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Olga MagalhãesFernanda Costa
Recursos de Apoio ao Programa – I
Texto Argumentativo / Padre António Vieira
Oo
Português, 11.° ano
Olga Magalhães e Fernanda Costa Português, 11.° ano Oo
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Sermão da Quinta Dominga da Quaresma (1654)
[...] Se o império da mentira não fora tão univer-
sal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta
nossa ilha tinha sua corte a mentira. Todas as
terras, assim como têm particulares estrelas, que
naturalmente predominam sobre elas, assim
padecem também diferentes vícios, a que geral-
mente são sujeitas. Fingiram a este propósito os
Alemães uma galante fábula. Dizem que quando
o Diabo caiu do Céu, que no ar se fez em peda-
ços, e que estes pedaços se espalharam em diver-
sas províncias da Europa, onde ficaram os vícios
que nelas reinam. Dizem que a cabeça do Diabo
caiu em Espanha, e que por isso somos fumosos,
altivos, e com arrogâncias graves. Dizem que o
peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a
entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que
esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a
taça. Dizem que os pés caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressa-
dos no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um
caiu em Holanda, outro em Argel, e que daqui lhes veio (ou nos veio) o serem corsários. Esta é
a substância do apólogo1, nem mal formado, nem mal repartido; porque ainda que a aplicação
dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade, que basta
para dar sal à sátira. E suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela
que nos toca ao nosso Portugal é a língua: ao menos assim o entendem as nações estrangeiras,
que mais de perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio2 um abecedário
inteiro, e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de
Portugal; que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M. Maranhão, M.
murmurar, M. motejar, M. maldizer, M. malsinar3, M. mexericar, e, sobretudo, M. mentir:
mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por
todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos são as duas moedas correntes desta terra:
mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre
muito, para tudo ser moeda falsa.
Na Baía, que é a cabeça desta nossa província do Brasil, acontece algumas vezes o que no
Maranhão quase todos os dias. Amanhece o Sol muito claro, prometendo um formoso dia, e den-
tro em uma hora se tolda o céu de nuvens, e começa a chover como no mais entranhado Inverno.
Mapa de São Luís do Maranhão (1629), Arquivo digital da Biblioteca Nacional
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Sucedeu-lhe um caso como este a D. Fradique de Toledo, quando
veio a restaurar a Baía no ano de mil seiscentos e vinte e cinco. E
tendo toda a gente da armada em campo para lhe passar mostra,
admirado da inconstância do clima, disse: En el Brasil hasta los
cielos mientem. Não sei se é isto descrédito, se desculpa. Que
mais pode fazer um homem, que ser tão bom como o céu da terra
em que vive? […] Mas o que se disse do Brasil por galanteria se
pode afirmar do Maranhão com toda a verdade. É experiência
inaudita a que agora direi, e não sei que fé lhe darão os matemáti-
cos que estão mais longe da Linha. Quer pesar o Sol4 um piloto
nesta cidade onde estamos, e não no porto, onde está surto o seu
navio, senão com os pés em terra: toma o astrolábio na mão com
toda a quietação e segurança. E que lhe acontece? Cousa prodi-
giosa! Um dia acha que está o Maranhão em um grau; outro dia em meio; outro dia em dous;
outro dia em nenhum. E esta é a causa por que os pilotos que não são práticos nesta costa
areiam5, e se têm perdido tantos nela.
De maneira que o Sol, que em toda a parte é a regra certa e infalível por onde se medem os
tempos, os lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até ele mente. E terra onde até
o Sol mente, vede que verdade falarão aqueles sobre cujas cabeças e corações ele influi. Acon-
tece-lhes aqui aos moradores, o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em que altura está.
Cuida o homem nobre hoje que está em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envile-
cido. Cuida a donzela recolhida que está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada
pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom sacerdote, e amanhã acha-se com
reputação de mau homem. Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia noutra, por-
que os lábios são como o astrolábio. É isto assim? A vós mesmos o ouço, que eu não o adivinhei.
Vede se é certa a minha verdade, que não há verdade no Maranhão.
Padre António Vieira, in História e Antologia da Literatura Portuguesa – século XVIII, “Padre António Vieira II – Sermões, Fundação Calouste Gulbenkian, Série HALP n.° 37, Maio 2007 (com supressões)
[disponível em www.leitura.gulbenkian.pt/boletim.../HALP_37.pdf]
Astrolábio
1. apólogo: ensinamento moral em forma de fábula. 2. Drexélio: Jeremias Drexel, jesuíta pregador e escritor alemão do século XVII (n. 1581,m. 1638). 3. malsinar: desvirtuar. 4. pesar o Sol: nome dado pelos nossos pilotos à operação que consiste em, usando um astrolábio, deter-minar o meio-dia solar no lugar considerado, ou seja, o instante em que o Sol passa no meridiano do lugar ou, ainda, o instante em que a suaaltura é máxima. 5. arear: perder o juízo, o tino.
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OS ARGUMENTOS
Os argumentos constituem parte essencial de um texto argumentativo; destinam-se aapoiar ou a refutar a tese inicial e são, frequentemente, sustentados por exemplos.
Entre os mais usuais, podemos encontrar os seguintes tipos de argumentos:
• de autoridade – opiniões emitidas por pessoas/entidades de prestígio na matéria a tratare os textos de normativos legais, entre outros;
• universais – saberes universalmente aceites;
• proverbiais – valores de verdade aceites por todos, como é, por exemplo, o caso dosprovérbios;
• por analogia – a partir de um caso ou exemplo específico, em muitos aspectos seme-lhante ao que está em causa;
• de experiência – experiências já vividas pelo próprio ou por outros;
• históricos – exemplos da tradição e da experiência histórica.
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TÓPICOS DE ANÁLISE
1. Tema do sermão.
2. Síntese oral da fábula alemã, partindo do esquema.
Queda do Diabo do céu
cabeça peito ventre pés braços com as mãos e unhas crescidas
ESPANHA ITÁLIA ALEMANHA FRANÇA HOLANDA ARGEL
. fumosos
. altivos
. arrogânciasgraves
. fabricadores demáquinas
. não se darem aentender
. trazerem ocoraçãosempre coberto
. inclinados àgula
. gastarem maisque os outroscom a mesa ecom a taça
. poucosossegados
. apressados noandar
. amigos debailes
. serem corsários
3. Caso específico de Portugal: a língua e os seus ‘vícios’.
4. A estrutura do sermão.• a tese• os argumentos• a conclusão
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O BARROCO NA LITERATURA
O estilo Barroco reflectiu-se, na literatura, pelo culto excessivo da forma (o cultismo) e doconceito (o conceptismo).
O cultismo caracteriza-se pela linguagem rebuscada, culta, exagerada, descritiva; pela valo-rização do pormenor, com recurso a jogos de palavras (ludismo verbal), ao paralelismo, àssimetrias, aos contrastes, etc.
O conceptismo tem por base os jogos de ideias e conceitos que suportam um raciocíniológico, ao serviço da arte de bem falar (a retórica).
5. A linguagem e estilo.
• paralelismo anafórico• metáfora• comparação• interrogação retórica• antítese• jogos de palavras• …
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1. Tema do sermão: a mentira que reina no Maranhão (Cf. ll.1-3 e 61).
2. Síntese oral da fábula alemã: para denunciar a gravidade deste vício da mentira, Vieirarecorre a uma fábula alemã segundo a qual o diabo, quando ‘caiu’ do céu, desfez-se no arem pedaços que se espalharam por diversos países/províncias da Europa, transmitindo acada um deles os vícios correspondentes às diversas partes do seu corpo. Assim, à Espa-nha (a cabeça) coube a altivez e a arrogância, à Itália (o peito) o engenho e a dissimulação,à Alemanha (o ventre) a gula, à França (os pés) o desassossego, à Holanda e a Argel (osbraços com as mãos e unhas compridas) a pirataria.NOTA: Poderá aproveitar-se a ocasião para explorar o(s) sentido(s) do verbo “fingir” (l. 7): fingir (latim fingo, -ere,modelar, arranjar, dar forma, representar, imaginar, inventar) v. tr. inventar; fantasiar; simular; v. intr. serdissimulado; aparentar o que não é.
3. Caso específico de Portugal: a língua e os seus ‘vícios’.No espaço ibérico, a Portugal corresponderia, na opinião dos estrangeiros, a língua. Assim,o vício da mentira ter-se-á instalado no nosso país. Tendo este sermão sido pregado naIgreja Maior de São Luís do Maranhão, no Brasil, província portuguesa onde Vieira viveugrande parte da sua vida, é aí que o pregador se concentra, e, partindo do abecedário deDrexélio (V. nota 2. do texto), à letra M de Maranhão associa seis ‘vícios’ de língua, todoseles começados por M: “M. murmurar, M. motejar, M. maldizer, M. malsinar, M. mexericar,e, sobretudo, M. mentir” (ll. 27-28).
4. A estrutura do sermão.
• a tese – Não há verdade no Maranhão.
• os argumentos – entre outros: de experiência: ll. 33-51 (comentário de D. Fradique deToledo e exemplo da medição do Sol pelo astrolábio no Maranhão); por analogia – ll. 53-54(“E terra onde até o Sol mente, vede que verdade falarão aqueles sobre cujas cabeças ecorações ele influi.”);
• a conclusão – ll. 59-61: “Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia noutra,porque os lábios são como o astrolábio. É isto assim? A vós mesmos o ouço, que eu nãoo adivinhei. Vede se é certa a minha verdade, que não há verdade no Maranhão.”
TÓPICOS DE RESPOSTA
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5. A linguagem e estilo.
• paralelismo anafórico – Cf.: ll. 3-7 (“Todas as terras, assim como têm particularesestrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem também diferentesvícios, a que geralmente são sujeitas.”); ll. 8-20 (“Dizem que quando o Diabo caiu do Céu,que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas provínciasda Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça do Diabo caiuem Espanha, e que por isso somos fumosos, altivos, e com arrogâncias graves. Dizemque o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não sedarem a entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu emAlemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que osoutros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés caíram em França, e que daqui nasceserem pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de bailes. Dizem que os bra-ços com as mãos e unhas crescidas, um caiu em Holanda, outro em Argel, e que daquilhes veio (ou nos veio) o serem corsários.”); ll. 56-59 (“Cuida o homem nobre hoje queestá em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela reco-lhida que está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas praças. Cuida oeclesiástico que está em altura de bom sacerdote, e amanhã acha-se com reputação demau homem.”)NOTA: Poderá aproveitar-se a ocasião para explorar o(s) sentido(s) do verbo “cuidar”: cuidar v. tr. imagi-nar; supor; pensar; ter cuidado em; tratar de; v. intr. interessar-se por; trabalhar; v. pron. julgar-se; ter-sepor; tratar-se.
• metáfora – por exemplo: ll. 52-54 (instabilidade do tempo/instabilidade (mentira) doshomens)
• comparação – por exemplo: ll. 54-55 (“Acontece-lhes aqui aos moradores, o mesmo queaos pilotos, que nenhum sabe em que altura está.”); l. 60 (“[…] os lábios são como oastrolábio.”)
• interrogação retórica – Cf. ll. 26-27, 40-42, 48 e 60.
• antítese – por exemplo: ll. 56-59 (“Cuida o homem nobre hoje que está em altura de hon-rado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está emaltura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas praças. Cuida o eclesiástico queestá em altura de bom sacerdote, e amanhã acha-se com reputação de mau homem.”)
• jogos de palavras – por exemplo, ll. 30-32 (“Novelas e novelos são as duas moedas cor-rentes desta terra: mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e osnovelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa.”)
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Crítica de condutas sociais
A vida colectiva ocupava, porém, um lugar marcante e elucidativo nesta sermonária do
5.° Domingo da Quaresma. A quadra litúrgica de cariz peniten cial, por adrede a semelhantes
referências em ordem ao arrependimento e à conversão, era pretexto para um desnudar crí-
tico de vícios e males congénitos, enquistados no quotidiano, em que a virtude da justiça se
nos afigura ser a mais molestada. Nos escritos políticos e moralistas do tempo, o bem
comum ocupava uma atenção significativa. Daí as violações de direitos, a corrupção admi-
nistrativa e judicial, a opressão dos mais fracos, o clientelismo na distribuição das mercês
serem matéria de tratamento obrigatório. A coberto da liberdade que o púlpito proporcio-
nava ao ministro sagrado, fortes e negras pinceladas, aqui e além com exagero calculado,
ilustravam exemplarmente o sermão desse domingo. Por vezes até a construção temática do
discurso era toda assente num problema ocorrente que dominava a atenção do auditório. A
denominação do dia justificava e até exigia este estendal de “verdades” que importava lem-
brar para serem escutadas. Chegava a ser uma litania, não raro confrangedora e sempre pro-
vocatória, de desvios e culpas, abusos e escândalos que esmaltavam a comunidade de forma
a constituírem mais um documento da realidade, achega valiosa para a história social e das
mentalidades.
Assim, o Padre António Vieira, ao pregar na Sé de Lisboa em 1651, alude criticamente à
ambição política dominante que levava a pôr todo o cuidado, toda a indústria e todas as artes:
“em subir, em crescer, em se fazer grandes”, não importando se à custa de “grandes e peque-
nos”; ao emprego indevido dos bens eclesiásticos, que “são de Deus”, aplicados e consumidos
em usos profa nos; ao empréstimo de dinheiro a juro de cinco por cento e, ilegalmente, a seis e
quarto, com escritura feita em paço de tabeliães. Ao sair do reino em 1652, rumo ao Brasil,
para se dedicar no Maranhão, à evangelização Vieira ia ani mado de generosos propósitos. A
cidade de S. Luís, onde desembarcou a 16 de Janeiro de 1653, era, na altura, um pequeno
núcleo urbano, de seiscentas famílias – fixadas nas zonas ribeirinhas, do Coty e Bacanga, «na
península situada à parte ocidental da ilha, onde os franceses, primeiros povoadores, se tinham
estabelecido» –, considerado um tremedal de vícios e torpezas, que logo excitou o seu espírito
polémico de combativo nato. Os doze anos passados na corte de Lisboa vivera-os em agitação
contínua: missões diplomáticas na Europa, conflitos bélicos com castelhanos e holandeses,
rivalidades palacianas e diferendos com inimigos da Companhia de Jesus e mesmo confrades.
Por sua vez, o teatro da sua actuação missionária era imenso e árduo. Escrevia ao monarca a 4
de Abril, no ano imediato: «O Maranhão e o Pará é uma Rochella de Portugal, e uma con-
quista por conquistar», uma terra onde o rei é nomeado, mas não obedecido. Quatro povoado-
res de índios se tinham implantado na ilha de Maranhão, tempos atrás. Baptizados embora, da
TEXTO DE APOIO ao Professor
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religião ficaram-lhes apenas noções esfarrapadas e ritos vagos. Socialmente eram vítimas de
servidões abusivas, impostas pelos colonos. Ao chegar, logo Vieira se esforçara para que os
índios ficassem, como na Baía, sob a protecção dos jesuítas. Porém, a cobiça dos portugueses,
com a conivência das autoridades, esmagava desapiedadamente os índios, forçados a trabalhar
nas “lavouras dos brancos”, que os dizimavam, ou aprisionados nas “entradas” para sustentar
essa mão-de-obra, em contínuo desgaste. Abrira-se assim um conflito entre os padres inacia-
nos, a população branca e mestiça e os governantes locais. Eis o contexto circunstancial moti-
vador desse sermão do 5.° Domingo da Quaresma de 1654, pregado na Matriz da cidade, a 22
de Março, dia das verdades, sustentando que naquela terra “tinha sua corte a mentira”. O tema
é um desafio e uma violenta acusação ao auditório: «a verdade que vos digo é que no Mara-
nhão não há verdade». Apostado, de início, em denunciar a gravidade deste vício, detestável e
detestado, o pregador serve-se de uma fábula alemã segundo a qual o diabo caído do céu, ao
desfazer-se em pedaços, viu-os espalhados por diversas províncias da Europa, transmitindo-lhes
os vícios que nelas reinam. Se à França couberam os pés daqui nascendo «serem [os habitan-
tes] poucos sossegados, apressados no andar, e amigos de bailes», a Espanha recebeu a cabeça,
pois os naturais são «fumosos, altivos, e com arrogâncias graves»; porém, a língua, como parte
dela, tocou a Portugal, no comum entender dos estrangeiros. E, assim sendo, se as letras do
abecedário de Drexélio, que reúne todos os vícios da língua, se repartissem pelos estados
lusos, a letra atribuída ao Maranhão seria, sem dúvida, o M. que aglutinaria: o M. de murmu-
rar, motejar, maldizer, malsinar, mexericar, e, sobretudo, «mentir com as palavras, mentir com
as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente».
Novelas e novelos, explora a homofonia, são as duas moedas correntes na terra; só com uma
diferença: «as novelas armam-se sobre nada, e os novelos sobre muito, para tudo ser moeda
falsa». O meio ambiente inspira-lhe então uma curiosa metáfora, para original e inesgotável
exploração: os homens reflectem os humores do clima, pois, no Maranhão passa o dia numa
constante mudança. […] Da mesma maneira sucede no Maranhão em que o Sol, “por onde se
medem os tempos, os lugares, as alturas”, porque aqui se mente, todos acabam por se deso-
rientarem, acontecendo aos moradores o mesmo que aos pilotos, quando demandam a barra,
porquanto nenhum tem consciência em que altura está: «Cuida o homem nobre hoje, que está
em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que
está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas praças.» Enfim, justifica o ora-
dor, «porque os lábios são como o astrolábio».
[…]
Meses depois, a 13 de Junho, no mesmo púlpito, o orador não poupará os colonos, de prática
religiosa tão afastada das exigências da fé, verberando-os com redobrada violência através do
alegorismo do seu famoso sermão de Santo António aos peixes. […]
João Francisco Marques, “O púlpito barroco português e os seus conteúdos doutrinários e sociológicos – a pregação seiscentista do Domingo das Verdades” (com supressões)
[disponível em ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3441.pdf]