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262 PORTUGUÊS © KONSTANTIN KIRILLOV | DREAMSTIME.COM Gêneros literários frente 2

PORTUGUÊS - BFS Bureau Digital _1o EM TL2 P2.pdf · cela amou-me... Machado de Assis ... Eu sou apenas uma mulher ... mesmo em uma conversa informal. Divirta-se! 266 (...) Mas nos

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Gêneros literáriosCapítulo 4

1. O teatro, o verso e a prosa

Muito em breve, começaremos a estudar grandes obras da Literatura de Língua Portuguesa. Por isso, alguns cuidados com a estrutura dos textos literários serão grandes facilitadores na análise de obras. Ao apreciar a capa desta unidade, você deve ter observado que os textos nela ilustrados apresentam diferentes disposições fí sicas nos papéis onde se encontram. Um deles, o Adeus de Teresa, é um poema de Castro Alves; outro é um fragmento em prosa do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; e o outro é uma cena da peça de teatro O demônio familiar, de José de Alencar. Vamos rever essas disposições?

PROSA – É todo e qualquer texto escrito em parágrafos, ou seja, utilizamos essaexpressão para designar uma forma, uma estrutura textual.

FragmentoOcorre-me uma refl exão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no capí-

tulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma coisa que morrer; assim o afi rmam todos os joalheiros deste mundo, gente muito vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os vossos dixes e fi ados? Um terço ou um quinto do universal comércio dos corações. Esta é a refl exão imoral que eu pretendia fazer, a qual é ainda mais obscura do que imoral, porque não se entende bem o que eu quero dizer. O que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fi ca menos bela, se a cingir um diadema de pedras fi nas; nem menos bela, nem menos amada. Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Mar-cela amou-me...

Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas.

POEMA – Verso é o nome dado a cada uma das linhas que constituem uma estrofeem um poema. Um texto poético apresenta uma composição gráfi ca particular,

não ocupando todo o espaço fí sico da folha.

FragmentoA vez primeira que eu fi tei Teresa,Como as plantas que arrasta a correnteza,A valsa nos levou nos giros seus...E amamos juntos... E depois na sala“Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala...

E ela, corando, murmurou-me: “adeus”. Castro Alves

TEATRO – Os textos teatrais também apresentam certa particularidadeem sua forma. Como são escritos para serem encenados, desenrolam-se basicamente

a partir de diálogos. Por isso, vemos sempre o nome da personagem e sua fala.

FragmentoJORGE – Mana Carlotinha, Henriqueta está lhe chamando para dizer-lhe adeus.PEDRO – Sinhá Henriqueta está ai?CARLOTINHA – Ela já vai?JORGE – Já está deitando o chapéu.CARLOTINHA – É tão cedo ainda!PEDRO – Duas horas já deu há muito tempo em S. Francisco de Paula.CARLOTINHA (à janela) – Mano não voltará para jantar?...

José de Alencar. O demônio familiar.

A partir de agora, sempre que apanhar um texto literário para estudar, procure notar o espaço que ele ocupa na página em que se encontra.

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1.1. A classificação dos gêneros literários

Atentos, agora, aos aspectos estruturais de um texto e também conscientes de que eles podem ser construídos com finalidade estética, ou seja, artística, é importante definirmos, apoiados nas características mais básicas observadas, quais são as três tipologias de gênero da literatura: lírico, épico e dramático. Vamos conhecê-los?

Lírico Épico (ou narrativo) Dramático

Predominância da função emotiva Predominância da função poética Predominância da função conativa

Enunciação do emissor Enunciação do emissor e/ou das personagens Enunciação das personagens

O presente do artista é a perspectiva temporal.

O passado presentificado é a perspectiva temporal.

O presente do artista é a perspectiva temporal.

Presente – primeira pessoa Passado – terceira pessoa Presente e futuro primeira e segunda pessoas

Expressão de sentimentos pessoais

Relatos de ações heroicas (epope-ias) ou relatos de fatos cotidianos

(reais ou fictícios).

Representação de ações nas quais se chocam forças oponentes.

EmoçãoSimpatiaExaltação

AdmiraçãoSurpresaOrgulho

PiedadeRevoltaTerror

1.2. O gênero lírico

Primeiramente, é preciso haver a compreensão de que “poesia” e “poema” são coisas diferentes.

Poesia Poema

Trata-se de um conteúdo que manifesta uma ideia, uma essência, uma substância com uma linguagem diferenciada, que chama muito mais a atenção pela maneira como algo foi dito, do que aquilo que foi dito. Quadros, filmes, fotografias e romances podem conter poesia.

Poema é a manifestação da linguagem poética respeitando especificamente uma estrutura organi-zada em versos, estrofes, ritmo etc. É o texto escrito privilegiado da essência poética.

Essa diferenciação entre poesia e poema será importante para estudarmos o gênero lírico. Nele, aborda-remos essencialmente o universo estrutural dos poemas que, em resumo, apresentam tradicionalmente as seguintes características:

• brevidade do texto;• ausência de personagens claramente delineados;• subjetividade, intimismo ou confissão expressos em primeira pessoa;• musicalidade e ritmo;• linguagem conotativa;• tempo presente “eterno”.

No poema de gênero lírico, existe uma voz que nos transmite uma carga emotiva, um estado de espírito. A essa voz damos o nome de “eu lírico” ou “eu poemático” ou “sujeito lírico”. É muito importante saber diferenciar as emoções e impressões apresentadas pelo “eu lírico” daquelas existentes efetivamente no autor do texto. É o que veremos no tópico a seguir.

Eu lírico: fingimento poético

Como vimos, nas composições do gênero lírico, geralmente encontramos pronomes e verbos relacionados à 1a pessoa. Isso tende a confundir as pessoas, que relacionam o sentimento manifestado no texto a algo efeti-vamente sentido por seu autor.

Veja o que diz o poema de Fernando Pessoa acerca da criação poética:

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Dividamos a palavra: auto – de si mesmo;psico – relativa à psique, à psicologia;grafia – escrever.O título sugere que o poema é a escrita, via processo psíquico, sobre si mesmo, ou seja, uma análise que se faz sobre o ato da criação poética.

Pode até ser que o poeta sinta alguma dor. Entretanto, a partir do momento em que ele a manifesta no texto, essa dor é uma imitação artística de sua dor verdadeira. Logo, não é mais a mesma dor.

Quem lê o texto é tocado pela dor ali manifestada. E é essa a grande expectativa da arte: a emoção humana. Repare que a dor sentida pelo leitor é outra completamente diferente do eu lírico, que é outra completamente diferente do autor do texto. Quantas dores já há movimentadas no texto? A do autor (se é que a sentiu de fato), a do texto e a do leitor.

E, assim, qual a consequência de toda essa brincadeira com emoções, representada aqui por um comboio de cordas (um trem)? O coração entretém a razão.

E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

O poeta é um fingidor. Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

Autopsicografia

Veja, agora, esta canção. Veja quem é o eu lírico e que tipo de emoção ele apre-senta. Deixemos a autoria para depois de analisá-la.

Esse cara

Ah! Que esse cara tem me consumido A mim e a tudo que eu quis Com seus olhinhos infantis Como os olhos de um bandido. Ele está na minha vida porque quer Eu estou pra o que der e vier Ele chega ao anoitecer Quando vem a madrugada, ele some

Ele é quem quer Ele é o homem Eu sou apenas uma mulher

O que você diria sobre a autoria dessa música? É um homem ou uma mulher? Você acha que o tipo de submissão feminina descrita nela é encontrada também em quem a compôs?

Como você pôde perceber, muitas vezes ouviremos vozes e palavras de uma mulher em um texto composto por homens. Essa é a concepção mais simples de “eu lírico” e a maneira mais clara de expor que em Literatura nem sempre há relação entre ele (o eu-lírico da canção) e seu autor. Na charge a seguir, você verá a transcrição de uma conversa que dois artistas da música popular brasileira tiveram acerca de “cantar no feminino”. Observe como há poesia na fala deles mesmo em uma conversa informal. Divirta-se!

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(...) Mas nos shows que eu vou fazer,eu gostaria de cantar essas músicas nofeminino. Porque parece que a gente

é outra pessoa, né, não está muitoexposto, ou se expõe diferente (...)

É, isso é uma revelação incrível da pessoa, né? (...)Todas as suas letras no feminino são geniais, são

impressionantes. Falam que é a ‘ânima’ da pessoa. Ébonito isso, porque você revela um outro negócio seu,

né, que não é ego, é do self grande. Suas mulheres,essas mulheres de dentro de você são lindas.

1.3. Gênero dramático

O gênero dramático designa um grupo de textos escritos para serem encenados: são, genericamente, os textos teatrais. Nesse tipo de composição, a história não é contada por um narrador, ela é mostrada diretamente em um palco, representada pelas ações e pelos diálogos de atores, que representam as personagens.

Observe o fragmento da peça Auto da Compadecida de Ariano Suassuna.

MULHER, entrando.Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai,ai,ai!JOÃO GRILO, mesmo tomAi, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai, ai!Dá uma cotovelada em CHICÓ.CHICÓ, obedienteAi, ai, ai, ai, ai, Ai, ai, ai, ai, ai!Essa lamentação deve ser um mal entendido a representada depropósito, ritmada como choro de palhaço de circo.SACRISTÃO, entrando com o padre e o padeiroQue é isso, que é isso? Que barulho é esse na porta da casa de Deus?PADRETodos devem se resignar.MULHERSe o senhor tivesse benzido o bichinho, a essas horas ele aindaestava vivo.PADREQual, qual, quem sou eu!MULHERMas tem uma coisa, agora o senhor enterra o cachorro.PADREEnterro o cachorro?

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MULHEREnterra e tem que ser em latim. De outro jeito não serve, não é?PADEIROÉ, em latim não serve.MULHEREm latim é que serve!PADEIROÉ, em latim é que serve!PADREVocês estão loucos! Não enterro de jeito nenhum. MULHEREstá cortado o rendimento da irmandade.PADRENão enterro.PADEIROEstá cortado o rendimento da irmandade!PADRENão enterro.MULHERMeu marido considera-se demitido da presidência.PADRENão enterro.PADEIROConsidero-me demitido da presidência!PADRENão enterro.MULHERA vaquinha vai sair daqui imediatamente.PADREOh, mulher sem coração!MULHERSem coração, porque não quero ver meu cachorrinho comidopelos urubus? O senhor enterra!PADREAi meus dias de seminário, minha juventude heroica e firme!MULHERPão para a casa do vigário só vem agora dormido e com odinheiro na frente. Enterra ou não enterra?PADREOh, mulher cruelMULHERDecida-se, Padre João.PADRENão me decido coisa nenhuma, não tenho mais idade para isso.Vou é me trancar na igreja e de lá ninguém me tira.Entra na igreja, correndo.JOÃO GRILO, chamando o patrão à parte.Se me dessem carta branca, eu enterrava o cachorro.PADEIROTem a carta.JOÃO GRILOPosso gastar o que quiser?PADEIROPode.MULHERQue é que vocês estão combinando aí?JOÃO GRILOEstou aqui dizendo que, se é desse jeito, vai ser difícil cumprir o testa-mento do cachorro, na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristão.

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SACRISTÃOQue é isso? Que é isso? Cachorro com testamento?JOÃO GRILOEsse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava paraa torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimostempos, já doente para morrer, botava uns olhos bemcompridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Atéque meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que elequeria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Masnem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesseque vinha encomendar a bênção e que, no caso de ele morrer,teria um enterro em latim. Que em troca do enterroacrescentaria no testamento dele dez contos de réis para opadre e três para o sacristão.SACRISTÃO, enxugando uma lágrima.Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista.) Eo testamento? Onde está?JOÃO GRILOFoi passado em cartório, é coisa garantida. Isto é, era coisagarantida, porque agora o padre vai deixar os urubus comeremo cachorrinho e, se o testamento for cumprido nessascondições, nem meu patrão nem minha patroa estão livres deserem perseguidos pela alma.(...)

2. Gênero épico

Nas composições desse gênero, encontra-se a presença de um narrador, quase sempre relacionado à história ou ao assunto narrado. Na Antiguidade Clássica, o narrador de uma “epopeia” (que, em grego, quer dizer “fazer versos”) abordava sempre questões relacionadas ao heroísmo e aos feitos históricos de uma nação ou de um homem: o herói. Os textos do gênero épico pressupõem a presença de um público ouvinte e, como narram a história, as viagens, as aventuras, os gestos heroicos, enfim, as conquistas de uma nação, geralmente são longos e apresentam tom grandiloquente.

Os principais poemas épicos da cultura ocidental são a Ilíada e a Odisseia, de Homero; a Eneida, de Vir-gílio; Os lusíadas, de Camões; Paraíso perdido, de Milton; Orlando Furioso, de Ariosto. No Brasil, muitos autores produziram outras epopeias, muitas delas inspiradas nas clássicas, dentre as quais se destacam Caramuru, de Santa Rita Durão, e Uraguai de Basílio da Gama. Veja, a seguir, um trecho do famoso poema épico de Camões Os lusíadas, no momento em que se descreve o início de uma luta das forças lusitanas contra a cavalaria inimiga, numa batalha em que Portugal consolidava-se politicamente como Reino inde-pendente da Espanha.

Começa-se a travar a incerta guerra:De ambas partes se move a primeira ala;Uns leva a defensão da própria terra,Outros as esperanças de ganhá-la.Logo o grande Pereira, em quem se encerraTodo o valor, primeiro se assinala:Derriba e encontra e a terra enfim semeiaDos que a tanto desejam, sendo alheia.

Já pelo espesso ar os estridentesFarpões, setas e vários tiros voam;Debaxo dos pés duros dos ardentesCavalos treme a terra, os vales soam.Espedaçam-se as lanças, e as frequentesQuedas co as duras armas tudo atroam.Recrecem os imigos sobre a poucaGente do fero Nuno, que os apouca.

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2.1. Aspectos marcantes do gênero épico clássico

Como vimos, o gênero épico apresenta a versificação de lutas, conquistas, glórias, vitórias, em suma, aventuras de um povo ou de um herói mitológico (ou folclórico).

As grandes obras épicas antigas, que sobreviveram ao tempo por sua íntima relação com a própria História da humanidade desde a Grécia Antiga, geralmente apresentam certa divisão estrutural, como se pode conferir a seguir:

Introdução

• Proposição – Apresenta-se a história, o assunto para o qual se constrói o poema.

• Invocação– O poeta solicita às musas inspiração para desenvolver seu projeto (o

poema em si) • Dedicatória

– O poeta oferece sua obra a uma personalidade importante.

Desenvolvimento

• Narração– É o desenrolar dos fatos referentes à história proposta.

Conclusão

• Epílogo – É o desfecho da história. Nele, o autor apresenta um comentário acerca de

toda a aventura.

2.2. Da epopeia ao gênero narrativo moderno

O gênero narrativo moderno é uma variação do gênero épico. Em prosa, apresenta características variadas que nos permitem classificá-lo como:

Romance

Narrativa longa, normalmente dividida em capítulos, que possui diversas per-sonagens em torno das quais ocorre a história principal. Também são apresenta-das histórias paralelas a essa. O romance pode apresentar espaço e tempo variados.

Novela

Narrativa curta, maior do que um conto, mas menor do que um romance, é também mais dinâmica do que este último. É dividida em episódios contínuos e sem interrupções.

Conto

Narrativa curta que gira em torno de um só conflito, com poucos perso-nagens. A característica principal do conto é a condensação, a economia dos meios narrativos.

Crônica

Narrativa breve, com trama pouco definida. Seu objetivo geralmente é tecer um comentário sobre o cotidiano. Costuma ser um relato pessoal do autor sobre determinado fato do dia a dia.

Fábula

Narrativa ficcional popular bastante antiga (tradicionalmente oral). A fábula tem um papel didático, pois traz ensinamentos acerca de coisas que podem acon-tecer na vida real por meio de histórias que envolvem personagens plantas, ani-mais e objetos, além das próprias pessoas.

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Estilo de época e individual

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Estilo de época e individualCapítulo 5

1. Breve história da Literatura

Para darmos continuidade aos nossos estudos de Literatura, convém revermos importantes conceitos acerca de Literatura como arte. Então, poderemos conhecer um pouco mais sobre a história da Literatura e defi nirmos maneiras que tornará nosso estudo de Literatura de Língua Portuguesa mais prático.

Vejamos o que diz a respeito de Literatura o dicionário Aurélio eletrônico – Século XXI da Língua Portuguesa:

literatura li.te.ra.tu.ra sf (lat litt eratura) 1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou em verso. 2. O conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época.

Como você deve lembrar, nós já havíamos defi nido os critérios com os quais deveremos entender Literatura no decorrer de nossos estudos e é exatamente essa abordagem dada na primeira defi nição que nos dá o dicio-nário consultado: Literatura é a “Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou em verso”.

Atentaremos, agora, para a segunda defi nição que essa breve consulta nos dá: ela nos diz que Literatura é “o conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época”.

Essa acepção também nos será importante a partir de agora, pois ela nos chama atenção para o fato de que o exercício da Literatura também está relacionado a um agregado social, a um período histórico, do qual quase sempre é impossível afastarmos uma grande obra quando a analisamos. Isso porque as transformações econô-micas, políticas e sociais pelas quais a humanidade passou em sua história inevitavelmente causa impactos na forma com que homem vê e sente o mundo ao seu redor, o que implica a apresentação de características gené-ricas na arte por ele produzida.

Veja, a seguir, como funciona essa importante relação entre contexto histórico e estilo de época.

Período histórico Espírito de época Escola literária ou estilo de época+ =

Resumidamente, sempre que analisamos um grupo de obras de arte de um momento histórico, encontra-mos claras relações entre o plano das ideias apresentadas naquela obra e o contexto histórico-cultural a que aquele artista pertence. E, ainda que se consiga observar marcas muito particulares de um artista, elas estarão sempre associadas a uma certa época. É o que chamamos estilo de época.

1.1. Estilo de época e estilo individual

Como vimos, ao estudarmos Literatura (e outras artes), encontramos em grupos de artistas a obediência a determinadas concepções estéticas pertencentes a um período. É o que determina chamarmos estilos de época (ou escolas literárias). Durante o século XIX, por exemplo, com a chegada da burguesia ao poder durante o período da Revolução Francesa, um espírito de liberdade e nacionalismo se espalhou por toda a Europa, che-gando até o Brasil. Observe a pintura A liberdade guiando o povo, do pintor francês Eugène Delacroix (1830).

Observe, em seguida, o poema O povo ao poder, do brasileiro Castro Alves.

A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor! Senhor!... pois quereis a praça? Desgraçada a populaça Só tem a rua seu... Ninguém vos rouba os castelos Tendes palácios tão belos... Deixai a terra ao Anteu.

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Embora pertençam a gêneros artísticos diferentes (pintura e literatura), per-cebe-se que ambos apresentam visões de mundo semelhantes: a imagem revolu-cionária, o nacionalismo, o grito de liberdade. Essas são características típicas de um estilo de época conhecido como Romantismo.

Contudo, é importante ressaltar que cada autor imprime um tratamento par-ticular a essas mesmas características. Por isso, mesmo se pegarmos outros escri-tores românticos, contemporâneos a Castro Alves, com as mesmas característi-cas genéricas próprias de seu período literário, certamente observaremos abor-dagens diferentes, pessoais, o que chamamos estilo individual.

Veja essa definição nas palavras do crítico português António Soares Amora:

Estilo é a própria compreensão, o que equivale a dizer, é o modo de ser do espí-rito do artista: sua constituição psicológica, sua atitude perante a vida, sua cul-tura, suas inclinações e preferências, tudo isso expresso nas imagens que esse espí-rito forma da realidade.

Teoria de literatura. São Paulo:Ed. Clássico-científica, 1944.

2. Cronologia dos estilos de época

Agora que você sabe que todas as formas de expressão artística apresentam reflexo das relações do homem com o mundo e com o seus pares e, embora reco-nheça a individualidade do artista em lidar com a linguagem, entende que as pro-duções de um determinado período histórico apresentam certas particularidades que determinam os estilos de época (ou escolas literárias), resta-nos entender como funciona a periodização da literatura de Língua Portuguesa.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, ao classificarmos um estilo de época, nem sempre a cronologia do desenvolvimento literário coincide com a do desenvolvimento histórico geral: há um pequeno atraso das escolas literárias em relação ao progresso sócio-histórico. É também indispensável considerar que entre um período e outro pode haver um momento de transição, no qual elemen-tos do estilo do passado podem se encontrar simultaneamente aos novos elemen-tos estéticos. Outro ponto importante reside no fato de que nem sempre todos os autores e obras se encaixam plenamente em um único estilo.

O homem, em sua busca incessante pelo novo, parece estar sempre insatisfeito com o que o cerca em seu tempo, o que o impulsiona na direção das mudanças revolucionárias ou das revisões estéticas. Consequentemente, você perceberá no estudo das escolas literárias, um frequente desenho de ruptura e retomada.

2.1. Periodização da Literatura de Língua Portuguesa

A Literatura de nosso idioma abrange apenas oito séculos de produção. Parece irônico dizer “apenas”, mas, para a História, oito séculos pode mesmo ser pouca coisa. No começo do ano, você estudou a formação e as origens da Língua Por-tuguesa e já sabe que os primeiros manuscritos de que se tem registro em gale-go-português datam do século XII. Entretanto, o mesmo não acontece com outros idiomas, como o grego, por exemplo, que possui pelo menos vinte sécu-los a mais de Literatura. Felizmente (ou infelizmente?) falamos o português, que, embora sofra muita influência de literaturas antigas, possui apenas oito séculos de produção literária.

Início da Ilíada, de Homero, em seu idioma original – Sec. VIII a.C.

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Costuma-se dividir a Literatura de Língua Portuguesa em três espaços de tempo, por sua relação com importantes transformações históricas pelas quais passou a Europa: a Era Medieval, a Era Clássica e a Era Romântica (ou Moderna). Essas três grandes Eras apresentam subdivisões, que são as chamadas escolas literárias ou estilos de época. Observe a ilustração a seguir:

Na medida em que estudarmos a Literatura de cada período histórico, perce-beremos sua relação com um movimento literário. Isso ajudará a compreender, a partir de cada texto, os estilos de cada época. O esquema proposto anteriormente, portanto, ilustra didaticamente a cronologia dos estilos. No decorrer do processo de aprendizagem, essa ilustração ganhará novos elementos e ferramentas para tornar o estudo de Literatura algo bem mais prático.

Vale lembrar que a Literatura específica do Brasil também apresenta relação com eventos sócio-históricos. Como o Brasil, durante muito tempo, foi colônia de Portugal, as duas grandes Eras literárias que dividem nossa Literatura se dividem em Colonial (que vai de 1500 a 1836) e Nacional (que vai de 1836 até a atualidade). Veja o esquema:

Era colonial

Quinh

entismo

Barr

oco

Arcadism

o

1500 1601 1768

Era nacional

Roman

tismo

Realism

o/Na

turalismo

Simbo

lismo

1836 1881 1893

Pré-Mod

ernism

o

Mod

ernism

o

Contem

porane

idad

e

1902 1922 1940

• 1500: Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel sobre o “achamento” do Brasil.

• 1601: Publicação de Prosopopeia, de Bento Teixeira.• 1768: Publicação de Obras, de Cláudio Manoel da Costa.• 1836: Publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães.• 1881: Publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de

Assis, e de O mulato, de Aluísio Azevedo.• 1893: Publicação das obras Missal e Broqueis, de Cruz e Souza.• 1902: Publicação de Os sertões, de Euclides da Cunha.• 1922: Semana de Arte Moderna• 1945 em diante: Terceira fase do Modernismo (Pós-Modernismo) – Publica-

ção de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector em 1944, e de Sagarana, de João Guimarães Rosa em 1946.

ERA MEDIEVALTrovadorismo –

HumanismoANTIGUIDADE CLÁSSICA

Trov

ador

ismo

Hum

anism

o

séculos

XII a XV

século

XV

ERA CLÁSSICAClassicismo – Barroco –

Arcadismo

Clas

sicism

o

Arca

dism

o

século

XVI

século

XVII

século

XVIII

Barr

oco

Rom

antis

mo

século

XIX

século

XIX

século

XIX

Real

ismo/

Nat

ural

ismo

Parn

asia

nism

o/Si

mbo

lism

o

Mod

erni

smo

século

XX

ERA ROMÂNTICARomantismo – Realismo/ Naturalismo –

Parnasianismo / Simbolismo – Modernismo

Séc. VIII a.C. a V d.C.

274

3. As épocas greco-romana e medieval

Quando estudarmos a Literatura brasileira, você perceberá relações marcantes com os estilos de época euro-peus. Isso acontece em decorrência da inegável subordinação à mentalidade e periodização europeia, em espe-cial, à portuguesa, uma vez que o Brasil foi colônia de Portugal. Essa é a questão que nos obriga a buscar fontes culturais clássicas e medievais para compor um panorama do que chamamos Brasil.

Legado cultural clássico

São comuns na literatura brasileira situações narrativas em que o leitor se depara com temas e referências que o remetem às matrizes clássicas do mundo ocidental. A Antiguidade Clássica, mais especificamente a his-tória da Grécia e de Roma, ressurge nas páginas de Machado de Assis, Drummond, Guimarães Rosa, Cecília Meirelles e tantos outros escritores tradicionais ou contemporâneos. É imprescindível o reconhecimento desse legado cultural clássico na base que sustenta a estrutura da cultura ocidental e, para isso, basta considerar os elementos constituintes dos costumes e tradições que se mantiveram e se renovaram através dos séculos e estão presentes nos hábitos e no cotidiano de milhões de pessoas. Podemos arrolar alguns conceitos e ideias para exemplificar:

• A cidadania e a democracia• As artes – música, poesia, teatro, pintura, escul-

tura, arquitetura• Os jogos da Olimpíada• O Direito romano• O racionalismo

• A noção de herói• A filosofia• A estética• A política• A mitologia• A língua

Legado cultural medieval

São também inegáveis as contribuições da cultura medieval para a formação de nossa identidade. As influências estão presentes emnosso passado e em nosso presente, diluídas em nosso cotidiano sem que tenhamos consciência disso. O historiador Hilário Franco Júnior afirma que “percebamos ou não, a Idade Média foi nossa infância e ado-lescência, fases de fragilidade, inconstância e hesitações, mas também de crescimento, aprendizagem, experiências, consolidação (...). Mesmo não tendo tido Idade Média no sentido cronológico concebido pela his-toriografia, o Brasil é indiretamente produto dela.”. Portanto, vejamos um pouco desse legado:

• O nome Brasil• O nosso idioma• A economia com base na exploração da terra• A cultura regional, como o coronelismo nordestino• A religiosidade e suas práticas• A música• A literatura• Contribuições materiais diversas: o uso da calça comprida, fer-

radura, colher, camisa com botão, óculos, ferro, carrinho de mão, luneta, relógio mecânico, espelho de vidro, álcool, moinho de vento, atrelagem animal em fila entre outros.

FRANCO JR. Hilário. Páginas de História: raízes medievais do Brasil. Departamento de História USP, 1998.

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Anotações

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Trovadorismo

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TrovadorismoCapítulo 6

1. Trovadorismo: a Literatura da Idade Média

O Trovadorismo, ou Primeira Época Medieval, inicia-se em 1189 (ou 1198), provável data da composição de A Ribeirinha, cantiga de amor de composição de Paio Soares de Taveirós.

Você já estudou a origem e a evolução da Língua Portuguesa e também a formação de Portugal, por-tanto já sabe que toda a Europa cristã, por volta do século XI, concentrou-se em expulsar os muçulmanos de seu território. No momento em que A Ribeirinha foi escrita, Portugal era uma nação de independência recém-conquistada e falava o galego-português, fase arcaica de nosso idioma restrita geografi camente à faixa ociden-tal da Península Ibérica, que corresponde atualmente aos territórios da Galiza e do norte de Portugal.

O atual território portuguêsO antigo Condado Portucalense

EUROPA

ESPANHA

Mar Mediterrâneo

OCEANOATLÂNTICO

GALIZA

ALGARVES Madri

CeutaTânger

Lisboa

CoimbraPortoBraga

Isso signifi ca que estudar o Trovadorismo implica necessariamente compreender o processo de formação e consolidação do nosso idioma, que evoluiu da seguinte forma:

Português arcaico Português moderno

Séc. XII Séc. XVI Séc. XVI

Textos em galego-português Separação entre galego e português

Uniformização da língua;Aquisição das características do

português atual

Outro bom motivo para estudar o trovadorismo é entender a oposição do período histórico conhecido como Idade Média ao período da Antiguidade Clássica e compreender a essência da arte e da cultura ocidental da Europa medieval durante a transição humanista para a Idade Moderna.

1.1. O surgimento da cultura trovadoresca

Se você já assistiu a algum fi lme medieval ou teve contato com algum game desse período, deve se lembrar de algumas características marcantes desse momento histórico:

• os cavaleiros das Cruzadas na luta contra os mouros; • a vassalagem prestada aos nobres;• o poder espiritual representado pelo clero, que detinha toda a cultura.

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1.1.1. A vassalagem

A submissão dos súditos de um feudo a um senhor feudal era manifestada em importantes cerimônias civis. Eles se ajoelhavam diante do suserano e lhe diziam palavras que o reconheciam como seu “homem”. Depois, beijavam-lhe a boca, o que simbolizava o estabelecimento do “acordo” daquela relação servil chamada vassala-gem. Tudo isso feito sob a presença do clero e sob os textos sagrados dos Evangelhos.

Como você estudou, é muito comum encontrarmos relações entre os aspectos socioculturais de um momento histórico e a escola literária nele contida. É o que vamos entender mais tarde, quando conhecermos um pouco melhor a Literatura desse período.

Além de filmes e jogos, você pode encontrar essa temática em romances como O cavaleiro inexistente, de Ítalo Calvino, O nome da Rosa, de Umberto Eco, e o famoso Tristão e Isolda (de autor desconhecido). Vale a pena conferir!

1.2. Os textos poéticos da primeira época medieval

Todos os textos poéticos do trovadorismo são chamados cantigas. Isso porque as cantigas eram produções de natureza oral, acompanhadas por instrumentos musicais; muitas vezes, eram cantadas em coro. Você perce-berá que, de modo geral, seus conteúdos podem ser considerados ingênuos e sentimentais: apresentam lamen-tos amorosos, confidências, queixas. Muitas vezes, invocam as figuras de Deus, Jesus Cristo e da Virgem Maria, o que consolida a já estudada relação entre contexto histórico e estilo de época. Algumas cantigas apresenta-vam tom satírico. Vamos conhecê-las?

Gênero Lírico

Cantigas de amor Cantigas de amigo

Eu lírico masculino Eu lírico feminino

Ausência de paralelismo Presença de paralelismo

Predomínio das ideias Predomínio da musicalidade

Tema: coita amorosa do poeta perante uma mulher idealizada

Tema: lamento da moça por namorado que partiu

Amor cortês (convencionalismo) Amor natural (espontâneo)

Ambientação nobre das cortes Ambientação popular rural e urbana

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Gênero Satírico

Cantigas de escárnio Cantigas de maldizer

Crítica indireta(não se identifica o nome da pes-

soa satirizada.)

Crítica direta (o nome da pessoa satirizada é

identificado.)

Linguagem trabalhada Linguagem agressiva

Trocadilhos sutis, ambiguidades Obscenidade, ataques explícitos, baixo calão

Ironia Zombaria

Cantiga de amigo

- Ai fremosinha, se bem hajades,longi de vila, quem asperades?- Vim atender meu amigo.

- Ai fremosinha, se gradoedes,longi de vila, quem atendedes?- Vim atender meu amigo.

- Longi de vila, quem asperades?- Direi-vo-l’eu, pois me preguntades:vim atender meu amigo.

- Longi de vila, quem atendedes?- Direi-vo-l’eu, poilo nom sabedes:vim atender meu amigo.

Bernal de Bonaval

Vocabulário:fremosinha - formosinhase bem hajades - fórmula de cortesiaquem asperades? - quem esperas?atender - aguardar

Exemplos de cantigas do gênero lírico

Cantiga de amor

No mundo non me sei parelha,mentre me for’ como me vayca já moiro por vós- e ay! mia senhor branca e vermelha,queredes que vos retrayaquando vus eu vi en saya!Mao dia me levantei,que vus enton non vi fea!E desd’aquel di’ay!Me foi a mi mui malE vós, filha de dom Paai Moniz,bem vos semelha d’aver eu por vósguarvaia,Pois eu, mia senhor, d’alfaianunca de vós houve nem heivalia d’ua correia Paio Soares de Taveirós

Vocabulário:parelha - igual, semelhantementre - enquantoca - porquemoiro - morromia senhor - minha senhoraretraya - guarde sua imagemmao dia - dia ruimhouve - tiveguarvaia - manto do reihei - tenhovalia - valor

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Quen a sa filha quiser darmester, con que sabia guarir,a María Doming‘ ha d’ir,que a saberá ben mostrar;e direi-vos que lhi fará:ante dun mes lh’amonstrarácomo sabia mui ben ambrar.Ca me lhi vej’eu ensinarũa sa filha e nodrir;e quen sas manhas ben cousiraquesto pode ben jurar:que, des París atees acá,molher de seus días non haque tan ben s’acorde d’ambrar.

Cantiga de maldizer

E quen d’haver houver sabornon ponha sa filh’a tecernen a cordas nen a coser,mentr’esta meestr’aquí for,que lhi mostrará tal mester,por que seja rica molher,ergo se lhi minguar lavor.E será én máis sabedor,por estas artes aprender;demais, quanto quiser sabersabé-lo pode mui melhor;e, pois tod’esto ben souber,guarrá assí como poder;demais, guarrá per seu lavor.

Pero da Ponte

Ũa dona, non digu’eu qual,non aguirou hogano mal:polas oitavas de Natalía por sa missa oír,e houv’un corvo carnaçal, e non quis da casa saír.A dona, mui de coraçón,oíra sa missa, entón,e foi por oír o sarmón,e vedes que lho foi partir:houve sig’un corv’a carón, e non quis da casa sair.

A dona disse: “Que será?”E i o clerigu’está jarevestid’e maldizer-mi-á,se me na igreja non vir.E diss’o corvo: quá, aca, e non quis da casa saír.Nunca taes agoiros vi,des aquel día que nací;com’aquest’ano houv’aquí;e ela quis provar de s’ir,e houv’un corvo sobre si, e non quis da casa saír.

Joan Airas de Santiago

Vocabulárionon aguirou hogano mal – teve um mal pressentimento oír – ouvirhouv’un corvo carnaçal – ouviu (houve) um corvo carniceirooíra sa missa – ouviria a sua missapartir – acontecerhouve sig’un corv’a carón, – ouviu (houve) um corvo colado a siquá, aca, – onomatopeia do corvo (ou “venha cá”)

Cantiga de escárnio

2. Cantigas do gênero satírico

Dois tipos de cantiga são muito importantes para as manifestações literárias da Idade Média: as cantigas de escárnio e as cantigas de maldizer. Sua importância reside muito mais no valor histórico do que no valor literário em si, uma vez que são o registro mais vívido dos comportamentos da sociedade medieval portuguesa. Como o próprio nome revela, o gênero satírico apresenta sátira, isto é, críticas jocosas a costumes e atitudes. E quem é o alvo da crítica? Todo mundo! Religiosos devassos, nobres covardes, mulheres imo-rais, muitas vezes os próprios trovadores são atacados nas letras dessas canções.

2.1. Cantigas de escárnio

As cantigas de escárnio apresentam sua crítica de maneira sutil, indireta. O alvo da canção geralmente tem seu nome omitido, apresentado apenas por referências que levam o ouvinte a deduzi-lo. Em consequência disso, sua linguagem é elaborada, rica em figuras de linguagem, como os trocadilhos e ambiguidades.

2.2. Cantigas de maldizer

A sátira das cantigas de maldizer é direta, vulgar, agressiva e, por muitas vezes, obscena. O nome da pessoa criticada frequentemente é mencionado, a zombaria é explícita e a linguagem de baixo calão (palavrões) é comum.

2.3. Estudando as cantigas do gênero satírico

A seguir, apreciaremos alguns exemplos de cantigas do gênero satírico medieval. A primeira é uma cantiga de escárnio e a segunda é uma cantiga de maldizer.

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VocabulárioQuen a sa filha quiser dar mester, – quem quiser dar profissão a sua filhasabia guarir, – saiba prosperarha d’ir, – há de irambrar. – requebrarnodrir; – sustentarsas manhas ben cousir – quem observar bem suas maneirasdes París atees acá, – de Paris até aquiquen d’haver houver sabor – a quem interessa enriquecermentr’esta meestr’aquí for, – esta lhe ensinará uma profissãoergo se lhi minguar lavor. – a não ser que falte trabalhoguarrá assí como poder; – conseguirá o sustento como puderguarrá per seu lavor. – se sustentará com seu trabalho.

2.4. A prosa na Idade Média

O gênero narrativo medieval, de caráter mais ou menos imaginário, resulta da síntese entre duas tradições: uma é a literária latina, mantida pelo clero; a outra é a tradição oral jogralesca. Foi entre o século XIV e o iní-cio do século XV que a prosa medieval surgiu em Portugal, primeiramente na forma de documentos históricos, religiosos e cartorários. Como Literatura, a prosa surgiu na forma das novelas de cavalaria, gênero narrativo tipicamente oriundo das “cantigas de gesta” – poemas que narravam de forma heroica as aventuras dos cavalei-ros andantes e destemidos em aventuras fantásticas nas quais liquidavam monstros e malvados em batalhas sangrentas, por Deus e pelo amor de uma donzela.

As novelas de cavalaria geralmente descrevem com abundância de detalhes a vida e os costumes da cavala-ria feudal e, de acordo com seus temas, as novelas de cavalaria são organizadas em três ciclos:

• Ciclo bretão ou arturiano: Tem como personagens centrais o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda.

• Ciclo carolíngio: Apresenta como figura central a imagem de Carlos Magno e os doze pares de França.

• Ciclo clássico: Abrange figuras e acontecimentos da Antiguidade Clássica, como a Guerra de Troia, por exemplo.

No Brasil, as novelas de cavalaria chegaram com os conquistadores e encontraram referências nas tendên-cias literárias de revisão de passado histórico e de busca pelo folclore, com muita influência na literatura regio-nal e na literatura de cordel.