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Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1813 Fernando Pessoa RACIOCÍNIO — Uma das regras fundamentais do raciocínio RACIOCÍNIO Uma das regras fundamentais do raciocínio é distinguir o fundamental e o acidental em determinada teoria, distinguir a teoria essencial e a aplicação particular que um ou outro lhe dê. Assim, se discutirmos o problema da existência de Deus, devemos começar por definir o que se entende por Deus nesse problema. Se se entende, como é de presumir, um ente espiritual supremo, criador do mundo, então, nesse sentido, examinaremos o problema, não o misturando com o problema acidental da existência ou não existência de um Deus omnipotente, ou bom, ou infinito. Este último é um conceito particular de Deus, não o conceito geral. É concebível um ente criador finito do mundo; é concebível um criador do mundo que não seja mau nem bom; é concebível um criador do mundo que não seja omnipotente. Cumpre, em suma, distinguir a ideia geral de Deus da ideia particular de Deus na Igreja Católica ou qualquer outra Igreja. Sem fazer esta distinção, não estaremos examinando o problema, mas outro problema. Por isso o que há de fundamental em raciocínio é definir os termos que se vão empregar, ou os que se vão analisar. Muitas discussões resultam frustes e inúteis porque, girando em torno de certo termo, cada contendor dá a esse termo um sentido diferente; de modo que, julgando que estão discutindo a mesma coisa, estão, ao contrário, discutindo coisas diferentes. Já tem sucedido, por este erro, estarem discordando contendores que estão de acordo, e que o verificariam logo se começassem por definir, limitar, compreender o que é que, em suma, estão discutindo. s. d. Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968: 140. Obra Aberta · 2011-02-09 05:25

RACIOCÍNIO - Uma Das Regras Fundamentais Do Raciocínio

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RACIOCÍNIO - Uma das regras fundamentais do raciocínio

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    Fernando Pessoa

    RACIOCNIO Uma das regras fundamentais do raciocnio

    RACIOCNIO

    Uma das regras fundamentais do raciocnio distinguir o fundamental eo acidental em determinada teoria, distinguir a teoria essencial e a aplicaoparticular que um ou outro lhe d. Assim, se discutirmos o problema daexistncia de Deus, devemos comear por definir o que se entende por Deusnesse problema. Se se entende, como de presumir, um ente espiritual supremo,criador do mundo, ento, nesse sentido, examinaremos o problema, no omisturando com o problema acidental da existncia ou no existncia de umDeus omnipotente, ou bom, ou infinito. Este ltimo um conceito particular deDeus, no o conceito geral. concebvel um ente criador finito do mundo; concebvel um criador do mundo que no seja mau nem bom; concebvel umcriador do mundo que no seja omnipotente. Cumpre, em suma, distinguir aideia geral de Deus da ideia particular de Deus na Igreja Catlica ou qualqueroutra Igreja. Sem fazer esta distino, no estaremos examinando o problema,mas outro problema.

    Por isso o que h de fundamental em raciocnio definir os termos que sevo empregar, ou os que se vo analisar. Muitas discusses resultam frustese inteis porque, girando em torno de certo termo, cada contendor d a essetermo um sentido diferente; de modo que, julgando que esto discutindo amesma coisa, esto, ao contrrio, discutindo coisas diferentes. J tem sucedido,por este erro, estarem discordando contendores que esto de acordo, e que overificariam logo se comeassem por definir, limitar, compreender o que que,em suma, esto discutindo.

    s. d.

    Textos Filosficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por Antnio de PinaCoelho.) Lisboa: tica, 1968: 140.

    Obra Aberta 2011-02-09 05:25

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