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Revista de Cultura AJUFE ANO 5 . ABRIL DE 2013 . Nº 8 Ponto de vista Ministros do STJ João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima falam sobre o trabalho no tribunal, preferências culturais e mineiridade Crônicas e contos Chico Buarque e a ditadura, causos verídicos e engraçados, a revolta de um matador que falhou em cumprir seu trabalho: conra histórias contadas com maestria por nossos magistrados Galeria Belas imagens retratadas pelos juízes federais em suas viagens pelo Brasil e o mundo

Revista de Cultura Ajufe - nº 8

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8ª edição da Revista de Cultura da Associação dos Juízes Federais do Brasil

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Revista de Cultura

AJUFE

ANO 5 . ABRIL DE 2013 . Nº 8

Ponto de vistaMinistros do STJ João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima falam sobre o trabalho no tribunal, preferências culturais e mineiridade

Crônicas e contosChico Buarque e a ditadura, causos verídicos e engraçados, a revolta de um matador que falhou em cumprir seu trabalho: confi ra histórias contadas com maestria por nossos magistrados

GaleriaBelas imagens retratadas pelos juízes federais em suas viagens pelo Brasil e o mundo

Nos últimos anos, os azeites da Olivares de Quepu foram premiados nos principais concursos europeus e americanos:

Terraolivo / Mediterranean International Olive Oil Competition – Israel, 2012 | Los Angeles Extra Virgin Olive Oil Competition –EUA, 2010 e 2011Concorso Internazionale L´Orciolo D´Oro – Itália, 2004, 2006, 2007, 2009, 2010, 2011 e 2012 | 4ª ExpoAzeite Concurso de Azeites Extra Virgem –Itália, 2010

12° Concorso Internazionale Oli da Oliva L´Orciolo D´Oro – EUA, 2010

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O azeite de oliva é utilizado desde a Antiguidade pelos povos do Mediterrâneo, e foi um dos principais produtos comercializados pelos fenícios, que, como os povos da Mesopotâmia,os egípcios e os gregos, já o usavam há seis mil anos. Ao longo dos tempos, sua utilização cresceu e sua importância se acentuou, como resultado dos múltiplos aproveitamentos que lhe foram dados, especialmente na alimentação e medicina. Seu consumo tomou grandes proporções na cozinha moderna graças aos benefícios que o azeite propicia à saúde, principalmente os azeites extravirgens, que possuem propriedades e vitaminas que podem prevenir doenças e melhorar a pele, além de conter ainda diferentesvitaminas (A, D, K e E). Dentre os inúmeros benefícios do azeite extravirgem estão sua ação antioxidante, redução do mau colesterol, proteção ao coração e ao cérebro, proteção contra a osteoporose, efeito analgésico, além de hidratação capilar e fortalecimento das unhas. Além de todos esses benefícios, o azeite dá sabor, cor e aroma, integra os alimentos, personaliza e identifica um prato. Graças ao conhecimento de seus benefícios, o consumo de azeite foi difundido de forma a abranger mercados longínquos dos locais de produção. Pensando na saúde e no crescimento do mercado do azeite, a Olivares de Quepu tem investido na expansão da sua marca.A empresa, localizada na região de Maule, no Chile, dedica-se 100% à produção de azeite de oliva extravirgem de altíssima qualidade. As oliveiras foram cultivadas no Vale de Pencahue, na VII Região, cidade de Talca, considerada uma terra muito fértil. No início, apenas 80 hectares e, após uma década, possui 763 hectares plantados.

Devido à integração vertical na cadeia de produção, desde produzir as mudas para plantio até o engarrafamento dos azeites, a Olivares de Quepu obtém produtos únicos em sua categoria. Assim os monovarietais 1492 – Frantoio, Picual e Arbequina – e o Oromaule, cada um com a sua característica particular, mas todos com qualidade inigualável, com acidez de 0,2% e diversas premiações, adquiriram fama e prestígio no mercado mundial.

Sabor e saúde desde a antiguidade

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Diretoria da Ajufe • Biênio 2012/2014

Presidente

Nino Oliveira Toldo

Vice-Presidente da 1ª Região: Ivanir César Ireno Júnior

Vice-Presidente da 2ª Região: José Arthur Diniz Borges

Vice-Presidente da 3ª Região: José Marcos Lunardelli

Vice-Presidente da 4ª Região: Ricardo Rachid de Oliveira

Vice-Presidente da 5ª Região: Marco Bruno Miranda Clementino

Diretoria

Secretário-Geral: Vilian Bollmann

1° Secretário: Frederico Valdez Pereira

Diretor Tesoureiro: Fernando Marcelo Mendes

Diretor da Revista: José Antonio Lisbôa Neiva

Diretor de Assuntos Legislativos: Adel Américo Dias de Oliveira

Diretora de Relações Internacionais: Marcelle Ragazoni Carvalho

Diretor Cultural: Juliano Taveira Bernardes

Diretora Social: Raquel Soares Chiarelli

Diretor de Relações Institucionais: Alexandre Vidigal de Oliveira

Diretor de Assuntos Jurídicos: Antônio André Muniz M. de Souza

Coordenador de Comissões: Jader Alves Ferreira Filho

Diretor de Esportes: Bruno Teixeira de Paiva

Diretor de Assuntos de Interesse dos Aposentados: André José Kozlowski

Diretor de Tecnologia da Informação: George Marmelstein Lima

Diretor Administrativo: Emanuel Alberto Gimenes

Diretor de Comunicação: Décio Gabriel Gimenez

Conselho Fiscal

Alessandro Diaferia

César Arthur C. de Carvalho

Warney Paulo Nery Araújo

Joaquim Lustosa Filho

Coordenação geral: Nino Oliveira Toldo

Coordenação de apoio: José Antonio Lisbôa Neiva

Jornalista responsável: Alessandro Mendes (Azimute Comunicação)

Projeto gráfi co: Eye Design

Diagramação: Supernova Design

Ilustrações: Caio Oishi

Apoio técnico • Andréia Levi

Colaboradores desta edição: Nicolas Bonvakiades e Iara Vidal

Foto da capa: Bernardo Carneiro

Ajufe • Associação dos Juízes Federais do Brasil

SHS Quadra 06, Bloco E, Conjunto A, Salas 1305 a 1311,

Brasil XXI, Edífi cio Business Park 1, Brasília/DF

CEP: 70322-915

Tel. (61) 3321.8482 e fax (61) 3324.7361

www.ajufe.org.br

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não

refl etem, necessariamente, a opinião da revista. É proibida a

reprodução total ou parcial dos textos, fotos e ilustrações sem

prévia autorização.

Revista não destinada à venda. Distribuição realizada pela Ajufe.

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expediente

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Palavra do presidente

É com imensa alegria que retomamos a publicação da Revista de Cultu-ra da Ajufe, um veículo que se propõe a mostrar a criatividade, a sensi-bilidade e o viés artístico de nossos colegas.

A qualidade dos trabalhos impressiona. Juízes e desembargadores, acostumados ao ambiente árido e formal da magistratura, revelam-se poetas apaixonados, contistas de fi na malícia, articulistas de ideias contundentes. As fotografi as surpreendem pela técnica apurada, pro-fi ssional.

Esperamos que esta edição motive mais colegas a revelar esse lado artístico, humanista, fi losófi co. O resultado é bom para quem apre-cia esse belo conteúdo, mas principalmente para os próprios autores, que podem, mesmo que por alguns dias, distanciar-se da solidão que exige a magistratura.

O leitor encontrará no artigo Coisas da Viuvez e da Terceira Idade a deliciosa malícia do texto de Edilson Pereira Nobre Júnior. Em Chico & Cia no tempo do sufoco, de Roberto Machado, juiz federal e cronista bissexto, um passeio pela história recente da boa música brasileira, dos tempos da roda-viva, do cálice, de bêbados e equilibristas, de gente que partia e que voltava. Apesar de você, vai passar. Passou.

Maria Helena Cisne surpreende em Mi alma Te busca a Ti, com lindas palavras de fé. No poema Era uma vez a mulher, de Edwiges C. Caraciolo Rocha, versos que começam pela era do fl erte, da serenata, passam pelos anos dourados, pelo rock’n’roll, pelos anos de chumbo, diretas já, velhas e novas Repúblicas. A mulher se torna forte, chega ao poder. Mas a autora lembra: “Ser mulher é ser feminina a fundo”.

Numa linha oposta, o artigo de Everson Guimarães Silva relata o desespero de um juiz anacrônico, avesso à conciliação, à mediação. A ele, juiz do processo, do despacho, da sentença, causam enfado as es-tatísticas, os relatórios, os índices de produtividade.

No conto Júri de vítima viva, a linguagem crua, o realismo quase fantástico de Vladimir Souza Carvalho. Temos ainda os doces poemas de Marcos César Romeira Moraes, a saborosa farofa do fi nado tatu, de Carlos Geraldo Teixeira, a inocente brincadeira de cavaleiro, de Mar-cos Mairton da Silva, Sebastião e seu depoimento no fórum, de Gerson Godinho da Costa, e as belas imagens capturadas mundo afora pelas câmeras de Bruno Brum Ribas, Fabíola Queiroz, Frederico Koehler e Bernardo Carneiro.

Boa leitura!

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sumário

Revista de Cultura

AJUFE

Q

Conto – Vladimir Souza Carvalho

Gerson Godinho da Costa

I

Poesias – Maria Helena Cisne

Marcos César Romeira Moraes

Edwiges C. Caraciolo Rocha

Marcos Mairton da Silva

P

Entrevista com o ministro do STJ João Otávio de Noronha –

Nicolas Bonvakiades e Iara Vidal

G

Fotos – Fabíola Queiroz

Frederico Koehler

Bernardo Carneiro

Bruno Brum Ribas

C

Crônicas – Carlos Geraldo Teixeira

Roberto Machado

Edilson Pereira Nobre Júnior

A

Artigo – Everson Guimarães Silva

P

Entrevista com o ministro do STJ

Arnaldo Esteves Lima – Iara Vidal

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Quando Valdenísio bateu à minha porta, algu-ma coisa me dizia que havia carniça na estra-da, o fedor chegando às minhas ventas. Com o papel na mão, humildemente, até como se pedisse desculpa, me explicou que era uma intimação mandada pelo doutor juiz. E o que tenho eu com isso, que há anos não sei o que é matar fi lho de Deus algum, o revólver se enferrujando por falta de uso, minha aposen-tadoria obtida, de casa para o terreno, que é pequeno, mas serve para criar alguma vaca.

Valdenísio explicou que o juiz tinha marcado o júri. E júri de que, se eu não tenho mais mor-te nas costas, nem jurado sou, nem nunca fui, não entendo. Valdenísio, a voz bem baixa, me explicava que era o caso de Austro. Comecei a me azucrinar, também pudera, Austro estava vivo, vivinho da silva e dos limões, aquilo era uma história que eu não gostava de abordar, e

porque teria júri se não havia defunto morto, e o homem estava bem vivo, melhor que eu, que, afi nal, não conseguia entender a realiza-ção do júri se a vítima não habitava as pro-fundas do cemitério. Tentativa de homicídio, seu Manilton, tentativa de homicídio. Dá no mesmo. Tem de haver júri.

Dei para me coçar. Era fi car nervoso e a coceira aparecia, nos braços, nas pernas, pa-recia uma sarna da bexiga, sem cura, as unhas furando a carne, as feridas aparecendo, eu es-condendo todas com camisa de manga com-prida, para ninguém ver e sentir nojo. Coçava o corpo e caminhava pelos quatro cantos da sala. Valdenísio se achou demais, enrolou o papel, explicou que eu depois daria o ciente e desapareceu. Melhor assim. Deve ter tido medo de lhe endereçar minha raiva. No es-tado em que me encontrava, a fi gura de Aus-tro engasgada na goela, ainda me aparecia a história do júri, com a vítima viva. Se era bom para Austro, que tinha escapado do cemitério, porque eu não nego, não falseio a verdade, já encaminhara muitos para o inferno mais cedo, esse caso me deixava irritado. Mata-dor bom de morte, tranquilo nos meus tiros, naquela manhã disparei todas as balas que tinha direito, não conseguindo fazer de Aus-

Que assassino sou eu que descarrego a arma toda em Austro, acerto nos

lugares mais fatais, e ele não morre?

Júri de vítima vivaVladimir Souza Carvalho Desembargador federal

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tro um defunto novo. Parece que as balas estavam velhas ou cheias de umidade, disseram. Ou o corpo de Austro se fechou, alguma reza pesada de rezador dos bons, que ninguém pode duvidar da proeza dessas rezas e do poder do rezador. O certo é que o sortudo foi para o hospital golfando sangue, morre, não morre, um padre é chamado para a extrema-unção, acende uma vela, mas não morreu. Para um matador como eu, aquilo representava, como re-presenta, uma desmoralização, no duro e na batata. Que assassino sou eu que descarrego a arma toda em Austro, acerto nos lugares mais fatais, e ele não morre? Parecia que todo meu passado de muitas mortes, não por minha vontade, mais por minha disposição de não engolir desa-

foro, se diluía ante uma morte não consumada. E quem ia acreditar no defeito das balas? Antes atribuiriam à tre-medeira de minha mão, esse povo não presta mesmo, a língua maior que a serra de Itabaiana, decepcionado com a tragédia não ocorrida, Austro vivo, eu, danado da vida, por ter, pela primeira vez, errado os disparos.

Aposentei o revólver. Não aceito mais provocações. Estava cansado de matar e de ir a júri. Chega. Cuido só do meu terreno e do gado, além dos ganhos da aposen-tadoria, que é pequena. Mas ninguém se ponha a valente no meu caminho que posso esquecer o juramento. Vivi minha vida desde então recolhido no meu canto, sem sa-ber que as balas perdidas iam terminar em júri. Júri com vítima viva, quem nunca viu uma coisa dessa?! Se o ho-mem não morreu, não há defunto, não havendo cadáver, não há lugar para o júri. Era o que eu sabia e pensava, que

ciência a gente também tem das coisas, não sendo privi-légio só de homem de anel grosso de formatura no dedo e de placa de doutor na parede da frente da casa. Ade-mais, dos meus disparos anteriores, todos se foram para o cemitério, porque nunca dei ousadia de errar um tiro. Só o caso de Austro desmoralizou minha rotina de ma-tador fatal. Aí a conversa pipocou na rua, nas críticas que recebi (pelas costas, naturalmente, que na minha cara nin-guém teria coragem de abrir a boca, ninguém teria, não, ninguém tem!, ainda hoje, assim velho como estou), o re-vólver fi cando enferrujado, a mão tremendo, a frieza indo embora. Quanto mais pensava em Austro sobrevivendo, mais me irritava. O padre veio conversar comigo. Seu Ma-

nilton, pelo amor de Deus, pare com essa mania de matar. A salvação de Austro tem o dedo de Deus. Eu aguentando o sermão no meu focinho, a vontade de triturar o revólver na cara do padre, para não passar mais vexame, a conver-sa miúda do povo a invocar Deus e todos os santos do céu. Manilton está velho. A mão treme. Não acerta nem uma vaca a menos de um metro de distância. Manilton caduco, na cadeira de balanço, não fazia mais medo a nin-guém. Até cachorro vira-lata late em sua porta, os gatos capados cagando em seu telhado, passarinho zombando dele no terreiro da casa. Deviam dizer, na minha ausência, se esclareça, mesmo porque, apesar da idade avançada, imponho respeito.

Tudo isso aguentei calado. O padre no meu pé, insis-tindo, renovando o sermão, me fazendo ir à igreja para a comunhão, eu ajoelhado no confessionário, todos vendo

...o juiz não vai errar num caso tão simples, aliás, tão simples, que se eu fosse ele mandava chamar a vítima e dizia que se desse por feliz ao escapar, dando tudo por

encerrado, que assim era melhor para todos...

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e dando piada, que eu ia terminar em algum convento como frade, ou distribuindo hóstia na hora da missa, eu debulhando meus peca-dos, as mortes todas que a Justiça me absol-veu, meu advogado dando discursos, tirando os óculos e os colocando no nariz, contando mentiras e conversa mole, os jurados com medo de mim, porque sabiam de minha for-ça e de meu gênio espevitado, o promotor abrandando a acusação, os jurados me absol-vendo, eu forte como um touro, o peito pare-cendo um mourão bem grosso, defendendo minha honra, matando o que se atrevia a me desafi ar, como aquele moleque, que depois de abrir a porta em uma das minhas fi lhas, veio me dizer, a cara mais safada do mundo, que não tinha sido ele, o autor era um pepino, mas casava para a menina não fi car falada. Você casa é com meu revólver, fi lho da gota, e atirei nas suas buchas, na cara, bem na boca, para não me dizer mais nenhum desaforo. O moleque se aproveita da menina, depois vem com essa história de pepino, falta de coragem para assumir o que faz. Mas agora, prestem bem atenção, antes era júri de vítima morta, mortinha, enterrada no cemitério, na presen-

ça de todo mundo, a esta altura só osso preto e desintegrado. Júri de vítima viva só podia ser vingança de todos os defuntos, em con-chavo com o Satanás, contra minha pontaria. Eu, que nunca errei um tiro, não me gabo, nem conto vantagem, porque é verdade real, no martelo e na uria, ia agora ser julgado, a vítima viva, rindo, nas minhas costas, das ba-las úmidas, descuido danado. Um valentão como eu, que matei um de cascudo, que não aceitei o promotor no primeiro júri, o promo-tor brancão, parecendo barata descascada, que me provocou na instrução de um desses processos, porque foram muitos, e eu disse depois ao advogado que aquele indivíduo não aparecesse no júri, senão eu torava ele com um cascudo também, aplicado bem no cocuruto da cabeça, no momento em que ele fosse pregar contra minha pessoa, e ele não foi, pediu licença do serviço, se retirou da co-marca e não retornou mais, no que fez muito bem, quem manda me azuretar o juízo, mas, repito, para a gente não perder o fi o da con-versa, um valentão como eu, aliás, mais forte que valente, diria disposto, não podia agora, no fi nal de vida, que não me interessa viver

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muito, vivo enquanto for homem e caminhar com minhas pernas, não me deleitando fi car na cama amassando cocô, ir para o júri com a vítima viva. É desmoralização forma-lizada, ofi cializada e sacramentada. Comigo mesmo, não.

Não conheço as leis, doutor não sou, mal assino o nome, dominando apenas as contas, porque senão algum sabido passa a gente pra trás, não vou discutir com os que têm leitura. Se o doutor juiz marca júri assim é porque pode, o juiz não vai errar num caso tão simples, aliás, tão simples, que se eu fosse ele mandava chamar a vítima e dizia que se desse por feliz ao escapar, dando tudo por encerrado, que assim era melhor para todos, para ele, juiz, que não perdia tempo, para a vítima, porque estava viva, e devia mandar celebrar missa de ação de graça todo dia, e para mim, que não ouviria toda aquela história outra vez, mais uma vez, sem poder fazer nada, primeiro contando de minha própria boca, depois ouvindo da cabeça de Aus-tro, para, depois, ser obrigado a fi car entre dois soldados, companhia que não me agrada, escutando a ladainha ar-rastada e cantada do doutor promotor, senhores jurados para cá, senhores jurados para todo bichinho que tivesse a obrigação de ouvi-lo.

Fui para tanto júri que cansei. Em cadeira de júri não me sento mais, fi co incomodado, com dor de cabeça, me sentindo mal, vontade de vomitar, a coceira danada nos braços e nas pernas, envergonhado, confesso, com o fato de não ter matado Austro, bicho sortudo, se aproveitan-do de minhas balas estarem defeituosas para não morrer, moleque safado. Quando soube que o infeliz tinha esca-pado, quis ir à casa dele para fazer o serviço correto, com balas novas, mas Sinézia não deixou, travou meus passos, estava cansada de me ver matando e correndo, sendo preso e levado a júri, criou coragem a Sinézia, me colo-cando o dedo no nariz, se eu fosse homem, que matasse ela logo e de verdade, porque estava há muito morta de vergonha de tanta morte, de tanta miséria que eu tinha cultivado e plantado. Sinézia na minha fachada, tomando minha arma, ela sempre submissa, calada, obedecendo a minhas ordens e ao meu mandar. Acabou, Manilton, aca-

bou, ninguém vai mais se transformar em fi nado por sua mão. Ninguém, ouviu, o dedo no meu nariz, que homem nenhum nunca teve a disposição de colocar, Sinézia colo-cou, e eu me acovardei, obedeci, calado, espantado, sem coragem para abrir a boca, Sinézia avançando em minha direção, disposta, arretada de coragem, eu recuando, gri-tei ainda que matava ela, Sinézia no meu calcanhar, mata logo a mãe de seus fi lhos, que de vergonha ando cheia, eu com a arma na mão, fui baixando, baixando, tirei as balas, disse, toma, Sinézia, guarde, um dia a gente pode precisar, e Sinézia pegou a arma, Deus há de nos ajudar a nunca precisar disso, e voltou para a cozinha, sem tocar mais no assunto.

E, ora e agora, júri marcado, Austro vivo, na minha cara, contando tudo como ocorreu, eu atirando, as balas acer-tando o corpo do teimoso, ele cai aqui, se levanta ali, o sangue jorrando, minha alpercata se sujando dos pingos vermelhos, esperando ele se virar para atirar bem na caixa dos peitos, que nas costas nunca dei ousadia de disparar. Austro vivo no hospital, retornando de cadeira de roda, eu vendo tudo aquilo calado, o peido preso na barriga, Sinézia no meu calcanhar, não mato mais, prometi, está acabado, o revólver é para me defender, se necessário for, uma cobra que me apareça, um ladrão que tente roubar meu gado ou minhas melancias, mas para matar nunca mais. Prometi, prometi. Mas tudo isso antes da notícia do júri. Sinézia está calada, sentada na esteira, a máquina no chão, costura alguma coisa, comigo não fala nada do júri, me olhando com a cara sisuda, fazendo de conta que nada está acontecendo. Ela sabe no que penso. Eu sei no que ela pensa. Basta um olhar para o focinho do outro.

Valdenísio voltou com o papel na mão. Seu Manilton, o senhor se incomoda de dar seu ciente? O doutor juiz vai exigir, o senhor sabe como é, eu sou apenas mandado, não tenho nada com isso, por mim as coisas fi cavam como estão, mas meu apito é surdo, quem manda é o doutor juiz e, o senhor sabe, o homem vive com os códigos aber-tos, consultando, anotando, lendo, falando em constitui-ção, em lei tal e tal, despachando, lavrando sentença, não

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deixando processo algum sem seu decisório. Esse, seu Manilton, é bom de verdade, não re-cebe político com reverências e excelências, nem participa de procissão, é só trabalhar. Eu coloco meu nome com difi culdade, letra de-senhada, paro, soletro, verifi co se está certo, é outra coisa que me incomoda escrever o nome, a lentidão, Valdenísio me fi tando, so-prando as letras, minha escrita sai graúda, a caneta é por demais leve para meus dedos acostumados a muito peso, ao peso do revól-ver, Manilton Couvo Catuninho, fi nalmente rabisco, não sei quantos minutos de caneta na mão, Valdenísio de olho aceso, preocu-pado com o ciente no papel, para confi rmar a intimação, saindo em seguida, desculpas muitas, ora, seu Valdenísio, eu preciso fi car sozinho, no terreiro de minha casa, me balan-çando na cadeira, pensando no que vou fazer, a palavra dada a Sinézia projetando mergu-lhos rasos na minha mente, não mato mais, não mato mais. Até agora tinha cumprido a palavra, que palavra dada para mim é lei, não preciso assinar papel para confi rmá-la.

Mas isso foi antes da notícia do júri, repi-to. A gente pensava que não tendo Austro se tornado fi nado, a Justiça não ia se incomodar com uma besteira dessa. Depois, nunca mais tinha sido intimado, nem ido à audiência, pensando que tinham resolvido a pendenga. Mas o doutor juiz desenterrou o processo, marcou data para o júri, mandou me chamar. Eu ia, tinha de ir, não fugiria de intimação, porque assumo o que faço e me justifi co. Nunca matei por dinheiro. Nem por vingança, que esta sempre foi prato para se comer frio, e eu só gosto de comida quente, nem nun-ca tive motivo para tocaia, sempre enfrentei meus desafetos de frente, olhando para o fo-

cinho de todos. Mandei alguns, não sei quan-tos, para o cemitério, por questões de honra, porque homem de bem não se engasga com desaforo. Ou reage ou o desaforo desce. Pre-feri reagir. O primeiro foi o safado do perne-ta que jogou uma bola nas pernas de minha

fi lha mais velha, para ver se ela escorregava e caía. Queria que a menina, na queda, mos-trasse as coisas que, na idade dela, não se exi-bem na rua, nem em lugar algum. Ela chegou em casa chorando. Fui falar com ele. Mentiu. A palavra de minha fi lha tinha mais valor. Irritado, atirei no safado e na bola. Não vou narrar os motivos das outras mortes colhidas, porque o júri me absolveu toda vez que me sentei na cadeira ao lado dos soldados. Mas, admito, esse júri agora, quando até minha aposentadoria já está fi cando velha, quando dizem que estou caduco, e quem quiser que pense que estou mesmo, é de lascar para ser aceito. Não passa na minha boca. Não desce na minha goela. Não consigo mastigar a ideia, parecendo o fruto da barriguda que ninguém quebra com os dentes para tirar a lã, a não ser com o uso de pedra. Aí a saída.

Ninguém, ouviu, o dedo no meu nariz, que homem nenhum nunca teve a disposição de colocar, Sinézia colocou, e eu me acovardei, obedeci, calado, espantado, sem coragem para abrir a boca

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Chego para Sinézia e largo o verbo. Que-ro o revólver de volta. Vou resolver tudo. Se é para ir a júri, prefi ro com morte, não com tentativa. Vítima viva, assassino preso, isso é desmoralização que não aceito, uma escu-lhambação para minha velhice que merece respeito. Prefi ro matar, ir para a cadeia, mas de cabeça tranquila com o serviço feito. O jeito que tenho assim é matar Austro. Vou dar um cadáver de presente à Justiça, para poder ir a júri com a cabeça leve e o dever cumpri-do. Desta vez vou botar bala nova no revól-ver, para não ocorrer falha. Sinézia amarra a cara. Chora. Fica mais feia ainda. Vai começar tudo outra vez. Só esta, Sinézia, só esta vez, é a última, prometo, e tá acabado. Preciso de sua permissão. Você quer que eu morra com essa história na minha garganta? Quer me ver passar o resto de meus dias envergonhado? Ou quer me ver feliz, ainda que preso? Você me conhece, Sinézia. Quero a sua permissão. Suplico, peço, requeiro, imploro, me ajoelho até nos seus pés, se necessário for. As fi lhas perguntando, você diz que tirei a arma escon-dido, que é para não comprometê-la. Peço, insisto, reitero, repito as palavras e os argu-mentos. Sinézia vai ao quarto e traz o revólver. Não abre a boca. Limpo, passo graxa, disparo várias vezes, sem bala, até que considero a arma pronta, o dedo do fura bolo impaciente para puxar o gatilho.

Saio de casa certo de matar Austro, para cuja residência me dirijo. Entro na avenida, não respeito o canteiro das algarobas, me enfi ando, depois, por várias ruas, dobrando aqui e entrando ali, rua pela frente que não se acaba mais, nunca pensei que a cidade estivesse tão cheia de biboca. Sei onde é a casa. Mato Austro nem que ele se esconda debaixo da cama ou se meta dentro do pote. Arranco o fi lho da puta de onde estiver, até da fossa da latrina. Atiro e mato, mato mes-mo, de verdade, disparando de frente ou de costas, quebrando todos meus mandamen-tos. É a última morte que provoco. Depois me

desloco até o fórum e me entrego ao doutor juiz. Ir a júri eu vou, não corro de meus com-promissos, mas júri de vítima morta, defunto de verdade, serviço completo para promotor nenhum botar defeito.

Atravesso mais algumas ruas em direção a casa de Austro. Sinézia fi cou chorando no terreiro da casa. Os que me veem e me conhe-cem podem não saber das minhas intenções, mas percebem, pela minha cara carrancuda,

que vem chumbo grosso por aí, na certa, o monstro está de volta com as presepadas de suas mortes. Ninguém tem coragem de se colocar no meu caminho. Na porta de Austro, não preciso tirar o revólver da cintura. A casa está fechada. Pergunto pelo morador. Saiu. Desapareceu. Se mudou de noite para o dia. Foi embora, ninguém sabe para onde. Espe-ro. Bato na porta. Grito. Chamo. Venha, Austro, que tenho algo para lhe dar. Chuto a porta. Es-pero. O silêncio como resposta.

Retorno para casa, puto da vida, a cara mexendo, passo rápido, olhando o paralelepí-pedo do chão, fulo de raiva, chateado e ven-cido, mastigando fumo e arrotando fumaça. A realidade era mais forte que minhas balas novas, que voltavam intactas. Tinha mesmo de me submeter ao júri com a vítima viva. A desmoralização estava completa, fardada e paramentada. Só faltava ser condenado e ir para a cadeia. Resignado, devolvo o revól-ver a Sinézia. Tome, guarde, jogue fora, enfi e onde quiser que essa merda não serviu para nada. Fico no terreiro, sentado. A cadeira de balanço vai para a frente e para trás, comigo no comando.

Tinha mesmo de me submeter ao júri com a vítima viva. A desmoralização estava completa, fardada e paramentada

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Sebastião preparou a sua melhor roupa. Um paletó já com as pontas das mangas puídas, calças de poliéster com uma das barras do-brada na altura de onde estaria o joelho e a outra acima do tornozelo sem meia, uma

camisa branca cujo colarinho lhe compri-mia o pescoço e uma gravata com imagens indescritíveis, ainda mais prejudicadas por

pequenas manchas de gordura. Roupas que Sebastião reservava apenas para ocasiões especiais. Comprara o conjunto a prazo numa agora inexistente alfaiataria – pagara reli-giosamente as prestações do carnê – para o casamento da fi lha. De quem, infelizmente – declara aos mais próximos – não tem mais notícias. Depois, Sebastião usou-a no sepul-tamento do pai. A melhor roupa no momento mais triste da sua vida. Mas o pai mereceu a homenagem póstuma. Fora quem o educara, ensinara tudo. Especialmente o que é certo e o que é errado. Nem foi preciso escola. E o batizara. Com o nome de um herói, rei ou santo português. Sebastião não lembrava.

Depois do banho, mais demorado que de costume, e do talco passado no tórax e nos pés, Sebastião passou a vestir cuidadosa e demoradamente seu traje. Pensou que o ide-al para a ocasião era borrifar perfume, mas não havia dinheiro para esse luxo. O que ga-nhava com a aposentadoria mal lhe permitia gastar com alimentação e com medicamen-tos. Deixara de trabalhar quando amputada sua perna esquerda num acidente de traba-

SebastiãoGerson Godinho da Costa Juiz federal

Mas o pai mereceu a homenagem póstuma. Fora quem o educara, ensinara tudo. Especialmente o que é certo e o que é errado. Nem foi preciso escola

quem conta um conto

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lho. É verdade que poderia se empregar em outra atividade que não o ramo da constru-ção civil, ao qual dedicara toda sua vida antes da fatalidade. Afi nal, o dono da vendinha da esquina sempre declarara para quem quiser ouvir: “como é sabido esse seu Sebastião”. Sebastião conversava sobre qualquer assun-to, mas preferia futebol e política. Estava con-victo de que poderia aconselhar o presiden-te, o governador ou o técnico do seu clube de coração. Tem experiência de vida. Viu muita coisa. Sabe do que o povo precisa.

Enquanto se vestia, lembrou de quando uma moça bonita perguntara ao seu senho-rio onde residia o seu Sebastião. O senhorio apontara a habitação número doze do cortiço, o quarto que Sebastião não cansava de cha-mar de seu reino. A moça bonita indagara se ele era o seu Sebastião de tal, ele assentira com a cabeça, e ela passara a falar que ele estava intimado a comparecer no fórum, pe-rante o juiz, na condição de testemunha da defesa do fi lho da vizinha.

Puxa vida! É lá no fórum que fazem jus-tiça! E o juiz queria ouvir Sebastião! Como o juiz é um homem estudado, certamente queria contar com a experiência de Sebastião para o julgamento do fi lho da vizinha.

Sempre foi bom aquele rapaz. Até o momento em que começou a andar com a turma lá da outra rua. Dizem que é proble-ma com drogas. E desse assunto Sebastião entende. Perdeu muito amigo para a bebida. Ou porque a bebida matou o amigo ou por-que o amigo foi morto em razão de bebida. Mas lembra especialmente de um, conheci-do de infância, que largou o vício e hoje é homem de religião. Pois é disso que essa ju-ventude precisa, pensa consigo, já ensaian-

do o depoimento, de religião. Qualquer religião, porque Sebastião não é preconcei-tuoso. Sabe que todas devem ser respeita-das, do batuque até os evangélicos. É isso que vai falar para o juiz. Em seu devaneio, cogita não apenas infl uenciar o julgamento, como também de o juiz se impressionar de tal maneira e indicar Sebastião a seus cole-gas, para depor em outros processos. Quem sabe até outras autoridades, como o prefei-to, encontrem em Sebastião o homem certo para acabar com as drogas.

Calçando o sapato, lembrou da ajuda do pastor. Como Sebastião estava com vergonha de usar o tênis Nike falsifi cado que comprara com desconto na vendinha da esquina, o pas-tor não titubeou em emprestar para Sebastião o calçado de verniz que utilizava nos cultos. Também, precisava só de um!, sorriu Sebas-tião. Fora tão cuidadosamente engraxado que brilhava. Assim como brilhavam as muletas. Olhou-se uma última vez no minúsculo espe-lho com manchas e certifi cou-se: bonito, hein, Sebastião? É capaz até de arrumar namorada...

Sebastião tomou o ônibus por volta das dez horas da manhã. Não gostava do moto-rista. Era um sujeito que sempre mantinha no rosto a expressão de impaciência quando Se-bastião embarcava. Ora! Que esperasse. Não é fácil, para quem tem uma perna só, subir e descer do ônibus.

Após o longo trajeto, conforme calcula-ra, Sebastião chegou na frente do fórum por volta das onze e meia. O depoimento estava marcado para as catorze horas. Tinha dispo-nível um bom tempo para prosear com as outras testemunhas, com a vizinha e com o advogado do fi lho da vizinha. Quem sabe o advogado já dissesse antes do início da

quem conta um conto

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audiência para o juiz: “esta testemunha, Se-bastião, é muito sabida, excelência”. Nunca se sabe! E outro sorriso de satisfação afl orou no rosto machucado pelo sol de Sebastião.

Por volta do meio dia apalpou a sacola plástica que continha o sanduíche para o al-moço. Mas estava tão ansioso que não tinha fome. Preferiu alcançá-lo para um menino sujo e com os pés descalços que rondava o local pedindo dinheiro aos passantes. Lem-brou-se vagamente da infância...

Respirou fundo e ingressou no fórum. En-tão viu o tamanho do desafi o, antes impensa-do. Num prédio de mais de dez andares, com diversos corredores e inúmeras salas, onde é que tinha de ir? E havia tanta gente! Todo mundo com pressa! Calma, Sebastião, calma! Pergunta ao vigia! Qual a Vara, senhor? Quem é o juiz? Qual o nome do réu? Sebastião não sabia! Só conhecia o nome da vizinha e que o menino estava envolvido com drogas. Bem, então restava a Sebastião, segundo orienta-ção do vigia, ir de sala em sala, em todo o quinto e sexto andares, onde estão as varas criminais. Pergunta daqui e dali e fi nalmente Sebastião chega ao local correto. Mas já eram catorze horas e dez minutos!

– Boa tarde, senhora! Vim falar no pro-cesso do...

– O senhor é o Sebastião?– Sim!– Então venha comigo, rápido! O senhor

está atrasado. E o juiz não tolera atrasos. Com licença, Excelência, estou aqui com o senhor Sebastião, testemunha do processo em audiência.

– Manda passar!– Entre aqui, seu Sebastião, e sente na-

quela cadeira em frente ao juiz.– Olha aqui, Sebastião, eu não tenho

tempo a perder com suas justifi cativas. Es-tou atulhado de processos e todo mundo cobrando julgamentos rápidos. Se aconte-cer novamente, vou colocar um ofi cial de justiça e um policial para te trazer algema-do. Entendeu?

– ...– É parente ou amigo íntimo do réu?– Não, senhor.– Sabe que ele foi preso no dia 14 do

mês passado numa birosca lá no bairro Antu-nes com quinze gramas de maconha?

– Não, senhor. Mas eu queria dizer...– Eu faço as perguntas e basta que res-

pondas sim ou não. Como não sabe de nada... com a palavra, a defesa.

– A testemunha abona a conduta do réu, excelência?

– Como é o réu lá na área, Sebastião? É um rapaz tranquilo? Problemático? Como é que é?

– Eu não conheço direito ele, mas eu que-ria dizer...

– Está bem. Está bem. Prejudicado, dou-tor, concorda? Ministério Público?

– Sim, excelência. O testemunho é perfei-tamente dispensável.

– Está bem! Sebastião, dispensado!

Sebastião conversava sobre qualquer assunto, mas preferia futebol e política. Estava convicto de que poderia aconselhar o presidente, o governador ou o técnico do seu clube de coração

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Mi alma Te busca a TiMaria Helena Cisne Desembargadora federal

inspiração poética

lma Te busca a TiMaDesembargadora federal

Mi alma, sedienta de paz, sal e en busca de Ti...

No sé dónde buscarTe. Pienso verTe en las estrellas más brillantes. También el oro del sol sugiere Tu presencia. Te presiento aún en el verde oscuro del mar, en el azul turquesa del cielo, en el débil platea-do de la luna. Me gusta imaginar que naces en el frescor de la aurora y viajas en el dorado del ocaso.

¿Dónde Te escondes de mi? Te veo y, en la realidad, no Te veo... ignoro las líneas de Tu rostro, pero en todo lo que encuentro me parece reve-lar Tu semblante.

Quiero amarTe.

¿Cómo? No lo sé hacer. ¡Eres tan etéreo, tan abstracto! Me desconcier-ta Tu inconcretud, que no deja poseerTe. No sé amar de Tu manera.

Aún así, todo mi ser te aspira a Ti.

Ven a mí, te lo ruega mi alma hambrienta de Ti... Y así me encuentro perdida en el caos de las sensaciones más dispares que luchan como las energías en el vientre de las nubes de tormenta embarazadas, sa-cándome la paz.

Si no estás aquí, allá, o incluso ahí, ¿dónde estás?

Mi mente racional no me contesta. Sin embargo me dice mi corazón místico: en todo estás, en todo Te expresas, en todo Tu eres. Incluso en la desesperanza de la mirada del mendigo Tu estás. Acompañas las tristes lágrimas derramadas en la cama del enfermo. Presencias la desolación de la mesa no puesta y de la olla vacía.

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Si es así, me parece, estás en mí también.

Si estás en mi, ¿dónde te encuentras? Te procuro. A mi me parece que Te abrigas en el más íntimo lugar de mi perplejo corazón.

Mis revueltas emociones y mis confusos sentimientos me hablan de Ti. Los investigo, los interpelo, los interrogo con autoridad en el ansia de entenderTe.

¡Oh! ¿Cómo me impresiona ver la inmensidad del cielo estrellado, las misteriosas profundidades del océano, el ritmo perfecto de las olas del mar.

Pero Tú me constranges cuando Te manifi estas en la fuerza destructiva de los terremotos, en el poder mortífero de las lavas del volcán, en el dolor que acompaña el vuelo de los tornados...

¡Oh! ¡Cómo me emocionas cuando Te expresas en la mano que se le ofrece a otra, en la sonrisa abierta de alguien que sabe perdonar, y en la agradecida mirada de quien acepta el perdón!

Pero cómo me duele cuando no escuchas mis oraciones, cuando los hermanos se enfrentan por la ambición, cuando el hambre destruye vidas preciosas...

¡Oh! ¡Cómo Te admiro al sentir la fragancia de las fl ores, al ver al colibrí revelarTe en los colores, o en el canto del ruiseñor exprimirTe!

Pero no Te comprendo en la desigualdad que prevalece entre Tus hi-jos, en la tristeza de la muerte prematura, en la difusión de Tú nombre de dolor y llanto.

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¡Oh! ¡Cómo me mueve que hayas inventado al niño sonriente, el suave susurro de la brisa, el suave murmullo del agua!

Pero me aterra el egoísmo en el corazón humano, la crueldad y la in-diferencia de los gobernantes, la mano cruel que se desató asesina...

¡Oh! ¡Como me extasío ante la grandeza de Tú universo, la fuerza de Tú amor, el equilibrio de Tú obra!

Pero cómo me sorprendes con el sacrifi cio de Tú primogénito, con el holocausto del pueblo que has elegido, con la disputa sangrienta por Tú amor...

Oh, sí, confi eso que me da miedo cuando oigo de Ti por boca de Tus profetas, que hablan de la eternidad de Tú castigo, que prevé la posi-bilidad de negar Tú perdón.

Y yo, en mi pequeñez y soledad, presa de sentimientos tan polé-micos me siento, más que nada, aturdida, luchando entre la cons-ciencia de todavía no saber amarTe, de no entender lo que quieres de mí, de ignorar por completo Tus propósitos, y la realidad de no ser capaz de vivir sin Ti, que eres mi refugio, mi consuelo, mi luz, mi esperanza de paz.

Rio de Janeiro, 07 de setembro de 2012

inspiração poética

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Marcos César Romeira MoraesJuiz federal

Desespero

O diadiaaia

D

ddddd

DeHoje o sol iluminou a terra deste ladoDo outro lado, o sol escondeu-se para alento daquelesHomens e mulheres fi zeram os seus do diaE aqui fazemos os nossos.Chuvas caíram em muitos lugaresEm outros parou de chover.Os astros estão em suas órbitas.Muitos vieram à luzE alguns fecharam os olhos para sempreNão mais e nem menos. Algumas pessoas estão tristesMuitas estão alegres.Pessoas olharam-se pela primeira vezOutras juraram não mais se olharem.Pessoas passaram fome pela noite e o dia Algumas até morreram.Frutos foram colhidos e distribuídosMuitos se fartaram.Muitos estão orando por nós e por eles Alguns não oram e acreditam que tudo está bemTudo como deve ser.Muitos preveem tormentosOutros acreditam em dias melhores. Muitos ardem na lembrança do passadoOutros suspiram num sonho de futuro.E há quem vive o melhor de hojeE o melhor de hoje é o dia.E como este, esperamos ter todos os que vierem, sempre.

O que há a procurar, o que há para viver? Andar sem passos, inúteis passos.Ainda cedo e as antigas casas dormem silenciosas. E ali elas já dormem centenas de anos.Parece não haver o tempo.Qual é o tempo?A rua calçada de pedras leva ao mar,O mesmo mar que tantos sofrimentos viu.Quantos caminharam por aquelas pedras? Quantas lágrimas deitaram sobre elas? É um silêncio profundo. E a perturbada alma solitária vagaNas paredes velhas em que tantos tocaram com a mesma tristeza.

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Era uma vez a mulherEdwiges C. Caraciolo RochaJuíza federal

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À mulher de antigamenteO homem fazia a corteQual pássaro num bailadoMovia-se encantadoMostrava talento e poseEla mui timidamenteFitava-o nessa dança eAo piscar de olhoSorria-lhe com esperançaEntão ele sabia: ganhara a contradança

O fl erte assim começavaPodia durar pouco tempoPor vezes cabia se alongarMas sempre o homem esperavaA mulher fazer de conta pensarExcitantes os dias de esperaFlores, mimos e serenata ao luarIsso tudo tinha valiaQuando o homem queriaO coração de mulher conquistar

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Depois vinha o namoroCom muita gente na salaMas antes de ser namoradaHavia o pedido de entradaAo pai, avô, ao tio ou padrasto,Não podia a língua fi car travada.Os que não tinham coragemE os sem intenção defi nidaFicavam trocando amassoNo cinema ou na avenida.Vai namoro vem namoroO pai com as barbas de molhoUm dia chega o noivadoO enxoval todo bordadoCom nome e renda no babadoComeça a ser preparadoO noivo já tem empregoA noiva, o dote guardadoEle doido pelo xodóEla, com medo do caritó

Enfi m as bodas têm vezNem sempre o homem cortêsQue a leva de branco ao altarDo coração dela é o parO conselho pra se casarE a idade pra fi lho gerarAbafam a opção de estudarSequer a deixam esperarPelo príncipe encantadoPor tanto tempo sonhado

Questão de acerto ou de sorteNos casamentos de outroraQuando chegava a horaDo homem a palavra forteNa escolha do bom consorteÀ mulher sobrava rezarOu então se rebelar eFugir pra longe daliCom audácia saber resistirAté o seu ideal poder atingir

Poucas Joanas D’ArcSeguiam o destino de mártirEmbora no casamentoVivessem em sofrimentoHavia o lar e fi lhos para amarO jeito era sublimarO sonho de o mundo mudarSem da sina de mãe desertarNem mulher deixar de serPara a mudança ocorrer

A ação das mais corajosasMedrou nos anos cinquentaDa luta bem mais ciosasViveram os anos sessentaAqueles anos douradosOutrora de sonhos apenasAgora em cores e tons variadosSoerguem o seu novo mecenasMalgrado aos poucos aindaProssegue a jornada infi nda

A guerra do sexo se acirraDo pai o poder já mirraO mito da virgindadeFilho da hipocrisiaRestou na fantasiaDo medo da verdadeA fi lha de casa saiEm busca de outro paiQuer que se a deixe parirDo gozo o quanto sentir

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O samba virou bossa novaMudou a forma da trovaCom Elvis, Beatles e Rolling StonesJovem Guarda nos microfonesO bom é rock e yê yê yêAo sabor do LSD ouDo fumo de um baseadoÀ guisa do inusitadoOs hippies e os novos baianosClamam por objetos profanos

Nessa longa transiçãoA vida fi cou mais duraO Brasil viveu o golpeA força veio a galopeMilitar com arma na mãoDo AI-5 fez seu padrãoNesse cruento regimeQuase tudo era crimeNo poder a ditaduraAlastrou-se a tortura

Pobre desta NaçãoTeve o Congresso fechadoMuito mandato cassado eA democracia no chãoDo SNI o dedo duroNo CODE a fi cha do camaradaNada era seguroSenão a boca caladaQualquer impulso era vãoFez gente morrer na prisão

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Nos idos tempos de agruraImposta tanta censuraA arte foi segregadaA imprensa amordaçadaA cultura renegadaO terror e a guerrilhaTomando a revolta por fi lhaEntão fi zeram sua trilhaHorror e morte na terra do idílioQuão tristes os dias de exílio!

De par ao caos na políticaA cocaína malditaCausa de tanta desditaNuma sociedade raquíticaSem saúde e educaçãoRouba-lhe a digna açãoCompromete a geraçãoPor entre crise e matançaTambém a mulher se lançaEla no mundo avança

De Beauvoir – a feministaBradou no existencialismoBetty Friedman no feminismoNão se pode perder de vistaA Thatcher dos inglesesDama de Ferro famosaNão por gestos descortesesSim pela fi rmeza da prosaLeila ou Helena, Diniz aqui é mulherNa disputa do que sabe e quer

A história teve o seu cursoNa vez do FigueiredoPremente outro enredoAbriu-se o novo discursoTancredo no palanqueA voz do povo sem tanqueGritou por diretas jáAo lado da bela FafáDe morte golpeadoFicou o exemplo legado

Veio então o SarneyA mira no primado da leiNo início com empolgaçãoDepois se perdeu em meio à infl açãoClamou pelas donas de casaE a mulher segura da própria asaNão recusou a difícil missãoFoi fi scal da economiaRespondeu com galhardiaNa defesa do ganha-pão

Com a Constituinte eleitaA ordem seria refeitaVencia a democraciaA Nova República nasciaDo seu papel conscienteA mulher se fez presenteNo Congresso NacionalDeu exemplo profi ssionalMusa da Constituição cidadãFez sua a luta pela pátria sã

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Rompidos os grilhõesAbriram-se os portõesMostraram-se horizontesBrotaram novas fontesA mulher buscou o seu lugarZélia não teve medo de errarAceitou o desafi o do poderViveu a dor de perderQuando Collor caiu rendidoMercê do erro maior cometido

Sequela do impeachmentMas sem se fazer de vítimaViveu-se o mandato tampãoMais um vice de cetro na mãoItamar dono de muito topeteFranco ao gosto pelo confeteEncantou-se pela mulher coqueteE a cena virou mancheteNada mais desfaz o caminho feitoNem a fúria do preconceito

A mulher não se esquivouA batalha continuouPor detrás de um presidenteA grande dama infl uenteFoi além da fi lantropiaEncabeçou com maestriaOutras ações relevantesHá tempos aqui faltantesComo Sara dos idos cinquentaA saudosa Ruth foi mulher presidenta

Tantas são as mulheresCom força e garbo de alferesSem perder da fêmea a belezaNem o dom de mãe por naturezaA elegância de uma condessaSobressai na fi rme CondoleezzaNão só na América do NorteA mulher se mostra forteEm quase todo o planetaEla é mais do que ninfeta

No Brasil de norte a sulA mulher também veste azulOnde antes era lugar de varãoHoje muitas mulheres estãoGovernando, legislando, judicandoMais vozes femininas vêm bradandoDilma, Roseane e Helen GracieSão nomes vigorosos: a mudança fez-se!E já se fala em mulher pra sucederO presidente Lula no poder

Talvez por isso o homem atualNa mulher esteja vendo outro igualNão sabe mais lhe fazer galanteioServir de chacota ele tem receioDiz que sumiu a dama de dantesGastam tempo à toa os galantesO romance perdeu atraçãoNo seu lugar entrou o tesãoA garota já não quer ser cortejadaPoucas ainda gostam dessa balada

Atentem, porém, as mulheres:O mais belo e árduo dos seus misteresA verdade imanente da sua existênciaAlém do prazer transcende a contingênciaFaz dela a deusa, a sempre rainhaNão importa se bruxa ou fada-madrinhaSer mulher é ser feminina a fundoAgasalhar a vida, inspirar o mundoBuscar a parte perdida, o elo faltanteTranspassar o gozo do homem amante...

Poema feito pela passagem do Dia Internacional da Mulher

Recife-PE, 08 de março de 2009

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inspiração poética

O cavaleiroMarcos Mairton da SilvaJuiz federal

De trás do casebre erguido à beira da estrada, surgiu o cavaleiro. Brandindo a espada, galopava, montado em seu corcel, levantando da terra seca uma poeira amarelenta.

Puxando a rédea para a esquerda, fez o animal dar um giro em torno de si mesmo e erguer as patas dianteiras, empinando. Via-se que estava pronto para viver as aventuras que surgissem e enfrentar os gigantes que o desafi assem.

Não, não era Dom Quixote. O Cavaleiro da Triste Figura, bem se sabe, era um homem magro e alto, já velho, que viveu os seus sucessos há muito tempo, nas terras de La Mancha, onde, armado de lança e espada, e protegido por elmo e armadura, cavalgava seu bucéfalo Rocinante.

O cavaleiro de quem falo era bem mais jovem. Tinha, talvez, uns oito ou nove anos de idade. Sua espada não era mais que um galho de jurema-preta, do qual foram raspados os espinhos. Seu cavalo era uma vara.

Em sua montaria ápode, era com os próprios pés que o jovem cavaleiro galopava. Pés descalços, sujos de terra, ainda pequenos, mas já acostumados ao contato com o chão duro da caatinga.

Também não usava elmo nem armadura. Na verdade, corria nu, na sua inocência de menino sertanejo, ainda não contaminada pelos medos e preconceitos impostos desde muito cedo às crianças da cidade.

E estava bem distante das terras espanholas. Precisamente, à beira da estrada que liga Canindé a Sobral, no sertão do Ceará.

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ponto de vista

O senhor pode comentar o conceito de Tribunal da Ci-dadania?Eu digo sempre e repito que o juiz é iminentemente um agente decisório. Ele resolve confl itos de interesse e, para isso, se vale da técnica do processo. Mas ele resolve não apenas com o propósito de se livrar do processo, mas de fazer justiça, e isso implica pacifi car as partes, ter um com-promisso com a pacifi cação social. Não basta então de-cidir, é preciso resolver efetivamente o confl ito, fazendo com que as partes abandonem o estado de beligerância. Para isso, é muito importante o juiz ter conhecimento da repercussão da sua decisão. As decisões se projetam para além das partes, repercutem muitas vezes no seio social.

O senhor pode dar um exemplo disso?Uma penada ou decisão equivocada em determinados segmentos econômicos pode inviabilizar uma atividade ou um produto. Por exemplo, uma decisão do STJ, desca-racterizando o VRG (Valor Residual Garantido pela arren-datária, como mínimo que será recebido pela arrendadora na venda a terceiros do bem arrendado) nas operações de leasing, gerou a paralisação, para não dizer a supressão, das operações de leasing de automóvel, que era o meio mais barato de fi nanciar ao consumidor. Mas ao perceber a consequência dessa decisão, o STJ voltou atrás e passou a sufragar o entendimento de que o pagamento antecipado do valor residual garantido do VRG não descaracterizava o

Mineiro por status e cruzeirense por grife, docente, leitor voraz, corredor e jogador de tênis, pai ansioso para que os fi lhos lhe deem netos, fã incondicional de Roberto Carlos, Chico Buarque, Tom Jobim e Nat King Cole, o ministro do STJ João Otávio de Noronha ostenta uma jovialidade inve-jável. Integrante da Segunda Seção e da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, membro da Corte Especial, do Conselho de Administração, do Conselho da Escola Nacio-nal de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Mi-nistro Sálvio de Figueiredo e ouvidor do STJ, é dotado da virtude quase divina de fazer o tempo trabalhar a seu favor.

Essa habilidade foi desenvolvida ao longo de uma vida de muito trabalho, dedicação e conquistas. No STJ desde 2002, Noronha foi diretor jurídico do Banco do Brasil durante dez anos, passando por cinco gestões. Essa vivência do Direito Privado é um dos aspectos que distin-

gue sua atuação na Magistratura Federal e lhe aguçou a sensibilidade para a repercussão das decisões judiciais da esfera do processo individual para a abrangência da vida nacional.

Bom mineiro, não é apressado para falar. Não é ho-mem de falsa modéstia nem de jactância. Foi um meni-no de interior, fi lho de funcionário público, cujo esforço, energia, capacidade e talento lhe permitiram galgar po-sições de destaque antes de assumir no STJ com apenas 46 anos de idade.

Nesta entrevista à Revista de Cultura da Ajufe, o mi-nistro João Otávio Noronha expõe com simpatia e jovia-lidade seus pensamentos sobre cidadania, educação e exercício profi ssional no Direito. Ele também compartilha um pouco de sua vida pessoal, de leituras, fi losofi a e, não poderia deixar de ser, de mineiridade.

O manipulador do tempoO relógio do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, funciona em um ritmo diferente: acelerado. Cabe tudo em um dia da vida do magistrado, que chegou ao STJ com apenas 46 anos de idade, mas muita vivência

Nicolas Bonvakiades e Iara Vidal

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contrato de lei. Para se ver como essas decisões repercu-tem para além do caso: a briga entre uma instituição fi nan-ceira e um cliente repercutiu para todo o sistema.

Por isso essa visão é tão importante para o senhor...Por isso o juiz precisa saber medir a repercussão da sua decisão. Ela repercute desde o primeiro grau, cresce no tribunal de apelação, no Tribunal Regional Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Ganha maior dimensão quando alçada ao STJ porque a projeção é nacional. Ser juiz é decidir com muita responsabilidade, com muito bom senso, muito equilíbrio.

O senhor foi juiz ainda jovem e hoje não tem nem 60 anos. Como funciona essa jovialidade no ambiente da Justiça Federal?Estou com 56, ainda longe dos 60. Na realidade não fui um juiz jovem. Embora aprovado em primeiro lu-gar no concurso, não assumi o cargo em 1987. Eu diria que fui um ministro jovem. Aliás, continuo sendo nas ideias, no comportamento, no comprometimento. Eu cheguei ao STJ pelo Quinto Constitucional, com 46 anos de idade, depois de mais de 20 anos de exercí-cio da advocacia.

No Banco do Brasil, inclusive, não foi?Fui advogado do Banco do Brasil e em 10 anos me tornei diretor, fi cando nesse cargo também por 10 anos. Portan-

to, foi uma larga experiência em advocacia. Fui nomeado ministro com 45 anos e empossado com 46. Cheguei jo-vem para o cargo que ocupo. Mas essa jovialidade não me compromete em nada. Poucos, com essa idade, tinham a experiência jurídica que eu detinha. Tive um cargo muito relevante na advocacia brasileira, que foi de advogado do Banco do Brasil. Não só do banco, mas também traba-lhei muito em causas de família e societárias, depois na advocacia empresarial. Mas, como advogado, sempre fui muito próximo das partes, da sociedade e do diálogo. Fui membro do conselho excepcional da OAB, do Conselho Federal. Exerci a advocacia bastante tempo no interior.

O senhor nasceu no interior de Minas Gerais. Como essa origem é determinante na sua formação?Eu sou mineiro e, peço desculpas por dizer isso, mas ser mineiro é uma questão de status, não é simplesmente uma questão de cidadania. Perdoem-me a imodéstia (ri-sos). Agora, além de mineiro, sou cruzeirense, portanto, mais do que ter status, eu sou uma grife (risos). Sou um mineiro do interior, de Três Corações. Pelé é um dos nos-sos grandes expoentes. Fiz minha formação no interior, em Pouso Alegre, e advoguei no sul de Minas por 10 anos, em comarcas pequenas e médias, boa parte desse tempo no Banco do Brasil. Depois, também pelo banco, fui para Vitória, uma comarca maior em uma capital de menor por-te, e depois para Belo Horizonte, uma comarca grande. Aí vim para Brasília, que tem uma dimensão nacional. Passei a atuar não só nos tribunais regionais, mas também nos tribunais superiores. Então tive oportunidade de angariar vasta experiência em todos os segmentos e instâncias da Justiça brasileira. Aí eu vi a importância do exercício da magistratura, principalmente de lutar com os advogados e as partes. Pude ver como é importante e tranquilizador um juiz preparado para exercer a magistratura. Porque ele tem normalmente muito equilíbrio e decide com muita razão. Um juiz precisa de muita prudência. Essa prudência é algo que a gente traz do berço, traz de Minas. Diz-se que um mineiro só se senta à mesa para a reunião quando a questão está decidida. E é verdade. A gente pensa mui-to antes de debater. Sem que isso sacrifi que o diálogo, pelo contrário, o diálogo antecede e muito a decisão. Não só o diálogo, como a refl exão sobre a decisão que haveríamos de adotar.

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O senhor acompanha os jogos do Cruzeiro? Tem camisa do time?Tenho mais de 10 camisas. Acompanho religiosamente, pelo pay per view, todos os jogos do Cruzeiro, inclusive no campeonato mineiro. Tenho um prazer enorme quando o Cruzeiro bate no Atlético e a isso já estamos acostumados. Sou cruzeirense desde os nove anos de idade. Desde que o Cruzeiro bateu o Santos na Copa Brasil por seis a dois. Quando vi Tostão, Dirceu Lopes e Natal jogando. Fiquei en-cantado com o time e passei a adotar o Cruzeiro como meu time de coração. A partir daí acompanhei sempre os jogos.

Chama a atenção sua relação com a literatura não jurídi-ca, como fi losofi a e romances. Como é essa relação?Filosofi a todo juiz tem que ler. É imprescindível que leia-mos. Não só fi losofi a jurídica, mas a fi losofi a no geral. Te-mos que ler todo dia. Precisamos aprimorar nossa alma. Eu digo sempre que nós julgamos aquilo que toca, que impacta a alma do nosso semelhante. Daí a importância dessa leitura. De qualquer maneira, temos que ler tam-bém a literatura brasileira, que é muito rica. Acho que to-dos nós lemos, no passado, Machado de Assis e Monteiro Lobato, e hoje continuamos lendo os autores modernos. Precisamos ler até mesmo para criticar. Eu morro de rir de alguns colegas dizendo “eu não gosto de Paulo Coelho”. Eu pergunto se já leram Paulo Coelho e me dizem que não. Você tem quer ler e encontrará coisas boas e ruins. Não há quem leia e não goste de Fernando Pessoa.

Quais são as suas leituras atuais?Adoro ler os portugueses e também os brasileiros. No momento estou relendo Cem Anos de Solidão, do (Gabriel) García Márquez. Ele é ótimo! Também adoro as poesias do Drummond – não porque era mineiro.

E os modernos portugueses?Saramago. Ele é de uma profundidade invejável. Sempre aconselho a ler com calma.

Já que enveredamos pelo assunto da cultura geral, quais são suas preferências musicais?Sou fã incondicional do Roberto Carlos, que tem a poe-sia na alma e na voz e uma bondade que pouca gente co-nhece. Também adoro jazz e bossa nova. Vinícius, Chico Buarque e Toquinho são excelentes – tive o privilégio de

assistir a um show de Vinícius de Moraes e Toquinho. Tom Jobim não é só alguém que eu admire, é genial. Também adoro Ivan Lins, Elis Regina, que escuto muito, e Quarteto em Cy. E adoro Nat King Cole. Dos cantores americanos é meu predileto.

O senhor já expressou preocupação em relação ao alto índice de reprovação nos exames da ordem. O senhor pode comentar isso?Não há dúvida de que o nível da universidade brasileira caiu. Mas não acho razoável quando vejo uma reprova-ção em torno de 94%. É preciso entender que, quando você seleciona alguém para exercer a profi ssão de advo-gado, você está pegando um principiante, que precisa de tempo para se aprimorar e se desenvolver. Não é possí-vel aplicar questões tão complexas que nem os próprios membros do conselho da OAB, se fossem chamados a fazê-lo, seriam capazes de responder. Nem oito nem oi-tenta! Precisamos fazer essa prova da OAB não para me-dir a sabedoria, mas o potencial.

Então, em sua opinião, o exame não cumpre a função de garantir bons profi ssionais no mercado?Sabedoria se ganha com o tempo. Há alunos que se for-mam, passam na OAB e nunca mais advogam, nunca mais se atualizam e a qualquer instante podem voltar ao mer-cado. Mesmo estando desatualizados. E há aqueles que se propõem a se dedicar à profi ssão, mas não têm tanta experiência. Esses são submetidos a uma prova que valo-riza a decoreba. O resultado: teremos maus profi ssionais aprovados na OAB e pessoal de muito potencial gastando dois ou três anos para passar em um concurso. O Estado, por usa vez, tem que atuar não na OAB e sim na universi-dade. Tem que eliminar as universidades que não formam profi ssionais qualifi cados para o mercado. Não pode dei-xar o cidadão formar e depois dizer “ei, agora você não exerce”. Conheço pessoas que se formaram, não foram tão bons alunos e se tornaram grandes profi ssionais. Estu-daram depois, se aprimoraram, gostaram, viram a prática.

O senhor mantém vínculos com o mundo acadêmico?Sim, já fui da pós-graduação do UniCEUB (Centro Univer-sitário de Brasília) e agora sou professor no curso de pós--graduação do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Públi-co) e também dou aulas no IESB (Instituto de Educação

ponto de vista

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Superior de Brasília). Brinco que o magistério é como a minha cachaça, pois tenho um prazer enorme com ele.

Em 2010, um colunista de uma revista de grande circu-lação no país publicou uma nota de elogio ao seu espí-rito público e caráter, mas no mesmo texto escreveu “o ministro não ostenta um currículo espetacular”. Isso o aborreceu?Eu não me preocupei em responder a esse jornalista. Eu realmente não frequentei a USP (Universidade de São Paulo), não frequentei a Federal de Belo Horizonte, mas, quando fi z concurso, concorri com candidatos do Largo de São Francisco, da Federal do Rio de Janeiro e da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e fi quei em primeiro lugar. Quando eu advoguei, nunca me pergun-taram onde eu era formado, mas qual era o meu concei-to de advogado no mercado. Como magistrado nunca ninguém me perguntou onde me formei, mas se decido bem ou não. E acredito que sou um ministro respeitado. Conheço currículos melhores com menor prestígio pro-fi ssional. Eu dei uma decisão em um caso do Amapá e o jornalista veio com essa de “um desconhecido”. Tenho

10 anos de STJ e sempre fui um dos mais conhecidos ministros desde o começo de minha carreira. Se esse jornalista quis me menosprezar, não me senti atingido. Eu não me formei no Largo de São Francisco, não me formei da Uerj, porque era um rapaz do interior, cujo pai, funcionário público, havia falecido, e não tinha re-cursos para ir para a capital. Então tive que me dedicar muito, trabalhando no Banco do Brasil e estudando à noite. Enquanto todos dormiam às 23h, eu estudava até às 2h. Eu namorava estudando, eu fi cava em uma mesa e minha atual esposa, do outro lado da mesa enquanto eu estudava.

Fale um pouco sobre essa trajetória, por favor.Eu sou formado em Pouso Alegre. Com dois anos de carrei-ra, fui selecionado para ser advogado do Banco do Brasil. Fiz um concurso e passei em primeiro lugar, em 1984. Em 1987 passei no concurso de juiz também em primeiro lu-gar. Para que eu não saísse do banco, me ofereceram um cargo de chefi a em Varginha (MG). Em 1990, me nomearam chefe em Vitória. Em 1991, precisavam de alguém na asses-soria jurídica de Minas, que era uma das mais importantes e eu fui o indicado. Em 1994, precisavam nomear um diretor jurídico e, depois de uma pesquisa pelo país todo, o melhor perfi l foi o meu. Fiquei 10 anos no cargo de diretor. Passei por cinco presidentes que podiam me tirar do cargo, mas fui confi rmado por todos. Quando fui indicado ministro, o presidente do banco pediu que eu não viesse, que fi casse até o fi nal da gestão dele. Acredito que poucos ministros desfrutam da respeitabilidade, sem convencimento ne-nhum, que eu desfruto na magistratura brasileira.

E o que o senhor diz sobre seu novo desafi o como ouvidor?Estou achando fascinante. A ouvidoria tem um papel im-portante de interface entre o tribunal e a sociedade. Te-mos que estar com os ouvidos abertos para colhermos das reclamações sugestões para a gestão. Muitas não pro-cedem, mas outras são interessantes. E isso nos permite corrigir defeitos aqui na gestão, sugerindo medidas ao presidente, à administração do tribunal.

Vamos voltar a falar de sua vida particular. O senhor é um praticante de atividades físicas, não é?Sim. Eu caminho e jogo tênis. Caminho entre oito e 10 quilômetros por dia e, nos fi nais de semana, prático tênis.

E sobra tempo para tanto?Eu trabalho muito bem durante a semana. Eu jogo tênis e vou ao cinema no fi nal de semana e ainda acho tempo para despachar de casa. Domingo à noite eu despacho de casa. Antes de ir jogar, eu levanto cedo e despacho.

Como é a sua vida em família?Sou casado, tenho fi lhos, mas ainda não tenho netos, ape-sar de meus fi lhos já se encontrarem casados. Acredito que nós somos os responsáveis pela administração do nosso tempo. Se você administra bem, o tempo aparece. Esse ne-gócio de que não há tempo é bobagem. Tempo a gente cria.

A ouvidoria tem um papel importante de interface entre o tribunal e a sociedade.

Temos que estar com os ouvidos abertos para colhermos das reclamações

sugestões para a gestão

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Cliques pelo mundo

Para um amante da fotografi a, é praticamente impossível, ao viajar a um local de grande beleza, não sentir uma certa compulsão em, a todo o tempo, clicar, registrar, guardar para a posteridade aquela ima-gem que encanta os olhos e o pensamento. Os juízes federais Fabíola Queiroz, Frederico Koehler, Bernardo Carneiro e Bruno Brum Ribas, em suas viagens, exerceram essa compulsão com qualidade de profi ssio-nal. O resultado são imagens que encantam e dão uma mostra da be-leza que existe em vários cantos do Brasil e do mundo.

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FABÍOLA QUEIROZ | FREDERICO KOEHLER | BERNARDO CARNEIRO | BRUNO BRUM RIBAS

Juízes federais

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Pôr-do-sol em Reykjavík, capital da Islândia

Cottesloe Beach, em Perth, na Austrália

FOTOS: FABÍOLA QUEIROZ

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Paraíso taitiano

Moais da Ilha de Páscoa, no Chile

Arco-íris no Taiti

FOTOS: FREDERICO KOEHLER

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Fauna marinha no Taiti

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Parque Nacional Torres del Paine, Chile

Deserto do Atacama, no Chile

FOTOS: BERNARDO CARNEIRO

Usina eólica em Icaraizinho de Amontada, no Ceará

Jericoacoara, Ceará

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FOTOS: BRUNO BRUM RIBAS

Cânion do Itaimbezinho, no Rio Grande do Sul

Flutuação em Fernando de Noronha

Moinhos de vento, em Porto Alegre

Distorções em Lisboa, Portugal

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Uma das grandiosidades do nosso Brasil são as peculiaridades das diversidades culturais e do modo de vida das regiões do interior deste país continental.

Cada canto com seu sotaque, sua culi-nária, seu ganha-pão, sua música, suas tradi-ções, inclusive religiosas, seu folclore, enfi m, suas rotinas, seus hábitos e costumes.

Sem qualquer desconsideração com os elevados valores culturais dos demais es-tados, Minas Gerais, seja por sua extensão, posição geográfi ca, história, diversidade e/ou infl uência dos estados vizinhos, possui uma enorme riqueza cultural em seu exten-so interior.

Não são poucas as afi rmações de que Mi-nas são muitas, diversas ou várias. Pequeno exemplar dessa variedade: no sul, no centro--oeste e no Triângulo Mineiro, ao falar carre-ga-se no “erre”, como no interior de São Pau-lo, com variações e intensidades diferentes a depender do lugar; se giramos o compasso e estivermos na zona da mata, próximo ao Rio de Janeiro, já se nota a carga no “esse”; se o ponteiro do compasso continua a girar e está acima de Governador Valadares, temos muito do interior da Bahia. Não menos observadas, ainda, as infl uências do Espírito Santo, de Goiás e do Distrito Federal. Além dos refl exos

na maneira de falar, temos as infl uências na culinária, nos ritmos musicais, nas danças, nas preferências pelos times de futebol, no jeito de vestir, nas opções de lazer etc.

Sou natural do interior de Minas, mais precisamente do centro-oeste. Além de suas riquezas minerais, como calcário, quartzi-to, ardósia, diamantes, ouro, o centro-oeste mineiro é uma região de vasta culinária (do leite, do queijo, do pão de queijo, inclusive com linguiça, da broa de fubá, do frango com quiabo, do angu, do tutu de feijão, do pequi, do tareco etc.) e também recheada de histó-rias da vida de gente simples e trabalhadeira.

O mineiro do interior, se num primeiro momento apresenta-se desconfi ado, mais ouvinte que falante, à medida que sente con-fi ança no outro, vai se abrindo e construindo amizades duradouras. Tem um jeito natural para encurtar as palavras, engolir sílabas e comunicar de uma forma muito peculiar. Mesmo com a roupagem artística, o que não deixa de carregar um pouco de exagero em algumas ocasiões, os personagens do teatro e televisão “Nerso da Capitinga” e “Filó” são mostras desse jeito simples de levar a vida.

Nesse cenário de mineirinho autêntico, desconfi ado, amigo, simples, mas que sabe o que quer, ou no mínimo, o que não quer,

Histórias do centro-oeste mineiro

A farofa do fi nado tatuCarlos Geraldo TeixeiraJuiz federal e mestre em Direito Econômico e Socioambiental

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trago uma passagem de um conhecido e grande amigo do interior que será identifi cado por “Gerardo1”.

“Gerardo” é fazendeiro e empresário bem-sucedido, mas que jamais abandonou sua rotina simples e de in-tenso trato com as pessoas do campo que, como ele, nas-ceram no meio rural e de lá ainda retiram o seu sustento. Trabalhador incansável, mas, quando pode, não dispensa uma roda com bons amigos, seja para distrair-se num jogo de truco, participar de um “desafi o”, contar uns “causos”, participar de uma roda de viola, tomar uma cachaça ou jogar uma conversa fora.

Certa feita, numa noite muito escura, “Gerardo” volta-va de sua fazenda entre o município de Arcos e Japaraíba, na região do Mimoso. Dirigia o seu Monza, que tirou zero e ainda cheirava a novo. Apesar de andar muito em estrada

de chão, “Gerardo” rodou por demais naquele Monza, de placa famosa, com números idênticos aos quatros últimos de seu telefone.

Conserva o Monza até hoje, apesar de há muito estar equipado com uma camionete dessas boas, que “inté o pessoá da cidade se meteu a tê”.

Sem tirar a atenção na estrada, que conhecia como a palma da mão, se distraía com as músicas sertanejas vindas do rádio e o inseparável cigarro. Entre um trago e outro, e um pigarro que teimava em acompanhá-lo por onde ia, “Gerardo” fazia seus planos de serviços para o dia seguinte, quando, de repente, vê na beira da estrada,

1 Se em Pernambuco tem muito Cícero; no Ceará, Severino; no Piauí, Raimundo Nonato; e no Maranhão, José de Ribamar, em Minas não falta Geraldo, nem Geraldo Magela. Em regra, homenagem a São Geraldo, santo católico de ori-gem italiana, que tem muitos devotos por essas bandas, com santuário na cidade mineira de Curvelo, que anualmente recebe romarias de fi éis.Para não fugir a regra, meus pais deram um jeito de homenagear o santo, se não no início, por que não no meio: chamam-me Carlos Geraldo. Como se não bastasse, tenho uma irmã Geralda, um sobrinho Geraldo, que por usa vez tem um fi lho Geraldo, e uma infi nidade de primos geraldinos.

caminhando em sentido contrário, seu amigo e compadre “Zé Du2. Sem Pestanejar, para o Monza, dá aquela risada e vai logo cumprimentando o amigo:

“Uai, Zé, cumé que tá, sô? Famia tá boa? Tá sumido”.O Zé, também sorrindo, responde ao amigo:“Bão, sô. Sumido ta ocê, sô. Muito sirviço, né “Gerardo!”A conversa continua e logo “Gerardo” se prontifi ca a

levar o compadre em casa, que morava ali por perto, pró-ximo de meia légua, mais ou menos uma meia hora de andança a pé. Zé, no início, tentou dispensar a carona, não queria incomodar o amigo, disse que não precisava, esta-va acostumado a ir a pé, mas acabou cedendo, entrou no carro e dispararam uma prosa animada.

No caminho, “Zé” convidou “Gerardo” para aparecer na casa dele, jogar um truco e experimentar uma cachaça comprada naqueles dias. Disse que ainda não tinha visto “nada iguá”.

Entre um papo e outro, um solavanco aqui e acolá, que o “Gerardo” sempre negou que ocorresse quando es-tava no Monza, perceberam que o carro tinha passado por cima de alguma coisa.

Foram logo vaticinando: “É tatu”. Um deles foi logo sentenciando em complemento: “e pelo visto é dos grandes”.

“Gerardo” foi logo se desfazendo do Hollywood que estava acesso, saiu do carro, jogou o toco do cigarro no chão, pisou e remexeu bem com a botina, certifi cou que o pito estivesse bem apagado pra fi car com a consciência tranquila. Qualquer faísca, a mínima que fosse, naquele seco mês de agosto, poderia provocar um incêndio e isso prejudica demais a todos. “Gerardo” sempre teve muita consciência disso, até porque era encarregado de traba-lhos em imensas lavouras de eucalipto.

Foi logo olhando por baixo do Monza, numa agilida-de sem igual e com faro de cachorro perdigueiro, e ain-da sem levantar a cabeça da parte traseira do carro, num misto de sorriso e pigarro, já foi avisando, em forma de comemoração, ao amigo: “é um baita de um tatu”. Com-pletou em seguida: “num gosto de matar não, mais já que aconteceu, leva procê, Zé”.

Zé arrematou: “Levo só se for pra gente fazer uma fa-rofa e isprementá aquela cachaça”.

2 Nessas bandas de Minas tem muito Zé ou Izé, e Zé tem sempre um complemento. Tem Zé do Chico, Zé da Égua, Zé da Formiga, da Onça, do Caminhão. Zé do Taxi, Zé do Bento, Zé do João Rodrigues, Zé da Sanfona etc.

Casa simples, bem asseada, tudo arrumadinho, cozinha

sob luz de lampião. Examinaram o bicho...

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Com pouco mais de meia dúzia de pala-vras, entraram num acordo. Fariam a farofa, mas “Gerardo” não podia tomar mais que duas doses de cachaça, pois, no dia seguinte, ele mesmo iria dirigir um caminhão levan-do o pessoal para capinar entre as leiras de eucalipto, já que um dos motoristas de sua fi rma estava doente e hospitalizado. Zé co-mentou que a esposa estava na casa do so-gro, e que eles mesmos iriam fazer a farofa. Gerardo falou: “a cumadre cozinha sem igual, mas de vez em quando, é bão a gente memo fazer o tira-gosto”.

Chegaram na casa do Zé. Casa simples, bem asseada, tudo arrumadinho, cozinha sob luz de lampião. Examinaram o bicho que ain-da tinha um pouco de sangue na boca. Um deles diagnosticou: “com o peso do carro, jorrou sangue pá fuça”. Disputaram um pou-

co sobre acertar o peso do bichão, e sem perder tempo, passaram a fazer a farofa. Enquanto um tirava o casco e limpava o animal, o outro, sem deixar de servir a pri-meira dose da cachaça e rasgar os elogios para a “marvada”, foi pondo água para fer-ver, arrumando as panelas e preparando o tempero, a farinha, a cebola, a pimenta, en-fi m, os ingredientes para o inesperado, mas já desejado e farto tira-gosto.

Entre uma prosa e outra, que nessas oca-siões diz respeito ao evento, no caso, comida de tatu, um gole da “marvada”. Rapidinho já saiu a “porva” da farofa. Um comentário sobre a pimenta, a pinga, o tatu e, sem perceberem, já tinham comido mais da metade da farofa.

Elogio pro cozinheiro, balanceado com outro pro motorista, que, depois de umas cin-co pingas, já afi rmava que a morte do bichão

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não fora obra do acaso. “Gerardo”, com toda convicção, assegurava que viu o tatu e com sua perícia no volante (motorista que nem “Gerardo” é difícil encontrar na re-gião, segundo o próprio não cansa de afi rmar) acertou em cheio na cabeça do bicho, senão o tatu escaparia, pois “Gerardo”, mesmo em noite escura, já sabia que o bicho era grande. Se não fosse certeiro na cabeça, o bi-cho não morreria. Difícil tatu tão grande como aquele, gabava-se “Gerardo”.

Quando beiravam raspar a panela e acabar com a pinga, a esposa do Zé chegou. Reconheceu logo o Monza parado na frente da casa. Com alegria, foi entrando, cum-primentando o compadre e falando, num misto de satis-fação, espanto e repressão ao marido: “Izé, cumé que ocê num avisa qui o cumpadre vinha aqui”.

Zé contou a história, num tom de satisfação, à esposa. A mulher, prontamente, foi dizendo que ia preparar uma carne de lata para eles. “Gerardo” adiantou que estava muito cheio e de saída, que outra hora voltaria pra co-mer a carne, mas que, junto com Zé, tinham comido uma farofa e tanto do tatu. Buscou convencê-la do tanto que comeram que até mostrou a panela praticamente vazia.

Ensaiou lamento por não ter deixado e separado, sem pimenta, um bom pedaço de tatu e de farofa para a coma-dre, que sabia não estava com muito tempero. A comadre minimizou dizendo que estava evitando comer à noite.

A comadre, então, já ciente do ocorrido, mesmo meio sem graça, disparou uma pergunta: “ôceis pegou esse tatu foi na curva da estrada perto das terras do cumpadre Agenor?”

“Gerardo”, como se tivesse iniciado um bronzea-mento, vez que as faces e o pescoço já começaram a fi car vermelhos, em coro com Zé, confi rmou, e os dois logo perguntaram: por quê?

A mulher, já totalmente sem graça e sem como dis-farçar, mais ainda agitada, afi rmou: “é que já tem quatro dias que esse tatu tá morto lá”.

“Gerardo”, que não é homem de fi car em situação di-fícil, apenas muito vermelho, já tinha afi rmado que pas-sou por cima do tatu num lance de esperteza e domínio do Monza, mesmo sabendo que isso era pura invenção, apenas para divertir o compadre. Agora já estava um pouco cismado com umas dores e coceiras na região do estômago, não sabendo se era a gastrite que reclamava da “marvada” ou se era efeito da farofa do fi nado tatu, e emendou logo: “Era outro tatu, pois esse que nois feis a farofa eu matei com a roda traseira do Monza”.

Depois daquilo, a prosa murchou. “Gerardo”, verme-lho como coral, apressou a saída, lembrou a todos da ne-cessidade de ir embora e do serviço de motorista no outro dia cedo. “Picou a mula”, como dizem na região.

A notícia correu na região. Não se sabe como come-çaram os comentários, vez que tanto a comadre quanto o compadre são pessoas discretas. Fato é que “Gerardo” jamais admitiu que comeu farofa de tatu morto há quatro dias. Porém, até hoje, não se sabe as razões pelas quais nunca mais comeu farofa de qualquer bicho.

“Gerardo” também nunca convenceu por que não conseguiu dirigir o caminhão no dia seguinte e não le-

vou, ele mesmo, a turma para trabalhar no campo. Al-guns dizem que “Gerardo”, ao deixar a casa do compa-dre e passar nas terras do Agenor, mais precisamente na curva que a comadre falou, parou o carro, desceu e, mesmo na escuridão, procurou, com o usual faro de per-digueiro, por longo tempo, algum tatu morto naquelas bandas. Alguns maledicentes afi rmam que ele varou a noite procurando o bicho, razão de não ter aparecido para dirigir o caminhão.

O que todos sabem na região é que “Gerardo” não gosta, ou melhor, não suporta nem ouvir falar mais o nome daquele bichinho. Quando ouve, vê ou talvez pense em tatu, “Gerardo” fi ca num vermelhidão sem igual. Cora no mesmo tom quando passa próximo das terras do Sr. Agenor.

...desceu e, mesmo na escuridão, procurou, com o usual faro de perdigueiro, por longo tempo,

algum tatu morto naquelas bandas.

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Juscelino Kubitschek chega à chefi a do Poder Executivo em 1955, tornando-se sinônimo de empreendedorismo, democracia, desen-volvimento econômico e explosão cultural. Contagiando a nação, ganha o apelido de Presidente Bossa Nova e é apontado como uma fi gura da maior importância para o sur-gimento do movimento de música popular criado pelo triunvirato Tom, João e Vinícius no fi nal da década de 50.

JK se foi e, antes dele, a própria bossa nova. Ela, aclamada internacionalmente, logo retomaria seu devido lugar em Pindo-rama. Ele, apeado e mortalmente golpeado, transformou-se numa lenda eternamente pranteada. Tempos inglórios aqueles. Tem-pos da Gloriosa, agnome Redentora, que surge envergonhada, mas, logo, escancara-da, e deixa à mostra suas garras e tentácu-los, como a dizer: é ano novo, o rei chegou, há nova ordem (outorgada), urge alegria ufanista, gerando daí uma expectativa: será que vem aí bom tempo?

Ninguém sabe ao certo quem lhe con-tou sobre o tempo que viria lá pelos idos de 1968. Exato mesmo só os tropicalistas alfi ne-tando-o as previsões. Mas se Chico Buarque

é utópico ou irônico nas entrelinhas de Bom Tempo, fato é que aconteceu exatamente o contrário do que ali grafou: o tempo fechou. Mas vale a advertência: a obra do nosso maior compositor vivo não merece interpretação li-teral, como fez a burra censura daquele tem-po de sufoco. A propósito, até as feministas erraram quando satanizaram Mulheres de Ate-nas. Ele, depois, explicou: — Eu disse exata-mente o contrário: não se mirem no exemplo daquelas mulheres de Atenas. Elas leram ao pé da letra!

Mas eis que chega a roda-viva e o que era doce acabou-se. E é fato que, a partir do gol-pe militar (nem contragolpe, nem revolução!), na gente deu o hábito de caminhar pelas trevas. E naqueles idos, quando caía a tarde feito um viaduto e um bêbado, trajando luto, fazia irreverências mil pra noite do Brasil, a turba espreitava a banda passar cantando coisas de amor. E com seu canto, punhalada, Pedro pedreiro, penseiro, esperava o trem, re-clamando b-a-i-x-i-n-h-o: — tou me guardan-do pra quando o carnaval chegar! Queria can-tar pro povo e ansiava um contragolpe, mas veio o carnaval, a festa pagã, e pela avenida o que se viu passar foi um samba popular. Cada

Chico & Cia no tempo do sufocoRoberto MachadoJuiz federal e cronista bissexto

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paralelepípedo da velha cidade, naquela noite, se arrepia-va com a Portela na avenida cantando em adesão àquele bordão: — conte comigo no seu carnaval/ tô me guardando contra o mesmo mal. Parecia um ensaio geral, um imen-so cordão formado por quem não tinha nada pra perder; o sonho de um carnaval, o pobre deixando a dor em casa o esperando.

É vero que a Redentora tentou calar a voz de Chico pela censura. Como não era de costume levar desaforo para casa, ele até ensaiou uma reação:

— Perdão, Marquês de Tamandaré, mas você me censu-ra até o que é de coração. Sei que a maré não tá boa, mas não vou dar braço pra ninguém torcer. Ninguém vai me acorrentar, nem vai calar minha viola, nem vai me levar da-qui. Quem é você? Diga logo, que eu quero saber o seu jogo!

Apesar do semblante meio contrariado, o patrono da Marinha era boa praça e até não desmerecia o samba, que falava mesmo era da desvalorização do velho cruzeiro, cujo valor o tempo inconstante roubou.

Mas o que eu quero dizer é que a coisa aqui fi cou pre-ta mesmo foi quando os generais tomaram gosto pelo po-der, deixando no chinelo a era dos marechais. Parodiando o compositor Sérgio Porto (o nosso Stanislaw Ponte Preta, do Febeapá), parecia até coisa de samba do crioulo doido, aquele compositor que, em palpos de aranha sobre o que seria “atual conjuntura”, embaralhou os fatos históricos na composição do samba de enredo de sua escola. Pois não é que, logo depois da primeira troca de generais, a coisa aqui também endoidou de vez! Resultado: tome de proclamação (ratifi cação da ditadura pelo AI-5/1968), deduração, prisão, explosão, censura e tortura seguida de morte. Eram os anos de chumbo – a face mais negra da ditadura militar instalada em 1964 – com seu nada “amo-roso” terrorismo cultural. Pode-se dizer que, a partir de 1968, o ano que não terminou, ela, a ditadura, desatinou, porque o Brasil fi cou com os dias sem sol raiando. E era muita gente partindo num rabo de foguete.

Chico & companhia já não tinham dúvida sobre o jogo do almirante e seus iguais. E Chico foi levado, sim.

Levado pela “dura” (a polícia política da dita-dura), numa muito escura viatura. Temendo o pior, até liberou a mulher do dever matrimonial de fi delidade: — ... mas depois de um ano eu não vindo/ ponha a roupa de domingo e pode me esquecer! Como escapou, ouviu o bom conselho que os homens lhe deram de graça (?). E como Deus lhe deu pernas compridas e muita malícia, pra correr atrás de bola e fugir da polícia, escafedeu-se para além-mar, aportando em terras de Endrigo, ali nascendo, distante dos olhos (dos avôs), seu primeiro rebento (Sílvia), embora talvez nem fosse o momento dele rebentar. E ele se foi cantando a sua própria canção de exílio, prometendo voltar para o seu lugar, porque aqui ouviu e ainda ouviria cantar uma sabiá. Na Roma dos Césares, suportou o autoexílio gra-ças à companhia da mulher, Marieta Severo, e do amigo Toquinho (Antônio Pecci Filho), a quem fez a seguinte recomendação, quando o parceiro, correndo do frio eu-

ropeu, voltava ao Brasil depois daquela temporada um tanto forçada (a convite e por insistência do próprio Chi-co): — ... mas não diga nada/ que me viu chorando/ e pros da pesada/ diz que vou levando, referindo-se àqueles que

Pode-se dizer que, a partir de 1968, o ano que não terminou, ela, a ditadura, desatinou, porque o Brasil fi cou com os dias sem sol raiando. E era muita gente partindo num rabo de foguete

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aqui fi caram na resistência, driblando a “dura” e a burra censura, a exemplo, dentre tantos, dos membros do MPB4 e de Paulo César Pinheiro, compositor insuperável, par-ceiro da nata da música popular brasileira e companheiro inseparável de um ser de luz, santa Clara, que se mudou numa eterna sabiá.

Apesar de você amanhã há de ser outro dia, uma metá-fora perigosa “homenageando” o ditador de plantão (Mé-dici) – na verdade dirigido ao sistema como um todo e não a certa mulher mandona –, gera verdadeiro desalento em Chico, recém-chegado ao Brasil, em março de 1970. Ele até volta produzindo barulho, como recomendado pelo poeta, poetinha vagabundo, Vinícius de Moraes. Mas, depois que seus 100 mil compactos são recolhidos e o censor é punido por “falta de senso”, o compositor logo percebe que as mesmas pessoas que, na noite dos bares de então, cantam Apesar de Você, também cantam, com igual entusiasmo, Meu Brasil, Eu Te Amo, música que a ditadura se apropriou para divulgar seu lema: Brasil! Ame-o ou Deixe-o.

O resto todo mundo já sabe: do medo criou-se o trági-co e o Brasil vira um pesadelo. Aliás, não é mais pesadelo nada. É brincadeira de gato e rato entre a cultura e a cen-sura, parada federal: verdadeiros barnabés do funciona-lismo público alçados a tais cargos por subserviência e alienação, como lembra Paulo César Pinheiro. E haja sam-ba no escuro. E haja metáforas e, às vezes, corajosa sin-ceridade, fruto da revolta de uma geração sufocada pelo arbítrio: – você corta um verso/ eu escrevo outro.

Exato é que, nesse tempo, o sambista já não sabe se amor é crime ou se samba é pecado. Mas ainda assim insiste em cantar seu refrão, sem compromisso, sem re-lógio, sem patrão, a despeito da censura da direita e do patrulhamento da esquerda, ambos os lados lendo po-liticamente o que não era. Apesar do sistema, o artista vai levando, porque a noite é criança, do samba não abre mão e por ele faz até revolução, embora grafe “evolução”. Mas quando, na caixinha, um novo amigo vem bater um samba antigo, fi ca na esperança de que amanhã tudo vol-

te ao normal, revelando seu lirismo nostálgico. A espe-rança dele é também do povo, e até o neguinho que upa na estrada, começando a andar, grita a plenos pulmões: – liberdade só posso esperar!

O tempo é instável, mas todo artista sabe que o show tem que continuar e que o importante é que a nossa emoção sobreviva. Acontece que, nesse tempo, é tanta faca, navalha e tesoura de chumbo grosso – com a censura mutilando ou vetando obras a torto e a direito – que até lhe parece que tudo que se construiu desabou, e que é invencível a ação negativa, que vai roubando gota a gota o seu sangue de sambista. É um desalento que já não tem mais fi m. Mas, mesmo com toda esgrima, com todo clima, o artista vai levando sua rima. E Chico, em sua vertente crítica, de olho nas relações aviltan-tes entre capital e trabalho, a essas alturas quase uma unanimidade nacional, dá-se à construção de uma obra prima em dodecassílabos, tijolo com tijolo num dese-nho lógico, alternando rimas em proparoxítonas, es-quecendo apenas “Médici”, sugestão da viperina crítica direitista, o jornalista David Nasser. E, em tom de ironia, exclama Deus lhe pague por lhe deixar existir, “apesar dessa tempestade que está aí”, outro verso que lhe foi machucado.

Ele tem o nome tão marcado na lista negra da insensa-tez que Carlinhos Lyra, seu parceiro na canção, comemora – “essa passou!”, ainda que a letra fale de tema tão diverso: apenas uma história de amor acabado. Se, pelo menos ali, o poeta não fi cou sem verso, a censura lhe cortou, atrás da porta, até os pelos, ele prometendo vingar-se a qualquer preço. E se fi cou de saco cheio e quase sem partido, quando foi obrigado a trocar “titica” por “coisica” e “brasileiro” por “batuqueiro”, calaram-lhe a boca em Calabar, pela audácia do elogio da traição, peça que questionava a história ofi cial da Independência do Brasil. O império já condenara ao es-quecimento o nome daquele “traidor da pátria”. Mas Chico, parecendo calar a boca da mulher de Calabar, resgata-o, repetindo seu nome, de maneira sutil, no refrão da canção CALA a Boca BÁRbara.

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lêncio impositivo, o artista, atento na arqui-bancada, via emergir o monstro da lagoa.

Nesse tempo, também tinha muita gente naquela de você sai sem saber se vai voltar. No início, apenas os comunistas e simpatizan-tes. Depois, para espanto da nação, gente de tudo que é lado, a começar pelo estudante Edson Luiz de Lima Souto, assassinado no res-taurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Estam-pada nos jornais, a foto daquele secundarista morto chocou o país, porque a morte dele era um pouco a morte do Brasil, tanto que Milton

Nascimento e Ronaldo Bastos compuseram Menino, uma canção cujos primeiros versos diziam: Quem cala sobre teu corpo/consente na tua morte/talhada a ferro e fogo/nas pro-fundezas do corte/que a bala riscou no peito. E é fato que outros tantos, levados pelos ho-mens, nunca voltaram, a exemplo do “suicida” Vladimir Herzog e do fi lho de Zuzu Angel, a Angélica de Chico, aquela mulher que, lutan-do desesperadamente contra o sistema, até morrer também, cantava sempre o mesmo es-tribilho: só queria embalar seu fi lho/ que mora na escuridão do mar.

Não dava para reclamar: – “ah, ninguém chora por mim!”. Não! Naquele tempo, nunca

Se, para os homens da tesoura, é legal, num fado tropical, dizer que o Brasil ainda vai tornar-se um imenso Portugal, é ofen-sivo aos irmãos lusitanos, merecendo veto ofi cial a sátira à origem da nossa sífi lis. Se para Chico vence na vida quem diz sim, a navalha dá-lhe um não à moda Vinícius: a hora do sim é o descuido do não! E se a te-soura já não podia alcançar antiga poesia de Drummond (Quadrilha), os insensatos, homofóbicos, proibiram o amor dos pares em Flor da Idade.

No Sinal Fechado, Chico denuncia a cen-sura ao seu labor, gravando sambas prati-camente só de outros compositores. E, para driblar os navalhas, ele se muda até num tal de Julinho da Adelaide, criticando o milagre brasileiro. Mas isso foi no tempo em que a fi lha do general piscava, arriscava e enros-cava Jorge Maravilha. Também não se pode esquecer que, na dúvida se era “cálice” (Gil) ou “cale-se” (Chico), a insensatez optou por silenciá-la. Trocando em miúdos, estava pro-vado que era puro engano pensar que “de muito usada, a faca já não corta”, porque ela continuou cortando, e o Brasil permaneceu calado por muito tempo. Atordoado pelo si-

Exato é que, nesse tempo, o sambista já não sabe se amor é crime ou se samba é pecado. Mas ainda assim insiste em cantar seu refrão, sem compromisso, sem relógio, sem patrão, a despeito da censura da direita e do patrulhamento da esquerda

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se chorou tanto. Choravam Marias e Clarices no solo do Brasil. Aqui um parêntese: as “Marias” são as viúvas, mães e fi lhas dos torturados e/ou mortos; Clarice é a viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado na prisão. Enfi m, chorava toda a nossa pátria-mãe gentil. Na guerrilha, os sobreviventes cantam Pesadelo, uma canção por eles transformada em hino: – você me prende vivo/ eu escapo morto. De fato, Herzog escapa morto. Ele e outros tantos. Mas sua morte foi a gota d’água e a nação mudou-se num pote até aqui de mágoa, sentimentos brotando à fl or da pele, com mutilados em romaria a indagar o que será que será, todos combinando no breu das tocas, sem mais jeito de dissimular, à busca da grande utopia, diante da falta de limite dos agentes da repressão.

Mas eis que, como uma luz no fi m do túnel, brota promessa ofi cial de abertura lenta, gradual e segura (no governo Ernesto Geisel), uma metáfora do bruxo Golbery. Ironia do destino para esses dois generais, porque já se sabe hoje que Ernesto Geisel (o sacerdote) e Golbery do Couto e Silva (o feiticeiro), tendo ajudado a construir a di-tadura entre 1964 e 1967, desmontaram-na entre 1974

e 1979. A propósito, há muito Chico já peitava o general: – você que inventou o pecado/ esqueceu-se de inventar o perdão, porque, afi ançava, não existia pecado do lado de baixo do Equador.

É certo que, apesar da promessa de abertura, a coisa continuava preta, tanto que Chico não tinha como mandar notícias frescas para seus caros amigos ainda no exílio. Mas a anistia, ansiada por todos, até pelo bêbado e pela esperança equilibrista, já se prenunciava sim, tanto que, em canção zangada, disfarçada de delicadeza, fruto de seu lirismo nostálgico, o compositor, lembrando sua ma-ninha de uma infância imaginária e de um futuro entre os dois combinado, garante-lhe que ele, o general, um dia iria embora para nunca mais voltar, tal como também previra na utópica Apesar de Você e como, depois, nos bastidores, amaldiçoando o dia em que o conheceu (numa madrugada, aliás!), voltou correndo ao lar pra se certifi car que ele, o tal general, nunca mais voltaria. Esse dia estava pra chegar. E era só o que pedia: um dia, até meio dia, pra aplacar sua agonia. E o prenúncio era tanto que, com uma receita do marido, compilada de poesia do compadre Vi-

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nícius de Moraes, Marieta prepara uma feijoada completa para um batalhão de amigos do casal: exilado, morto-vivo, fl agelado, nego humilhado, era gente de tudo que é lado, inclusive o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfi l, todos com muita fome e uma sede de anteontem. E, logo, os companheiros, apesar das marcas que ganharam nas lutas contra o rei, foram chegando às gargalhadas (quaquaraquaquá), entoando, numa só voz, o Tô Voltando, canção adotada como o “hino dos exilados”, ganhando, assim, uma conotação jamais imaginada por seu criador, o compositor Paulo César Pinheiro.

A ditadura, encurralada, logo seria derrotada. E se tor-naria página virada, descartada do nosso folhetim. E até a ânsia “pela volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem mandou dar” foi se desgarrando do espírito da nação. E ninguém pagou, imagine dobrado, pelas lágrimas roladas. É certo que, quanto ao ponto, o jogo ainda não terminou. Está na prorrogação dos tribunais, inclusive internacionais. No entanto, nem mesmo a redemocratização extirpou o cancro da corrupção. Mas isso até os generais de 1964 já sabiam, mesmo que hajam cometido o exagero de perpe-trar a conquista do Estado sob o argumento, entre outros,

de combatê-la. E a nossa pátria mãe, tão distraída, conti-nua dormindo em berço esplêndido, sem perceber que é subtraída em outras tenebrosas transações de um bando de malandros com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.

O nosso tesouro Chico Buarque – artista brasileiro, carioca, geminiano, andarilho, ético, leal, utópico, auto-crítico, melancólico, idealista, humanista, estrategista, imperfeito, moleque, mágico, radical, discreto, delicado, simples, despojado, recatado, educado, sutil, elegante, inteligente, intuitivo, virtuoso, erudito, talentoso, gene-roso, inovador, preservador, seresteiro, cronista social, poeta universal, lírico e épico, cantor, dramaturgo, escri-tor, tradutor, intelectual orgânico e substantivo, e com-positor reencarnado e redivivo – que discute com Deus e mexe com os prepotentes, cantou tudo na sua inesgo-tável “Lyra” e não evitou, assim o disse nosso maestro soberano, assuntos escabrosos: sangue, tortura, derrame, hemorragia..., como assim também o fi zeram muitos de seus caros amigos. É deles, de palavra em palavra, cuida-dosamente compiladas de seus versos e outros escritos, o enredo desta história.

Músicas compiladas: I) De CHICO BUARQUE - Ano Novo. Bom Tempo. Mulheres de Atenas. Roda Viva. Você Não Ouviu. Rosa-dos-Ventos. A Banda. Baioque. Pedro Pedreiro. Quando o Carnaval Chegar. Vai Passar. Cordão. Sonho de Car-naval. Tamandaré. Meu Refrão. Vai Levando. Lua Cheia. Noite dos Mascarados. Meu Caro Amigo. Ela Desatinou. Acorda Amor. Bom Conselho. Partido Alto. Meu Guri. Sabiá. Samba de Orly. Apesar de Você. Samba pra Vinícius. Juca. Olé Olá. Amanhã, Ninguém Sabe. Com Açúcar, Com Afeto. Logo Eu. Desalento. Construção. Deus lhe Pague. Retrato em Branco e Preto. Essa Passou. Atrás da Porta. Cala a Boca, Barbara. Fado Tropical. Vence na Vida Quem Diz Sim. Flor da Idade. Milagre Brasileiro. Jorge Maravilha. Cálice. Trocando em Miúdos. Angélica. Gota D’água. O Que Será (Abertura). O Que Será (À Flor da Pele). Não Existe Pecado ao Sul do Equador. Maninha. Bastidores. Não Sonho Mais. Basta Um Dia. Feijoada Completa. Sem Fantasia. Folhetim. II) De SÉRGIO END-RIGO: Distante dos Olhos. III) De ALDIR BLANC: O Bêbado e a Equilibrista. IV) De PAULO CÉSAR PINHEIRO: Agora é Portela 74 (Conte Comigo). Um Ser de Luz. Pesadelo. Mordaça. Vou Deitar e Rolar (Quaquaraquaquá). Tô Voltando. V) De SÉRGIO PORTO: Samba do Crioulo Doido. VI) De VINÍCIUS DE MORAES: Insensatez. Onde Anda Você. Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão). VII) De MIL-TON NASCIMENTO e RONALDO BASTOS: Menino. VIII) De GERALDO VANDRÉ: Aroeira. IX) De EDU LOBO e GIANFRANCESCO GUARNIERI: Upa Neguinho.

Obras Pesquisadas: Juscelino Kubitschek: O Presidente Bossa Nova. Marlene Cohen. São Paulo: Globo, 2005; Eu e a Bossa. Carlos Lyra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008; Histórias de Canções – Chico Buarque. Wag-ner Homem. São Paulo: Leya. 2009; Histórias de Canções – Toquinho. João Carlos Pecci & Wagner Homem. São Paulo: Leya. 2010; Histórias das Minhas Canções – Paulo César Pinheiro. São Paulo: Leya. 2010; Chico Buarque – Tantas Palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006; Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2009; Desenho Mágico – Poesia e Política em Chico Buarque. Adélia Bezerra de Menezes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000; Perfi s do Rio – Chico Buarque. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; Palavra Prima: As faces de Chico Buarque. Ana Mery S. de Carli e Flávia B. Ramos. Caxias do Sul: Educs, 2006; Poesia e Política nas Canções de Bom Dylan e Chico Buarque. Lígia Vieira César. São Paulo: Novera Editora, 2007; O Ministério do Silêncio – Lucas Figueiredo. Rio de Janeiro: Record, 2005; 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe. René A. Dreifuss. Petrópolis: Vozes, 1987; A Ditadura Envergonhada. Elio Gaspari. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; A Ditadura Escancarada. Elio Gas-pari. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b; A Ditadura Derrotada. Elio Gaspari. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; A Ditadura Encurralada. Elio Gaspari. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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Político e orador que marcou época na história da repúbli-ca brasileira, Carlos Lacerda narra, em livro de memórias1, que o seu avô, Sebastião de Lacerda, homem público de reputação ilibada, que concluiu sua existência como mi-nistro do Supremo Tribunal Federal, enviuvara cedo, per-dendo sua adorável esposa, quando esta mal completa-ra seus vinte e nove anos de idade, não mais voltando a casar-se, contrariamente ao costume de então. Tinha

1 A casa do meu avô. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

vocação mais para viúvo do que para fazendeiro. Isso não impediu – narra o seu neto – que, discretamente, man-tivesse alguns relacionamentos com companhias femini-nas e que, decerto, deviam valer a pena.

O relato me lembra uma estória que aconteceu com dois amigos de longa data, a qual se compõe com a pre-sença fatal e sedutora duma terceira pessoa, alvo de salu-tar disputa.

Um desses amigos, tendo enviuvado fazia pouco tempo, era daquelas pessoas que o passar da sétima

Coisas da viuvez e da terceira idadeEdilson Pereira Nobre JúniorJuiz federal e professor

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década de vida não o tornava menos jovial. Tratava-se do médico e professor Eunício Barbosa de Melo.

Ancorado em três aposentadorias – sen-do uma delas oriunda do extinto Inamps, outra decorrente do magistério universitário federal, na condição de catedrático de gineco-logia e, fi nalmente, como ninguém é de ferro, a terceira paga pelo INSS, em razão do exercí-cio da medicina como profi ssional liberal –, o

doutor Eunício, mesmo passados poucos anos do desaparecimento da sua querida Zélia (Ze-linha) Barros de Melo, jamais abandonou a boêmia e a admiração pelas musas. Continua-va o mesmo professor que nunca se poupava em homenagear as cruzadas de belas pernas de suas alunas, fuzilando-as com o faiscar de seus olhares, de soslaio ou frontais.

O outro era Laércio Varejão da Maia, ti-tular de polpuda aposentadoria paga pelo serviço público federal, que lhe garantia um futuro sem preocupações. Mesmo dez anos mais moço do que o doutor Eunício, era deste o grande companheiro de jornadas patuscas, além de fi el confi dente. Ainda não enviuvara, sendo casado, por quase meio século, com Jussara Valença da Maia, cuja incontestável valentia não inibia as furtivas aventuras de seu cônjuge.

Por último, a causa de todas as alegrias e confl itos da humanidade: cherchez la femme.

Aos vinte e dois anos de idade repletos de alegria, Juliana de Oliveira, órfã de pai, teve desde cedo de ganhar o seu sustento com a dignidade do trabalho. Não chegou a habitar o maravilhoso país da infância.

Sempre de bem com a vida, apesar das adversidades, Juliana, ou simplesmente “Juju”, como é conhecida, constantemente manifestava adoração pelo seu dia a dia vi-vido como garçonete no bar “É nosso”, sito na beleza da imensidão do litoral nordestino. Era, com merecimento incontestável, o centro das atenções e dos mimos dos clientes. Har-monizava a sua beleza loura com a sensuali-dade de suas saias, cujas fímbrias distavam em muito da altura dos joelhos. E, como se não bastasse, tinha um fetiche: usar um to-mara que caia bem curtinho, inebriando os clientes do estabelecimento de dona Sofi a, sua patroa. Por puro mérito, recebeu da una-nimidade inteligente dos principais frequen-tadores da casa o título de “a fl or do paraíso”.

Para se ter uma ideia precisa do que estou falando, suponha-se que, se num dia desses de sol, à “Juju” fosse legada a opor-tunidade de realizar na televisão, depois de uma passagem pelas mais famosas grifes de roupas femininas, a propaganda de uma aguardente de baixa qualidade, outro não seria o resultado a não ser o de provocar a evasão dos admiradores da cerveja Antarc-tica, prestigiada pela Juliana Paes, para o consumo da “caninha”, pura ou servida em forma de caipirinha.

É possível, sem que o leitor perca o seu interesse pela estória, chegar-se numa prévia conclusão: o doutor ou professor Eunício foi tomado de paixão pela nossa Juliana, a qual foi tão forte que se mostrou arrefecedora da racionalidade típica do experiente e invencí-vel conquistador de corações femininos.

A nova empresa, porém, apresentava di-fi culdades nunca antes vistas. Foram incon-táveis as investidas do Romeu apaixonado. Nenhuma delas alcançou sucesso. Revivendo

“Juju”, como é conhecida, constantemente manifestava adoração pelo seu dia a dia vivido como garçonete no bar “É nosso”, sito na beleza da imensidão do litoral nordestino

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o clima beligerante na Península Ibérica de muitos sécu-los atrás, “Juju” resistia como uma inexpugnável fortaleza mourisca às investidas do inimigo cristão.

Desistir? Jamais! Para um alquimista do amor, fazê--lo, pelo só fato de haver encontrado obstáculos fora do normal, signifi caria desmoralização. Prosseguir era o úni-co caminho.

Atordoado com a falta de êxito, o professor Eunício desabafou à dona Sofi a, mostrando desespero pela ab-soluta falta de sucesso de suas artimanhas de conquista. Estariam ultrapassadas? Não era isso. Dona Sofi a, antes determinando que fosse servida ao seu interlocutor a re-ceita senatorial do suco de maracujá, sugeriu que as ten-tativas continuassem. E por que não sob a forma de um presente que agradasse à insensível musa? Acompanha-do de um buquê de fl ores, seria irresistível.

Assim, dona Sofi a confi denciou que um dos maiores desejos de “Juju” era poder usar perfumes franceses, o que não fazia em face de seu pequeno ganho não permi-tir tal extravagância. O seu sonho de consumo, dentre tais essências, era o Eau de Soir, pois soube outrora que foi o que ocupou a preferência da princesa Diana, de quem era fã por meio da leitura de revistas.

Ciente das preferências de sua amada, o professor Eunício, de imediato (ou decretado, como se diz no vulgo nordestino), partiu em direção da mais chique perfuma-ria da capital, adquirindo, à vista, todo o estoque dispo-nível do referido perfume, o que acarretou a alegria de uma vendedora já de idade, pela elevação de sua parca comissão mensal.

Contudo, nosso personagem cometeu deslize fatal que o impediu de realizar o seu sonho. No dia seguinte à aquisição aromática, em sua caminhada diária perante a orla marítima, encontrou-se com seu amigo dileto, o probo e atilado ex-servidor público Laércio Varejão. Este, íntimo das preocupações do companheiro, perguntou-lhe como andavam os frutos da conquista amorosa. O profes-sor relatou vir enfrentando difi culdades, mas como sem-pre depois da procela vem a bonança, em futuro próximo, portanto, obteria um desenlace favorável.

O equívoco se deu com a falta de discrição quanto à estratégia a ser adotada para vencer a batalha. Domina-do pelas emoções que saltitavam do coração, narrou ao companheiro de caminhada a aquisição do tão desejado presente, o qual, entregue de surpresa, quebrantaria as

difi culdades manhosamente opostas pela musa onipre-sente de seus sonhos.

Esqueceu-se o professor Eunício que o amigo Laércio, embora dez anos mais novo, tinha um século a mais de experiência e esperteza.

Dito e feito. Antes que o professor Eunício tivesse tempo para entregar o mimo, Laércio procurou a adorável “Juju”. Disse a esta que, para homenagear a sua exuberan-te beleza, comprara um pequeno, mas representativo pre-sente, o qual satisfaria antigo sonho de consumo. Não po-deria declinar qual o objeto que comprara, pois estragaria a surpresa que lhe propunha fazer. Contudo, em sendo casado com a valente Jussara, disse que seria sobremodo arriscado entregá-lo à vista de todos. Prevenido, e uma vez que seguro faleceu de velho, afi rmou haver solicitado ao professor Eunício, amigo de todas as horas, que viesse fazer a entrega, a qual aconteceria o mais breve possível.

Um dia após, vestido com trajes que denotavam elegância juvenil, o professor Eunício, todo cheio de si, adentrou ao bar “É nosso”, sentando-se na mesa de sempre. Munido do seu tradicional Old Par em estilo caubói, chamou “Juju” e, com um oferecimento galante-ador, entregou-lhe o decantado presente.

Aberto o pacote, “Juju”, ao ver em abundância o seu sonhado perfume, tomou-se de forte júbilo. Passada a emoção, despediu-se do professor Eunício com desdém que o reduzia à condição de infeliz mensageiro. Nem mesmo mereceu o tratamento afável reservado aos ga-rotos de rua que, a serviço dos pretensos namorados, prestam-se à entrega de rosas às mulheres desejadas. Por pouco, “Juju” quase entregou ao professor Eunício, para compensar o préstimo de reles pombo-correio, uma moe-da de um real, o que teria sido um rematado ultraje.

No dia seguinte, Laércio – que, referindo-se ao seu casamento com dona Jussara, ultimamente se gabava com o fato de que, com o elevado aumento da expecta-tiva de vida, estava cada vez mais difícil (e por que não dizer injusto) manter as promessas de amor da juventu-de – tornou a pisar no bar “É nosso”. A recepção foi dife-rente. Além de marcantes beijinhos na face, recebeu, em palavras suaves, agradecimento sensibilizado da “fl or do paraíso”, a qual, a partir de então, destilava com os seus lábios risos furtivos ao galante presenteador.

O episódio fez com que os destinos dos dois amigos se bifurcassem em estradas que não mais se encontraram.

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Para o professor Eunício, tudo foi como um terremoto ar-rasador. Supôs haver sido traído pela sabedoria popular, pois acreditou que, apesar de loura, “Juju” tinha uma pers-picácia sem limite. Foi o sinal bastante para que as suas travessuras de viúvo, ainda mal iniciadas, cessassem.

Mesmo sem nunca vir a saber a verdade dos fatos, desencantou-se de tudo e de todos, resolvendo curtir sua viuvez numa recordação sem trégua à Zelinha, com-panheira por cinquenta anos, igualmente infatigável na bonança e, principalmente, na tristeza. Fiel ao preto como indumentária, passou o resto de seus dias contem-plativo na solidão de seu apartamento, contrabalançada pela possibilidade de vislumbrar de sua janela as brumas do Atlântico, tendo por único companheiro “Cacau”, um cachorro da raça West White Terrier.

Viveu o nosso mestre o resto de seus dias de forma semelhante ao Sylvestre Bonnard, personagem de Anatole France2, que, juntamente com o gato Amílcar, príncipe sono-lento de sua cidade dos livros, curtiu o insucesso do amor por sua Clémentine, mas que, mesmo assim, no limiar da velhice, compreendeu que não mais tinha sentido protago-nizar um novo caso de amor, amenizando seus instantes de

2 O crime de Sylvestre Bonnard. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. Tradução e introdução: Marcos Castro.

melancolia com a vista do rio Sena, também propiciada pela privilegiada localização de seu apartamento na Cidade Luz.

Assim, o professor Eunício abjurou de vez o espírito de Don Juan, para quem o que importa é o presente.

Quanto a Laércio, muitos dizem que se deu bem, aga-salhando-se nas noites de frio com o fervor do coração de “Juju”. Rumores não faltaram de que tudo não passou de afagos gentis, os quais o conquistador amplifi cara, pois consta que “a fl or do paraíso” jamais desistira de alimentar admiração juvenil que nutria pelo adônis e hercúleo João Maria Bastos, moço pobre, mas com promissora carreira como chefe de cozinha, no vigor de seus 25 anos, o qual, dentre suas muitas agradáveis qualidades, hipnotizava-a com as peripécias realizadas quando aquela se encontrava na garupa de sua moto, uma incrementada Honda Twister 250, fi nanciada em noventa prestações fi xas.

Mas, afi nal, alcançara Laércio o êxito na empresa a que se lançou, a qual lhe garantiu ser propalado, pelos frequentadores da confraria que se reunia no “É nosso”, com o título de “o felizardo da terceira idade”? As contro-vérsias persistem.

Quântico e avesso ao turbilhão do amor, Einstein diz que sim. Mais experimentado em compreender a pro-víncia do desejo, Freud diz que não. O leitor faça o seu julgamento.

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O Poder Judiciário, neste início de século XXI, tem pro-curado várias alternativas para atender à crescente de-manda por sua atuação, própria da sociedade de massa e de consumo, que reclama serviços rápidos, efi cientes e padronizados.

Para atingir tal fi nalidade, os processos foram to-talmente informatizados, o que garante celeridade na tramitação, especialmente pela supressão de atos me-ramente burocráticos, que agora passaram a ser realiza-dos de maneira automática. Além disso, foram criados sistemas operacionais para a elaboração de despachos e sentenças, que permitem a pesquisa rápida sobre a existência de decisões similares à que vai ser redigida. Com isso, o tempo de confecção dos textos fi ca sensi-velmente abreviado, além de tornarem-se, eles, mais homogêneos.

A adoção dos sistemas informatizados permite, ainda, a produção de relatórios que indicam os tempos médios de duração do processo, a produtividade dos juízes, quan-to demora o processo em cada uma de suas fases e quais os percentuais de demandas de cada matéria, dentre ou-tras tantas informações estatísticas.

Por fi m, há um grande estímulo à criação de unidades de conciliação, com vistas a garantir a aproximação das partes em litígio e viabilizar a composição direta do confl i-to, sem necessidade da instauração ou do esgotamento da

tramitação do processo judicial. Para atuação nesse cam-po, o juiz é impelido a conhecer técnicas de mediação e de fomento ao diálogo, de modo a atuar como uma espécie de catalisador, que vai facilitar a obtenção de entendimen-to entre os contendores.

Tudo isso deve ser temperado por uma boa estra-tégia de marketing, que visa levar ao conhecimento da população os avanços e as novidades empregados na atividade judicante.

Do juiz atual, portanto, passaram a ser exigidas capaci-dades que vão além do estrito conhecimento jurídico.

Eu, no entanto, sou um juiz anacrônico.Não gosto de conciliação, mediação, boas práticas

para facilitar a atuação da justiça. Sou um juiz do processo, do despacho, da sentença.

Causam-me enfado as estatísticas, os relatórios, os índices de produtividade. Na verdade, nunca consigo compreendê-los totalmente, nem deles extrair conclusões incontestáveis.

Minha afeição é pelo Direito, pelo atento exame dos fatos e pela perfeita adequação de um a outro, mediante um silogismo preciso. Não sou contra a celeridade, mas não consigo abrir mão da decisão pensada, ponderada, que se aproxime de algum conceito de justiça.

E não poderia ser diferente. Não conheço admi-nistração, psicologia, técnicas de arbitragem ou de

academia

Juiz anacrônicoEverson Guimarães SilvaJuiz federal

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aproximação das partes. Minha vocação dirigiu-me ao estudo da estrutura da nor-ma, dos direitos fundamentais, do tipo penal, do fato gerador e dos princípios do processo e da administração pública. Pas-sei, é claro, pela fi losofi a, pela sociologia, pela ciência política e pela economia, mas tão só para tentar compreender melhor o fenômeno jurídico.

Sinto-me, por vezes, tendo que fazer funcionar um restaurante de fast food, rá-pido, ágil, com sabores padronizados e onde a técnica de elaboração das refeições a serem servidas consta em um quadro na parede da cozinha – ou já está progra-mada em um sistema informatizado. Mas minha admiração é pela nouvelle cuisine, com seus pratos delicados, de aroma sutil e sabor peculiar, quase obras de arte, que agradam ao paladar, aos olhos e, ainda, não dispensam um bom vinho.

O marketing então! E o relacionamen-to com a imprensa! Nesse campo, minha impressão é a de ser um cavaleiro medie-val, com sua pesada armadura de latão ou ferro, tentando caminhar por um pântano

ou atravessar um rio. O conceito de pu-blicidade, para mim, sempre foi, simples-mente, a divulgação do ato jurisdicional no Diário Ofi cial.

Há um consolo, porém. Ainda existem funcionando, pelas pa-

redes de algumas casas, aqueles antigos relógios de pêndulo e carrilhão, nos quais se tem que dar corda regularmente e que necessitam, para continuarem sua impre-cisa marcação do tempo, dos cuidados de um velho relojoeiro, que saiba regulá-los, azeitá-los e até confeccionar algumas pe-ças para eles.

Da mesma forma, deve haver processos intrincados, que encerrem uma controvérsia peculiar, nunca vista na jurisprudência, e nos quais a parte espera um exame cuida-doso e sutil, que vise achar a solução que é única e precisa, mesmo que para tanto seja necessário uma maior demora na avaliação, a subsunção do feito aos antigos ritos e for-mas processuais e a argumentação cuidado-sa e erudita dos advogados.

Para tais casos, a exemplo do velho relo-joeiro, talvez ainda sirva um juiz anacrônico.

... minha admiração é pela nouvelle cuisine, com seus pratos delicados, de aroma sutil e sabor peculiar, quase obras de arte, que agradam ao paladar, aos olhos...

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ponto de vista

O senhor recentemente foi nomeado corregedor do Con-selho de Justiça Federal. Quais são os desafi os dessa nova função?O Conselho é composto por 10 magistrados, sendo cinco do Superior Tribunal de Justiça e cinco de cada Tribunal Regional Federal. O cargo de corregedor é ocupado sem-pre por um dos membros do STJ e a ele compete presidir a chamada Turma Nacional de Uniformização da Jurispru-dência dos Juizados Especiais Federais e também dirigir o Centro de Estudos Judiciários, que realiza cursos de atua-lização para a comunidade jurídica em geral. Além disso, o corregedor tem atribuição correicional, de verifi car como estão funcionando os tribunais, para que possa colaborar

com eventuais melhorias a serem implementadas para o melhor funcionamento da Justiça. O grande desafi o do cargo são essas muitas atribuições, mas o trabalho, no ge-ral, é bem tranquilo. O conselho tem uma estrutura boa, está bem instalado, os juízes federais e os desembarga-dores são todos muito bons e cooperativos, então facilita o dia a dia.

O Superior Tribunal de Justiça é conhecido por muitos como Tribunal da Cidadania, Tribunal Cidadão. Como o senhor vê essa alcunha? A promulgação da Constituição Federal de 1988 e a abertura democrática possibilitaram um aumento muito

Nascido em Novo Cruzeiro, no Vale do Jequitinhonha (MG), o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Arnaldo Es-teves Lima é um homem de hábitos simples e de grande dedicação ao trabalho. Passa a semana em Brasília, “prati-camente só no STJ”, e almoça no próprio refeitório do tri-bunal, lado a lado com os servidores. Já nos fi ns de sema-na, quando está em Belo Horizonte, se permite momentos de lazer, nas idas ao clube com a família. Considera-se um “mineiro tradicional” e é fã da seresta mineira e do rico ar-tesanato produzido em sua terra natal. Apenas há poucos anos viajou pela primeira vez para fora do Brasil. Conhe-ceu e se encantou com Nova York, Lisboa e Barcelona. Para ele, as viagens são uma oportunidade não só de conhecer, mas também de aprimorar o lado cultural.

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mi-nas Gerais (UFMG), está no STJ desde 2004. Preside a Pri-meira Turma do tribunal e é membro da Primeira Seção, da Corte Especial e do Conselho Superior da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Acaba de ser nomeado corregedor-geral do Conselho de Justiça Federal. Defende que os magistrados tenham con-duta ilibada e sirvam de modelo para a população. Sobre-tudo nas comarcas do interior, onde “um mal exemplo tem repercussão negativa enorme”.

Nesta entrevista exclusiva para a Revista de Cultura da Ajufe, o ministro Arnaldo Lima conta um pouco de sua origem simples, de sua trajetória, de seus hábitos cultu-rais e de sua mineiridade.

Magistratura em prol da cidadaniaNo STJ desde 2004, o ministro Arnaldo Esteves Lima é um homem de hábitos simples e de grande dedicação ao trabalho. Recém-nomeado corregedor do Conselho Federal de Justiça, defende que os magistrados tenham conduta ilibada e sirvam de modelo para a população

Iara Vidal

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grande no acesso à Justiça. Como o STJ é um tribunal nacional que julga as questões mais comuns do dia a dia das pessoas, com exceção dos casos relacionados à Justiça do Trabalho, acaba por chegar aqui diversos temas que envolvem a aplicação da legisla-ção federal. Com isso, houve, em um espaço curto de tempo, um número muito grande de recursos chegando ao STJ, demonstran-do que há toda uma expectativa e confi ança do jurisdicionado na atuação no Tribunal, o que acabou gerando essa denominação de Tribunal da Cidadania. Na minha opinião, é uma faceta importante do próprio regime democrático.

Há um embate em curso no nosso Legislati-vo entre as polícias judiciárias e o Ministério Público, que quer ter a prerrogativa de in-vestigar também. Em sua opinião, qual é o efeito disso na prática, na vida do cidadão?Isso é uma matéria que está em discussão. Há uma proposta de emenda constitucional para regulamentar essa competência de investigar,

mas, na prática, eu acho que deveria existir, como existe, em certa medida, um trabalho cooperativo entre as instituições. Quem deve investigar, como regra, é a polícia, porque é uma competência tradicionalmente atribuída a ela. Mas como o Ministério Público é o titular da ação penal, excepcionalmente, seria razo-ável que ele pudesse investigar quando seu trabalho for supletivo da atuação da polícia, que algumas vezes pode não ter sido ade-quada, ou em casos que envolvam policiais. Eu não sou favorável ao Ministério Público atuar presidindo inquéritos, acho que não é atribuição dele, é atribuição da polícia, que é preparada para isso. Talvez não seja bom também porque pode gerar desgaste para o Ministério Público. Quanto melhor funcionar o sistema, melhor para a sociedade. O mais importante, na minha concepção, é uma atu-ação cooperativa. O Ministério Público não deveria invadir a área de atuação da polícia, com exceção de determinados casos, como citei anteriormente.

O senhor é nascido no Vale do Jequitinhonha, que é infelizmente conhecido pela pobreza e felizmente pelo espetacular artesanato. O senhor morou até que idade na região?Eu e todos os meus irmãos nascemos no meio rural, no distrito de Novo Cruzeiro, que se chama ofi cialmente de Nova Ilhona, mas tem o nome vulgar lá na região de Sapé, por causa de um rio que passa por lá. Vivi até os 20 anos no Vale do Jequitinhonha. Fiz o primário na minha cidade e o ginásio em uma cidade próxima a Novo Cruzeiro. Só depois fui para Belo Horizonte, com ajuda de uma irmã, que faleceu recentemente. Lá, fi z o curso clássico, que era paralelo ao científi -

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ponto de vista

co, mas mais direcionado a ciências humanas. Depois fi z o vestibular para direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O senhor sempre estudou em escolas públicas?O clássico eu fi z em colégio particular, porque, na época, ele era ministrado em poucos colégios e eu precisava estu-dar à noite, pois tinha arranjado um emprego de datilógrafo lá na UFMG e fi cava apertado para mim estudar de manhã.

Conte um pouco sobre sua relação com a cultura mineira.Na parte musical, eu gosto da seresta mineira, que é um lado musical muito cultivado em Minas Gerais. Também gosto muito da culinária mineira, do artesanato, que é bastante forte em minha região. Em resumo, sou um mi-neiro bem tradicional, apesar de ter saído de lá e vindo para Brasília. Depois que me formei, o lugar onde con-segui meu primeiro emprego foi aqui. Só saí de Brasília quando passei no concurso para juiz federal, pois não havia vagas para a seção daqui. Eu fui então para Curi-tiba, onde fi quei cerca de um ano e pouco. Então surgiu vaga na seção de Minas Gerais e eu fui para lá. Depois me mudei para o Rio de Janeiro, quando fui promovido para o Tribunal Regional Eleitoral da 2ª Região. Depois vim novamente para Brasília, em 2004, quando assumi como ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Quais são seus hábitos de leitura? O que o senhor gosta de ler?Eu sou um leitor mais habitual de matéria jurídica. Fora disso, gosto de ler romances, mas tem muito tempo que não leio um. Gosto também da leitura diária de jornais e revistas.

Como que é o lazer do senhor? O que o senhor faz para se divertir?Eu tenho duplo domicílio. Minha família fi ca mais em Belo Horizonte e eu fi co aqui durante a semana. Em Bra-sília praticamente fi co só no STJ. De manhã eu faço uma caminhada, depois venho para o tribunal. Já em Belo Horizonte eu tenho uma atividade de lazer maior. Somos sócios há muitos anos do Minas Tênis Clube, que é um lugar que eu gosto muito de frequentar. Estando em Belo Horizonte, sobretudo quando é feriado, fi m de semana, eu vou sempre ao clube.

Quais são os expoentes de Minas Gerais, na área cultural, que o senhor admira?Aqueles tradicionais mesmo. Tinha um escritor muito bom que já morreu que era o Francisco Rubião. Gosto muito também do nosso autor do Grande Sertão Veredas, o Guimarães Rosa. Tenho umas três edições desse livro.

E artesanato, bastante tradicional no Vale do Jequitinho-nha, o senhor tem em casa?Apesar de gostar muito do artesanato da minha região, eu quase que não tenho em casa. Mas sabe o que acontece? É que nessa parte caseira, quem quase sempre acaba preva-lecendo com seus gostos é a mulher. Então quem compra essas coisas é minha esposa. Acho que ela não gosta mui-to, ou, se gosta, prefere não comprar para colocar em casa.

E artes plásticas?Eu gosto, mas não tenho nenhum conhecimento. Às vezes, olho para uma obra de autor famoso e penso: “mas o que tem isso?”. Outras vezes, olho para a obra de um anônimo e fi co admirado. Então gosto, mas não tenho uma cultura que me permita diferenciar entre um autor conhecido e outro que não é famoso. Eu gosto daquilo que, quando olho, acho bonito. Pode ser até uma coisa elementar. Na minha época, lá no interior, a gente não tinha nem luz elétrica, vivia na roça mesmo, com luz de lampião. Então não tínhamos aces-so a essas coisas na época, de formação, depois fi ca difícil você mudar aquela sua percepção das coisas.

O senhor gosta de viajar?Eu gosto de viajar para todo lugar. Gosto de viagens domésticas e, de um tempo pra cá, tenho viajado para fora do país também. Viagem é uma oportunidade que temos não só de conhecer, mas também de melhorar nosso lado cultural.

Fale sobre uma viagem que chamou a atenção do senhor.Foi de poucos anos para cá que comecei a viajar para o exterior. Fui pra Nova York e achei aquilo lindo. Fui ao Canadá também e achei ótimo. À Europa só fui à Espa-nha e a Portugal. Quero ir a mais países por ali. Quando eu fui, cheguei em Lisboa e fui de ônibus até Barcelona e de lá já voltamos para o Brasil. Admirei muito a obra do famoso arquiteto catalão, o Antoni Gaudí, que foi praticamente o Niemeyer de lá, só que, claro, com uma

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obra com concepção arquitetônica completamente di-ferente. Barcelona é uma cidade muito bonita. Fiquei encantado com a Igreja da Sagrada Família, que é uma obra sempre em construção. São milhares de visitan-tes e a igreja está sendo construída praticamente com dinheiro de doações, segundo a guia turística que nos orientou lá. No ano anterior ao que nós fomos, foram 12 milhões de visitantes nessa igreja, cada um pagando alguns dólares para ver, para entrar. A receita da obra é toda dessas pessoas que visitam.

O senhor acredita que essas suas viagens contribuem para seu olhar de justiça, essa justiça cidadã que o se-nhor defende?É claro que contribui. Você tem uma percepção diferen-te de muita coisa, do lado social, inclusive. Apesar de que a gente vai em uma viagem para passear, acabamos não tão preocupados com essas coisas. Mas ajuda para que façamos certas comparações. Pode colaborar ao avaliarmos uma determinada questão debatida em um processo. Mas é mais importante, em termos de viagem, quando fazemos uma visita em função da atividade, pois você vai com o olhar focado. Agora em julho de 2012, por exemplo, eu fui com o ministro João Noronha e mais seis colegas em uma visita a instituições da Justiça nos Esta-dos Unidos. Havia toda uma programação específi ca para isso. Visitamos tribunais, a Suprema Corte, faculdades de Direito. Em cada lugar que estivemos fomos recebidos por uma pessoa daquela instituição. Aí foi importante, pois pudemos fazer uma comparação com as nossas ins-tituições. O saldo foi bem positivo.

Nessa viagem aos Estados Unidos, o que mais chamou atenção do senhor?Na legislação de lá, as penas, o rigor são muito maiores. E também varia de estado para estado. Tem estados que tem pena de morte, enquanto outros não têm. Prepon-dera nos Estados Unidos a legislação estadual, como é o caso, por exemplo, do direito de família. O porte de arma também é uma questão que varia bastante por lá. Na Fló-rida, a pessoa, ao comprar uma arma, já adquire o direito de portá-la. Praticamente todo mundo anda armado lá. Em outros estados, a pessoa pode comprar a arma, mas muitas vezes não pode portar. Aqui não, a legislação é fe-deral. Aqui vale o mesmo em qualquer estado da nação.

O senhor costuma voltar ao Vale do Jequitinhonha?Eu de vez em quando vou lá. Ultimamente nem tanto, porque de Belo Horizonte para minha terra, que é no nor-deste do estado, no caminho para a Bahia, são 600 qui-lômetros. Tenho dois irmãos que ainda vivem lá e dois sobrinhos. Eles vão muito a BH, onde nos encontramos, aí acabo indo menos.

O senhor tem alguma mensagem a passar para seus co-legas juízes?Acho importante que todos os juízes se preocupem com o trabalho, com o aprimoramento, com o procedimento que deve ter um juiz, pois ele é uma pessoa como outra qualquer, não é diferente de ninguém. Acho importante o juiz atuar de forma a contribuir também na formação cultural das pessoas. Pois, sobretudo em comunidades pequenas, o juiz é uma pessoa muito visada. Um mal exemplo tem uma repercussão negativa enorme, assim como inversamente ocorre com o bom exemplo. Lem-

bro que, há muito tempo, fi z concurso para promotor em São Paulo e passei. Na época, depois da aprovação, a gente participava de um curso de duas semanas promo-vido pelo Ministério Público. Houve uma palestra que me marcou muito cujo título era mais ou menos o se-guinte: o comportamento do promotor em uma comarca do interior. Não é que o comportamento em um lugar pequeno deva ser diferente do comportamento tomado no lugar grande, pois todos devem se comportar ade-quadamente em qualquer lugar. Acontece que, em um lugar pequeno, se em seu horário de lazer um juiz se embriaga, isso terá uma repercussão bem maior do que aqui em Brasília ou em São Paulo. Isso tudo deve ser ponderado, pois é importante levar em conta o contexto social em que se atua.

Acho importante que todos os juízes se preocupem com o trabalho,

com o aprimoramento, com o procedimento que deve ter um juiz, pois ele é

uma pessoa como outra qualquer, não é diferente de ninguém

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Produzido a partir de variedades de azeitonas, caracteriza-se pelo perfeito equilíbrio de finos toques de ervas frescas e de frutas, deixando na boca um agradável bouquet de amêndoas. Produzido a partir de variedade de

azeitona de origem italiana, caracteriza-se pelo agradável aroma de frutas frescas e ervas recém-cortadas que remetem à fragrância da rúcula. A intensidade média e o sabor frutado proporcionam um gosto limpo, com agradável frescor amargo ao final. Seu uso é recomendado em todo tipo de massa, pescados e mariscos.

Produzido a partir de variedade de azeitona de origem espanhola, apresenta equilíbrio entre os toques picantes e amargos presentes em seu sabor frutado. Seu gosto, ao fundo, é picante, intenso e profundo. É recomendado para carnes vermelhas e vegetais verdes, além de combinar muito bem com saladas e guisados.

Produzido a partir de variedade de azeitona de origem espanhola, apresenta um aroma fresco de maçãs verdes, com notas de alcachofra. Com adstringência brilhante e pura, possui agradável sabor de amêndoas, com excelente combinação de frutas frescas e sensações de amargo e picante bem balanceadas. É recomendado em todo tipo de carnes brancas, saladas e vegetais salteados.

Olivares de Quepu

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O azeite de oliva é utilizado desde a Antiguidade pelos povos do Mediterrâneo, e foi um dos principais produtos comercializados pelos fenícios, que, como os povos da Mesopotâmia,os egípcios e os gregos, já o usavam há seis mil anos. Ao longo dos tempos, sua utilização cresceu e sua importância se acentuou, como resultado dos múltiplos aproveitamentos que lhe foram dados, especialmente na alimentação e medicina. Seu consumo tomou grandes proporções na cozinha moderna graças aos benefícios que o azeite propicia à saúde, principalmente os azeites extravirgens, que possuem propriedades e vitaminas que podem prevenir doenças e melhorar a pele, além de conter ainda diferentesvitaminas (A, D, K e E). Dentre os inúmeros benefícios do azeite extravirgem estão sua ação antioxidante, redução do mau colesterol, proteção ao coração e ao cérebro, proteção contra a osteoporose, efeito analgésico, além de hidratação capilar e fortalecimento das unhas. Além de todos esses benefícios, o azeite dá sabor, cor e aroma, integra os alimentos, personaliza e identifica um prato. Graças ao conhecimento de seus benefícios, o consumo de azeite foi difundido de forma a abranger mercados longínquos dos locais de produção. Pensando na saúde e no crescimento do mercado do azeite, a Olivares de Quepu tem investido na expansão da sua marca.A empresa, localizada na região de Maule, no Chile, dedica-se 100% à produção de azeite de oliva extravirgem de altíssima qualidade. As oliveiras foram cultivadas no Vale de Pencahue, na VII Região, cidade de Talca, considerada uma terra muito fértil. No início, apenas 80 hectares e, após uma década, possui 763 hectares plantados.

Devido à integração vertical na cadeia de produção, desde produzir as mudas para plantio até o engarrafamento dos azeites, a Olivares de Quepu obtém produtos únicos em sua categoria. Assim os monovarietais 1492 – Frantoio, Picual e Arbequina – e o Oromaule, cada um com a sua característica particular, mas todos com qualidade inigualável, com acidez de 0,2% e diversas premiações, adquiriram fama e prestígio no mercado mundial.

Sabor e saúde desde a antiguidade

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Revista de Cultura

AJUFE

ANO 5 . ABRIL DE 2013 . Nº 8

Ponto de vistaMinistros do STJ João Otávio de Noronha e Arnaldo Esteves Lima falam sobre o trabalho no tribunal, preferências culturais e mineiridade

Crônicas e contosChico Buarque e a ditadura, causos verídicos e engraçados, a revolta de um matador que falhou em cumprir seu trabalho: confi ra histórias contadas com maestria por nossos magistrados

GaleriaBelas imagens retratadas pelos juízes federais em suas viagens pelo Brasil e o mundo

Nos últimos anos, os azeites da Olivares de Quepu foram premiados nos principais concursos europeus e americanos:

Terraolivo / Mediterranean International Olive Oil Competition – Israel, 2012 | Los Angeles Extra Virgin Olive Oil Competition –EUA, 2010 e 2011Concorso Internazionale L´Orciolo D´Oro – Itália, 2004, 2006, 2007, 2009, 2010, 2011 e 2012 | 4ª ExpoAzeite Concurso de Azeites Extra Virgem –Itália, 2010

12° Concorso Internazionale Oli da Oliva L´Orciolo D´Oro – EUA, 2010