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Prosa de Contextação - caarj.org.br · projeto democrático brasileiro (2007). Compartilhamos com vocês o texto que ela escreveu ... de boas maneiras, de restrições de temas,

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Prosa de Contextação

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05 Carta sobre a 1a edição

06 A equipe

08 Violências camufladas: como a mentalidade disfarça as evidências Eneida Desiree Salgado, colunista convidada

12 Prosa de Contextação entrevista Gisele Alessandra Schimdt e Silva

14 Ensaios [ou não] Isabelle Rocha Nobre

15 O “medo das mulheres sem medo” Marília Alves de Carvalho e Silva

16 Raquel Gisele Figueiredo Endrigo

19 A face econômica da violência doméstica Eliane Vieira Lacerda Almeida

22 Relacionamentos gentilmente abusivos Juliana de Castro Santos Ludmer

24 Luto e reinvento Rafaela Miotto de Almeida

25 Nós Clarice Lippmann

28 Desvendando as faces ocultas do patriarcado: como as mulheres são agredidas cotidiana e sutilmente na advocacia Michelle Mendes

Prosa de Contextação

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32 Precisamos conversar com ele Natália Baldessar

36 Cotidiano Fabíola de Oliveira da Cunha

40 Pensando na vida Beatriz Maria Garboggini di Giorgi

41 Resistência feminista na prática da advocacia: a experiência do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde Letícia Ueda Vella e Fernanda Costa Nunes Meneses

44 Um dia comum em uma sessão de Turma Recursal Juliana Mello de Queiroz

46 Quando a esperança vem de dentro Bruna Gonçalves Braga

49 Políticas feministas inclusivas: pelo fim da desqualificação profissional e surgimento de condições igualitárias de trabalho Juliana Lopes Ferreira

51 Violência camuflada Lucimar da Silva Moraes

54 Cultura do estupro Mariana Imbelloni Braga

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Carta sobre a 1a ediçãoTema: Violências Camufladas

Prezadas leitoras, prezados leitores,

É com entusiasmo que apresentamos a primeira edição da revista

Prosa de Contextação, com o tema Violências Camufladas. Por meio desta

publicação, temos a oportunidade de nos fazer veículo para as potentes

vozes corporificadas nos textos que nos foram confiados, abrindo mais um

espaço para exposição de dores silenciadas por tanto tempo.

A revista Prosa de Contextação nasce da proposta de publicação de

textos de temas literários e relatos cotidianos escritos por mulheres advo-

gadas, no intuito de possibilitar, por essa rica forma de expressão pessoal

que é a literatura, um novo espaço de intercâmbio crítico e troca de vivên-

cias para a advocacia. O objetivo a partir do tema da 1a edição, Violências

Camufladas, é abrir espaço para expressão sobre violências percebidas por

mulheres advogadas seja em sua prática profissional, sua vida pessoal ou

sua observação da sociedade. A escolha da palavra “camufladas” justifica-

se pela compreensão de que inúmeros processos violentos são naturaliza-

dos nas práticas cotidianas. Assim, entendendo que mesmo situações ex-

plicitamente violentas para quem sofre a agressão são invisibilizadas pelas

estruturas de dominação, o termo “camufladas” é um convite ao desvelar

dos processos violentos como tais.

O convite foi aceito em formato de contos, relatos e poemas, todos

recebidos por meio de chamada pública aberta de 25 de fevereiro a 15 de

abril de 2018 pela revista Prosa de Contextação. Os textos recebidos sobre

a temática emocionaram e (co)moveram todas as envolvidas no processo

de organização da revista. O resultado do trabalho é agora compartilhado

com vocês, leitoras(es), a quem convidamos para iniciar esse percurso

literário trançado com ensinamentos sobre a vida real.

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Diretora de ConteúdoJuliana Ludmer. Mestranda no programa de pós-graduação em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2014). Colunista da revista on-line Prosa Verso e Arte. Advogada.

Diretora LiteráriaMariana Imbelloni Braga. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Possui graduação em História pela Uni-versidade Federal Fluminense – UFF (2011) e Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2016).

A equipe

Curadoria

Ana Carolina Mattoso. Doutoranda e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2017). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (2013).

Caroline Serafim. Especialista em Direito para a Carreira da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF.

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Isabelle Rocha Nobre. Mestranda em Artes e Di-reitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pós-graduanda em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – Femperj. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2015).

Gabriela Fenske. Graduada em Direito pela Pontifí-cia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2015). Editora-chefe da revista on-line Prosa Verso e Arte. Advogada.

Julia Gitirana. Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR. Mestra em Ciência Jurídica e Teoria do Estado pela PUC-RJ (2013). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo UTP/ICPC (2016). Graduada em Direito pela Puc-RJ (2010). Atualmente é professora no curso de Graduação do Departamento de Direito da FAE Centro Universitário (Curitiba/ São José dos Pinhais - PR). Integrante do Grupo de Pesquisa Política Por/de/para Mulheres e do Grupo de Pesquisa Teoria e Prática do Estado: fundamentos, histórias e discurso. E-mail: [email protected]

Ilustração e Diagramação: Thais LinharesRevisão: Carmem Becker e Anna Maria Moura Costa de Castro Santos. Realização: Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro (CAARJ).

COLUNISTA CONVIDADAA colunista convidada da 1a edição da revista Prosa de Con-textação é a professora Eneida Desiree Salgado. Eneida Desiree coordena o Política Por/De/Para Mulheres. Também é doutora em Direito e professora de Direito Consti-tucional e Eleitoral. Líder do Núcleo de Investigações Consti-

tucionais (NINC) e autora das obras Princípios constitucionais eleitorais (2010) e Constituição e democracia: tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico – Vinte anos de construção do projeto democrático brasileiro (2007). Compartilhamos com vocês o texto que ela escreveu para a revista Prosa de Contextação, sobre o tema Violências Camufladas.

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Violências camufladas: como a mentalidade disfarça as evidências Eneida Desiree Salgado

A consciência de gênero nasceu em mim tardiamente. Embora desde criança submetida a um regime jurídico diferenciado (meus irmãos homens tinham mais liberdades e menos obrigações do que eu, bem como meus primos), não percebia isso como um reflexo de eu ser uma mulher. Sempre me soou como uma injustiça pessoal. As mulheres da família não pareciam se incomodar com as atribuições “naturalmente” a elas impostas, nem com o lugar a elas destinado. Assim, a inadequada parecia ser eu, que me sentia incomodada com a determinação, com justificativas “naturalizadas”, de proibições, de regras de conduta, de boas maneiras, de restrições de temas, de vocabulário, de uso do corpo, de código de vestimenta não aplicáveis aos homens

da casa e da família. Faltava em mim a perspectiva coletiva, talvez por ausência de

interlocução com outras mulheres, muito mais velhas que eu. Neste período, a

minha resistência era puramente na esfera pessoal e demorou muito para que o véu se afastasse.

As estruturas de pensamento que dominavam a minha maneira de ver o mundo não permitiam que eu percebesse que era uma questão de gênero, de uma mentalidade que tratava as mulheres como sujeitadas e não como “sujeitas”. A escola repetia [e vou usar o verbo no passado mais como um desejo do que como uma constatação]

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a diferenciação, com um discurso que combinava divisão de papéis e justificativa protecionista. Havia [novamente no passado, e vou deixar de chamar atenção a cada vez, embora a ressalva inicial se aplique até o fim do texto] uma opressão exacerbada à sexualidade feminina, aos desejos e curiosidades só das meninas. Dos meninos se exigia ousadia e coragem, o que, em uma visão retrospectiva, me parece igualmente opressivo. Eu trabalhava minha resistência com a superação da diferença. Sentava na mesa com os adultos nos almoços de família e tinha (ainda tenho) palpite sobre tudo – de política externa à escalação da seleção – e na escola me envolvi em projetos e atividades coletivas e buscava me destacar por habilidades que usualmente eram [...] ligadas aos homens: não tinha medo de falar em público ou de propor discussões e praticava esportes competitivamente. E foi assim também na faculdade, onde a violência vinha disfarçada de comentários jocosos de professores e colegas a respeito da necessidade de estudar tanto para arrumar marido e, de maneira ainda mais intensa, no movimento estudantil, que se dizia democrático e inclusivo naquele momento de intensa discussão política após a destituição do Presidente Collor. Mulheres podiam participar do debate e construir as soluções, mas o protagonismo era reservado aos homens, “líderes naturais” e mais palatáveis ao eleitorado.

O mercado de trabalho – ontologicamente cruel e opressor – escancarou a questão. Àquela altura do campeonato não podia ser apenas um problema comigo. A construção da linguagem, a proibição do uso de calça para as mulheres (às vésperas do século XXI!), a destinação dos cargos de decisão para os homens e de assessoramento (normalmente secundário) para as mulheres eram escandalosas. O assédio combinava insinuações de caráter sexual e questionamentos sobre a competência. A entrada na vida acadêmica e no magistério acentuou mais ainda a violência. Camuflados de preocupação, presenciei comentários sobre a dificuldade das mulheres de se dedicarem à pesquisa e à reflexão tendo que cuidar da casa, de filhos e do marido (isso já no século XXI!) e da impossibilidade de se encontrar uma escrita objetiva partindo de uma mulher, em face de seu “natural” sentimentalismo. No entanto, consolação, podíamos

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ser boas professoras (ao menos de algumas disciplinas), devido à nossa “natureza” maternal.

O mundo acadêmico é masculino em sua linguagem e sua aparência. Ainda parece natural a realização de congressos e painéis puramente masculinos. Ninguém estranha. Se, ao contrário, só há mulheres, ou se trata de tema exclusivamente feminino ou já vem a acusação de sectarismo. Ou pior: a sugestão de inclusão de homens para que a discussão não se torne monótona [sim, isso aconteceu comigo em um diálogo com um sujeito que se acha muito progressista e eu lhe pedi para refletir sobre sua sugestão, sobre sua interlocutora e sobre a sua visão de mundo; perdemos contato depois disso, não sei se ele refletiu ou se a reflexão lhe foi útil]. Ainda é frequente que os elogios a uma mulher quando de sua apresentação em eventos não se refiram às suas capacidades intelectuais, com um irritante e inaceitável deslocamento do mérito ou com a menção a qualidades que não dependem exclusivamente dos esforços pessoais. E, sempre, as interrupções e as explicações sobre o que acabamos de falar. Os homens nos explicam tudo, inclusive o que sabemos mais que eles.

Uma violência atua igualmente no campo acadêmico e no campo político: a distinta adjetivação a manifestação enfática. Se é uma mulher que fala energicamente, logo vêm as críticas contra a fala “histérica” daquela “louca”, por vezes acompanhadas por comentários sobre os efeitos da ausência de um homem para acalmá-la ou satisfazê-la. Se é o homem que o faz, é um líder nato, capaz de convencer com seus argumentos e sua confiança. No espaço político – institucional ou partidário – o mesmo ocorre com o uso do capital sexual: a piscadela do Presidente Obama é bem vista, elogiada, é um gênio da estratégia política; uma mulher bonita na política é reduzida a uma manequim, uma boneca, uma cabeça oca, que utiliza a sedução porque não tem mais nada a oferecer. A violência política

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contra as mulheres, ainda, manifesta-se pela constante diminuição de suas qualidades e capacidades, com ataques diretos e misóginos não apenas à sua atuação pública, como ocorreu com a Presidenta Dilma Rousseff antes, durante e depois da sua destituição inconstitucional.

Essa mentalidade que insiste em reduzir as potencialidades das mulheres faz com que tenhamos dúvidas sobre nossas próprias aptidões e competências. Um homem, sempre encorajado a ousar e a buscar o sucesso, apresenta-se para uma função ainda que não preencha mais do que a metade dos seus requisitos. Uma mulher, em geral, só o faz se considerar que cumpre satisfatoriamente todas as condições para o exercício do cargo. Somos tão oprimidas por uma maneira de ver a sociedade e a “natureza” que por vezes não percebemos a opressão: é como a água para os peixes, algo em que estamos inseridas desde sempre e por isso incorporamos esses padrões de pensamento e os repetimos ou negamos, até onde der, a sua nocividade. Foi o que aconteceu comigo. Porém, depois de tanta indignação pessoal a compreensão se estendeu, e assim nasceu em mim a consciência.

Penso que após a tomada de consciência de gênero, ainda que tardia, tenho como compromisso provocar a percepção dessas violências, camufladas, escancaradas, simbólicas, políticas, reais. Não é fácil, porque até mesmo a militância – seja qual for o seu campo e sua abordagem – é questionada em uma mulher que, enfim, além de ter demorado a se perceber, faz parte da parcela mais “privilegiada” do gênero: branca, urbana, classe média, educação superior, hetero, cis, casada e mãe. Mas, assim me compreendo, assim me desafio a desafiar outras mulheres a se compreenderem e a perceberem as opressões e suas opressões, no campo acadêmico e no campo político, para que se saibam capazes de reformarem a si mesmas e reformarem o mundo. Que as deusas me (e nos) ajudem.

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A advogada Gisele Alessandra Schimdt e Silva é nascida no Rio Grande do Sul e radicada em Curitiba. É membra da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB-PR, Conselheira suplente do Conselho Estadual de Direitos da Mulher do Paraná, membra do Comitê LGBT da Secretaria de Estado de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Paraná.

A advogada se tornou reconhecida em âmbito nacional a partir da sustentação oral realizada no plenário do STF nos autos da ADI 4.275. Após Gisele subir à Tribuna, foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal decisão reconhecendo, com base no direito à autoidentificação, a possibilidade de retificação do nome e sexo no registro civil por pessoas transgêneras sem necessidade da realização de tratamentos hormonais, cirurgias de transgenitalização ou autorizações judiciais.

Ela aceitou dar uma entrevista à revista Prosa de Contextação. O conteúdo, agora compartilhamos com vocês.

1) Vamos começar falando um pouco de você e da sua trajetória. Quem é a Dra. Gisele Alessandra, que para muitas e muitos é sintetizada na advogada que sustentou oralmente nos autos da ADI 4.275 perante as ministras e ministros do STF? Como a sua história pessoal se relaciona com a sua militância na advocacia?

Sou uma pessoa extremamente metódica; se tenho um objetivo a ser alcançado, traço uma reta até ele e nada me tira desse caminho. Minha história pessoal sempre foi de muito trabalho, extrema hipossuficiência e vulnerabilidade, mas nunca perdi o foco e por isso até o presente momento me considero uma sobrevivente; minha militância se dá porque acredito que é possível construir uma sociedade mais justa e igualitária.

2) Do ponto de vista pessoal, como foi a experiência de representar, no plenário do STF, a pauta de diversas pessoas transgêneras?

Fazer uma sustentação oral é sempre um desafio para qualquer advogado e sempre tive um certo receio disso, porque sou tímida e tenho dificuldade de falar em público. Só que faz parte da carreira de advogado e simplesmente encarei como um trabalho a ser feito. A experiência foi indescritível e considero que foi o ápice de minha carreira até o momento, mas ainda pretendo fazer varias sustentações orais e também atuar no Tribunal do Júri.

Prosa de Contextação entrevistaGisele Alessandra Schimdt e Silva

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3) O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou, em 2016, a inclusão do nome social de advogadas transgêneras e advogados transgêneros no registro da Ordem; em 2018, o Supremo Tribunal Federal autorizou as mudanças de prenome e sexo no Registro Civil de transgêneros sem necessidade de cirurgia de transgenitalização, tratamentos hormonais ou autorizações judiciais. Em 1º de março de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela possibilidade de caracterização de candidatos nas eleições de acordo com a identidade de gênero, tendo as mulheres transgêneras direito a concorrer na cota destinada ao sexo feminino. Na sua perspectiva, como essas decisões podem impactar na forma como os diversos atores (advocacia, magistratura, promotoria etc.) que atravessam o Sistema de Justiça encaram a transgeneridade?

Essas decisões são grandes conquistas no sentido de nossa inserção na sociedade e no resgate de nossa dignidade. Assim, esses atores simplesmente deverão nos acolher como sujeitos de direitos e cidadãos, que é o que somos.

4) Em sua visão, para além dos limites das instituições jurídicas, como acha que essas decisões podem impactar nas violências camufladas e invisibilizadas que atingem pessoas transgêneras aqui no Brasil?

Acredito que são apenas o primeiro grande passo no sentido de coibir discriminações, violência e preconceitos, mas o caminho ainda é longo e árduo. Sou otimista e acredito que num futuro (talvez não muito próximo) a sociedade brasileira seja mais justa e igualitária. Neste momento, estou em Cambridge/Massachusetts, onde realizei uma fala no Brazil Conference at Harvard & MIT e percebo que aqui a inserção é mais natural.

5) Após a recente decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI 4.275, já foi possível identificar à sua volta efetivação cotidiana do direito de transgêneros e transgêneras à retificação de nome e sexo no registro civil?

Sim, sempre há trabalho e agora o STF precisa publicar o inteiro teor do acordão para que o CNJ possa publicar uma resolução, como se deu no casamento homoafetivo, para que o material se pacifique nos cartórios, apesar de alguns cartórios já estarem retificando sem maiores óbices e mesmo sem a resolução do CNJ.

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Se tivesse um homem pra te comer direito, parava de chilique.Manda sua mãe buscar pra você, como eu vou saber onde ficam as coisas?Eu já dou 100 reais de pensão pra ela ficar com os filhos dela. Chama um homem pra levantar essa caixa.Como assim, tá viajando sozinha?Dá uma boneca pra essa menina.Já era, tirou habilitação.Nossa, bonita e inteligente, tem que tomar cuidado.Que comida! Já tá boa pra casar!

Então, o que queria te dizer, mas achei melhor falarmos em particular, era que tudo bem a sua namorada, mas não é melhor você se expor menos?

É que eu estava na internet e vi sua foto com ela, você sabe, o que as pessoas vão pensar... Eu não falo por mal, você sabe quanto te amo, mas poxa, o que vão pensar, dá pra perceber que estão muito próximas, tem o olhar também, eu só falo porque quero seu bem, imagina se a família percebe, se falam de você... e tem também sua carreira, têm coisas que é melhor deixarmos entre quatro paredes, ninguém tem que saber da sua vida, você tem que se poupar, que se cuidar, as pessoas são más, vão falar de você, melhor apagar a foto, mas é só uma sugestão. Apaga.

Eu cheguei cansado. Trabalhei o dia todo e você fez o quê? Você não entende, lá na empresa tá uma merda, demitiram mais gente, e a outra lá ganhou barriga e fica em casa de pé pro alto enquanto a gente rala pra dividir as metas. É complicado, você não entende. Esquenta minha janta. Dá um banho nesse garoto, que horror criança suja. O que você fez hoje? Eu disse que estou cansado, né? Dá pra trazer uma cerveja não, amorzinho?? Hoje o dia foi triste, na empresa tá tudo uma merda. Apaga a luz pra eu descansar. Apaga.

Sinto lhe informar que esse seu artigo não é publicável. Desculpe, mas é informal demais. Não dá pra escrever em primeira pessoa, suas experiências não são ciência. Tem também esse tom emotivo, pouco racional, muita palavra, não é o que a academia quer. Veja bem, é que sempre foi assim. Existe a epistemologia e dentro dela não há vivências. Há o que há. Desculpe, não é tolerável. A construção do conhecimento não pretende considerar suas vivências. Melhor apagar. Mas só se quiser publicar. Apaga.

Parece que ela vai continuar defendendo aqueles bandidos, você percebeu quanta gente juntou naquelas manifestações, e agora também com essas rodas de mulheres, isso é perigoso pra gente, tá tendo adesão, percebeu? ...sei não, melhor a gente ficar de olho, ficar na espreita, não é só universitário, tá pior que liderança comunitária, já não é só ativismo, tá mudando coisa, vamos perder espaço, e se denunciar a gente? Apaga essa Marielle. Apaga.

Ensaios [ou não]Isabelle Rocha Nobre

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O “Medo das Mulheres Sem Medo” Marília Alves de Carvalho e Silva

As mãos abriam a saia estampadaPor baixo a meia-calça para espantar o frioA calefação aquecia os corposJá quentes pelo encontro de pele e desejo

Deitaram na impessoalidade do apartamento alugadoCom a pessoalidade dos amantes livresLiberdade que exalava de cada poro delaE era mais sentida a cada gota de suor derramado

O vapor condensado na janelaBarreira que separava o quarto em chamasE a noite fria de um janeiro na EuropaUniverso paralelo

Os primeiros raios de sol dissiparam o vaporE a luz trouxe os contornos da realidadeO inverno europeu nos atos e palavrasEla “se levantou quando o amor não estava mais sendo servido”

À tarde a conversa em um descampadoFusão do frio no interior e exterior dos corposO vento parecia cortar o rostoQue não era mais cortante que as palavras dele:

“Tu és mestra em direitos humanosDe esquerda, viajando sozinhaLindaMas mulher muito livre pra mim é puta”

Puta mulher bem resolvida.

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RaquelGisele Figueiredo Endrigo

Raquel abriu os olhos e viu que já estava amanhecendo. Levantou-se com dificuldade

e sentou-se na beirada da cama. Permaneceu imóvel, olhando fixamente a parede branca. Sua cabeça doía com o esforço da tentativa de organizar o pensamento. Mas, por mais que tentasse, não conseguia desfazer a confusão de ideias. Sabia que algo estava errado, mas não entendia claramente. Às vezes não conseguia lembrar o nome dos filhos, ou não reconhecia onde estava, e isso a desconcertava. Um lampejo de lucidez, de vez em quando, atravessava sua mente. E nesses momentos pensava: “Estou caduca mesmo”. Não podia deixar que os filhos percebessem que a idade tirava-lhe o juízo. Um dia chegariam aos 85 anos e veriam como era duro sentir a mente definhar em um processo irreversível. Pensavam que ela não se dava conta do que lhe acontecia, mas, na verdade, era a angústia dessa certeza que a estarrecia. Era como estar trancada dentro de uma caixa escura e não conseguir sair, ou estar perdida no mato e não achar saída para a civilização. Um sonho sem nexo do qual não conseguia acordar. Podia aceitar a perda de vitalidade e força, mas perder o último fio de conexão com a realidade era algo que lhe imprimia um desânimo mortal. Percebeu um movimento no quarto.

–“Dona Raquel, a senhora já está acordada? Como estamos hoje? A senhora tá bem coradinha, né? Vamos tomar um café?”

“Que mulher estúpida”, pensou Raquel. Ainda por cima tinha que aturar essa mulher estranha nesse lugar estranho, que a tratava como um bebê. Queria estar em casa... Mas após um incidente em que quase pôs fogo na casa, ao dormir no sofá com um cigarro aceso, os vizinhos tiveram que chamar a assistente social e foi levada a um asilo. Os filhos há tempos não a viam.

A mulher ajudou Raquel a caminhar até o banheiro. –“A senhora está uma verdadeira atleta hoje, Dona Raquel!” Raquel fechou os olhos. “Vaca!”. A mulher a auxiliava na higiene íntima. “Era só o que

me faltava. Uma estranha limpar a minha bunda”. Apesar de ressentir-se com a ajuda, Raquel quedava-se obediente. Aceitava a água fria e os movimentos rudes da mulher. Não havia outra opção.

A mulher levou Raquel até à varanda e depositou a velha em uma poltrona surrada. Colocou-lhe nas mãos um copo de café frio e um pão requentado. Comeu sem expressão, os olhos fundos, a boca murcha, os ombros caídos enfiados em um casaco molambento.

–“A senhora comeu muito bem hoje, dona Raquel!”Do que aquela estúpida estava falando? Sua barriga roncava igual porco. Não se lembrava

de ter comido nada! Essa pilantra devia ter roubado toda a comida dela e ia deixá-la passando fome. Bem sabia que essa gente era tudo um bando de ladras. Roubando sua comida, suas roupas, seus objetos queridos. Assim que os filhos chegassem, reclamaria dessa mulher que a tratava tão mal! Eles não tinham ideia do que a mãe passava.

A mulher sumiu por alguns instantes e voltou com um copo de água e um comprimido.–“Vamos tomar o nosso remedinho?”

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Ah! Os comprimidos! Eram parte da conspiração para deixá-la em um estado de permanente alienação. Recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Se ao menos o seu Francisco estivesse ali... Mas a polícia entrara em sua casa e o levara preso. Estava angustiada com a falta de notícias. Que polícia mais insensível! Não sabiam que ela tinha seis filhos pequenos para criar?

A enfermeira voltou depois de um tempo acompanhada de uma pessoa e Raquel olhou para a mulher parada ao seu lado. Não enxergava direito.

–“Quem é que taí?”–“Sou eu, mãe! A Cida!”–“Ahn...” – disse sem expressão.Cida era a filha do meio. Trabalhava em outra cidade e quase não tinha tempo para ver a

mãe. Sentou-se ao lado dela e pôs-se a ouvir suas lamúrias. Que aquela enfermeira era uma ladra. Que os outros filhos eram uns desnaturados; nunca vinham visitá-la. Que ela passava fome...

–“E o Francisco, teu pai... a polícia levou ele preso e não solta mais...” – queixou-se, chorosa.

–“Mamãe! O pai abandonou a gente quando eu tinha cinco anos e a gente nunca mais teve notícias dele! Isso já faz sessenta anos!”

A enfermeira balançou a cabeça. “Melhor concordar”, sussurrou. Cida contraiu os lábios para não dizer mais nada. Não devia ter refutado a mãe. Mudou o assunto e começou a falar dos netinhos, bisnetos de Raquel. Comentou os progressos de Jéssica na escola, das aulas de natação de Maicon, da graça que era Luana fazendo balé. Tinham sorte de morar perto de um centro comunitário que oferecia todas essas atividades. Olhou para a mãe e suspirou. Sabia que ela não fazia a mínima ideia de quem eram eles. De repente, Raquel ficou muito agitada e arregalou os olhos em direção a Cida.

–“Filha minha! Corre que teu pai quer te jogar no rio!”

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Os olhos de Cida encheram-se de lágrimas. Sabia da história que seu pai queria matá-la quando nasceu. Vivia alcoolizado e disse à mãe que não ia criar puta para o mundo. A mãe teve que escondê-la na casa dos vizinhos. Cida lembrou-se do médico dizendo que Raquel perdera a memória recente e que só se lembraria de fatos muito antigos. Estranhos caminhos da mente... A nitidez das lembranças de outrora era assombrosa.

–“Está tudo bem, mãe. Ele já foi embora”.Ao ficar sozinha novamente, Raquel esforçava-se para lembrar de algo. Quem é que

acabara de estar com ela? Olhou em volta e espantou-se. Onde é que ela estava? Aquela não era a sua casinha no morro do Piolho, que Francisco havia alugado.

–“Quero ir pra minha casa! Quero ir pra minha casa!” – gritava Raquel.–“Calma, dona Raquel. Nós vamos até a sua casa, está bem?”Raquel continuou sentada na poltrona e logo se acalmou. Resmungava coisas ininteligíveis

quando vislumbrou um casal vindo em sua direção. Apertou os olhos para conseguir enxergar melhor e levou a mão ao peito. “Francisco! Você voltou, meu amor!”

–“Oi, mamãe” – era Francisco, o filho mais velho, igual ao pai em nome e aparência, confundindo Raquel.

–“Como vai, dona Raquel? Trouxe um presente para a senhora.”Raquel desembrulhou uma caixa de sabonetes que Lúcia, a nora, lhe estendera. A velha

fez um muxoxo. “Será que ela pensa que eu sou fedida?”–“A senhora tá precisando de alguma coisa, mãe?”Raquel olhou para o filho. Tão generoso! E essa mulher que estava ao lado dele? Era sua

amante! Roubara Francisco dela, deixando-a com seis filhos para sustentar! Não... espere um pouco... esse era o filho, não o pai. Raquel ficou atônita. Mesmo assim, achava a nora uma vagabunda. Dera três filhas a Francisco e dizia que ele era o pai, quando bem sabia que o pai era outro... “Pobre do meu filho!”

Raquel sentia-se cansada. O filho percebeu a fadiga da mãe, beijou-lhe a fronte e foi embora. Cida e Francisco visitavam a mãe uma vez por ano. Os outros filhos estavam perdidos pelo mundo.

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Antes de dormir, Raquel engoliu mais um comprimido que a enfermeira lhe oferecia. Gostava daquela pequena cápsula amarela. Em poucos minutos, uma sensação de paz e entorpecimento tomava conta do seu corpo. Sorriu para a visão de Francisco, postado a sua frente. Vestia um terno de linho branco, tinha na cabeça um chapéu de palhinha e calçava sapatos bicolores muito elegantes. Como estava bonito!

Raquel deitou-se na cama com a ajuda da enfermeira, virou-se de lado e aninhou-se no travesseiro, colocando as duas mãos embaixo da cabeça, junto ao rosto. Ficou observando a pequena luz de uma lâmpada no corredor. Ela iluminava os recônditos mais escuros de sua mente. Lembrou-se dos filhos pequenos brincando no quintal, da luta para criá-los sozinha, dos bichos abandonados que ela recolhia e cuidava. Olhou para a visão de Francisco, o marido, que lhe sorria maliciosamente. “Seu filho de uma puta!” Mas as lembranças se embaralhavam e se esvaeciam. Eram como água que saía da torneira. Escapavam rapidamente pelo ralo de sua memória. E tudo o que via era a imagem de quando era a menina da roça, no interior da Bahia. Uma recordação tão viva, que parecia ter sido ontem. O vestido sujo, os cabelos desgrenhados, os pés descalços na terra. Carregava na mão um ouriço morto, que serviria de jantar para a família. “Papai do Céu, me perdoe por matar esse bichinho, mas eu prometo que, quando a gente não tiver mais passando fome, eu vou cuidar de todos os bichos que encontrar pro resto da vida!”

A face econômica da violência domésticaEliane Vieira Lacerda Almeida

Acredito que a maioria dos profissionais passa por alguma situação que se torna o divisor de águas dentro da sua carreira. A minha aconteceu quando eu estava no último semestre da faculdade e era estagiária forense do Ministério Público, em uma das Promotorias vinculadas ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na Capital do Rio de Janeiro. Já estava há alguns meses lá quando me apareceu esse caso de tentativa de estupro de vulnerável.

Eu tinha lido o processo. O padrasto – típico homem de bem –, supostamente tinha tentado estuprar a enteada enquanto ela estava dormindo. Após a leitura, fui assistir a gravação da audiência. Perante o juiz a criança mudou a sua versão dos fatos, dizendo que foi um equívoco, na interpretação dela. Eu só consegui sentir raiva, porque, para mim, a criança podia ter sido coagida a alterar a história. Contudo, não foi isso que me fez me encontrar dentro do Direito, foi quando ouvi a mãe da menina que o mundo se tornou mais nítido e doloroso.

Após as perguntas de praxe, o Promotor perguntou para a genitora se ela era dependente financeiramente do homem. A mãe, envergonhada, respondeu que sim.

Essa pergunta pode parecer singela, porém, ela guarda em si um dos pontos mais cruciais sobre a violência contra a mulher: a dependência financeira da mulher em posição de vítima com relação ao seu agressor. Cinco anos de faculdade de Direito não são suficientes para nos ensinar sobre os anseios subjetivos das pessoas e suas demandas individuais.

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Para mim, que estava de fora daquela relação, era óbvio que esse homem tinha que ser preso, se possível para sempre e nunca mais ter contato com nenhuma criança no mundo. É muito mais fácil julgar a realidade do outro e projetar nossas expectativas em cenários dos quais temos afastamento afetivo. É humano tornar a análise dos casos passional e nos rebelarmos contra uma violência que não estamos sofrendo. Porém, um bom profissional do Direito tem que ter maturidade para reconhecer as suas próprias limitações e, naquele momento, vi que não tinha esse conhecimento sobre a vida real.

Foi a pergunta sobre o que prendia aquela mulher àquele homem que me fez entender que eu mesma estava invisibilizando a dor dela. Às vezes o que, em um primeiro momento, entendemos como abandono, pode ser a forma pela qual as pessoas acham que estão cuidando umas das outras. Às vezes mais vale crer que o agressor mudará, do que ver os seus filhos passando fome.

Não quero com isso, de modo algum, dizer que as mulheres devam ser coniventes com condutas criminosas. Ao revés, quero despertar as colegas advogadas para a necessidade de olhar mais de perto o que permeia os anseios das mulheres que sofrem violência doméstica. O sistema de encarceramento é a violência institucionalizada pelo Estado e ele não é violento apenas em si, mas sim em todo o seu processo, inclusive para a vítima. Não são raros os casos em que a mulher em situação de violência sofre coação nas delegacias para não registrar a ocorrência ou é, de alguma forma, tratada com violência pelas autoridades.

No caso que apresentei, não bastou uma lei de proteção às mulheres, um juizado especializado e a coragem dessa família em denunciar o homem. A violência doméstica tem origem tão profunda e deságua em tantos problemas que as mulheres enfrentam na vida cotidiana que, na prática, a lei simplesmente pode não alcançar a realidade fática.

Depois de formada, comecei a advogar na ONG TamoJuntas, que é uma rede multidisciplinar de atendimento às mulheres vítimas de violência de gênero, além de também advogar de forma privada para mulheres com o mesmo perfil. Na advocacia, comecei a ter contato mais direto com as mulheres. Vi, ao longo desse pouco tempo de formada, muitas mulheres que foram violentadas, das mais diversas maneiras, também se recusando a fazer o registro de ocorrência. Algumas por não quererem se expor, outras por apenas desejarem encerrar o caso, mas na maioria dos casos que peguei, as mulheres queriam apenas garantir o direito de pensão aos seus filhos.

Não é leviandade fazer esse tipo de reflexão sobre como a questão financeira permeia a vida das mulheres, uma vez que até mesmo nós, advogadas, recebemos menos que os nossos colegas homens. Em sendo o dinheiro um instrumento de poder, não podemos banalizar o quão violenta é a remuneração desigual entre os gêneros. Se mulheres estão se mantendo em relacionamentos abusivos por falta de autonomia financeira, qualquer pagamento abaixo do justo é instrumento de perpetuação de opressão às mulheres.

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O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, neste ano de 2018, um estudo chamado “Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil”, o qual, dentre outros dados, constatou que, entre 2012 e 2016, as mulheres ganharam, em média, 75% do que os homens receberam, ao ser analisado o rendimento habitual médio mensal. As mulheres, mesmo tendo melhores níveis educacionais, continuam recebendo muito abaixo do que os homens. Até mesmo a nossa lei demorou bastante tempo para reconhecer o direito das mulheres na área formal de trabalho. Isto porque, somente em 1962, através do Estatuto da Mulher Casada, as mulheres foram reconhecidas como igualmente responsáveis pelos encargos materiais da família.

Antes disso, o entendimento que estava em vigor era o da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) datada de 1943. Nesse diploma legal, no art. 446, havia a presunção de que as mulheres casadas estavam autorizadas a trabalhar. Contudo, no parágrafo único do mesmo artigo constava a previsão de que o marido ou o pai podiam pedir a rescisão do trabalho dessa mulher, caso o desempenho da função ameaçasse o vínculo familiar. Esse artigo somente foi revogado pela Lei no 7.855, de 24 de outubro de 1989. Ou seja, não tem nem trinta anos que o ordenamento jurídico nos permite trabalhar sem estarmos expostas às vontades dos homens. A nossa defasagem financeira não está desassociada das políticas públicas de exclusão das mulheres e isso ainda reflete na nossa vida profissional e nos nossos salários.

Uma assistida minha tem uma filha com deficiência e, por precisar acompanhar a criança em diversas consultas, não consegue entrar no mercado formal de trabalho. Ao receber a notícia que o juiz fixou alimentos provisórios que não cobririam nem metade dos gastos que a família tinha com medicamentos, a primeira coisa que ela me disse foi: “Vou ter que voltar com o meu marido para conseguir continuar custeando o tratamento da minha filha”.

Como advogada, não cabe a mim fazer qualquer tipo de julgamento ou decidir pelas mulheres. Contudo, como ser humano, preciso enxergá-las como pessoas e tentar, sempre que possível, fortalecê-las dentro dos seus anseios próprios. Adoto como prática sempre perguntar o que as mulheres que sofrem violência de gênero querem com um processo. Trabalhando em cima dos desejos subjetivos individuais delas, explico em uma linguagem de fácil acesso os caminhos possíveis, apresento as alternativas existentes e deixo que elas escolham o que fazer.

Dar autonomia para que nossas clientes decidam o que fazer com a violência que sofreram é, a meu ver, um importante passo para o resgate da autonomia dessas mulheres. Inserirmo-nos, enquanto advogadas, em redes multidisciplinares, para termos mais possibilidades a apresentar a essas mulheres, é nos abrirmos para um combate efetivo à desigualdade de gênero, porque nem sempre a lei alcança a realidade das mulheres.

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Relacionamentos gentilmente abusivosJuliana de Castro Santos Ludmer

Esta história é de Sofia. A única razão para ser eu a escrevê-la é o potencial silenciador dos processos violentos, o qual muitas vezes rouba das vítimas a força necessária para des-velá-los.

Sofia acordou com a cabeça pesada e os olhos inchados. O choro da noite anterior havia deixado rastros pelo seu corpo. Sentia a carne cansada, mas sabia-se obrigada a vestir o sor-riso ensebado que lhe era exigido diariamente no trabalho.

Maquiou-se cuidadosamente para apagar as marcas do desgaste. O mundo não podia sabê-la fraca. A dor é incômoda aos outros, repetia a si mesma.

Abotoou a blusa social e se olhou no espelho de corpo inteiro. Naquela imagem embal-samada de produtos estéticos, o caos dentro de si estava escondido. Apresentável, esta era a definição para a mulher que lhe devolvia o reflexo.

Caminhou até a estação de metrô. O barulho dos saltos dava ritmo ao seu passo fin-gidamente disposto. Da plataforma, observou os trilhos em busca de sinais da chegada dos vagões. Foi o suficiente. Nos poucos segundos em que se esqueceu de não pensar, as lem-branças a envolveram.

No dia em que conheceu Paulo, havia feito, pela manhã, o mesmo trajeto. Estava in-segura ‒ era seu primeiro dia no novo emprego e em nova cidade, duas conquistas muito desejadas. No horário de almoço, em busca de um restaurante que lhe apetecesse, esbarrou com alguns dos seus colegas de trabalho, que almoçavam na companhia de um amigo, infor-malmente apresentado a ela na ocasião: Paulo.

Paulo lhe agradou de imediato. Era tímido, não especialmente bonito, embora não pudesse ser classificado como feio. Tinha voz mansa e soava culto. Em uma única conversa, emendava direito com literatura e história, em uma costura que, em sua narrativa, fluía de forma sinfônica. Sofia sorriu ao ouvi-lo falar. Paulo correspondeu ao sorriso.

Saíram algumas vezes, e Sofia, sem que se desse em tempo, viu-se apaixonada por ele. Enumerava mentalmente as qualidades do rapaz e surpreendia-se com a forma gentil com a qual este a tratava. Parecia excesso de sorte: conhecer alguém tão encantador naquele curto período de tempo.

Os pensamentos de Sofia foram arrebatados pelo barulho do metrô, que bruscamente estacionava. As portas à sua frente se abriram, ela ingressou no vagão lotado. Segurou-se na barra de ferro e, ao erguer a cabeça, notou os olhares a ela destinados. Conhecia aqueles olhares ‒ estes lhe eram endereçados quando chorava em público. Absorta nas lembranças, não realizara que as lágrimas lhe haviam retornado à face.

Paulo detinha esse poder. Fazê-la chorar. Não era culpa dele, Sofia pensava. A culpa era sua. Se ele não correspondia ao encantamento, a culpa era sua, por não estar à altura. Se ele era capaz de lhe ferir, a culpa era sua, por ser fraca. Se ele a ofendia, a culpa era sua, por ser defeituosa. Paulo não podia ser responsabilizado por isso; ele era sincero em sua opinião a respeito dela.

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A primeira vez que Paulo a criticou, Sofia ficou surpresa. A crítica veio suave, em for-mato de brincadeira. Uma piada relacionada ao sobrepeso de Sofia. Paulo não gostava de me-ninas acima do peso que julgava ideal, havia lhe avisado em alguma ocasião. Sofia se sentiu mal com o comentário, mas não acreditou que contivesse um julgamento velado. Até o dia em que foi explícito. Bola, foi como passou a chamá-la. Carinhosamente.

Sofia relevou a brincadeira incômoda. Também se achava acima do peso, preferiu não reclamar de imediato. Talvez devesse emagrecer, aproveitar a sugestão de alguém que preza-va pelo seu bem-estar.

Aquele comentário irônico foi apenas o início. Com um pouco mais de intimidade ‒ de-pois de dois ou três meses saindo ‒, Paulo começou as explosões. Ele justificava: Sofia o ir-ritava. Em acessos de raiva, o rapaz atribuía a ela uma sequência de adjetivos depreciativos: burra, gorda, desprezível, sem graça, desinteressante, incompetente. Sofia se ofendeu, pas-sou a conferir a si mesma o direito de sentir raiva. Aquelas não eram sugestões, ele a estava ferindo.

Sofia lembrava-se do momento preciso em que decidira se afastar de Paulo. Ia viajar por três semanas com uma amiga, ocasião perfeita para interromper o contato com ele. Não estava disposta a seguir em um relacionamento nesses moldes agressivos.

Contudo, nos dias que antecederam ao período de afastamento físico, curiosamente, ele se transformou. As críticas transmudaram-se em elogios. Paulo alterou sua narrativa em relação à Sofia. Esta passou a ser discursivamente descrita como uma profissional admirável, a mulher com quem queria construir vida conjunta. Sofia, inicialmente arisca, aos poucos se viu retomando os laços com Paulo. Reconciliaram-se. Ela não sabia explicar as razões. Era sempre assim, como areia movediça. Quando tentava sair, algo mudava. Paulo mudava a forma de vê-la. E ela amava essa nova Sofia que ele construía nos períodos de calmaria – tão diferente da Sofia desprezível que ele outrora parecia convencê-la a ser.

Sofia sentiu um esbarrão contra seu corpo. O toque bruto a trouxe de volta ao cotidiano. Ao metrô lotado, ao trajeto de ida ao trabalho, aos pés assentados em sapatos de salto alto um pouco apertados. Observando as paredes que se sucediam atrás das janelas de vidro, Sofia deu-se conta de que sua estação havia chegado. Esgueirou-se entre os demais passageiros, forçando passagem contra o labirinto humano que a separava da porta do vagão. Finda a jornada até a plataforma, Sofia ajeitou a saia e a blusa, e seguiu rumo à rua principal.

Mula. Essa era a forma pela qual Paulo agora a chamava. Ele tinha alguma razão, Sofia pensava. Não estava conseguindo se concentrar no trabalho ou nas leituras, antes frequentes em sua rotina. Talvez sempre tivesse sofrido de dificuldades de aprendizado, e faltasse al-guém com coragem para lhe dizer isso. Talvez devesse ser grata por Paulo continuar em sua vida. Ou será que deveria afastá-lo?

Sofia avistou o prédio em que trabalhava. Respirou fundo, passou a mão pelos cabelos, limpou o vestígio das lágrimas em sua face. Conferiu sua aparência em um espelho portátil. Externamente, não era possível identificar o sofrimento que a consumia. Que bom, a dor é incômoda aos outros, repetiu a si mesma. Engoliu em seco, e seguiu em direção ao trabalho, com um sorriso forçado estampado no rosto.

A história de Sofia é real. Todos os pensamentos descritos nesta narrativa foram re-latados por ela. A autoavaliação de Sofia – moldada pelas críticas de Paulo – não condiz com o que ela é aos olhos dos que a conhecem. Sofia é uma das mulheres mais incríveis com as quais já convivi. Espero ajudá-la a nunca esquecer isso.

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Luto e ReinventoRafaela Miotto de Almeida

Aos homens que nos calamQue nos arrancam o movimento dos braçosQue nos magoam desde a sementeO desapreço contínuo nos seus lábios crispadosO horror do olhar que reflete o algozA força que me jogou ao chãoE ruborizou minha faceCom palavras, com gestos, com desdémDesde o alto se proclama superiorImprime em meu corpo seu rastro de morte e secaTurbou minha terra, minhas celebraçõesDestilou suas mentiras para mim e para elasE se roga meu defensorDesde o primeiro até o últimoA você, que fez o mesmo que seu paiMinha voz ainda existeMeus cantos ainda ecoamMeu corpo se move, se revolta e mostra vidaMinha memória vence as doresMinha verdade desmente seus engodosMeu futuro vislumbra novas bodasMinha armadura reluz límpidaSou minha defesaO cansaço assolaMas sou feita de lutaE ela persiste.

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NósClarice Lippmann

Dedicando-me à escrita na coluna que publico em uma revista on-line, tive a oportunidade de escrever sobre Lou Andréas-Salomé, por ter assistido sua cinebiografia lançada no começo de 2018 nos cinemas brasileiros. Ao me aprofundar um pouco mais em sua história, percebi o quanto foi injustiçada em seu legado, sempre vinculada aos nomes de homens que passaram por sua vida. Ressalto: a maioria tão genial quanto ela, afinal, Lou sempre circulou por um meio acadêmico efervescente. De imediato, penso em Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Sigmund Freud e Rainer Maria Rilke, todos importantes figuras em sua jornada, tanto profissional quanto pessoal.

Todavia, Lou não teve o mesmo destaque que nenhum desses homens. Fosse na filosofia, literatura, poesia ou psicanálise, não adquiriu o mesmo nível de fama, de publicações em línguas estrangeiras, ou tiragens de livros vendidos. Viveu, por assim dizer, à sombra dos homens, mesmo sendo uma mulher de inteligência e produção ímpares para tantas áreas do conhecimento.

Refletindo sobre essa sensação de injustiça e disparidade entre o reconhecimento dado a homens e a mulheres, me recordei de uma palavra alemã: “Trittbrettunsterblichkeit”. A tradução mais próxima seria algo como “uma imortalidade alcançada por estar à sombra de alguém” . Uma vinculação direta de sucesso a outra pessoa, algo que, muito comumente, acontece conosco, mulheres. Relacionado, é claro, aos homens que nos cercam. Aos homens que nos aprovam, e ao pensamento da sociedade de que o valor de uma mulher está atrelado à aceitação que ela tem pelo olhar masculino.

Pensei em todas as pequenas conexões obrigatórias que me foram feitas ao longo da vida por todos os homens que participaram dela. Parentes, amigos, companheiros. Todos, de alguma forma, foram citados como meio de aprovação pessoal. Alguns em pequena escala, em comentários inocentes, mas que poderiam carregar um teor de machismo introjetado e não premeditado. Outros, literalmente ligados à ideia do olhar masculino positivo, para me trazer alguma forma de mérito.

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Posso citar a primeira vez que me questionei sobre a importância de identificação de gênero, sem nem ter ideia do que seria isso. Eu deveria ter entre seis ou sete anos, e estava brincando no recreio com meus amigos. Tinha facilidade em criar amizades masculinas, muito provavelmente por reproduzir a ideia machista de que a companhia masculina era em si “melhor”. Os meninos eram mais livres, podiam sentar do jeito que queriam, andar do jeito que queriam, se sujar, se machucar, isso era esperado deles. De nós, mulheres, desde muito pequenas eram exigidos elegância, decoro, palavras que sequer deveriam fazer parte do imaginário e vocabulário infantil.

Nesse momento supracitado, estávamos brincando de pega-pega, e em algum momento uma coleguinha comentou algo como “a Clarice parece um menino, é uma peste igual a vocês”. Um amigo meu na época se virou para mim e logo respondeu, em um tom que, para ele, deveria soar como um elogio: “Mas ela parece mesmo. Se ela pudesse, teria nascido menino, não é?” e me fitou sem sombra de dúvida nos olhos. Eu me lembro de me sentir triste, de certa forma diminuída, sem nem entender por quê.

Por mais banal e até piegas que pareça, esse comentário repercutiu em mim, tanto que me recordo disso até hoje. Naqueles tempos, não entendia que o que tinha me doído era a mensagem por trás: “Clarice, você poderia ser mais. Você poderia não ser mulher, poderia ser homem”. Foi o primeiro baque de compreender que nós, mulheres, não somos tão relevantes assim na sociedade. Somos um gênero subalterno.

Pequenos apontamentos similares me traziam uma frustração parecida: nas escolas em que estudei, quando me saía bem em alguma matéria, não raro ouvia “não à toa você é irmã do seu irmão”, “não podia ser diferente, seu irmão é tão inteligente”. Como se meu mérito de alguma forma tivesse algum ligame direto às conquistas do meu irmão, e não fossem merecimentos relativos às capacidades de cada um. Por isso, muitas vezes eu preferia não contar aos professores sobre essa conexão familiar.

Também não foi incomum escutar comentários do tipo nas relações amorosas que tive. Tanto me conectando à aprovação masculina do meu companheiro, como provando de algum modo que eu era uma mulher admirável ou competente por justamente ter um companheiro. Isso porque não estar solteira pressupõe que um homem me aprovou como digna da companhia dele em um relacionamento estável, e isso diria muito sobre mim, e não sobre algo que foi escolha dele: querer estar ao meu lado.

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Para muitos, essa estabilidade amorosa seria por si só um mérito, pois me diferenciaria das outras que não estão em uma relação estável monogâmica. Eu fui escolhida, elas não. Fui agraciada com a chance de ter um homem comigo, que se comprometeu a estar apenas comigo, sem dividir sua companhia com ninguém. “Você é muito inteligente, não à toa tem namorado”. “Você é tão bonita, é lógico que não estaria solteira”. “Você é muito interessante, não poderia mesmo estar sem um homem”. Ouvi alguns desses comentários sobre mim, todos proferidos em tom de lisonja, e me soaram mais próximos da objetificação do que do elogio. Como se minhas virtudes e qualidades tivessem que necessariamente atrelar uma companhia masculina.

Afinal, se eu sou tudo isso acima, que homem não iria querer me ter como sua posse? Eu deveria me sentir grata por isso, diferenciada. Como é maravilhoso ter a aprovação, o desejo, a admiração do olhar masculino, não? Nem todas as mulheres podem tê-lo! Que privilégio!

O mesmo ocorreu – e tende a ocorrer – enquanto jovem mulher solteira. “Como alguém como você está desacompanhada?” “Não é possível que você esteja solteira” e frases do gênero já foram dirigidas para mim no mesmo tom e contexto que as anteriores. Todas foram recebidas com o mesmo desconforto.

Para quem as diz, imagino, é como se a conta não fechasse: se um sujeito hipotético do sexo masculino aprova minhas qualidades, como não haveria alguém do mesmo gênero em minha vida que também não aprovasse, e quisesse cumprir esse papel de me ter como posse? Soa como se eu, jovem mulher, não pudesse ter a liberdade de escolher não estar em um relacionamento; como se devesse existir uma disputa ou competição pelo “título” de homem a ser meu companheiro entre os indivíduos do sexo masculino. Eu seria um troféu a ser conquistado, um objeto cobiçável cuja posse ninguém, surpreendentemente, teria clamado. E então eu pergunto: onde está a lisonja, o elogio ou o reconhecimento nisso?

Não, em resposta muito atrasada ao meu amigo de infância, eu não queria ter nascido menino. Eu não tenho nenhum desafeto com meu irmão, apenas sei que meus talentos não dependem dos dele. Eu não me sentia incomodada dentro das relações que tive, pois o ponto fundamental de todos esses laços foi que eu escolhi me atrelar.

Sim, eu quero estar solteira. Sim, eu tenho minhas qualidades, e todas elas só dizem respeito a mim. Posso afirmar sem hesitar que, sim, eu quero ser como todas as outras mulheres. E quero que todas, não só eu, possam ser como somos. Com nossos méritos e deméritos não vinculados ao sexo masculino. Sem a insistência incômoda de nos colocar na sombra de um homem para nos trazer reconhecimento. Sem a injustiça de ser posta, necessariamente, ainda mais à sombra, quando procuramos o reconhecimento de nossos méritos em instâncias nas quais há também participação masculina. “Ela é tão boa quanto um homem” é, infelizmente, um comentário que passa na cabeça de um menino de sete anos, mas é reproduzido por homens de todas as idades.

Contra essa ainda infelizmente corrente de machismo, que possamos ter a liberdade de querer ser como nós escolhemos. Sigamos desfazendo os – outros – nós que tentam nos amarrar e conectar nossos méritos a figuras masculinas, nos prendendo a essas ofensas disfarçadas de lisonjas.

Sejamos reconhecidas e reconheçamos umas as outras, em suma, apenas por sermos nós mesmas. Nós merecemos isso.

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Desvendando as faces ocultas do patriarcado: como as mulheres são agredidas cotidiana e sutilmente na advocaciaMichelle Mendes

Nós, mulheres, sofremos opressões em todas as esferas e fases de nossas vidas. Com muita sorte, somos criadas de uma forma extremamente rigorosa – como eu fui – e temos nossa jovem personalidade desenvolvida dentro de limites que estabelecem e definem como vamos nos comportar desde crianças até adultas. Ouso dizer sorte, pois talvez isso tenha me preservado de algumas agressões que vi colegas minhas sofrerem. Mas que fique claro que em nenhum momento e sob qualquer hipótese viso a atribuir a culpa de qualquer violência à mulher. Esse é um processo que a sociedade inteira já faz por nós, e nós mesmas não podemos incorrer nesse tipo de comportamento.

Isto posto, esclareço que o machismo dentro da advocacia nunca foi uma surpresa para mim, e imagino que não seja para nenhuma de nós. Afinal, na condição de mulher, durante anos eu já estava inserida na sociedade patriarcal antes de vir a ser uma advogada. Como uma jovem advogada, ainda que quase recém-formada, já posso dizer que vi e vivi diversas agressões, algumas escancaradas e algumas outras nem tanto, de qualquer forma não sa-beria colocar aqui o que é pior, se é ter plena consciência das diversas violências vividas, ou não.

No entanto, durante a minha trajetória, por mais que eu tenha sempre me portado de forma excessivamente séria e, até diria, adotado uma certa postura “masculina”, isso nunca tirou de mim e não tira de nós a condição de ser mulher, ou o “outro sexo”, como bem diz Simone. Dessa forma, as violências, em suas diversas e mais profundas formas, fazem parte de nosso cotidiano. Aliás, essa talvez seja a primeira forma de violência da nossa profissão, a qual é de tal modo cruel que nos faz ajustar traços de nossa personalidade de forma que nos encaixemos nos moldes aceitos pela advocacia. Penso não ser coincidência jamais ter visto mulheres fora de um determinado padrão de conduta e beleza atuando em grandes escritóri-os. De alguma forma parece que para sobrevivermos temos que praticamente “ser homens”, mas sempre lembrando que não importa o que façamos, jamais seremos iguais a eles.

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Uma das primeiras vezes que percebi isso foi durante as primeiras entrevistas em escritórios de advocacia criminal. Já sabendo como é esse tipo de ambiente, a minha maior preocu-pação era demonstrar uma imagem séria, rígida e, como men-cionei, de certa forma “masculina” mesmo, para que não duvi-dassem de minha capacidade. Não obstante, em mais de uma entrevista me perguntaram se eu, “por ser mulher”, estaria dis-posta a lidar com o processo criminal e suas exigências, como ir a delegacias, lidar com clientes exigentes e nervosos etc. A primeira vez que escutei essa pergunta, fiquei desconcertada e achei que fosse algum tipo de brincadeira. Entretanto, percebi que essa mesma pergunta se repetia exatamente da mesma forma em outras entrevistas, sempre se iniciando com a frase: “Você, sendo mulher...”. Não é preciso dizer que não acredito que a mesma pergunta seja direcionada a homens e, não por um acaso, a única vez que não fui questionada nesse sentido, foi ao ser entrevistada por uma mulher. Não entendo por que esses advogados, ilustres doutores e pós-doutores, nos perguntam se estamos dispostas a exercer um trabalho para o qual estudamos exatamente para desempenhar.

Ainda no universo das entrevistas, muitas advogadas presenciam a preocupação que os advogados contratantes têm em saber sobre questões pessoais. Compartilho da experiência, que muitas colegas já vivenciaram, de ser interrogada sobre minha vida afetiva durante uma entrevista de emprego. Por algum motivo, advogados tendem a se preocupar se desejamos nos casar e ser mães em breve, algo que certamente – em seu imaginário – afetaria nossa capacidade profissional de forma que não afetaria a de um homem. Da mesma forma, enquanto o advogado recém-casado ou novo na paternidade é mais cotado para receber uma promoção por ter se tornado “provedor”, à advogada é recomendado que se afaste da profissão para dedicar mais tempo à família.

Um dos maiores problemas e frustrações dessas séries de violências escondidas ou disfarçadas em comportamentos cotidi-anos é a dificuldade em confrontá-las com comportamentos que também poderiam ser considerados cotidianos. O que percebi até hoje em todos os ambientes em que trabalhei, e vi o mesmo acontecer com colegas de profissão, é o advogado sênior tentar forçar uma relação de amizade e camaradagem desde a entrada da jovem mulher advogada ou estagiária no escritório, seja fa-lando sobre sua vida pessoal, seja adotando uma postura força-damente coloquial. Dessa forma, suas violências são emitidas em um ambiente que é mais confortante para ele, e quando nós nos impomos ou contestamos, somos taxadas de “demasiada-mente sensíveis”, “exageradas” ou ainda “loucas”.

A violência contra a palavra da mulher também é extrema-mente comum em escritórios. Homens advogados acham que nós não percebemos que temos nossas falas frequentemente

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cortadas por eles. Nossa opinião é pouco, se levada em consideração em discussões em grupo. Quando um advogado ou ainda um cliente pede a nossa opinião, ainda mais comum é escutar que precisam de um julgamento “sensível”, “feminino” e/ou “materno” do problema em questão – ape-sar de nunca ter entendido o que isso significa. Não obstante, manter uma posição política que tradicionalmente faz parte de uma minoria pode ser ainda mais desafiador no ambiente da advo-cacia. Muitas vezes que defendi uma opinião so-bre algum assunto político em discussão no mo-mento, fui diminuída e vi meus argumentos serem atribuídos ao simples fato de ser mulher. Esse tipo de resposta reducionista é uma das ferramentas do patriarcado que por vezes é muito difícil de confrontar. Da mesma forma, quando uma mul-her está explicando um determinado assunto e é interrompida por um colega que visa a explicar exatamente o mesmo ponto que ela já estava fa-lando antes.

Não obstante as adversidades no âmbito prático-jurídico, a ocorrência de violências disfarçadas de situações ou comportamentos “normais” é muito frequente e teve início nos primeiros anos de universidade. Apesar de ter estudado em uma faculdade onde a maior parte do corpo docente é composta por mulheres, e sempre ter tido muitas professoras que foram e são verdadeiras inspirações feministas, a quantidade de professores homens que assumiam uma postura extremamente machista para com as alunas era gritante. Em um determinado momento, um professor – muito conhecido por ter uma postura racista e misógina – concedia a revisão de uma prova e resolveu reclamar que os meus argumentos sobre seus erros na correção eram nada mais que um “chilique”. Além disso, era extremamente comum ver estudantes mulheres serem interrompidas por ele e outros professores durante alguma discussão em aula, visando a finalizar o assunto. Tal situação não se repetia com os alunos do sexo masculino, sendo evidente a irrelevância que tais docentes atribuíam à opinião e contribuição das mulheres, forçadamente caladas durante o debate.

Não suficientes as violências diretamente contra o corpo, a personalidade, o espaço privado e a fala da mulher, também temos nossa

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competência constantemente questionada. Com o tempo pude perceber que, na nossa profissão, a mulher advogada ou professora de Direito, quando seu companheiro ou marido também é da área, é sempre conhecida como “a esposa de”, “a companheira de”. Sendo mulher, nossa capacidade é reduzida à capacidade de nosso companheiro, ou ainda, a nossa capacidade é de alguma forma construída graças à capacidade de nosso companheiro. Somos conhecidas ou ainda acreditadas porque somos esposas e companheiras de grandes professores e advogados. Para nos apresentar é dada a ficha completa de nossos maridos, com direito a livros publicados, escritórios trabalhados e congressos participados. E, somente assim, somos reconhecidas.

Honestamente, eu não saberia dizer o que passa na cabeça de um homem. Ser criado e crescer em um mundo onde ele pode fazer e falar qualquer coisa, principalmente com mulheres, e especialmente se este homem é branco, heterossexual, e pertence a uma classe economicamente favorecida. Realmente, deve ser muito bom ser um homem nessas circunstâncias. Estou falando de possuir um poder que eu jamais saberia descrever. Não imagino como seja não precisar pensar antes de falar e de fazer. Não precisar antecipar todas as formas de como poderei ser interpretada, e se serei mal compreendida ou, ainda, malvista. Não precisar pensar todos os dias como me vestir adequadamente, e como expressar qualquer atitude. Tudo para que, no futuro, eu não seja culpada por algo que vão fazer contra mim.

Em todo caso, a violência contra a mulher advogada nem sempre é evidente, pode ser sutil, estar disfarçada em práticas consideradas “normais”, como a interrupção em discussões, as perguntas pessoais em entrevistas, ou a atribuição de nossa competência à carreira de nossos companheiros, e por aí vai. Entretanto, para nós, mulheres conscientes, essas violências funcionam como pequenas e finas agulhas que nos perfuram pouco a pouco, dia a dia. E, ter plena sabedoria sobre a existência e a frequência dessas violências me faz enxergá-las como verdadeiras e eficazes ferramentas de opressão, as quais precisamos discutir e abordar com nossas colegas para, juntas, lutarmos constantemente contra.

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Precisamos conversar com eleNatália Baldessar

Um fantasma nos ronda. Ele nos assombra e nos persegue por todos os cantos. Não descansa. Não nos esquece.

É verdade. Durante muito tempo achamos que era só invenção da nossa cabeça; nos acusaram de disseminar “manias de perseguição”. Aliás isso também é obra do fantasma. Para ele, quanto mais tempo as pessoas nos desacreditarem mais poderá continuar a sua tarefa.

O fantasma, coitado, não tem vida e por isso quer que a gente também não tenha uma. Ele se ocupa de controlar todos os aspectos da nossa vida. Afinal, ele não tem mais o que fazer mesmo.

O “sem corpo” começa a agir desde que nós somos crianças. Sem coração. E continua até a nossa morte. É um tipinho que não respeita nem as crianças, nem as idosas.

É ele que vai ditar o que podemos vestir. Quase nada. O que podemos falar. Quase nada. O que podemos fazer. Quase nada. Por onde podemos andar. Com quem podemos conversar. Que profissão vamos ter. E o que vamos poder fazer na profissão que escolhermos.

Mas isso não basta. Ele também tem a função, a mais fantástica delas, de apagar os rastros das suas “pequenas traquinagens”. Ele vai fazer desaparecer os rastros de todos os incômodos que causar na sua vida.

No princípio, vai sentir algo se revolvendo dentro de você. É algo como um sugador gelado que surge de dentro da sua barriga e lhe dá aquela sensação de ser vazia por dentro, de que as suas entranhas foram parar no chão. Seu rosto vai perder a expressão. É algo au-tomático. Sua face pode perder a cor.

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No princípio é assim. Você pode querer comentar, reclamar sobre o acontecido, mas como o fantasma tem muitos e muitos anos de experiência, ele já terá exercido a outra etapa da sua função. Ele já terá apagado os rastros do seu “destrabalho”. Você vai sentir isso também. Depois do vazio, ainda vem esse outro sentimento. A sensação paralisante de embrulho de tudo o que tem por dentro, de impotência misturada com revolta.

Depois de um tempo você para de sentir.Você se desliga dessas sensações e começa a esquecer. Não se sinta culpada. É uma estratégia de sobrevivência. São sentimentos muito fortes.

Muito paralisantes, e claro, você precisa seguir.Nós seguimos. Durante muito tempo, nós seguimos. Não adiantou. Não chegamos

muito longe.Nós. Nem eu nem você. Caso você ainda não tenha percebido. Sim. Esse fantasma só gosta de mulheres. Meninas

também. Triste, né? Eu também acho.Nós queríamos mais, mas, simplesmente, não deu. Não aconteceu. Outras coisas en-

traram no caminho. Não deu.É assim. Enquanto esse fantasma estiver rondando o seu caminhar será mais lento.

Você terá apenas uma subvida.Sim. Essa vida que você vive, que você compartilha com as suas pessoas queridas, que

você posta no Instagram e no Facebook, que acha maravilhosa, a que agradece ao seu Deus todos os dias. Então. É uma subvida.

Você também pode não acreditar nisso. Tudo bem. Mas, pensa. Para começar do básico. Você sabe o que é se vestir sem ter que pensar no que as pessoas vão dizer, nos caminhos que você vai fazer? Quantas vezes disse para si mesma que não poderia fazer determinada coisa ou ir a determinado lugar sozinha porque é mulher?

Enquanto esse fantasma rondar, não tem jeito, você perde. Você, mulher, perde. Perde muito.

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Não apenas perde o que tem. Aquilo que conquistou com esforço e dedicação especial. Mas também tem o “perder” de outros tipos. O perder verbo que se conjuga em vários tempos e modos. Tem o perder de quem conseguiu, alcançou, mas não adianta, não vai poder usar. Da lentidão extremada em tudo o que pretende realizar. E também o perder do tipo que você deixa de ganhar. Das oportunidades perdidas. Do crescimento perdido.

Tem outra forma, também, talvez menos cruel de enxergar a subvida. Pensar na vida plena que podemos ter amanhã. Pense nessa vida. Pense em todos os detalhes dessa vida. Pense em como seria você. Como seriam seus amigos, seus amores, seus colegas de trabalho.

Quando estiver com essa pintura pronta na sua mente. Pense no hoje.

Viu?Então pense. Por que não chamamos esse

fantasma para conversar? Qual o problema? Você tem medo? O que mais ele pode fazer para você?

Eu sei que pode pensar que não adianta conver-sar com um tipo desses, um detentor de uma subvida, um destituído de qualquer humanidade. Sei que a sim-ples ideia de perder tempo com uma conversa dessas já pode parecer ultrajante. Depois de tudo que temos que passar, ainda temos que conversar com ele?

Mas então. Temos. Se não for a gente, quem será?

Algumas pessoas que se cansaram da subvida já tentaram chamar a atenção, alertar as mulheres e a todos sobre esse fantasma. Foram desacreditadas. Chamadas de vários nomes. Lunáticas. Radicais. Extremistas. Feminazi!

O fantasma é assim. Só quem sente seus efeitos, sabe que ele existe.

Então, precisamos mudar o método. Resolvemos que vamos conversar com ele.

Só tem uma coisa. Dizem que para conversar com os fantasmas a gente precisa chamar o ser sem corpo pelo nome. Sim. Isso aparece o tempo todo na televisão. Você precisa chamar o fantasma pelo nome.

Isso atrapalha um pouco as coisas porque o fan-tasma não quer ser visto, muito menos quer que saib-am o seu nome. É uma das tarefas dele “apagar os seus rastros”, lembra? E que forma melhor de apagar esses rastros do que fingir que eles aconteceram “por obra da natureza”? É comum ele desaparecer quando a gente o chama pelo nome.

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Vamos chamá-lo pelo nome, mesmo assim. O nome dele você sabe qual é, né? Ele se cha-

ma machismo. Assim mesmo, minúsculo. É porque é a natureza diminuta dele.

Vamos chamá-lo e fazê-lo ouvir o que temos a dizer. Tarefa difícil, sim. Mas não impossível.

Vamos dizer.Vamos falar. Vamos falar para ele. Vamos falar que o vimos fazendo coisas erradas

com a nossa vida. Vamos falar que sabemos o nome dele e que vamos chamá-lo toda vez que o virmos fazendo essas coisas com as nossas vidas.

E quando isso acontecer, vamos falar.Vamos falar que temos direito. Vamos falar

que temos direitos. Vamos falar que somos. Vamos falar que sen-

timos. Vamos falar que não vamos fingir que não aconteceu nada. Vamos falar.

Vamos falar que vamos fazer aquilo que temos vontade. Aquilo que acorda nossa alma. Aquilo que nos realiza. Tudo o que nos traz prazer de viver.

Vamos falar que vamos trabalhar. Vamos ao trabalho.

Vamos falar que nosso trabalho não é lazer. Trabalhamos porque queremos. Temos obrigações. Somos competentes.

Vamos falar que merecemos e queremos.Vamos falar que queremos agora. Vamos falar

que precisamos agora. Vamos falar mesmo que os homens falem por

cima. Não vamos calar. A fala é nossa.Vamos expressar nossas ideias e vamos “lem-

brar” ao nosso colega que a ideia não foi dele, ela é nossa. Sim, mulheres têm muitas boas ideias.

Também vamos falar de nossas ideias sem pe-dir gabarito. Vamos saber que estamos certas.

Vamos viver os direitos que são nossos. Va-mos vivê-los sem pedir licença, sem perguntar se podemos. Eles são nossos.

Vamos parar de aceitar os inaceitáveis.Nem toda violência é igual. Nem toda violên-

cia é episódica. Nem toda violência é evidente. Nem toda violência é singular.

A violência igual, repetida, diminuidora, limita-dora, segregadora, secular, sub-reptícia, dirigida às mulheres, é um fantasma e se chama machismo.

E você? Já viu esse fantasma?Vamos chamá-lo para conversar?

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CotidianoFabíola de Oliveira da Cunha

Quando não sei o que fazer, paro tudo e tomo um café. Talvez, essa seja a melhor solução, para alguns, já que nem todos gostam de café. Um café pode aliviar e organizar ideias, o que nem sempre é algo tão simples. Eu vou não ser pessimista neste texto, mas me acompanhe nessa reflexão que alguns litros de café me trouxeram.

O que trago a seguir é dedicado a Myrthes Campos, Carolina Maria de Jesus e Marielle Franco. Myrthes foi a primeira mulher advogada no Brasil e se ela não tivesse dado esse pon-tapé, talvez muitas de nós nem estivéssemos exercendo a advocacia, enquanto Carolina Maria é considerada uma das mais importantes escritoras negras do Brasil. Favelada, catadora de papel e que sempre escreveu o que via a seu redor. E Marielle Franco foi uma das vereadoras mais bem votadas do Rio de Janeiro, negra, de origem econômica desfavorecida, mãe, em união estável lésbica, executada por ser defensora dos direitos humanos. Essas três mulheres brasileiras, de realidades completamente opostas, resumem bem a reflexão a seguir.

Você já parou para pensar como é cursar uma universidade no Brasil? Mais especifica-mente, já pensou naqueles perrengues típicos de um estudante, como gastar dinheiro em xérox ou lanche? Alguns, depois de formados, podem rir dessas situações. Mas pense que rir de perrengues é mais difícil para uns do que para outros, principalmente para mulheres periféricas.

A dificuldade começa quando a mulher pobre quer entrar no ensino superior. Caso seu ensino médio não tenha sido bom, ela não irá passar em um vestibular concorrido para o curso de Direito, por exemplo, e acaba procurando uma universidade particular, não muito cara, com um bom desconto. Assim, dá para estudar e trabalhar. Ela não pode ficar desempregada, pois terá de trancar a faculdade por falta de dinheiro.

Mas, suponhamos que tudo dê certo em relação a seu estudo universitário e essa mulher periférica, que mora em uma zona de conflito territorial, qualquer que seja ele, já começa desfavorecida. Sua volta para casa é um filme de drama com pitadas de terror. Se ela tiver carro ou moto, já tem uma ‘’sensação de segurança’’. Mas a maioria das universitárias usa transporte público.

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Temos então o terror. O terror de ser assaltada enquanto está apenas exercendo o seu direito de ir e vir, seja o medo de saltar do transporte público à noite e caminhar em uma rua mal iluminada até sua casa, ou mesmo de ter alguma parte do seu corpo apalpada por qualquer um. Os constrangimentos sexuais por que toda, repito, TODA mulher, cis e trans, passa única e exclusivamente por ser mulher. E o maior medo de todos, o de ter sua dignidade sexual violada enquanto seu corpo transita pelas ruas.

Fora isso, tem a fome em dias de pouca grana para comprar aquela coxinha salvadora, já que o livro que o professor pediu custa duzentos reais, tem a falta de saúde mental vinda do uso diário dos transportes lotados, tem o medo que colocam em cima da prova da Ordem.

Finalmente ela cola grau, acha que sua vida vai melhorar. É hora de viver o sonho.O terninho elegante e parcelado no cartão já foi pago. Sua estante está mais arrumada

do que nunca. Seus cartões de visita já estão prontos. Seu currículo, sendo distribuído. Mas, enquanto esse emprego não vem, ela arruma um fora da sua área, algo que não irá satisfazê-la.

Na profissão de advogada seus primeiros clientes são parentes. Uma ação contra uma prestadora de internet aqui, uma de alimentos ali e assim vai. Passam-se meses e nada de um emprego fixo e seus rendimentos como autônoma não pagam nem as necessidades básicas.

Quer muito fazer um mestrado, mas perdeu o edital. Agora só no próximo ano, claro que em universidade pública, já que não pode pagar por uma particular. Tentou fazer uma pós-graduação, mas cadê o dinheiro?

No caminho para o Fórum, vê que a população de rua aumenta a cada dia. Percebe que pessoas e animais dividem o mesmo espaço de refeição, a lixeira.

Quer ajudar, compra uma quentinha para um e um pouco de ração para outro. Mas não vê uma mudança real. E percebe, triste, que se comprar quentinha e ração todo dia para aju-dar, ela que ficará sem ter como comer.

Para se distrair ela lê o Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, e percebe que o sistema econômico opressor é o mesmo dos anos 50.

Fazendo uma retrospectiva, nota que na sala de aula havia mais mulheres do que ho-mens, mas no mundo corporativo é o contrário. Ela se lembra de Myrthes Campos, primei-ra advogada brasileira que concluiu o curso de Direito em 1898, mas, devido à sociedade

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machista da época, só conseguiu ingressar no quadro de sócios efetivos do Instituto dos Ad-vogados do Brasil em 1906, ingresso necessário para exercer a advocacia.

Os dias correm, e uma ativista política e vereadora eleita de forma democrática chama-da Marielle Franco é assassinada, executada a tiros. Ela se indigna, se expressa nas redes so-ciais, e vê que tem que esperar as investiga-ções. Passados 15 dias, esse crime ainda não foi solucionado. Militantes de direitos humanos estão sendo executados apenas porque querem melhorar a sociedade e o sistema político.

Ela vai percebendo que no seu trabalho – aquele que não é da sua área de formação, mas que paga suas contas e concilia com o horário dedicado às poucas causas jurídicas que pega – ela é a única mulher jovem e periférica que conseguiu terminar um curso superior, que consegue ler e interpretar um texto sem dificuldades. Ela é a única que questiona o capitalismo, enquanto as outras acham o único sistema possível, já que aprenderam na escola que comunismo leva à miséria e não veem o quanto fomentador de miséria é o capitalismo; acreditam em meritocracia e não se questionam sobre o sistema que praticamente obriga o indivíduo a estar endividado, cheio de parcelas que tenta encaixar em seu orçamento mensal.

E com isso essa mulher vai deixando que sua esperança e sua paz interior entrem na UTI quando vê pessoas em situação de miséria, e vê corpos estirados no chão. Quando vê homens ejaculando em mulheres no transporte público e tudo não passa de uma contravenção penal, a importunação ofensiva ao pudor. Quando vê travestis mortas brutalmente por puro preconceito, assim como Dandara dos Santos.

Seus amigos falam que ela tem que relaxar e ter esperança, que vai aparecer algum bom emprego logo, seja um concurso público ou um escritório dos sonhos. Mas nada aparece.

Ela então acha aquela faísca de esperança quando lembra que logo terá eleição presidencial. Mas ao olhar as intenções de voto

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ela estremece. Tenta acreditar que os resultados estão errados.

Até que um dia seu telefone toca para uma entrevista de emprego em um escritório do qual ela quer muito fazer parte. E na última etapa, quando só resta ela e mais uma candidata, ela não passa. Será que é por causa de algum erro de português ou jurídico? Será que é porque ela mora longe do emprego e a passagem é cara? Será que é pelo peso? Afinal, para as mulheres a aparência é um fato muito decisivo. Se não arruma ninguém é por ser gorda, e no verão precisa entrar no projeto “barriga negativa”. Depois desse labirinto de pensamentos ela percebe que a outra candidata tinha o mesmo corpo dela, e que a vaga não era para modelo, e sim advogada. O motivo da eliminação foi outro. Motivo que ela nunca saberá. E o tempo a passar, escancarando realidades violentas na sociedade.

Ela tem como frase motivacional um trecho de um poema de Cecília Meireles que diz: “Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada”.

As pessoas querem que ela seja uma Annalise Keating, de How to Get Away with Murder. E ela ri de nervoso por tentar caber na personagem.

E finalmente arruma um emprego na área e está mais feliz. Só que sua felicidade nunca será plena enquanto não parar de ver corpos amontoados em praças públicas, vivos ou mortos, enquanto a população alienada apoia um sistema econômico falho e opressor.

Essa mulher pode ser você, pode ser uma conhecida ou pode ser eu. Mas isso não importa, o que importa é que devemos sempre questionar nosso papel na sociedade, e lembrar que a luta digna do seu semelhante deve ter a sua empatia e apoio.

Quero que essas palavras sirvam de reflexão e de ação, e que mulheres em posições mais privilegiadas ajudem as que precisam de visibilidade, levando consigo a certeza de que a luta das mulheres muda o mundo. Agora, aconselho que você tome um café e vá agir.

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Pensando na vidaBeatriz Maria Garboggini di Giorgi

Vida para viventes e sobreviventes, não admite opostos nem contrários, é o único es-tado perceptível. Mas vida requer complementos.

Se não me engano, e me engano bastante, Oscar Wilde teria dito que a vida imita a arte. Não entendo muito bem essa frase.

Vida e arte são conceitos de categorias diversas. Sem vida não há chance de arte e sem arte apenas a vida humana fica sem graça, anulada. Mas amo a arte como o ar que respiro e posso tentar viajar pela onda de Wilde.

A vida imita a arte e vai mais fundo. A vida é discípula tão aplicada da arte que supera a mestra.

Outro dia, uma mulher moradora de rua vagava pelo bairro onde moro, catou um gra-veto no meio-fio, observou-o, pôs na boca, lambeu, experimentou e descartou. O intenso poema Bicho, do Bandeira, parece tímido diante da cena. Se uma obra de arte tentasse imi-tar essa cena seria provavelmente considerada exagerada. E as coisas que acontecem e não vemos podem ser mais fortes ainda, imagino.

Só prestar atenção ao redor que é vida na veia, sem rascunho nem enfeite, pois nem vida nem arte são descartáveis.

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Resistência feminista na prática da advocacia:a experiência do Coletivo Feminista Sexualidade e SaúdeLetícia Ueda VellaFernanda Costa Nunes Meneses

O universo jurídico é um espaço tradicionalmente masculino. Essa condição nasce a par-tir da suposta neutralidade do ensino das universidades, que não se atentam para a questão das desigualdades de gênero em seus currículos e em salas de aula , e é mantida na prática da advocacia por instâncias de poderes extremamente conservadoras que, de forma sutil, ou às vezes explícita, colocam o “ser mulher” como uma desvantagem competitiva em ambien-tes de disputa.

Essa realidade afeta diretamente as mulheres advogadas, que encontram diversos obstáculos para a construção de suas carreiras , mas também gera um saber apropriado por e para homens, que faz com que as mulheres, em geral, tenham seu acesso à Justiça dificultado e, muitas vezes, restrito.

O ensino tradicional do Direito geralmente é pautado por estudos abstratos, teóricos e distanciados de problemas sociais concretos. Essa estrutura faz com que, muitas vezes, atendimentos jurídicos sejam conhecidos por serem impessoais e hierarquizados (a pessoa fala o seu problema e o advogado dá a solução). Entretanto, esse modelo se mostra inefi-caz e insensível para lidar com realidades que envolvam afetos, relações de desigualdade e opressões.

Nesse sentido, pensar em práticas de advocacia construída por e para mulheres se torna um desafio. Como a arena jurídica pode ser ocupada por mulheres? Como transformar o Direito em instrumento de efetivação da luta feminista tanto em âmbito individual como estrutural?

Foi pensando nessas perguntas que o projeto de assessoria jurídica do Coletivo Femi-nista Sexualidade e Saúde surgiu. Por meio da realização de atendimentos individuais, bem como pensando uma atuação mais estratégica em temas envolvendo gênero e saúde, bus-camos a construção de um novo olhar para o Direito: um olhar mais empático, sensível e aberto para as questões de gênero.

A proposta é atender mulheres nas mais diversas áreas do Direito, sempre com um olhar humanizado e colocando a mulher como protagonista de sua história. Assim, nosso esforço vai muito no sentido de simplificar a linguagem rebuscada e antiquada comumente associada ao Direito, fazendo com que as mulheres se apropriem das ferramentas jurídicas, usando-as para garantir mudanças positivas e concretas em suas vidas.

Além dos atendimentos individuais, também é pensada uma atuação mais estratégica no campo dos direitos das mulheres. Nesse sentido, buscamos atuar e acompanhar ações jurídicas e projetos de lei que tratam de temas relacionados à saúde, gênero e direito, bem como realizar rodas de conversa e formações com essa temática.

Acreditamos que um atendimento humanizado é aquele que conta com profissionais que exerçam uma escuta atenta e ativa das mulheres atendidas, tendo como principal base a empatia e a autoridade compartilhada, ou seja, as possíveis soluções para o caso devem ser

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construídas conjuntamente. Para tanto, é essencial o cuidado com a linguagem, tornando o conhecimento jurídico mais acessível. Além disso, entendemos que as profissionais devam ter um olhar mais amplo, enxergando a mulher como um todo em suas relações e subjetividades. Aqui, ressaltamos a importância de atuar sempre em rede, ativando os diversos serviços necessários para atender a mulher de forma completa.

Entretanto, a construção de um projeto de resistência que visa à utilização dos instru-mentos jurídicos por e a favor das mulheres expôs de forma evidente alguns desafios enfren-tados cotidianamente.

Para começar, o judiciário, de forma geral, é ainda pouco aberto a questões de gênero. Isso se reflete em processos de revitimização para mulheres que tentam acessá-lo em busca da garantia de direitos. A palavra feminina é constantemente desacreditada e noções conser-vadoras sobre família e o papel da mulher ainda norteiam grande parte das decisões.

Mas não é só nas decisões que encontramos visões machistas e opressoras. As estruturas patriarcais perpassam as instituições do Direito como um todo e as dificuldades de trabalho são encontradas em diferentes espaços: Delegacias, Ministério Público e até mesmo Defensoria Pública. De forma exemplificativa, no início de 2018, o Defensor Geral de Pernambuco disse que “mulher de minissaia está dando oportunidade” para assédio e que a vestimenta de uma mulher é parte de um simbolismo que “diz muito para fins de processo, para fins de condenação ou absolvição no campo criminal” .

Ainda, vivenciamos em nosso dia a dia uma dificuldade de trabalhar em rede e acionar diferentes serviços voltados para a proteção dos direitos das mulheres. O que presenciamos atualmente em São Paulo é um completo desmonte dos equipamentos e serviços voltados para acolhimento de mulheres, com cortes de verbas e fechamentos de unidades. Como exemplo, podemos citar a Casa da Mulher Brasileira, espaço que foi idealizado para atender as mulheres em situação de violência, contando com diversos serviços em um local só. A obra já está concluída desde novembro de 2016, mas encontra-se fechada e abandonada, o que demonstra grande descaso do Poder Público com o tema.

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E, por fim, observamos um descrédito das próprias profissionais mulheres que tentam trazer uma perspectiva de cuidado mais humanizada para a advocacia. Recentemente, veio à mídia um caso que ilustra bem essa questão: uma advogada de Fortaleza, ao assumir uma postura de cobrança e envolvimento com um caso de guarda que culminou com a morte de uma criança, foi taxada de desqualificada, imatura e ingênua por um juiz, em audiência. A fala do magistrado é sintomática: “Uma advogada, minha filha, que se envolve emocional-mente no processo é uma advogada desqualificada. O advogado dá uma assessoria técnica e somente. Você se queimou comigo (...). Como é que a OAB dá um título a uma pessoa que não está qualificada para exercer a profissão? Então era isso que eu queria dizer a você, não ia dizer na frente do povo, mas queria dizer a você. Não continue assim porque você vai preju-dicar a sua profissão. É um conselho que eu dou a você. Eu vou atribuir à sua imaturidade, à sua ingenuidade, à sua pouca vivência da prática...” .

Tanto o fato de ser mulher “autoriza” um questionamento acerca da capacidade da advogada em atuar como a tentativa de tornar o atendimento jurídico humano é questionada, garantindo a manutenção de um sistema distanciado e dominado por homens, sempre caminhando na contramão da construção de um espaço de resistência ao retrocesso e garantia de direitos.

O “ser mulher”, portanto, repercute em diversas facetas de nossa atuação: tanto na consecução dos direitos das mulheres que atendemos quanto nas ações estratégicas que desenhamos, já que enfrentamos instituições jurídicas marcadas por uma ideologia patriarcal e conservadora que geralmente resistem à aceitação de argumentos de gênero e não reconhecem as desigualdades socialmente construídas para a tomada de decisões. Bem como no próprio fato de sermos mulheres atuando como advogadas em um saber tradicionalmente masculino: descrédito, desconfiança e reforço de estereótipos de gênero também marcam o nosso dia a dia.

Portanto, em meio a essa forma de construção e manutenção do saber jurídico, ressignificar as estruturas do Direito pensando em gênero e desigualdades é uma tarefa difícil, mas que deve ser realizada, tendo em vista seu potencial de transformação.

Acreditamos que a resistência feminista na advocacia é um trabalho de força e união em várias frentes. Ela passa pela ressignificação do atendimento e da assessoria jurídica para mulheres como um todo, construindo em nossa prática cotidiana o Direito enquanto um saber voltado para mulheres. Nosso principal trabalho nessa caminhada, portanto, é criar estraté-gias políticas para garantir mudanças institucionais, de modo que o sistema de justiça seja um espaço de verdadeira efetivação de direitos e emancipação de mulheres.

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Um dia comum em uma sessão de Turma RecursalJuliana Mello de Queiroz

A sessão de julgamento daquele 18 de julho de 2017 teria, a princípio, todas as condições para se desenvolver como qualquer outra. A pauta, como de costume, seguia atrasada, a sessão marcada para começar às 10h iniciara por volta das 12h, as indeni-zações por danos morais foram, sem exceção, todas minoradas. Até aí nada de novo, o dia se desenvolvia como qualquer manhã em uma Turma Recursal dos Juizados Cíveis do Rio de Janeiro.

Enquanto aguardava meu julgamento, identi-fiquei que a Turma era composta por três mulheres, as quais pouco se pronunciavam... Em regra, o voto da i. Relatora era confirmado pelas demais integran-tes do colegiado. Entretanto, em certo momento passei a reparar a conduta de um elemento, o qual se sentou ao lado de uma julgadora e começou a opinar pontualmente em algumas sustentações.

Mais um ponto recorrente nas Turmas e na sociedade predominantemente machista: arbitrariedades não previstas no ordenamento jurídico e falas femininas interrompidas por intervenções masculinas.

Ato contínuo, eis que chegou o momento de sustentar e explicar por que a sentença favorável em face de um reconhecido supermercado deveria ser mantida.

A causa tratava-se de uma ação indenizatória em face de um supermercado e de um estacionamen-to consideravelmente conhecidos no Rio de Janeiro. A Autora fora vítima de um assalto dentro do esta-cionamento por volta das 15h da tarde na véspera de um feriado olímpico em 2016. Ao sair do seu veí-culo fora rendida por quatro homens armados, sendo que, mesmo sem oferecer qualquer resistência, um dos agentes, apontando uma arma para sua cabeça, tentou puxá-la para dentro do carro.

Por sorte, a então namorada da Autora, que já estava distante do veículo, ao perceber a cena e a tentativa do assaltante, aproximou-se do automóvel gritando e pedindo por ajuda, fato este que dese-stimulou o agente na tentativa de levar a Autora consigo.

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Aquele senhor que curiosamente não fazia parte da composição da Turma influenciou a todo momento o voto das julgadoras. Durante alguns momentos de sua explanação chegou a dizer que era dever da Autora conhecer que a criminalidade no bairro de Santa Cruz é alta e que, portanto, não haveria responsabilidade do supermercado ou mesmo do estacionamento.

Naquele momento, a única estratégia argumen-tativa possível para mim, enquanto advogada que atu-ava em causa própria, era a tentativa de criar uma empatia no julgamento das três julgadoras que forma-vam a Turma. Foi necessário lembrar para as mulheres que precisavam exarar seus votos que o maior temor de uma mulher ao ser assaltada em um local ermo por quatro homens armados é o medo de ser vítima de um abuso sexual.

Naquele momento foi preciso dizer o óbvio para mulheres que, ainda que inconscientemente, já sa-biam disso: uma mulher lésbica, acompanhada por sua namorada, tentando ser levada para dentro de um carro com quatro homens armados tem a única certeza de que ao entrar naquele veículo seria vítima de algum crime sexual.

Durante aquela sustentação foi preciso pedir para que as três mulheres parassem de ouvir aquele homem que não deveria estar ali enquanto julgador, vez que não estava compondo a Turma, e olhassem a sutileza e, ao mesmo tempo, a obviedade do caso.

No decorrer daquela sustentação, vi que a grande maioria ficara indignada com o voto lido pela Relatora, a qual minorou aquele dano moral para R$ 4.000,00 (quatro mil) reais. Na realidade todos ficaram indigna-dos com os absurdos que se sucederam naquele dia: a primeira reação de indiferença das julgadoras, da misoginia do homem que sequer deveria estar ali e com o voto final prolatado.

Como dizia no início, tudo se desenvolveu como de costume nas salas das Turmas Recursais do Rio de Janeiro...

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Quando a esperança vem de dentroBruna Gonçalves Braga

Há nove meses descobri que seria mãe. Descobri que os medos, mais do que nunca, passariam a habitar minha vida, trazendo à tona as verdadeiras questões que merecem ser debruçadas, dilaceradas, exorcizadas e mais do que tudo, ditas.

Descobri que quem estava a caminho no meu ventre seria um menino. Sempre amei os meninos, me casei com um, vivi minha vida inteira entre dois irmãos e um pai. Todos bem ciumentos, por assim dizer.

Recordo-me de um episódio que marcou minha adolescência por longos anos, quiçá minha vida toda, antes de iniciar um trabalho de autoconhecimento depois de adulta; esse fato foi sim um grande trauma na minha vida. Lembro-me que uma vez, no Colégio católico e conservador no qual estudei, fui chamada de “piranha” pelos amiguinhos de outra turma, mas não fui apenas chamada assim para mim, direcionaram esse tratamento aos meus irmãos. Tudo isso porque eu usava uma calça justa que na época era o que as meninas queriam vestir.

Meus irmãos, cumprindo o papel que lhes cabia, não tardaram em contar para o meu pai sobre isso. Parece bobo, mas esse pequeno comentário sem fundamento, estúpido, agressivo e opressor me podou de tal maneira que hoje, após anos de aprofundamento, consigo ver o quanto me moldou. Desde esse momento, tive medo, medo do que poderiam pensar, de como seria vista, de como deveria me comportar e seguir os padrões que meus agressores achavam ideal.

Chorei, sofri, me senti completamente vulnerável, como naqueles sonhos em que nos encontramos nuas na rua, no trabalho ou na escola e só queremos achar um lugar para nos esconder.

Esse foi apenas um dos grandes desafios que estavam por vir. Com o tempo, fui me acostumando com essa realidade e passando a questionar certas estruturas. Por que minha mãe só direcionava a mim o convite de lavar louça após o jantar? Por que meu pai mandava meus irmãos cuidarem de mim? Eu sou fraca, por acaso? Por que minha roupa diz mais sobre mim do que o comportamento? Aos poucos fui entendendo o cenário e vendo que enquanto a covardia e o silêncio fizessem parte da minha vida, eu continuaria a ser xingada de “piranha”, o agressor sairia feliz e contente, e eu sofrendo meus traumas e me fechando para a vida.

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Observei, tomei coragem e vesti a camisa da guerra. A verdade é que a vida é uma guerra sim, podemos optar por viver de modo pacífico, mas para viver com plenitude é necessário levantar bandeiras e fazer aquilo que sabemos lá dentro que é certo.

Não acho certo meninas serem chamadas de piranha porque usam determinada vestimenta, não acho certo meninas serem convidadas a lavarem a louça enquanto meninos podem ficar à mesa debatendo a vida alheia, ou simplesmente jogando videogame, como os meus irmãos, não acho certo mulheres serem estupradas e culpadas pelo descontrole masculino diante de suas roupas, não acho certo mulheres ganharem menos que homens sendo que ambos possuem o mesmo nível de conhecimento, não acho certo mulheres serem mortas porque são mulheres, não acho certo que mulheres sejam abusadas e agredidas todos os dias pelos próprios maridos, nem que sejam menos representadas no Congresso, nem que sejam objetivadas na rua e nas relações abusivas, nem que recaiam exclusivamente sobre elas as tarefas domésticas, além das tarefas profissionais que foram conquistadas arduamente, nem que sejam chamadas de loucas e tenham seus hormônios como os grandes vilões e causadores de toda essa segregação. NÃO ACHO CERTO.

Não acho certo. Diante de tantos argumentos contra esse meu sentimento de que as coisas estão erradas,

já me responderam, “mas a vida não é justa”, e hoje, sei que a vida se faz justa à medida que fazemos a nossa parte de não nos prostrar ao que parece ser a voz natural das coisas. Nosso maior desafio é lutar, CONTESTAR. Compreender esta lógica o coloca no mundo real, com poderes para, sim, mudar o mundo, mesmo que seja aquele que diz respeito às pessoas que o envolvem, apenas.

Desde que compreendi o poder da minha contestação e da minha voz, nunca mais “piranha” me afetou. Aprofundei-me em mim, me respeitando, compreendendo meus gostos, minhas vontades, minhas expressões sinceras de mim mesma e resolvi quebrar paradigmas.

Recentemente ouvi de um superior do local onde trabalhava que ele não gostava de trabalhar com mulheres porque elas menstruavam e tinham filhos e por isso davam prejuízo à empresa. Na hora, fiquei estarrecida. Pensei: acho que não ouvi certo. Vou confirmar se é isso mesmo. E era. Tive que elevar o tom, afinal aquilo estava me ofendendo, além de demostrar tamanha ignorância. Peguei minha bandeira e logo a firmei naquele ambiente. Para total surpresa não tive adeptas, fui na verdade taxada de feminista e revoltada sem causa. Ignorei, ali fixei minha bandeira.

Esse mesmo superior, anos mais tarde, veio a ser meu chefe direto, e nunca entendi o porquê de ele se preocupar tanto com as minhas redes sociais mesmo não fazendo parte delas. Nunca entendi o porquê de ele não entender como meu marido não tinha ciúmes e me deixava sair de vestido curto na rua. Nunca entendi por que se preocupava tanto com a minha vida noturna. Nunca entendi muita coisa nessa relação que a vida colocou como desafio para mim.

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Após cinco anos ali dedicados, fui mandada embora, com vários argumentos que, concordo, realmente vinham acontecendo, como comodismo, desinteresse em fazer os arquivos dele, ou as ordens de pagamento dos serviços que ele pedia ao escritório, ou ainda minha abstenção em não ficar após tantos anos tentando mostrar serviço a alguém que não admirava e que nada podia absorver, simplesmente porque ele não sabia compartilhar. Fui mandada embora sem nenhum feedback em dois anos de trabalho com ele, após passar por todos os demais gestores sendo elogiada, após passar na OAB no oitavo período da faculdade, fato que ele nunca conseguiu ao longo de sua carreira jurídica e fui obrigada a ouvir que minha exposição nas redes sociais me prejudicou. Biquíni demais.

Lembrei do “piranha” da época do colégio. Meu Deus, velhos traumas à tona. Eis que, descubro que estou grávida. Uma semana

depois, reintegrada. GRÁ-VI-DA. De um menino. Entendi o desafio. Além de ter de voltar a conviver com esse chefe do qual teria vergonha

se fosse meu filho, irmão, marido, ou qualquer coisa do tipo, eu entendi o desafio que realmente importa e que merece atenção: criar um filho homem. Já consigo sentir que o amor é muito forte, que a vontade de doar tudo para o pequeno ser que cresce em mim é gritante, desde o momento da descoberta desta chegada inesperada. Mas eu tenho responsabilidades comigo mesma para com esse presente que a vida me deu.

Criar um homem. Mas um homem de verdade, daqueles que não me envergonhariam com ideias ignorantes e abusivas, um homem que saiba seu lugar no mundo e tenha respeito pelo outro, seja do mesmo sexo ou não, que não finja que não vê quando o amiguinho tentar beijar a amiguinha à força, ou que lhe defira comentários depreciativos e ele saiba se posicionar e não tenha medo de levantar a bandeira do justo, por mais minoria que seja.

Como me falaram várias vezes, “a vida não é justa”, e eu peço licença e discordo, a vida pode não ser justa, mas quem a torna justa somos nós, nos desafios diários. Eu escolho lutar por uma vida justa, e não me calar mais, nunca mais.

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Políticas feministas inclusivas: pelo fim da desqualifica-ção profissional e surgimento de condições igualitárias de trabalhoJuliana Lopes Ferreira

O gênero é diferenciado em tempos e lugares em uma relação atravessada pelo poder. A percepção que temos de nós vem de um marco socioeconômico normativo e cultural. O modelo atual já não nos serve mais e para construirmos uma sociedade em condições iguali-tárias é necessário abandonar os pensamentos pensados para criar uma realidade diferente, ou seja, pensamentos novos para novas ações.

Pensar pensamentos pensados nos trouxe a naturalização de alguns hábitos compor-tamentais adquiridos ao longo dos séculos que só agora, na história da evolução da humani-dade, começam a ser fortemente questionados. Apenas ontem conquistamos o direito ao voto e a liberdade para vestir o que quisermos.

Apesar disso, situações de nosso dia a dia revelam que a estrutura de agir e pensar pa-triarcal tenta se reinventar através de atitudes supostamente afáveis ou reveladoras de uma pretensa sensibilidade por demonstrar um “olhar para o outro”. Assim, a ideia da inclusão é subvertida para manter a antiga estrutura dominante de outra forma e faz surgir uma nova ordem que de nova só tem o nome.

Dias atrás, assistia uma palestra quando ouvi a história de um caso interessante. Car-la, profissional bem-sucedida, encontrava algumas dificuldades durante a reunião de jovens gestores na qual era a única mulher presente. A empresa passava por uma reestruturação significativa e era preciso implementar ações práticas até então desenvolvidas no campo das ideias.

Acostumada a ser interrompida ou pouco ouvida na mesa de discussões ao longo do processo de tomada de decisão, Carla conseguiu finalmente expor o plano de ação que pas-sara desenvolvendo intensamente nos últimos dias.

Enquanto os demais acompanhavam o desfecho de sua fala, o chefe chegava à con-clusão de que ela alcançara a solução do problema. Dirigindo-se para a funcionária, ele diz satisfeito: “Carla, você é uma flor entre os espinhos”.

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Antes que ela pudesse falar, a reunião foi encerrada e todos foram dispensados, seguin-do para suas salas. Sozinha, na sala junto ao seu chefe, indagou: “Falaria assim com um fun-cionário homem?” Ele, pasmado com a colocação, tentou explicar que o intento foi elogiá-la por ter se destacado com brilhantismo.

O que se vê por trás disso é uma fala que desqualifica o empenho da profissional no exercício de suas funções. Um “ato falho”, como justificado por ele. Ato cheio de significados e conceitos equivocados decorrentes de comportamentos arraigados há séculos.

Essa, entre outras situações vivenciadas no mundo profissional, revela a ofensa mas-carada de elogio como uma forma de violência camuflada. Às mulheres, a associação entre estética e delicadeza. Aos homens, o costume de considerá-los fortes e inteligentes.

O viés de gênero permeia as regras sociais e determina o acesso diferencial de mulheres e homens às oportunidades. A lei nos assegura a igualdade em direitos e obrigações, mas a igualdade apenas se materializa com o acesso concreto aos direitos no cotidiano.

Essa é uma realidade ainda distante no Brasil, país que ocupa a posição 90 das 144 listadas no ranking de igualdade de gêneros do relatório da Global Gender Gap Report 2017, o que revela a falta de representação política e de participação das mulheres na economia brasileira.

A igualdade formal é importante, mas é passível de críticas porque não traz uma igual-dade baseada na auto-organização dos grupos sociais, na garantia do acesso desses grupos aos meios de decisão, por exemplo. No Brasil, são poucas as mulheres que ocupam cargos de representação e cargos de gestão em seus locais de trabalho.

Nossas percepções são divididas pelo pensamento linear binário (certo ou errado; feminino ou masculino), produtor de uma ordem social determinista que classifica e hierar-quiza pessoas. Tudo isso como resultado de relações de poder em uma realidade complexa com diversas categorias que se inter-relacionam: gênero, raça, etnia e classe social.

Compreender questões históricas-culturais que caracterizam a sociedade da antiga estrutura nos ajuda a perceber melhor seu funcionamento e os mecanismos que possui para tentar manter as rédeas do poder e continuar ditando as regras do jogo.

Ao ocuparmos espaços e falarmos com firmeza e conhecimento sobre o que hoje se en-contra encoberto por algo, como o elogio que esconde uma ofensa ou o sorriso que propaga um comportamento repressor, conseguimos nos inserir em um processo ativo de mudanças pelo fim de políticas sexistas e surgimento de novas ações em nossos locais de trabalho, por exemplo. E assim começam a se abrir possibilidades de construção de uma sociedade emer-gente, inclusiva e paritária.

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Violência camufladaLucimar da Silva Moraes

Em um dia qualquer, a campainha toca, eu abro a porta, ela entra e se apresenta.Sentada em uma cadeira, voltado para mim um rosto sofrido, um olhar doce e distante,

ela se mexe de forma inconstante. Ela parece totalmente desconfortável. Tem olhar assustado, que sangra, e um coração machucado. Suas mãos são trêmulas com um sorriso tímido. O co-ração que não pulsa, mas que apanha. A alma sofrida nem sempre por uma dor física, mas que machuca da mesma forma e deixa na alma marcas profundas. Uma mulher, mutilada em sua dignidade. Um corpo frágil, com cicatrizes imperceptíveis ao meu olho nu. Uma mulher, que tenta se livrar das amargas cicatrizes ocultas em sua alma e do orgulho ferido. Para ela em cada segundo, cada minuto, cada hora, e cada dia simplesmente viver se torna cada vez mais um tormento. Uma mulher sem forças para reagir, indefesa, sem coragem para em frente seguir. Uma mulher que não enxerga mais metas, não tem mais planos. O mocinho dos seus sonhos das histórias em quadrinhos se tornou vilão de seus maiores pesadelos. No seu corpo não são evidentes os hematomas, mas em seu interior estão camuflados os sintomas. Porque sua alma sangra, seu coração carrega dor. Ela quer fugir, gritar, chorar, mas não sabe para aonde ir. Ela continua ali sentada, assustada, perdida a minha frente. Passou um minuto, depois outro, respirou fundo, na tentativa de acalmar seus nervos antes que começasse a falar; as palavras saem engasgadas e o choro preso. Ela desvia o rosto, tentando ordenar os pensamentos. E nesse momento, sinto um nó me subindo a garganta e penso: “Chore, mas não se desespere. Tenha Fé!”. Mas eu me calo.

Ela me olha, pedindo desculpas, assume toda culpa, se levanta, diz que foi engano, se sente envergonhada e diz que vai embora. Eu penso mais uma vez: as palavras podem ser dis-torcidas, mas os gestos não. E dessa vez não me calo, peço que fique e seguro sua mão firme, olho dentro dos seus olhos, e digo: “Vai, confia em mim”.

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Do choro preso, vêm as lágrimas que escorrem sobre sua face, e ela chora, pelo medo de relatar o que sente, chora por não ter mais esperança, chora pela vida sofrida que vem em sua lembrança. O coração machucado, o orgulho ferido. Chora pelos sonhos desfeitos. Chora pelo casamento imperfeito. Suas mãos continuavam trêmulas e pude perceber suas olheiras como se não dormisse há dias, semanas ou meses. Ela parecia escolher as palavras com muita cautela e compulsivamente tocava sua aliança grossa de casamento, como se fosse uma algema que a acorrentasse ao seu parceiro. Reparei que ela repetia esse gesto com frequência. A vida que levava era como uma prisão, uma jaula, um passarinho preso a uma gaiola, mesmo que não percebesse. Um sorriso triste atravessou-lhe o rosto, e nesse momento percebi o que estava tentando me dizer. E ela finalmente se abre e recomeça seu relato: Ela queria ter um casamento normal. Fazer de cada dia, um dia especial. Ser amada e respeitada. Sentir aquele frio na barriga, borboletas no estômago. Todos os planos, as promessas, que foram feitas e em que ela acreditou cegamente, foram em vão. Ele nunca dava qualquer dinheiro a ela a não ser o necessário para os mantimentos da casa. Não permitia que saísse de casa sozinha, que tivesse amigos, ou ao menos que recebesse visitas. Era proibida de trabalhar ou de terminar os estudos, que parou quando casou. Tratava-a com indiferença, e tudo que fazia nunca era suficiente ou bom o bastante. Ela se sentia inútil e humilhada por ele a todo instante. Ela era proibida de usar um decote, usar um vestido curto, e muito menos usar qualquer tipo de maquiagem, o batom sempre de cores suaves, e as raras vezes que saíam juntos, ela se sentia oprimida, porque ele fazia questão de brigar com ela por qualquer motivo ou situação. Mas, quando estavam entre os amigos dele, sempre fazia questão de ser gentil e amável. Ele a monitorava a todo tempo pelo celular e até mesmo os seus pensamentos. Enviava mensagens para ela a todo momento, para saber o que estava fazendo. Ele a ameaçava toda vez que ela dizia que iria sair de casa, ele a fazia sentir-se pequena e incapaz de reagir. A palavra dele era lei. E ela sempre obedecia com medo das consequências. Quantas vezes foi obrigada a ter relações com ele, mesmo estando indisposta, pelo simples fato de satisfazê-lo e não deixá-lo enfurecido. E tantas outras vezes, que teve que lavar suas roupas, e sentia o perfume barato de alguma mulher que ele havia saído, ou uma marca de batom deixada em sua camisa. Ela tentou ser uma esposa melhor, por algumas vezes achava que a culpa seria sua e não dele. Que ele iria mudar e se tornar um companheiro melhor. Ela enxuga os olhos, seus dedos estavam úmidos com as lágrimas, e eu imaginava que sua alma estava escorrendo para fora do corpo. Ela estava simplesmente perdida na falta de atitude de uma vida fechada pela sua alma aprisionada e mutilada pela sua dignidade de uma

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ameaça velada. Seu casamento era cheio de regras e hierarquia. Mas ela tem medo de tentar, de arriscar, de recomeçar. Ela respira fundo, tentando acalmar seus nervos. Ela se mexe mais uma vez na cadeira, ajeita uma mecha de cabelos com os seus olhos fixados ao chão e arrasta os pés por um momento. Conseguia perceber os soluços crescendo em seu peito, sufocando-lhe as palavras. Ela suspirava, cansada. Cansada de falar, cansada de chorar, cansada da vida que levava. Estava frágil e vulnerável. Havia por fim chegado ao seu limite. Ela se recostou à cadeira, e dessa vez olhou para mim com um olhar triste, enquanto tentava recuperar seu equilíbrio emocional. O coração ainda batia acelerado, a boca parecia estar seca, ela respira fundo. Apesar do seu cansaço, do cabelo embaraçado, ela balançou a cabeça levemente, parecia estar pensando se não havia sido um erro ter me procurado. Mas as palavras saíram antes que pudesse contê-las. E ao mesmo tempo parecia estar aliviada, por ter desabafado. A expressão do rosto dela transbordava compaixão. Ela encolheu os ombros, parecendo envergonhada. Havia algo assombrado em sua expressão. Ela olhava o relógio, parecendo preocupada pelo tempo que já estava ali, com receio de que ele pudesse descobrir e prevendo as consequências. Por fim, ela levanta a cabeça, dá um sorriso melancólico, antes de desviar o seu olhar para longe. Senti meu estômago se revirar quando ela parou de falar. Levanto-me, seguro mais uma vez a sua mão, e dessa vez mais firme, olho bem dentro dos seus olhos, levo-a até o banheiro e peço que lave o rosto, e se olhe no espelho. Percebo que ela está envolvida em um turbilhão de emoções, sentindo-se confusa e amedrontada e com dificuldades para respirar. E digo: “Descubra-se, tente se conhecer. Seja o seu melhor, seja feliz, acredite na sua força interior e comece a viver. Redesenhe a sua vida, abandone o medo, a insegurança. Siga em frente, siga adiante. Permita-se, aproveite a vida. E lembre-se, o mundo sempre tem um plano melhor pra gente”.

E ela pela primeira vez se olhou no espelho confiante, de ca-beça erguida, seu olhar já não estava tão distante. Sua expressão suavizou. Ela respirou, sorriu, mesmo que ainda timidamente, perce-bendo que denunciar uma violência, mesmo que oculta, camuflada, velada não é sinal de covardia, pelo contrário, é o gesto mais corajoso a se ter na vida.

Então, ela agradece, por tê-la escutado, pelo seu desabafo, me pergunta o valor do honorário. E eu respondo: “Não me deve nada, apenas denuncie. Tenha brio”.

Em seguida, abro a porta, mais uma vez ela agradece, se des-pede e vai embora. Mas, só que agora, de cabeça erguida, passos firmes e tendo a certeza que com o sofrimento de todo o tormento vivido se descobre por fim o amor-próprio.

“A violência camuflada é como o vento, não se percebe, mas se sente!”

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Cultura do estuproMariana Imbelloni Braga

Encurva essa colunaEsconde esse peitoTambém com essa bundaAinda quer respeito?Traiu o marido?Ó o tamanho do vestido.Mas também, se estivesse em casa.No caso, qual casa?A do “ô lá em casa”Ou do assédio do padrasto?Tudo é nefasto quando contadoRevolta on-line contra os monstros taradosMas que ninguém mencione seu estupro domesticadoSeu convite ameaçaSeu toque onde não foi chamadoSua piada sem graça armada contra meu corpo exaustoCalado, você é trintaSeu riso é a sentença do meu fadoSua conivência me violenta ao cadafalso.Mas meu grito não se encerra nesse quartoContra o claustro da tua cultura incultaSomos muitas.

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Prosa de ContextaçãoImpressa na Gráfica WalPrint,

Rio de Janeiro, 2018.

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