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RACHADURAS E DESVIOS : dança pós-moderna americana, tropicalismo e histórias Por Flavia Meireles O que significa rever, quero dizer, o que significa tornar a ver algo produzido no passado? O que se passa nesse processo? O que os turbulentos anos 60 nos deixam de herança? Que ligações podemos fazer entre dança, história, tempo e estratégias de existência/criação que possam nos deixar entrever, que nos dêem pistas, sobre o que tudo isso tem a ver conosco? Pinço os anos 60 da fartura de décadas e séculos de que dispomos para ser, simultaneamente e sem nostalgia, um ponto de partida e volta, uma rede, uma máquina de pinball apontando em várias direções. Pois foi lá que se tornou evidente, em termos globais, que o projeto da modernidade, aquela modernidade autônoma, altiva e progressista, que tanto tempo nos demoramos em cunhar, havia falhado. A partir de lá também foi possível a emergência de novas formas de existir a partir da experiência de um mundo radicalmente mudado. Radicalmente? Antes de tanto movimento, analisemos a relação entre modernidade e tempo. São muitas as relações possíveis e, de uma maneira grosseira, a imagem da flecha do tempo que progride nos dá uma idéia aproximada desta relação. Dizer “moderno” está associado a uma passagem, uma ruptura, uma aceleração do tempo em contraste a um passado anacrônico e estável, associado aos estados pré- modernos (Antigos e povos fora da cultura ocidental). Importante salientar: em contraste. É nessa polarização e separação que essa relação funciona. Além desta específica e unívoca relação com o tempo, a palavra modernidade está em meio a uma batalha constante entre Modernos e Antigos, numa querela com saldos positivos e negativos para um lado e outro, ou, dito de outra maneira, entre emancipados (os vitoriosos) e dominados (os perdedores), cientes e ignorantes, descrentes e ingênuos, todos unidos (e separados) por esta polaridade. Portanto, ser moderno é ser “duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem do tempo; [e] assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (Latour: 1994). Manter-se nesse projeto com essa dupla assimetria é tarefa extremamente difícil e vem se mostrando ao longo do tempo - e numa escala mundial a partir dos anos 60 tarefa cada vez mais frágil e menos inteiriça. Procurarei, neste texto, operar no instável espaço para fora dos conceitos modernos, procurando mostrar-lhe seus artifícios de escondimento (e natuarlização) de um olhar e tirando-lhe alguns desdobramentos. Duas posições que racham ou desviam dessa dupla assimetria me são particularmente caras e compõem o núcleo deste texto: uma delas é feita por meio do que chamamos de pós-modernos, sua contestação e sua denúncia do projeto moderno em seus princípios (muito embora eles mantenham relações complexas com a modernidade, ora se aproximando, ora se afastando dela no modo de proceder); e a outra é uma maior visibilidade de outras histórias e genealogias - como é o caso da antropofagia e do tropicalismo no Brasil - para fora (e dentro) da história ocidental euro-norte- americana, caracterizada pelas Luzes e pela Liberdade, que nos é contada sempre como ponto de referência. Trabalharei, na última parte, com a noção de tempo que considera o passado como passando e, portanto, fora do regime de flecha progressiva que a modernidade nos diz ser como as coisas “realmente” acontecem. Desta mirada, rever o passado pode significar coexistir, co-habitar, retomar questões, como diria Merleau-Ponty, sempre desviando e reiniciando de um ponto diferente. Permitirei-

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RACHADURAS E DESVIOS : dança pós-moderna americana, tropicalismo e histórias

Por Flavia Meireles

O que significa rever, quero dizer, o que significa tornar a ver algo produzido no passado? O que se passa nesse processo? O que os turbulentos anos 60 nos deixam de herança? Que ligações podemos fazer entre dança, história, tempo e estratégias de existência/criação que possam nos deixar entrever, que nos dêem pistas, sobre o que tudo isso tem a ver conosco?

Pinço os anos 60 da fartura de décadas e séculos de que dispomos para ser, simultaneamente e sem nostalgia, um ponto de partida e volta, uma rede, uma máquina de pinball apontando em várias direções. Pois foi lá que se tornou evidente, em termos globais, que o projeto da modernidade, aquela modernidade autônoma, altiva e progressista, que tanto tempo nos demoramos em cunhar, havia falhado. A partir de lá também foi possível a emergência de novas formas de existir a partir da experiência de um mundo radicalmente mudado. Radicalmente?

Antes de tanto movimento, analisemos a relação entre modernidade e tempo. São muitas as relações possíveis e, de uma maneira grosseira, a imagem da flecha do tempo que progride nos dá uma idéia aproximada desta relação. Dizer “moderno” está associado a uma passagem, uma ruptura, uma aceleração do tempo em contraste a um passado anacrônico e estável, associado aos estados pré-modernos (Antigos e povos fora da cultura ocidental). Importante salientar: em contraste. É nessa polarização e separação que essa relação funciona.

Além desta específica e unívoca relação com o tempo, a palavra modernidade está em meio a uma batalha constante entre Modernos e Antigos, numa querela com saldos positivos e negativos para um lado e outro, ou, dito de outra maneira, entre emancipados (os vitoriosos) e dominados (os perdedores), cientes e ignorantes, descrentes e ingênuos, todos unidos (e separados) por esta polaridade.

Portanto, ser moderno é ser “duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem do tempo; [e] assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (Latour: 1994). Manter-se nesse projeto com essa dupla assimetria é tarefa extremamente difícil e vem se mostrando ao longo do tempo - e numa escala mundial a partir dos anos 60 – tarefa cada vez mais frágil e menos inteiriça. Procurarei, neste texto, operar no instável espaço para fora dos conceitos modernos, procurando mostrar-lhe seus artifícios de escondimento (e natuarlização) de um olhar e tirando-lhe alguns desdobramentos.

Duas posições que racham ou desviam dessa dupla assimetria me são particularmente caras e compõem o núcleo deste texto: uma delas é feita por meio do que chamamos de “pós-modernos”, sua contestação e sua denúncia do projeto moderno em seus princípios (muito embora eles mantenham relações complexas com a modernidade, ora se aproximando, ora se afastando dela no modo de proceder); e a outra é uma maior visibilidade de outras histórias e genealogias - como é o caso da antropofagia e do tropicalismo no Brasil - para fora (e dentro) da história ocidental euro-norte-americana, caracterizada pelas Luzes e pela Liberdade, que nos é contada sempre como ponto de referência.

Trabalharei, na última parte, com a noção de tempo que considera o passado como passando e, portanto, fora do regime de flecha progressiva que a modernidade nos diz ser como as coisas “realmente” acontecem. Desta mirada, rever o passado pode significar coexistir, co-habitar, retomar questões, como diria Merleau-Ponty, sempre desviando e reiniciando de um ponto diferente. Permitirei-

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me, então, aproximar pontos, pessoas e domínios que pareciam distantes, trabalhar com flechas (no plural) não-retas e sem uma direção predominante.

Também cabe aqui uma outra perspectiva: adotarei, com toda a sua problemática, a proximidade da dança pós-moderna americana com o movimento pós-moderno, diferindo das abordagens de Sally Banes, Isabelle Ginot e Michèlle Lefèbrve1 neste ponto, as quais veem na dança-pós moderna a verdadeira entrada do modernismo na dança. Aproximo-me mais de como o pesquisador Ramsay Burt trata a questão, por acreditar que no caso da dança pós-moderna americana, temos de fato uma mistura de estratégias de existência/criação que dão uma dimensão diferente às questões modernistas (com esse duplo movimento de afastamento e aproximação). É também fato que Sally Banes (junto com Jill Johnston) foi uma das que primeiro escreveram sobre o fenômeno da dança pós-moderna americana e suas análises nos informam muito do que foi produzido mas, como tratarei mais adiante, Banes lança um olhar que, talvez com vontade de ordenação, categoriza como modernista (predominantemente voltado sobre si mesmo) todo o fenômeno. Acredito que as propostas que surgiram neste momento, pelo entorno histórico em que estavam inseridas (momentos de profundas contestações sociais e de percepção do sujeito), possibilitam, mudando-se a perspectiva, outras leituras não só ligadas às questões modernistas.

ANOS 60: DANÇA, TEMPO E HISTÓRIAS

A diversidade de registros sobre o que foram os anos 60, em termos de criação artística, aos quais estamos expostos hoje – livros, filmes, áudios, vídeos, textos de artistas, reelaborações posteriores do próprio artista sobre aquele momento, redoings e remakings dos trabalhos, disponibilizações na internet - nos dá um leve gosto do que teriam sido estes anos em termos de efervescência cultural. Vistos em retrospecto e da distância de quatro décadas, podemos dizer que foi um momento na História em que foi possível dar vazão e forma às forças de transformação que forçavam passagem.

Estas forças de transformação estavam intimamente ligadas às sucessivas rachaduras e descentramentos de concepções longamente construídas e severamente mantidas, tais como a noção de sujeito autônomo, baseado na racionalidade, com ligações de pertencimento a uma identidade nacional sentida como “natural” e “genuína” (HALL: 2001) e vocações de emancipação e dominação. Aquela dupla assimetria que as palavras “modernidade” e “moderno” exigem. Tais noções foram recebendo marretadas devido à fixidez de enquadramento do sujeito e do mundo que não davam mais conta de assentá-lo por meio da “neutralizadora tranqüilidade” das representações de até então. E este movimento foi sentido nos mais diversos âmbitos da existência, dando lugar às manifestações de cunho artístico, social e político-econômico que se manifestaram diferentemente em cada local (guerras e movimentos pós-colonialistas, protestos contra a guerra no Vietnã nos EUA, tropicalismo no Brasil, movimentos feministas, maio de 68 na França, entre outros).

Também daí decorre que a noção de tempo fecha-que-progride perde força hegemônica dando a ver outras ligações com o tempo e outras construções de temporalidades, que aliás já existiam entre os pré-modernos e os povos fora do enquadramento ocidental, mas estavam recalcadas e tomadas como invisíveis na história ocidental. É como se a nuvem de fumaça da hegemonia moderna estivesse menos espessa (mas não dissipada) e que pudéssemos enxergar a possibilidade de um mundo onde coexistência e co-habitação pudessem ser possíveis. Como nos mostra Latour:

1 FEBRVE, Michèle. « Danse Contemporaine et Théâtralité » Éditions Chiron, Paris : 1995.

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“Felizmente, nada nos obriga a manter a temporalidade moderna com sua sucessão de revoluções radicais, seus anti-modernos que retornam àquilo que acreditam ser o passado, e seu jogo duplo de elogios e reclamações contra ou a favor do progresso contínuo, contra ou a favor da desgenerescência contínua. Não estamos amarrados para sempre a esta temporalidade que não nos permite compreender nem nosso passado, nem nosso futuro, e que nos força a enviar aos porões da história a totalidade de terceiros mundos humanos e não-humanos. Mais vale dizer que os tempos modernos deixaram de passar.” (Latour:1994)

Liberados a criar outras temporalidades, podemos reconceber o tempo como “o resultado da ligação provisória dos seres” (Latour:1994), sugerindo aproximações e distanciamentos que não estão mais necessariamente ligados ao tempo flecha-que-progride. Podemos entender desta maneira o movimento tropicalista levado a frente pelos músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso no Brasil (e também, claro, uma série de outros artistas, críticos, poetas e pensadores), os primeiros misturando John Cage a Beatles, passando pelo baião de Luiz Gonzaga e pela bossa nova de João Gilberto. Ligações temporárias que produzem híbridos. É importante ressaltar que estes híbridos que aparecem se utilizam ao mesmo tempo do processo de hibridação (a mistura, a mediação) e de purificação realizado pelos Modernos (a precisão, a excelência), em nada parecendo com meros híbridos sem critério. Ainda mais, “oposição sem oposição” no plano artístico e no plano político já que eles estavam fora do projeto nacional-popular que sufocava o Brasil no início dos anos 60 “por um patriotismo repressivo e boçal e por um nacionalismo de fancaria (um nacionalismo paternalmente orientado e subsidiado pelo Grande Irmão do Norte – alguém já se esqueceu?) e por um provincianismo existencial acachapante” (CASTRO, 2007)2. Nada de baixa antropofagia, como diria Oswald de Andrade. Vemos, num fôlego só, como essa liberação do tempo foi vivida por este dois músicos mas é claro que os exemplos são muitos: Glauber Rocha e Julio Bressane, no cinema, José Celso Martinez Corrêa, no teatro, Lygia Clark e Hélio Oiticica no âmbito das artes visuais, Angel Vianna, Klauss Vianna e Graciela Figueroa na dança, só para citar os casos mais “molares” (quero dizer, maiores em termos de visibilidade e reconhecimento mundial) e onde o conjunto da sua obra já ganhou elaboração suficiente para reconhecermos neles, exemplos claros.

É a partir dos anos 60 que existe mais espaço também para o hibridismo que alarga o campo de atuação das Artes, aproximando Arte e Vida seja através da instauração de situações ou através do corpo como suporte da obra-de-arte, como é o caso dos Happenings e das Performances. No momento onde a dança pós-moderna americana aparecia, estas formas híbridas estavam a aparecer simultaneamente e, embora não possamos fazer uma filiação (e nem sei qual seria o objetivo dela, já que não estamos em busca de origens), as conexões e correspondências são inevitáveis não só em termos de procedimentos de criação mas também em seus agentes, isto é, a colaboração na criação e em cena de pessoas não treinadas na dança, a exemplo de Robert Morris, Carolee Scheemann, Robert Rauschenberg.

Situando historicamente e de maneira resumida, consideramos dança pós-moderna americana um grupo de artistas vindos de uma série de workshops ministrados por Robert Dunn, discípulo de John Cage, no estúdio de Merce Cunningham nos anos 1960-61. Muitos desses artistas haviam também freqüentado os workshops de Ann Halprin, na Califórina, dentre eles Yvonne Rainer, Trisha Brown e Simone Forti. Mas foi no estúdio de Cunningham (e isso não é um detalhe), unindo artistas com formação em dança, música e artes visuais que o grupo iniciou seus experimentos os quais foram levados mais longe, dois anos depois, no espaço de uma igreja protestante (a Judson Church) em

2 Vale lembrar que o projeto moderno no Brasil tomou feições nacionais-desenvolvimentistas.

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Greenwich Village. Surgia então a Judson Dance Theatre que fazia apresentações (auto-intituladas de performances ou concertos já que estavam fora do esquema debordiano de espetáculo) ocupando o espaço da igreja. É importante ressaltar que, embora coletivo, no âmbito da criação o sistema era colaborativo, onde cada artista tinha suas próprias idéias (a função-autor não foi abolida) e chamava outros artistas do grupo para colaborar em suas criações, como pontua Yvonne Rainer em entrevista a Christophe Wavelet3. Mais do que um projeto estético comum era um projeto ético-político (não como uma bandeira mas como uma prática) que se inaugurava com a abertura para não-dançarinos e resoluções tomadas de maneira consensual (mesmo que para isso se demorassem horas para se tomar uma resolução – aqui mais uma outra insurgência de outra temporalidade, fora da demanda cotidiana ou mercadológica).

Em linhas gerais podemos descrever assim os agentes da dança pós-moderna, mas essa descrição só ganha seu sentido integral quando percebemos que a dança pós-moderna americana são danças pós-modernas norte-americanas. Duas decorrências desta alteração: 1. essas danças contem em si uma multiplicidade de agentes vindos de muitos lados e que as marcam diferentemente, transformando suas características em referentes elásticos e contamináveis e que 2. seus agentes desenvolvem seus projetos em relação à história e contexto norte-americanos. Essas duas observações mudam bastante coisa.

Compreender que o que sabemos - e sabemos muito - da dança pós-moderna (continuarei, por razões de maior simplicidade, a chamá-la em seu nome “oficial” pedindo aos leitores que imaginem sua “biografia não autorizada”) ainda assim são apenas partes de uma história aberta e engendrada a partir de uma localidade, mudando nosso foco e nos tirando de uma relação linear e progressista com o tempo. O que se passa aqui é que começamos a ver o aparecimento de redes e conexões entre referentes, estratégias de criação e domínios artísticos que vão se mostrando mais intrincados, nosso olhar vai modificando as coisas: de linhas retas elas se abrem para cima, para baixo e para os lados formando uma rede transpassada por diversos domínios. Estas ligações entre os agentes não mantém intactos os agentes, estes “respondem” à ela, dão sua tradução às ligações e, por isso, trata-se de mediação. Logo, essa noção de rede comporta melhor o alargamento de campo que a arte desta época propõe. Mais uma vez, já que repetir nunca é redundar, isso não quer dizer que antes disso não havia rede de conexões e relações, mas que é neste momento que essa rede dá sinais de visibilidade, ganha “existência” aos nossos olhos (ao olhos de hoje, é claro).

E ainda: essa rede é tecida a partir de questões sentidas globalmente mas numa relação local, de contextos específicos da dança norte-americana lançados no espaço, nos livros e nos discursos, tais como o mais que conhecido NO manifesto de Rainer, que é um trecho de um artigo escrito em relação a uma determinada situação da dança (nele, Rainer explicita que estas idéias diziam respeito ao que ela havia experimentado antes com o teatro e a dança moderna americana4). Poderia então Rainer se

3 Entretien avec Yvonne Rainer”, Centre national de la Danse, Paris, 2004.

4 RAINER, Yvonne. “Works 1961-73”, p.51. No texto do referido artigo, logo antes dos “ NÃO ao espetáculo, NÃO à

virtuose ...” Rainer escreve e eu aqui traduzo livremente: “(...) Postscript: O que estou inclinada a indicar aqui são

vários sentimentos sobre ‘Partes de alguns Sextetos’ e o seu esforço em uma certa direção – uma área de questões

ainda não totalmente clareada para mim em relação à dança, mas existe um NÃO muito grande a muitos fatos de

hoje no teatro. (Isso não é para dizer que eu pessoalmente não goste de diversas formas do teatro. É somente

para definir mais rigorosamente as regras e fronteiras do meu próprio jogo artístico do momento.)” Negrito

meu.

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referir mais a um processo pessoal de criação que a um manifesto geral, uma “regra” a ser seguida? O que diria, por exemplo, Robert Morris que não tinha prévia formação de dança? Lidos desta maneira, as análises da dança pós-moderna ganham outra dimensão, outras genealogias e, principalmente, outros recortes e detalhes. E como bem nos diz Peggy Phelan: “Como sabemos da criminalística, da medicina, e da história, detalhes aumentam a incerteza.”5 Um pequeno exemplo de outras relações possíveis quando colocamos de lado o olhar moderno de sucessão e ultrapassamento.

PÓS-MODERNISMO E ESTRATÉGIAS DE EXISTÊNCIA/CRIAÇÃO

Já que nos permitimos a abertura a outras leituras, temporalidades e perspectivas, retomemos agora uma questão apenas esboçada e adiantada no início do texto: foi mesmo a dança pós-moderna um movimento modernista, isto é, ligada à noção de passagem, ruptura e à noção da dicotomia superação/negação? Podemos ter tanta certeza disso como afirmam alguns historiadores do período tais como Sally Banes, tantas vezes retomada como ponto de partida por outros pesquisadores?

Antes de precipitar uma resposta vale a pena olharmos com mais detalhes algumas estratégias de existência/criação de alguns dos criadores da dança pós-moderna (como alternativa a uma lista exaustiva, e não menos interessante, trago uma associação de alguns pontos). Nomeio suas estratégias como de existência/criação pois elas são ao mesmo tempo uma resposta singular ao entorno norte-americano (uma possibilidade de existência6) e um artifício próprio à criação. No que diz respeito aos agentes destas danças, vemos que os criadores vêm de distintas formações - dos campos artísticos (música, dança, artes visuais) ou não – e revezam papéis nos trabalhos: ora Yvonne Rainer chama Trisha Brown para colaborar (e vice-versa), ora Robert Morris, vindo das artes visuais, começa a fazer performances, ora dança com Yvonne Rainer, ora Steve Paxton mistura dançarinos e não-dançarinos em seus trabalhos, e tantas outras combinações e possibilidades sejam desejáveis entre os seus agentes. Esse variado background e mobilidade nos “papéis” assumidos nos trabalhos cria uma rede temporária e móvel (talvez uma TAZ7) desmontando hierarquias (e construindo outras temporárias) e usando do

5 PHELAN, Peggy. “13 Ways of Looking at Choreographing Writing”

6 Em entrevista ao American Festival Dance em 1994, Trisha Brown, ao ser perguntada porque teve interesse em

fazer peças fora do estúdio, respondeu que estas eram fruto de uma observação continuada que ela vinha tendo nos jardins, ao levar seu filho, então bebê, para passear. Este ano ela passara na costa Oeste, fora de Nova Iorque e estava sem estúdio pois estava ocupada em cuidar do bebê. E dessas observações surgiram o interesse em trabalhar com “equipamentos” e com o espaço das cidades. Aqui fica evidente como a estratégia de criação está intrincada à uma possibilidade de existência. Também podemos falar sobre as inúmeras reflexões de Yvonne Rainer com relação a uma “inadequação” em termos de movimento do que era proposto por Martha Graham e Merce Cunningham.

7 Temporary Autonomous Zone, ou Zona Autônoma temporária, conceito inventado por Hakim Bey (Peter

Lamborn Wilson). Bey utiliza autores como Foucault, Deleuze e Derrida, além de Fourier e Proudhon com uma

interlocução pop e articulando-os com processos extra-acadêmicos do imediatamente vivível. Um dos conceitos, a

TAZ (no livro homônimo), é uma rede de acontecimentos explicitada somente pelos seus exemplos e a partir de

imagens teóricas. Interessante é a construção do livro, onde ele nunca explica o que é realmente a TAZ, mas sim dá

exemplos de como ela pode aparecer pratico/teoricamente.

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hibridismo como motor de criação. Não é surpresa aparecerem movimentos cotidianos e “found movements”8 nessas danças, como resultados que podem ser ao mesmo tempo pontos de partida9.

Uma outra estratégia de existência/criação foi a apropriação de lugares não primeiramente dedicados à dança (o teatro) como lócus de trabalho. A própria ocupação da Judson Church pode ser lida como estratégia assim como os atualmente chamados “Early Works” de Trisha Brown foram frutos de interesse em “equipamentos” (equipments) fora do estúdio, dialogando a partir daí com o espaço arquitetônico das cidades (“Roof Piece” nos tetos de Nova Iorque, “Man Walking on the Side of a Building” nas paredes externas dos prédios, “Floor of the Forest” em jardins, “Accumulation” no meio do lago) 10.

Gostaria de lembrar aqui também de uma estratégia que foi muito utilizada nas danças pós-modernas e que veio por influência direta dos workshops de Robert Dunn. Refiro-me ao uso do acaso (chance procedures) como matéria de composição. Parte estruturante de alguns processos de decisão das estruturas (games e scores) destas danças, o acaso, ou melhor dito, a indeterminação, aparecia de diferentes maneiras (e em diferentes momentos do processo) de cada criador. Por exemplo uma regra poderia ser: “Você fica fazendo estes movimentos até que alguém te toque no ombro e você então poderá iniciar o seu texto”. Indicações como estas estavam mais ligadas à descrição do que aconteceria do que a uma conexão de sentido.

Outra estratégia de existência/criação: a utilização de tarefas (tasks) como gerador de movimento, com sua ênfase na justa energia de fazer (em contraposição a representar) e também a criação de jogos (games) com regras estritas (scores) para atuação - estes últimos também presentes nos workshops de Ann Halprin, na Califórnia. Estas estratégias são muitas vezes descritas como características da dança pós-moderna por meio da “negação” do simbolismo11 proposto pela dança moderna norte-americana, “já” afastado por Merce Cunningham e agora levado ao extremo pelos pós-modernos. Será esta negação um sintoma de modernidade? Segundo Michèlle Lefebre, em seu capítulo no livro Danse et Thêatralité, o projeto era “exprimir-se fora do código”, ruptura total com o passado e a tentativa de grau zero da atuação (da representação). Não seria antes uma vontade modernista, a de agrupar essas características todas juntas e tomá-las como um sintoma de modernidade? Pois que Sally Banes chega a dizer:

“(...) a dança moderna histórica nunca foi totalmente modernista. Frequentemente, as questões levantadas pelo modernismo nas outras artes surgem precisamente na arena da dança pós-moderna: o inventário das propriedades do meio, a exposição das qualidades da dança considerada como uma arte, a dissociação dos elementos formais, a eliminação de todo conteúdo

8 Traçando uma correspondência com os ready-mades duchampianos.

9 Como é o caso da coreografia WALK de Steve Paxton.

10 Sendo alguns dos Early Works também apresentados em contextos de espaços fechados.

11 Aqui não me refiro à corrente simbolista mas tão somente pelo fato de a dança moderna norte-americana se

utilizar de símbolos, de alusões e metáforas como conteúdo ou tema de suas danças.

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exterior à dança. Assim, sobre vários pontos, é a dança pós-moderna que tem uma trajetória modernista.”12

E se essas estratégias fossem respostas ao entorno, como propostas que, mesmo textualmente falando de “ir contra”, acabam necessariamente também criando outra coisa? Porque se o processo de “purificação” (de ir contra, de “dissociação dos elementos formais”), estiver de mãos dadas com o processo de “hibridação” (de mistura, de tradução), o que se produz é outra coisa que não Modernidade já que não tem pureza, e temos, o ao contrário, mais mistura. A modernidade coloca o processo de purificação (a separação do que é próprio) como produto final e objetivo, e coloca o processo de hibridação como meio que vai ser apagado (para chegar às questões “puras”). É manobra da modernidade ocultar os meios pelos quais chegamos a tais resultados puros. No caso de Banes, concluir que a dança pós-moderna tem trajetória modernista parece desconsiderar os vários OUTROS pontos, isto é, as outras tramas da rede de conexões como constituintes.

Se sairmos desta análise veremos que a dança pós-moderna americana tem, dentro do seu “pequeno grande recorte”, movimentos contraditórios em relação à modernidade, ora se aproximando dela, ora se afastando no modo de proceder.

NESTA PERSPECTIVA, O QUE SIGNIFICA REVER?

A mirada que proponho relaciona e retorna “aos seres e às suas relações, às redes construtoras de irreversibilidade e reversibilidade” (Latour: 1994) propondo que as histórias das danças pós-modernas norte-americanas foram tecidas por diversos agentes e por intricadas conexões que foram sendo “apagadas” da história da dança hegemônica em prol de um sentido único de sucessão e superação. Rever aqui significa abrir espaço para outras relações, serve para nos posicionar perante a essas reflexões, neste caso procurando dizer “nem sucessão, nem superação” mas antes co-existência e co-habitação com todas as suas contradições. Uma tal fala quer se aproximar destas manifestações com olhar renovado e traçando conexões com o presente.

Além disso, mencionei , embora um tanto brevemente, outro exemplo bastante singular (tropicalismo no Brasil) de resposta, à sua maneira, aos pedidos de transformação dos anos 60. Meu intuito foi o de colocar lado a lado outra história que estava acontecendo fora do contexto norte-americano e que também foram potentes respostas à sua época. A reapropriação tropicalista da antropofagia, em especial, foi uma alegre (no sentido espinosiano) resposta anti-colonialista.

Aproximando tropicalismo de dança pós-moderna americana procuro dar camadas de espaços/tempos que podem ser revistas e delas sempre tirar outras coisas. Ainda um outro motivo me impulsiona a escrever tal texto: vivemos em uma época (em particular a partir da metade da década de 90) de proliferação de remakes, redoings, revisitações especialmente das propostas iniciadas nos anos 60. Cabe a nós analisar que uso fazemos destas releituras e o que queremos com elas. Mas isso já é um outro tema.

12

BANES, Sally “Terpsichore in sneakers: post-modern dance” Weslean University 2a. edição Press, Middletown:

1987. Existem ainda outros indícios desta postura modernista em relação à Sally Banes proposta por Ramsay Burt

em seu livro sobre a Judson Dance Theatre. Entretanto, este seria tema para um artigo em si e decidi ainda não

desenvolvê-lo aqui em virtude de um outro raciocínio em curso neste texto.

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BIBLIOGRAFIA

BANES, Sally “Terpsichore in sneakers: post-modern dance” Weslean University 2a. edição Press, Middletown: 1987.

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FILMOGRAFIA

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DVD “Entrevista com Yvonne Rainer”. CND, Paris: 2004

DVD “Early Works” de Trisha Brown.