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  Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 20 3 José Elaeres Marques Teixeira 1. Introdução O poder constituinte é um dos temas cen- trais do constitucionalismo moderno, sem- pre presente em qualquer estudo a respeito das origens da Constituição, daí a relevân- cia da investigação científica sobre a con- cepção que dele se tem. Com essa idéia, pro- curar-se-á explicitar, neste texto, as funções, a natureza e os limites do poder constituin- te originário e reformador. Tratar-se-á com especial destaque dos limites materiais do poder constituinte reformador, um dos pro- blemas mais difíceis na temática constitu- cional e sobre o qual há sérias divergências entre os publicistas. Ao final, um breve re- sumo dos pontos abordados e das posições doutrinárias identificadas envolvendo o tema. O poder constituinte originário e o poder constituinte reformador José Elaeres Marques Teixeira é Procura- dor Regional da República em Brasília e Mes- trando em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Sumário 1. Introdução. 2. Poder constituinte ori- ginário: função. 2.1. Natureza. 2.2. Limites. 3. Poder constituinte reformador: função. 3.1. Natureza. 3.2. Limites temporais. 3.3. Limi- tes circunstanciais. 3.4. Limites materiais. 3.4.1. Correntes doutrinárias sobre limites materiais de revisão. 3.4.2. Limites materiais explícitos e implícitos. 4. Conseqüências da inobservância dos limites do poder consti- tuinte originário e reformador. 5. Conside- rações finais.

Revista de Informação Legislativa, Vol 40, n 158, Abr-jun de 2003, Pag 204

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  • Braslia a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 203

    Jos Elaeres Marques Teixeira

    1. Introduo

    O poder constituinte um dos temas cen-trais do constitucionalismo moderno, sem-pre presente em qualquer estudo a respeitodas origens da Constituio, da a relevn-cia da investigao cientfica sobre a con-cepo que dele se tem. Com essa idia, pro-curar-se- explicitar, neste texto, as funes,a natureza e os limites do poder constituin-te originrio e reformador. Tratar-se- comespecial destaque dos limites materiais dopoder constituinte reformador, um dos pro-blemas mais difceis na temtica constitu-cional e sobre o qual h srias divergnciasentre os publicistas. Ao final, um breve re-sumo dos pontos abordados e das posiesdoutrinrias identificadas envolvendo otema.

    O poder constituinte originrio e o poderconstituinte reformador

    Jos Elaeres Marques Teixeira Procura-dor Regional da Repblica em Braslia e Mes-trando em Direito, Estado e Sociedade pelaUniversidade Federal de Santa Catarina UFSC.

    Sumrio

    1. Introduo. 2. Poder constituinte ori-ginrio: funo. 2.1. Natureza. 2.2. Limites.3. Poder constituinte reformador: funo. 3.1.Natureza. 3.2. Limites temporais. 3.3. Limi-tes circunstanciais. 3.4. Limites materiais.3.4.1. Correntes doutrinrias sobre limitesmateriais de reviso. 3.4.2. Limites materiaisexplcitos e implcitos. 4. Conseqncias dainobservncia dos limites do poder consti-tuinte originrio e reformador. 5. Conside-raes finais.

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    2. Poder constituinteoriginrio: funo

    No perodo da revoluo francesa, SI-EYS (1988, p. 114-115), um dos princi-pais tericos do poder constituinte, escre-veu que h trs momentos na formaodas sociedades polticas. No primeiro mo-mento, um nmero considervel de indi-vduos manifesta inteno de agrupar-se:a j surge a nao e os direitos prpriosdela. O poder tem origem nesse momento,em razo do jogo de vontades individuais.No segundo momento, surge a vontade co-mum, que a de dar consistncia associ-ao. Para isso, tais indivduos escolhementre eles alguns para atuarem como umcorpo de delegados, porquanto, por seremnumerosos e geograficamente dispersos,no detm condies de implementar avontade comum. A esse corpo de delegados conferida poro necessria do poder to-tal da nao para que estabeleam meca-nismos necessrios manuteno da boaordem. O terceiro momento caracteriza-do pela manifestao da vontade comumrepresentativa, a qual no exercida, por-tanto, por direito prprio, mas como di-reito de outrem.

    No segundo momento desse processo que nasce a Constituio, como obra do po-der constituinte originrio, cuja principalfuno positivar a vontade comum da na-o. Nessa tarefa, cabe-lhe adotar as deci-ses fundamentais sobre o modo e a formade existncia poltica da sociedade e, nassociedades democrticas, estabelecer a se-parao de poderes, a forma de sua aquisi-o e de seu exerccio, bem como os direitosfundamentais.

    2.1. NaturezaComo expresso da vontade poltica da

    sociedade, o poder constituinte originriotem a natureza de poder poltico, porque exer-cido no com base em norma jurdica, masfundamentado apenas na inteno naturalda comunidade.

    2.2. Limites

    SIEYS (1988, p. 117), no seu texto de1789, no suficientemente claro sobre aexistncia de limites ao poder constituinteoriginrio. Porm, nas entrelinhas, d a en-tender que estaria ele limitado pelo Direitonatural. Com efeito, ao mesmo tempo em queassevera que a nao existe antes de tudo,ela a origem de tudo, e que a sua vontade a prpria lei, tambm admite que antes eacima dela s existe o direito natural.

    Desse pensamento compartilha JorgeMIRANDA (1988, p. 87), quando afirma ca-tegoricamente que o poder constituinte estsujeito a limitaes. Para ele, o poder consti-tuinte no um poder soberano, absoluto,no sentido de atribuir Constituio todo equalquer contedo, sem observar quaisquerprincpios, valores ou condies. Ao con-trrio, est sujeito a limites transcendentes,provenientes de imperativos de Direitonatural, de valores ticos superiores, de umaconscincia jurdica colectiva, que no po-dem ser ultrapassados. Aponta os direitosfundamentais como parte desses limites esustenta que no se poderia admitir comovlido e legtimo decretar normas consti-tucionais que gravemente os ofendessem.

    Carl SCHMITT (1996, p. 78) j no des-se entendimento. Segundo ele, o poder cons-tituinte originrio soberano. E, no exerc-cio dessa soberania, no est sujeito a limi-tes outros que no aqueles estabelecidos porele prprio. Assim, pode adotar todas asdecises que entender necessrias para omomento, como o faria uma ditadura. A pro-psito, atribui ele assemblia constituintea caracterstica de uma ditadura sobera-na, na medida em que substitui todas asanteriores leis constitucionais por outras.Mas ressalva que, como no soberanapor si mesma, porque comissionada pelopovo, pode a todo momento, por uma aopoltica, ser desautorizada a prosseguirseu trabalho.

    Identifica-se, na doutrina brasileira,como partidrio dessa ltima posio, Pau-

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    lo BONAVIDES (2001, p. 179), para quem opoder constituinte originrio dotado decompetncia ilimitada e soberana.

    3. Poder constituintereformador: funo

    Porque a sociedade est em constantemutao, no se pode pretender umaConstituio imutvel, no sujeita a alte-raes aps a sua promulgao pela as-semblia constituinte. certo que tal idia a da imutabilidade da Constituio foi defendida por alguns iluministas dosculo XVIII, que ingenuamente imagina-ram possvel uma Carta de princpios de-baixo da qual a sociedade viveria parasempre. Mas, se a Constituio resulta-do da vontade comum de um determinadogrupo social, em havendo redireciona-mento dessa vontade, h necessidade dereforma do seu texto. Do contrrio, o ca-minho que restaria para os momentos decrise seria o da fora e da violncia.

    Nessa perspectiva, o poder de reformada Constituio tem carter instrumental,no sentido de que a ele incumbe a defesada Constituio, proporcionando os acer-tos e as acomodaes necessrias em ra-zo das crises polticas que invariavel-mente ocorrem.

    3.1. NaturezaComo poder que tem origem na prpria

    Constituio, o poder de reforma um po-der derivado, jurdico e limitado. Derivadoporque decorre do poder constituinte origi-nrio; jurdico porque est contido na Cons-tituio; e limitado porque um corpo sub-metido a formas constitutivas s pode deci-dir algumas coisas segundo a Constituio(SIEYS, 1988, p. 124).

    Na doutrina, praticamente no h diver-gncias sobre ser o poder de reforma umpoder derivado e jurdico. O debate est emtorno dos limites da reforma constitucional,especialmente dos limites materiais, comomais adiante se ver.

    3.2. Limites temporais

    Via de regra, a reforma da Constituiopode ocorrer a todo tempo, bastando paraisso apenas ambiente poltico favorvel. assim na maioria dos pases. Porm, h ca-sos em que a Constituio s admite altera-o aps certo tempo da sua promulgao,ou de tempos em tempos. Exemplos maismarcantes so os da Constituio francesade 1791, que proibiu reforma no perodo dasduas primeiras legislaturas que se seguiram sua promulgao, e Constituio norte-ame-ricana, que no seu Artigo V estabeleceu: (...)Nenhuma emenda poder, antes do ano de1808, afetar de qualquer forma as clusulasprimeira e quarta da Seo 9, do Artigo I (...).

    A razo desse tipo de limitao, segun-do Paulo BONAVIDES (2001, p. 176), pro-porcionar a consolidao da ordem jurdi-ca e poltica recm-estabelecida, cujas insti-tuies, ainda expostas contestao, care-cem de raiz na tradio ou de base no as-sentimento dos governados.

    3.3. Limites circunstanciaisOs limites circunstanciais existem para

    vetar qualquer reforma em situaes de cri-se institucional, que se caracterizam comoexcepcionais. Em razo do ambiente que seinstaura nesses momentos, imprprios parao debate no tendencioso, fica impedida aalterao da Constituio. No caso brasilei-ro, a Constituio de 1988 estabelece noser possvel a sua emenda na vigncia deinterveno federal, estado de defesa ou es-tado de stio (art. 60, 1).

    3.4. Limites materiaisOs limites materiais tm que ver com o

    objeto da reforma. Certas matrias que estona Constituio se tornam imutveis, nopodendo sofrer alterao. Assim, ficam osrgos com competncia para a reformaimpedidos de sobre elas deliberar.

    Noticia Jorge MIRANDA (1988, p. 152)que a primeira Constituio moderna a fi-xar limitaes materiais ao poder de refor-

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    ma foi a norte-americana, a qual estabeleceque nenhum Estado poder ser privado, semo seu consentimento, do direito de igualda-de de voto no Senado, considerando os de-mais Estados ali representados (Artigo V), eque garantida em cada Estado que com-pe a Unio a forma republicana de gover-no (Artigo IV, Seo 4).

    No Brasil, desde a Constituio de 1891,tm sido estabelecidas limitaes materiaisao poder de reforma. Com efeito, verifica-sedo seu art. 90, 4, que no poderiam seradmitidos como objeto de deliberao, noCongresso, projetos tendentes a abolir a for-ma republicano-federativa, ou a igualdadeda representao dos Estados no Senado.Limitaes materiais da atual Constituioesto no art. 60, 4, segundo o qual nopoder ser objeto de deliberao a propostade emenda tendente a abolir a forma federa-tiva de Estado, o voto direto, secreto, univer-sal e peridico, a separao dos Poderes eos direitos e garantias individuais.

    3.4.1. Correntes doutrinrias sobrelimites materiais de reviso

    Sobre os limites materiais de reviso,existem, basicamente, trs correntes doutri-nrias, a saber: 1a) considera imprescind-vel o estabelecimento de limites materiaisde reviso; 2a) no admite limites materiaisde reviso; 3a) admite clusulas de limitesmateriais, mas as considera suscetveis deremoo, por meio da dupla reviso.

    Para aqueles que se filiam primeiracorrente, o poder de reviso, porque poderconstitudo, no pode ir contra aquilo que opoder constituinte originrio estabeleceucomo fundamental, devendo respeitar ospreceitos que, explicitando uma proibio,denotam a conscincia da idia de Direito,do projecto ou do regime em que se corpori-za (MIRANDA, 1988, p. 166).

    Para os adeptos da segunda corrente,no h diferena entre poder constituinte epoder de reviso. Ambos so a expressoda soberania do Estado e exercidos por re-presentantes do povo. Tambm no h dife-

    rena entre normas constitucionais origin-rias e supervenientes, porque o importante que compem a Constituio formal. As-sim, vale a regra geral da revogabilidade dasnormas anteriores pelas posteriores.

    Os que seguem a terceira corrente enten-dem que as normas de limites materiais dereviso podem ser modificadas e at mesmorevogadas. Com isso, estaria aberto o cami-nho para, aps esse primeiro passo, seremremovidos os prprios princpios corres-pondentes aos limites (MIRANDA, 1988,p. 168). Para estes, as clusulas de limitesmateriais, enquanto estiverem em vigor, sode observncia obrigatria; porm, tais comoas demais normas constitucionais, podemser objeto de reviso.

    Sem admitir explicitamente que se filia terceira corrente, Jorge MIRANDA (p. 173),porm, no atribui valor absoluto s clu-sulas de limites explcitos, afirmando quetais clusulas devem ter uma interpretaoobjetiva e atual, nada impedindo que o pro-cesso de reviso no a reviso seja utili-zado para uma transio constitucional.Para sustentar sua posio, diz que h dife-rentes categorias de limites: umas que in-cluem princpios fundamentais; outras que,embora abrangidas pelos limites materiais,no se identificam com a essncia da Cons-tituio material (p. 176). Como por trs dopoder de reviso est latente o poder consti-tuinte originrio, aquele pode converter-seneste e ser reconhecido como tal (p. 195-196).

    Em sentido diverso o entendimento dePaulo BONAVIDES (2001, p. 179), que sus-tenta no ter o poder revisor competnciapara modificar o prprio sistema de revi-so. Segundo ele, somente o poder consti-tuinte originrio pode alterar o procedimentode reforma da Constituio. Essa a posi-o seguida pela maioria dos publicistas,entre os quais Carl SCHMITT (1996, p. 114).

    3.4.2. Limites materiais explcitos eimplcitos

    Os limites materiais explcitos so aque-les contidos em clusulas da Constituio

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    que limitam a competncia do poder revi-sor. Essas clusulas, quanto ao alcance,podem ser gerais ou individualizadoras decertos princpios; e, quanto ao objeto, podemabranger toda e qualquer matria constitu-cional. Jorge MIRANDA (1988, p. 155-156)inclui uma terceira classificao, atinente natureza das clusulas de limites, afirman-do que elas podem ser especficas da revi-so constitucional ou do prprio poder cons-tituinte originrio, na medida em que estetambm tem suas limitaes.

    Os limites materiais implcitos so aque-les contidos e identificados ao longo do textoconstitucional, decorrentes dos princpios, doregime e da forma de governo adotados. ParaPaulo BONAVIDES (2001, p. 178), tais limi-taes so basicamente aquelas que se re-ferem extenso da reforma, modificaodo processo mesmo de reviso e a uma even-tual substituio do poder constituinte de-rivado pelo poder constituinte origin-rio. Assim, no possvel, por exemplo, areviso total da Constituio, embora nohaja clusula a respeito, ou a remoo de umsimples artigo que, no obstante, abale os ali-cerces de todo o sistema constitucional. Emhipteses como essas, configura-se o que seconvencionou chamar de fraude Consti-tuio, porque, apesar de a forma ser obser-vada, altera-se o fundo ou a base dos valo-res professados (BONAVIDES, 2001, p. 179).

    4. Conseqncias da inobservnciados limites do poder constituinte

    originrio e reformadorPara aqueles que adotam entendimento de

    que o poder constituinte originrio est sujeitotambm a limites, a preterio destes equivale auma revoluo. No que se refere ao poder re-visor, uma lei de reviso que estabelea nor-mas contrrias a princpios constitucionaisabrangidos pelos limites materiais, explci-tos ou implcitos, ou que insira no texto cons-titucional, como limites materiais expressos, prin-cpios que se choquem com os princpios funda-mentais materialmente inconstitucional.

    5. Consideraes finaisO poder constituinte, tal como o conce-

    bemos hoje, tem como titular a nao, de-vendo ser a expresso da vontade comum,positivada na Constituio. Quando origi-nrio, tem natureza poltica; quando deri-vado, sua natureza jurdica.

    H divergncias na doutrina sobre os li-mites do poder constituinte originrio. En-quanto alguns defendem que ele sobera-no, sujeito apenas a limitaes por ele pr-prio estabelecidas, outros sustentam queencontra limites no Direito natural.

    No que toca ao poder constituinte deriva-do, identificam-se trs tipos de limitaes,quais sejam: limitaes temporais, limitaescircunstanciais e limitaes materiais. O focodas divergncias existentes se situa nessasltimas, havendo, nos extremos, aqueles queas defendem com fervor, no admitindo quesejam desrespeitadas em nenhuma hiptese,e aqueles outros que sustentam no ser poss-vel a existncia de normas insuscetveis dereviso. Numa posio intermediria, estoos que toleram as limitaes materiais, masapregoam a possibilidade de serem removi-das, por meio da dupla reviso. Ao lado daslimitaes materiais expressas, admite-se aexistncia de limites implcitos.

    A revoluo apontada como equivalen-te ao desrespeito aos limites do poder cons-tituinte originrio e a inconstitucionalida-de material, o resultado de uma norma queno atente para os limites do poder revisor.

    Bibliografia

    BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.11. ed. So Paulo: Malheiros, 2001.

    BRASIL. Constituio (1891). Constituio da Rep-blica dos Estados Unidos do Brasil. Braslia, DF: Sena-do, 1986.

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    ESTADOS UNIDOS DA AMRICA (1787). Cons-tituio dos Estados Unidos da Amrica. Braslia, DF:Senado, 1987.

    MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional.2. ed. rev. Coimbra: Coimbra Editora, 1988. t. II.

    SCHMITT, Carl. Teoria de la constitucin. Traduode Francisco Ayala. 2. reimpresso. Madrid: Alian-za, 1996.

    SIEYS, Emmanuel. A constituinte burguesa. 2. ed.Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988.