacional e multilateral

    Enquanto poltica nacional, as polticas pblicas culturais no esto isoladas de

    macro-processos. A implantao do Programa Cultura Viva pode ser observada dentro de

    um quadro de mudanas no cenrio poltico brasileiro. Como j fora colocado no tpico

    anterior, o Programa Cultura Viva (que coordena os Pontos de Cultura) foi criado em um

    contexto onde as polticas pblicas culturais brasileiras estavam sendo redirecionadas. Um

    exemplo das mudanas ocorridas no interior do MinC - e que por sua vez est em dilogo

    com outras discusses internacionais - est a criao da Secretaria da Identidade e da

    Diversidade Cultural (SID) em 2004, que responderia pelo debate acerca da diversidade

    cultural em contextos global e nacional. Uma das principais funes desta Secretaria seria

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    Sobre a Proteo e Promoo da Diversidade das Expresses Culturais, celebrada pela

    UNESCO em 2005, em Paris.

    No prembulo deste ltimo documento (2005), est manifesto o reconhecimento

    dos direitos de propriedade intelectual daqueles que participam da criatividade cultural.

    Tambm ficou expresso que a criatividade cultural no deve ser tratada apenas em seu

    valor comercial. De modo que a diversidade cultural se revela no s nas diversas formas

    nas quais se expressa, mas tambm atravs de distintos modos de criao artstica,

    produo, difuso, distribuio e desfrute das expresses culturais, quaisquer que sejam os

    meios e tecnologias utilizados (UNESCO, 2005).

    Ainda de acordo com a Conveno (2005) a diversidade cultural uma

    caracterstica essencial da humanidade que se manifesta na originalidade e na pluralidade

    das identidades, assim como nas expresses culturais que formam povos e sociedades(UNESCO, 2005 p. 6). A Conveno avanou na discusso sobre a defesa da diversidade

    cultural, j que como um instrumento internacional, criou vnculos e compromissos legais.

    O Brasil e os demais Estados signatrios afirmam, segundo o Artigo 6.1 promover e

    proteger a diversidade das expresses culturais alm de estabelecer que os Estados

    adotem medidas regulamentares e financeiras para proteger a diversidade em seus

    respectivos territrios, especialmente quando estes se acham em perigo ou em situao de

    vulnerabilidade (Conveno UNESCO, 2005).

    Contudo, ao analisarmos estes dois documentos observamos que os mesmos esto

    ancorados a outros macro-processos e discusses multilaterais. Jean Musitelli (2006), (um

    dos idealizadores da Conveno de 2005) aponta para as rodas de negociao em torno do

    comrcio de bens simblicos travados na Organizao Mundial do Comrcio (OMC)como

    fator deflagrador da mobilizao para a criao de um instrumento normativo em prol da

    diversidade cultural - e, portanto, da prpria Conveno de 2005. A idia de exceo

    cultural da qual se desdobrou o conceito de diversidade cultural (Musitelli, 2006), entrou

    em evidncia no debate pblico internacional quando a Frana se recusou a aceitar os

    termos das negociaes acerca da liberalizao do comrcio de servios uma das pautas

    que marcaram a Reunio do Uruguai (1986-1994). Durante este encontro, o GATT

    General Agreement on Trade and Tarrifics, debateu a questo da exceo cultural

    impulsionada pela Frana. A tese da exceo cultural de que os Estados tm o direito de

  • 7/28/2019 Por um "Do-In Antropolgico": Pontos de Cultura e os Novos Paradigmas nas Polticas Pblicas Culturais

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    aplicar polticas nacionais destinadas a promover e proteger suas indstrias culturais. E este

    direito se chocaria com:

    os interesses livre cambistas que informam a posio norte-americana, desdesempre interessada na livre circulao de bens e servios, inclusive os de cartersimblico-culturais, haja vista o poderio, por exemplo da indstria cinematogrfica

    - alis, no outra razo que levou os Estados Unidos a votarem contra aaprovao da Conveno da UNESCO em 2005 (Paulo Miguez,p. 8, 2007).

    A posio da Frana (e seguida pela maior parte dos pases da Comunidade e

    Europia e pelo Canad) concentrava-se na idia de que as obras audiovisuais so

    portadoras de sentido e identidade, logo, no podem ser reduzidas ao status de simples

    mercadorias. Ou seja, estas obras no poderiam estar subordinadas aos mesmos princpios

    de liberalizao das trocas que regiam a cartela de bens e servios regidos pelas regras

    comercias do OMC. Segundo Musitelli (2006), a partir da discusso desencadeada pel