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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X QUARENTAS DIAS EM TERRITÓRIO SELVAGEM: A CRÍTICA FEMINISTA E A LITERATURA DE MARIA VALÉRIA REZENDE Renata Cristina Sant’Ana 1 Resumo: Através do estudo da teoria e da crítica feminista (BEAUVOIR, 1990; LAURETIS, 1994; SCOTT, 1995; SHOWALTER, 1994; WOOLF, 1985) busca-se apresentar os aspectos da escrita feminina na obra de Maria Valéria Rezende considerando a relação que envolve a vida e a obra da autora, a fim de analisar a representação do feminino no romance Quarenta Dias (REZENDE, 2014) e as implicações decorrentes das elaborações em torno do conceito de gênero. Trata-se de uma observação crítica sobre o choque entre forças ideológicas contrárias que inevitavelmente se entrecruzam nos interstícios da experiência social no âmbito da família, especificamente na relação entre mãe e filha. Tal análise se desenvolve em torno das funções e dos papeis sociais impostos, histórica e culturalmente à mulher, e que, ainda na atualidade, a condicionam em uma posição de subserviência e controle, submetendo-a a diferentes formas de exploração e de violência. O objeto literário deste estudo apresenta uma narradora-personagem que vivencia o processo de migração interna, o que traz à baila questões envolvendo o sujeito deslocado da contemporaneidade e os elementos responsáveis pelos conflitos identitários gerados pela ausência do sentimento de pertença a um novo lugar, bem como as negociações necessárias à sua nova condição de existir. Tal condição coloca em evidência os abismos invisíveis existentes entre mundos diferentes e as fraturas de sentimentos e de compreensão sobre o outro. Palavras-chave: Literatura contemporânea, gênero, crítica feminista. “Minha rotina é uma sucessão de imprevistos, e meu cotidiano nada tem a ver com o isolar-se longa e ‘disciplinadamente’ num escritório, sou lenta no trabalho braçal de passar o que está na cabeça para o papel, faço isso ‘quando dá’, em meio a inúmeras tarefas e solicitações da vida doméstica, de meu círculo próximo ou da necessidade de pagar as contas, com traduções, por exemplo”. 2 Essas são palavras da escritora Maria Valéria Rezende sobre o esforço para conseguir conjugar as tarefas do seu dia a dia com o trabalho de escrever livros. Tais palavras soam como ecos de Virginia Woolf (1985), quando, ao analisar a condição da mulher escritora nos séculos XVIII e XIX, chegou à seguinte conclusão “ uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu se quiser mesmo escrever ficção” (WOOLF, 1985, p. 08). Ao longo da obra Um teto todo seu (WOOLF, 1985), a autora trabalha metaforicamente relacionando as ideias de teto e dinheiro, a fim 1 Doutoranda em Letras: Estudos Literários no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected] 2 REZENDE, Maria Valéria. Não lembramos dos rostos invisíveis. Revista Suplemento Pernambuco. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/67-bastidores/1517-n%C3%A3o-lembramos-dos-rostos- invis%C3%ADveis.html Acesso em 24/08/2016

QUARENTAS DIAS EM TERRITÓRIO SELVAGEM: A CRÍTICA … · casa? Não (entrevista ao Jornal Estadão, 2016)5. Essa passagem da vida da escritora remete ao pensamento de Simone de Beauvoir

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

QUARENTAS DIAS EM TERRITÓRIO SELVAGEM: A CRÍTICA FEMINISTA E A

LITERATURA DE MARIA VALÉRIA REZENDE

Renata Cristina Sant’Ana1

Resumo: Através do estudo da teoria e da crítica feminista (BEAUVOIR, 1990; LAURETIS, 1994;

SCOTT, 1995; SHOWALTER, 1994; WOOLF, 1985) busca-se apresentar os aspectos da escrita

feminina na obra de Maria Valéria Rezende considerando a relação que envolve a vida e a obra da

autora, a fim de analisar a representação do feminino no romance Quarenta Dias (REZENDE,

2014) e as implicações decorrentes das elaborações em torno do conceito de gênero. Trata-se de

uma observação crítica sobre o choque entre forças ideológicas contrárias que inevitavelmente se

entrecruzam nos interstícios da experiência social no âmbito da família, especificamente na relação

entre mãe e filha. Tal análise se desenvolve em torno das funções e dos papeis sociais impostos,

histórica e culturalmente à mulher, e que, ainda na atualidade, a condicionam em uma posição de

subserviência e controle, submetendo-a a diferentes formas de exploração e de violência. O objeto

literário deste estudo apresenta uma narradora-personagem que vivencia o processo de migração

interna, o que traz à baila questões envolvendo o sujeito deslocado da contemporaneidade e os

elementos responsáveis pelos conflitos identitários gerados pela ausência do sentimento de pertença

a um novo lugar, bem como as negociações necessárias à sua nova condição de existir. Tal condição

coloca em evidência os abismos invisíveis existentes entre mundos diferentes e as fraturas de

sentimentos e de compreensão sobre o outro.

Palavras-chave: Literatura contemporânea, gênero, crítica feminista.

“Minha rotina é uma sucessão de imprevistos, e meu cotidiano nada tem a ver com o

isolar-se longa e ‘disciplinadamente’ num escritório, sou lenta no trabalho braçal de passar o que

está na cabeça para o papel, faço isso ‘quando dá’, em meio a inúmeras tarefas e solicitações da

vida doméstica, de meu círculo próximo ou da necessidade de pagar as contas, com traduções, por

exemplo”.2 Essas são palavras da escritora Maria Valéria Rezende sobre o esforço para conseguir

conjugar as tarefas do seu dia a dia com o trabalho de escrever livros. Tais palavras soam como

ecos de Virginia Woolf (1985), quando, ao analisar a condição da mulher escritora nos séculos

XVIII e XIX, chegou à seguinte conclusão – “ uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu

se quiser mesmo escrever ficção” (WOOLF, 1985, p. 08). Ao longo da obra Um teto todo seu

(WOOLF, 1985), a autora trabalha metaforicamente relacionando as ideias de teto e dinheiro, a fim

1 Doutoranda em Letras: Estudos Literários no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

E-mail: [email protected] 2 REZENDE, Maria Valéria. Não lembramos dos rostos invisíveis. Revista Suplemento Pernambuco. Disponível em:

http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/67-bastidores/1517-n%C3%A3o-lembramos-dos-rostos-

invis%C3%ADveis.html Acesso em 24/08/2016

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de demonstrar que tal necessidade deixa sem solução um grande problema da mulher e da ficção,

que, pelo que nos parece, ainda hoje encontra-se sem solução, visto que a mulher escritora ainda

encontra dificuldades em se manter através do seu trabalho de escrever. Muito próxima das palavras

de Maria Valéria Rezende, que utilizo para iniciar este trabalho, estão as palavras de Woolf (1985)

ao discorrer sobre as condições que as mulheres de classe média no século XIX tinham para

escrever em suas casas, que possuíam apenas uma sala de estar para todos. “Se uma mulher

escrevesse, teria de escrever na sala de estar em comum” (idem, p. 88), ao contrário dos homens

que possuíam seus gabinetes, suas bibliotecas, seus escritórios. Tendo que conjugar inúmeras

atividades ao mesmo tempo, naturalmente, o trabalho de escrever seria prejudicado, considerando-

se tratar de uma atividade que demanda concentração e um mínimo de tranquilidade, “e, como se

queixaria tão veementemente Miss Nightingale – as mulheres nunca dispõem de meia hora... que

possam chamar de sua” (idem, p. 88).

Maria Valéria Rezende é uma escritora nascida no ano de 1942, em Santos, cidade onde

morou até aos dezoito anos. Em 1965 entrou para a Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de

Santo Agostinho, dedicou-se à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo, depois no

meio rural de Pernambuco e da Paraíba, e desde 1986 mora em João Pessoa. Sua escrita carrega

muito de sua experiência como educadora popular que vivenciou de perto a dor do analfabetismo,

trabalhando com jovens e adultos nos lugarejos esquecidos do nordeste brasileiro, de modo que sua

literatura é subsidiada pelas experiências, fato que imprime forças, tanto poética quanto política ao

estilo simples da autora, por vezes irônico e bem humorado, mas sempre carregado de críticas

sociais contundentes e combativas. A escritora explica que suas obras não são autobiografias,

embora se utilize muito de sua vivência como missionária católica, circulando pelas terras do Brasil

e de outras partes do mundo. Suas experiências, diz a autora, são “apenas matéria-prima colhida da

memória para construir a narrativa ficcional” (entrevista concedida à Revista Cult)3.

Em relação ao fato de ter se tornado freira aos 24 anos de idade, a escritora disse em

entrevista ao Jornal Estadão4 que foi uma escolha pautada na ausência do desejo de viver uma vida

dentro dos moldes que eram reservados às mulheres de seu tempo, ou seja, o estilo de vida

tradicional que abarcava o casamento, a maternidade e a vida doméstica, um estilo de vida que,

definitivamente, Maria Valéria Rezende não gostaria de ter. A esse respeito, a escritora conta que:

3 Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2016/01/materia-prima-colhida-da-memoria/>

Acesso em: 24/09/2016 4 Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,maria-valeria-rezende-viveu-na-rua-para-escrever-

romance,1161541/>. Acesso: em 24/08/2016

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era um tempo em que o mundo fazia a seguinte pergunta para as meninas: ‘Quer casar ou

vai ser freira?’ A ideia de vida para a maioria era casar, ter um único emprego, viver na

mesma cidade, criar um monte de filhinhos. Depois de tanta aventura eu ia virar dona de

casa? Não (entrevista ao Jornal Estadão, 2016)5.

Essa passagem da vida da escritora remete ao pensamento de Simone de Beauvoir (1990)

sobre a condição feminina: “Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, seu destino

normal é o casamento que ainda as subordina praticamente ao homem” (BEAUVOIR, 1990, p. 07).

Frente a tais circunstâncias, Maria Valéria optou pela vida religiosa em um tempo em que não era

oferecida outra alternativa senão o casamento. Ao abordar questões dessa natureza, a teoria, a

crítica e a escrita literária de autoria feminina fornecem os objetos e os instrumentos para análises

que visam à compreensão dos problemas relacionados às mulheres, que, conforme afirma Beauvoir,

são “herdeiras de pesado passado, e se esforçam por forjar um futuro novo” (Idem, p. 07).

Frente ao exposto, pode-se considerar que Maria Valéria Rezende, no mínimo, contrariou a

norma social instituída às mulheres de seu tempo, quando se recusou a seguir o padrão de

comportamento a elas imposto, e mesmo tendo escolhido seguir a vida religiosa, normalmente

associada à abdicação da liberdade, à obediência e à devoção ao sagrado, a freira, professora,

tradutora e escritora optou por seguir um caminho que a levasse à libertação dos valores patriarcais

e androcêntricos, sustentados pelas ideologias que caracterizam as sociedades burguesas. Assim, as

observações sobre a vida de Maria Valéria Rezende possibilitam uma melhor compressão de sua

obra que, neste estudo, volta-se para a análise centrada na reconfiguração do lugar sociocultural

reservado à mulher velha na sociedade e na literatura brasileira contemporânea.

Os estudos sobre gênero e a crítica feminista

O vocábulo gênero no campo discursivo da crítica feminista e dos estudos de gênero diz

respeito ao modo de referir-se à organização social da relação entre os sexos, assim, a palavra

adquire, nesse contexto, o caráter fundamentalmente social das distinções entre masculino e

feminino, porém, extrapolando-se os limites do determinismo biológico implícito no uso de termos

como “sexo” ou “diferença sexual”. Nesse sentido, o estudo do gênero implica na consideração da

amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e em diferentes épocas,

e não apenas na observação das diferenças sexuais enquanto fenômenos de ordem apenas de

natureza biológica. Assim, de acordo com SCOTT (1995) o gênero:

5 Id., ibid.

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“é utilizado para designar relações sociais entre sexos. O gênero se torna uma maneira de

indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis

próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente

sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é uma categoria

social imposta sobre um corpo sexuado” (SCOTT, 1995, p 07).

Ao rejeitar a concepção determinista biológica, os estudos de gênero trazem elementos de

ordem social, cultural, política e ideológica para o centro de suas reflexões e discussões. Diante do

desenho desse novo quadro, as(os) pesquisadora(es) dos estudos sobre a mulher sentiram a

necessidade de ampliação da visão política dentro dos seus estudos, e recorreram à perspectiva mais

global de análises que levassem em consideração as categorias de classe, raça e gênero. Segundo

Scott (1995):

“o interesse por essas três categorias “assinalavam o compromisso do(a) pesquisador(a)

com a história que incluía a fala do(as) oprimidos(as) e com uma análise do sentido e da

natureza de sua opressão: assinalavam também que esses(as) pesquisadores(as) levavam

cientificamente em consideração o fato de que as desigualdades de poder estão organizadas

segundo, no mínimo, estes três eixos.” (SCOTT, 1995, p.04)

O significado que o termo gênero então adquire e seu uso pelas feministas contemporâneas

acaba demonstrando, segundo Scott, o caráter inadequado das teorias existentes para explicar as

desigualdades persistentes entre homens e mulheres. Para essa pesquisadora, o gênero, como

categoria de análise, é um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas

entre diversas formas de interação humana.

Para Lauretis (1994) o gênero é produto de diferentes tecnologias sociais, de discursos

epistemológicos, de práticas críticas institucionalizadas e também de práticas da vida cotidiana. Ao

estabelecer a relação entre gênero e sexualidade, a autora diz tratar-se de um “conjunto de efeitos

produzidos em corpos, comportamentos e relações sociais por meio de uma complexa tecnologia

política” (LAURETIS, 1994, p. 208). Assim, o gênero é uma forma de representação de diferentes

tipos de relações que são construídas pelos indivíduos dentro e fora dos grupos, das classes. Tais

formas de representação que foram construídas a partir das relações entre os indivíduos e as classes,

podem ser reproduzidas e ainda, desconstruídas, como visa a crítica feminista, na tentativa de

romper com certos modelos e estereótipos que ao longo da história foram se acoplando ao ser

feminino, prejudicando a inserção plena da mulher na sociedade. Segundo Lauretis:

“As concepções culturais de masculino e feminino como duas categorias complementares,

mas que se excluem mutualmente, nas quais todos os seres humanos são classificados

formam, dentro de cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um

sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e

hierarquias sociais.” (LAURETIS, 1994, p. 211)

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O gênero, compreendido como sistema simbólico formado no interior de cada cultura, é

então produto de construções que se dão através da relação, e servirão como forma de representação

dos sujeitos, susceptíveis à reprodução e à desconstrução. Assim, o espaço onde a ideologia

feminista procura atuar, a fim de desconstruir os modos de opressão e cerceamento dos direitos e

desejos das mulheres diante da imposição da força ideológica patriarcal, é o lugar da construção da

crítica e da resistência feminista, denominado por Showalter (1994) de território selvagem. Trata-se

de um espaço no campo da teoria que, contrariamente à crítica científica, que lutou para purificar-se

do subjetivo, tem na crítica feminista um objeto basilar para a reafirmação da autoridade da

experiência. Com efeito, a crítica feminista leva em consideração as imagens e estereótipos das

mulheres na literatura, as omissões e falsos juízos sobre as mulheres e a mulher-signo nos sistemas

semióticos. Sobre a leitura feminista como ação intelectual libertadora, Showalter diz que “uma

crítica radical da literatura, feminista em seu impulso, trataria antes de mais nada, do trabalho como

um indício de como vivemos, como temos vivido, como fomos levados a nos imaginar, como nossa

linguagem nos tem aprisionado, bem como liberado” (SHOWALTER, 1994, p. 26). Segundo a

autora, a leitura feminista ou crítica feminista é em essência uma forma de interpretação, uma

dentre muitas outras possibilidades de interpretação que os textos podem acomodar. Através da

leitura crítica e interpretativa dos textos, a crítica feminista busca desmistificar problemáticas

questões que envolvem a “textualidade e a sexualidade, gênero textual e gênero, identidade

psicossexual e autoridade cultural” (SHOWALTER, 1994, p. 27).

Nessa perspectiva de leitura e de análise tem-se a ginocrítica, que trata do “estudo da mulher

como escritora, e seus tópicos são as estruturas dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da

criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual; e a evolução e as leis de uma

tradição literária de mulheres” (idem, p. 29). Os escritos das mulheres passam a ocupar o centro do

estudo literário feminista, possibilitando tipos de discussões capazes de reafirmar o valor feminino e

identificar o “projeto teórico da crítica feminista como a análise da diferença” (idem, p. 31), porém,

uma análise que seja capaz de desvincular-se dos modos e modelos estereotipados e associados à

inferioridade.

A escrita da mulher passa a funcionar como mecanismo desconstrutivo do discurso

masculino no sentido de criar novos formatos e modos de expressão, novos temas e atmosferas que

envolvem o universo feminino. Trata-se de reinventar a linguagem, “falar não somente contra, mas

fora da estrutura falocêntrica especular, estabelecer um discurso cujo status não seria mais definido

pela falicidade do pensamento masculino” (idem, p. 37). A linguagem passa a ter que incorporar

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ideias a respeito do corpo e da psique da mulher e trabalha-las de modo relacionado aos contextos

sociais em que ocorrem, representando, assim, a cultura das mulheres, suas experiências enquanto

uma coletividade dentro do todo cultural, um grupo que comunga de experiências comuns e que

ligam as escritoras umas com as outras no tempo e no espaço. Trata-se da tentativa das mulheres de

livrar-se dos sistemas, hierarquias e valores masculinos e alcançar a natureza primária e verdadeira

da sua condição, agora autodefinida através da sua própria experiência cultural. Segundo Showalter,

“ a cultura das mulheres redefine as atividades e objetivos das mulheres de um ponto de vista

centrado nas mulheres” (idem, p.46), pois nesse espaço comum ocorre a afirmação da igualdade e o

surgimento de uma consciência de fraternidade e comunalidade das mulheres, capaz de unificar a

experiência feminina mesmo levando em consideração as variantes significativas de classe e grupo

étnico.

Ao pensar sobre as questões envolvendo a condição das mulheres como grupo

historicamente silenciado, os conceitos de silenciado e de silenciar tornam-se centrais nas

discussões sobre a participação das mulheres na cultura literária e na teoria literária feminista. Para

Showalter:

o termo “silenciado” sugere problemas tanto de linguagem quanto de poder. Segundo a

autora, “os grupos silenciados tanto quanto os dominantes geram crenças ou ideias

ordenadoras da realidade social no nível inconsciente, mas os grupos dominantes controlam

as formas ou estruturas nas quais a consciência pode ser articulada. Assim, os grupos

silenciados devem mediar suas crenças por meio das formas permitidas pelas estruturas

dominantes” (SHOWALTER, 1994, p. 47)

É dentro desse espaço, que a autora denomina de “território selvagem”, que as mulheres se

unem, se organizam e reinventam suas ideias, suas falas e suas ações. Essa “zona selvagem” é o

campo social e discursivo onde se dá o encontro do estilo de vida feminino que está fora dos limites

onde o masculino pode alcançar, é o território desconhecido pelos homens, onde eles não sabem o

que existe. A zona selvagem deve, portanto, segundo Sholwalter, ser o “lugar de uma crítica, uma

teoria e uma arte genuinamente centradas na mulher, cujo projeto seja trazer o peso simbólico da

consciência feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o silêncio falar” (SHOWALTER,

1994, p. 48-49). A zona selvagem é o lugar da linguagem revolucionária das mulheres, a linguagem

de tudo que é reprimido, é onde uma mulher pode escrever a seu modo, fora dos limites

estabelecidos pela ordem patriarcal. É neste território de comunhão, partilha e de libertação que se

insere a escrita de Maria Valéria Rezende, que analisarei a seguir.

Quarenta Dias em território selvagem

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O romance Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende (2014) trata da perda das referências

identitárias quando a vida nos obriga a mudar, a desprender de coisas que consideramos

importantes, como o lugar de viver, o trabalho, as pessoas que temos perto de nós. Por tratar de

perdas, trata também da procura por algo que faça a vida se mover. Assim, em meio a essa procura,

Alice, uma mulher já madura, mãe, cujo marido desapareceu no período da ditadura militar e

professora, antes, fixada no território seguro do seu lar na cidade de João Pessoa, ao ser pressionada

pela filha, acaba se mudando, contra sua vontade, para o sul do país. Em seguida, após a mudança, a

filha embarca para o exterior, em função de uma oportunidade de trabalho surgida, e Alice (a mãe)

acaba por lançar-se solitária pelas ruas da cidade desconhecida de Porto Alegre em um movimento,

talvez inconsciente, de resistência à condição de submissão à vontade dos outros. Vale ressaltar que

Norinha, a filha que vivia em Porto Alegre, obcecada pelo desejo de se tornar mãe, insiste e

pressiona sua mãe a mudar-se para o sul, afim de que ela viesse a auxiliá-la nos cuidados com a

criança que tanto desejava ter, porém, sem que precisasse abrir mão de sua rotina ou tivesse que

adiar qualquer projeto que pudesse prejudicá-la profissionalmente. Assim, para a realização de um

desejo da filha, e para suprir uma necessidade também da filha, Alice teria que se mudar, se tornar

uma avó cuidadora, em uma nova casa, com nova rotina e novos convívios, que não faziam parte

dos seus planos:

[...] eu não havia de largar tudo o que custei tanto a conquistar, meus velhos amigos, os

alunos que se tornavam novos amigos, a praia, o Atlântico todinho na minha frente, planos

de viagens e atividades que tinha tido de adiar até então, mas ainda em tempo de realizar,

uma vida que eu considerava feliz, apesar das cicatrizes. (REZENDE, 2014, p. 27)

É essa a tônica que traça o fio condutor responsável por permitir a construção de uma crítica

feminista em torno das questões que subjazem o universo feminino da personagem Alice, que de

repente, vê-se diante das artimanhas da filha para fazer da vida dela, aquilo que julga ser natural

para uma senhora como ela, ou seja, torná-la uma “avó profissional”.

Considerando as relações de poder no âmbito familiar, tem-se em Norinha, a filha, uma

representação simbólica dos valores instituídos pela ordem patriarcal, que ao longo da história

encarregou-se de designar os papeis sociais, atribuindo às mulheres as funções de um trabalho

subserviente, a serviço das necessidades e dos desejos alheios:

Depois de uns três dias de declarações de amor filial, fora do costume, aponto de me deixar

cismada, deu o bote com certeza já armado havia tempo: Mãinha, tenho uma coisa

importante pra lhe dizer. Chegou a hora da senhora virar avó! [...] Pra quando vai ser? Ela

se mexeu, inquieta, hesitou e finalmente respondeu Vai depender da senhora, Mãinha

(REZENDE, 2014, p. 25 - 26).

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Alice, a protagonista da trama que, definitivamente, não estava disposta a se mudar de

cidade para se tornar avó profissional, como podemos observar no fragmento em que ela diz: “ –

Em resumo, o certo pra ela (a filha) era que eu (a mãe), afinal, já tinha chegado ao fim da minha

vida própria, agora o que me restava era reduzir-me a avó. Eu, de cara, disse não, eu não queria me

mudar pra Porto Alegre” (REZENDE, 2014, p. 26). Mas deu-se que, sob forte insistência e

chantagens emocionais, Alice resistiu enquanto teve força, mas acabou sendo vencida pelo cansaço

e viu-se sucumbir à pressão da filha, vindo então a migrar para o sul:

Aquela canseira foi me amolecendo, dia a dia, me dando uma desistência, e nem lembro se

foi a própria Norinha ou sua aliada-mor, Elisete, quem me arrochou num canto da parede:

Você vai pra Porto Alegre, sim, e não se discute mais isso, todo mundo vê que é o melhor,

é sua obrigação acompanhar sua filha única, só você é que não aceita, parece um jumento

empacado na lama, continuar com umas besteiras dessas. Eu cedi, vergonhosamente. Foi

isso. O resto é consequência (REZENDE, 2014, p.34).

Começou então o processo de desconstrução da solidez de um modo de viver que de uma só

vez foi deixado para traz. Alice foi-se embora deixando para trás muito de si. Muitas coisas se

perderam dela em meio ao percurso da viagem, outras poucas, ela conseguiu salvar.

Enquanto ali se desmontava minha cabeça, minha casa, minha vida, cá no Sul, Norinha

montava, à maneira dela, ao gosto dela, o que eu havia de ter e ser no futuro próximo. [...]

Vida nova!, essa velharia fica toda aqui e a senhora embarca comigo no fim de julho

(REZENDE, 2014, p. 37).

Alice expressa sua revolta por ter cedido à pressão da sua filha Norinha, que em uma atitude

autoritária, tratou de determinar a razão, quando e como se daria a mudança dela de João Pessoa

para Porto Alegre, como demonstra o fragmento: “ – Já vou marcar a passagem, dia 22 de setembro

a senhora parte daqui e ponto final. [...] Eu vim, no dia marcado pelos outros [...] entrei no avião,

feito um zumbi, o tempo todo, até chegar ao destino, à fatalidade final” (REZENDE, 2014, p. 38).

Alice parece vivenciar o mesmo sentimento daqueles que sofreram o deslocamento forçado por

motivos de preconceito, perseguição, conflitos políticos, étnicos ou religiosos que geram a

dispersão que caracteriza a diáspora tradicional, embora sua mudança para do nordeste para o sul,

tenha sido meticulosamente planejada e preparada por sua pra própria filha, em função de sua

vontade particular. Observemos: “[...] a revolta roendo minha vontade, incapaz sequer de abrir o

livro que trazia na bolsa, o reembarque em outro avião, primeiros passos da travessia de minha

primeira vida a outra vida, que eu não queria” (Idem, p. 39).

Para Stuart Hall (2003), numa forma sincrética, os elementos nunca estabelecem uma

relação de igualdade, e sim, são sempre inscritos diferentemente pelas relações de poder. Dessa

relação, quase sempre de subordinação e dependência, nascem os conflitos identitários e culturais

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do sujeito e das coletividades. No caso do objeto literário, foco desta análise, o que se percebe é um

embate de forças conflitantes entre mãe e filha, vontades que se confrontam como em um campo de

batalhas, como ilustra a passagem em que Alice diz: – “ Que remédio senão obedecer? Eu já estava

pegando o jeito de me comportar como filha da minha filha” (REZENDE, 2014, p. 74). Norinha, a

filha, alcança o seu domínio no momento em que consegue convencer (ou forçar?) a mãe a se

mudar em função de seu interesse particular. Alice, a mãe, sente a angústia de ter sido dominada, e

ter que viver sob controle da filha, em um lugar totalmente estranho e fora do seu mundo. Alice irá

viver o seu exílio, “um estado de ser descontínuo, separado das raízes, da terra natal, do passado”

(SAID, 2003, p. 50):

Naquele meu terceiro dia na vaga cidade pra onde me transplantaram à força, acordei com

uma ventania atravessando o apartamento [...]. Fui preparar e tomar café com saudade dos

meus velhos móveis, por onde andarão eles? [...] saudades de meu antigo chão de cerâmica

fresca pra se pisar descalça no calor, sem tapete nenhum pra empatar a limpeza.

(REZENDE, 2014, p. 54).

No romance Quarenta Dias, temos na figura de Norinha, filha de Alice, um símbolo da

violência gerada pela vontade imperial. O que significa a imposição da filha, e suas traquinagens

para realizar a ruptura de sua mãe com seu lugar de origem, senão o exercício da dominação? Como

estratégia de resistência ao processo de dominação a que se viu submetida e frente a dor de ter tido

sua vida recortada, Alice faz do mergulho no submundo das ruas e de seu esforço para encontrar

Cícero Araújo - um nordestino que foi para Porto Alegre, e que ela fica sabendo que a mãe, lá em

João Pessoa, nunca mais teve notícia - um caminho para a busca e para o reencontro consigo

mesma. Sem saber ao certo se Cícero ainda vivia em Porto alegre, incumbiu-se da tarefa de

encontra-lo, e fez desta procura o seu modo de conseguir superar o trauma de ter tido sua vida

rompida.

Um rumo vago. Que eu seguiria se quisesse. Talvez tenha sido o nome estranho do lugar

que me despertou da letargia. Talvez, tenha sido, sem que eu percebesse, a dor da outra mãe

tomando o lugar da minha, um alívio esquisito, uma distração, e eu quis, sim, sair por aí, à

toa, por ruas que não conheço atrás do rastro borrado de alguém que eu nunca vi

(REZENDE, 2014, p. 92).

Ao longo de sua busca pelo rapaz, Alice se entrega às ruas vivendo um processo que a

transforma em moradora de rua. Ao acompanhar o vagar perdido da ex-professora que se

transforme em andarilha, nos indagamos se é por Cícero mesmo que Alice está à procura. Qual o

sentido em se perder pelas ruas de Porto Alegre, solitária, exposta aos perigos da violência urbana,

ao frio da noite, à pouca comida, às dificuldades para manter a higiene pessoal, e todas as formas de

escassez a que são submetidas as pessoas em situação de rua?

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Sobre a recepção do livro e a problemática que envolve a questão do gênero e literatura de

autoria feminina, a própria escritora Maria Valéria, observa que:

O curioso é que todas as mulheres que comentaram o livro entendem perfeitamente porque

Alice saiu pelas ruas durante 40 dias… os homens, muitas vezes, não… acham enfadonha a

primeira parte do livro e inconsistentes os motivos pelos quais a personagem se desgarra

(Entrevista concedida à Revista Cult6)

Percebe-se aqui o limite dos territórios que separam a leitura feminina da masculina, ocorre

então o mergulho feminino na “zona selvagem”, espaço exclusivamente ocupado pelas mulheres, e

fora dos limites em que o masculino é capaz de adentrar. As mulheres, conforme sugere a

observação feita pela própria autora do romance, demonstram ter captado e compreendido, melhor

do que os leitores homens, o caráter simbólico libertador representado pela atuação da personagem

ao decidir sair pelas ruas da cidade estranha de Porto Alegre. As leitoras mulheres parecem ter

captado o elemento transgressor contido na ideia da fuga do apartamento sistematicamente

construído para aprisionar a personagem em uma condição que ela não se conformou em aceitar.

Sobre as classificações e rótulos relacionados a produção literária que considera a categorias de

gênero, Maria Valéria Rezende diz:

Se continuo achando que falar de “literatura feminina”, quase como uma sub-espécie da

Literatura com maiúscula, não faz sentido, estou começando a achar que faz sentido, sim,

atentar para existência de uma “leitura feminina” e uma “leitura masculina” dos mesmos

textos, distintas e talvez conflitantes (Entrevista concedida à Revista Cult7).

Redirecionando o foco para a análise da personagem Alice, percebe-se que ela parece ter se

perdido antes de sair de casa, ou seja, dentro das paredes frágeis do (des)afeto da filha, debaixo do

teto impessoal e pré-fabricado do apartamento para onde ela havia sido “transplantada”. Assim, na

esperança inconsciente de um encontro consigo mesma, saiu a perder-se na procura por Cícero, para

que, talvez assim, viesse a encontrar-se:

Saí, em busca de Cícero Araújo ou sei lá de quê, mas sem despir-me dessa nova Alice,

arisca e áspera, que tinha brotado e se esgalhado nesses últimos meses e tratava de

escamotear-se, perder-se num mundo sem porteira, fugir ao controle de quem quer que

fosse (REZENDE, 2014, p. 95).

Pelas janelas do seu interior Alice lançou-se nas ruas e viveu quarenta dias como andarilha

pelos subúrbios não só da cidade, mas pelos subúrbios da sua existência, andando para lugar

nenhum. Assim, em meio a um caminho perdido é que ela (re)encontra a vida, que se não é a que

deixou na Paraíba, é a vida de outros, que, como ela, também perambulavam perdidos e solitários

6 Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/01/materia-prima-colhida-da-memoria/ Acesso em: 24/09/2016 7 Id., Ibid.

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pelas ruas da cidade. Ao dar-se conta de sua condição de “sem lugar”, Alice aos poucos vai

encontrando seus novos “iguais” e deles vai se aproximando, criando algum tipo de vínculo, se é

que sua condição momentânea narrada na obra, permiti-nos falar em vínculos. O fato é que dá-se o

encontro com outras pessoas em condições semelhantes à sua. Em meio ao povo da rua Alice

conheceu Lola, uma senhora que aparentava ter mais idade que ela, e com quem ela sentiu

identificar-se:

Lola de pé, curvada sobre seu carrinho, resmungando e remexendo em seus trapos, Vem,

tem banho se tu quiser, e sabão te empresto hoje, amanhã tu arranja o teu. [...] nenhuma de

nós duas ligando a mínima pros olhares enviesados que nos cercavam. Tu vem todo dia

dormir aqui, tu é direita, tu pode, aprende o caminho (REZENDE, 2014, p. 232).

Através deste encontro com Lola, vemos a personagem Alice ingressar em um território

comum, compartilhado em igualdade com outra mulher, fazendo surgir a “consciência de

fraternidade e a comunalidade” de que fala Showalter (1994), ao tratar da cultura das mulheres.

Para finalizar, cabe dizer que a reflexão teórica e crítica em torno de um modelo da situação

cultural das mulheres é crucial para que possamos compreender como esta cultura é, se não mais

construída pelos grupos dominantes, como é por eles percebida, e como vem sendo não só

percebida e compreendida, mas, principalmente, construída, pelas próprias mulheres. Assim, é no

rompimento com as inadequações dos modelos androcêntricos da história e da cultura, que a crítica

feminista e a análise da experiência feminina poderão se fazer de maneira mais adequada, capaz de

satisfazer as necessidades de explicação e entendimento da condição feminina desde seus

primórdios até os dias de hoje.

Referências

BEAVOUIR, Simone. O Segundo Sexo. 7. Ed. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1990.

HALL, Stuart. Pensando a Diáspora. Reflexões sobre a terra no exterior. In: _______ Da

Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik; Tradução. Adelaine La Guardia

Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 25 – 48

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.)

Tendências e Impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

REZENDE, Maria Valéria. Quarenta Dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução: Pedro Maia Soares. São

Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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SCOTT, Joan. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e

Realidade. Porto Alegre, vol. 20, no 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99. In

http://ia600308.us.archive.org/21/items/scott_gender.pdf

SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa

Buarque de (Org.) Tendências e Impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:

Rocco, 1994.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. P.

35-75.

Quarenta Dias in the wild: Feminist criticism and literature by Maria Valéria Rezende

Abstract: Through the study of feminist theory and criticism (BEAUVOIR, 1990; LAURENTIS,

1994; SCOTH, 1995; SHOWALTER, 1994; WOOLF, 1985), we look for presenting the aspects of

women’s writing within the work of Maria Valéria Rezende, taking into account the relation

between the author’s life and writing, in order to analyze the representation of the feminine in the

novel called Quarenta Dias (REZENDE, 2014), as well as the implications resulting from

elaborations regarding the concept of gender. This is, therefore, a critical observation about the

clash between opposite ideological forces that, inevitably, crisscross themselves in the interstices of

social experience within the family, specifically in the relation between mother and daughter. We

develop this analysis around functions and social roles that are imposed, historically and culturally,

to women, and that, yet nowadays, condition them to a position of subservience and control,

submitting them to different forms of exploration and violence. The literary object of this study

presents a narrator who is also a character that experiences a process of internal migration, bringing

up issues regarding the displaced subject within contemporaneity, elements responsible for identity

conflicts generated by the absence of a feeling of belonging to a new place, as well as necessary

negotiations to a new condition of existing. This condition itself highlights the invisible chasms

between different worlds and the fractures of feelings and understanding about the other.

Keywords: Contemporary literature, gender, feminist criticism.