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ISSN 1677-1419 Ano 12, Vol. 12, Número 12 - 2012

Revista Do IBDH Numero 12

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  • ISSN 1677-1419

    Ano 12, Vol. 12, Nmero 12 - 2012

  • I B D Hnstituto rasileiro de ireitos umanosRevista do

    IBDH

    Ano 12, Vol. 12, Nmero 12 - 2012

  • I B D Hnstituto rasileiro de ireitos umanosA Revista do

    Permite-se a reproduo parcialou total dos artigos aquipublicados desde que sejamencionada a fonte.

    O contedo dos artigos de inteira responsabilidadedos autores.

    Distribuio:Instituto Brasileiro de DireitosHumanos

    Rua Jos Carneiro da Silveira, 15 -ap. 301. CocCEP: 60192.030Fortaleza - Cear - BrasilTelefone: +55 85 3234.32.92http://www.ibdh.org.brE-mail: [email protected]

    uma publicao anual do IBDH.

    Organizadores:Antnio Augusto Canado TrindadeCsar Oliveira de Barros Leal

    I B D Hnstituto rasileiro de ireitos umanosRevista doIBDH

    Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos.V. 12, N. 12 - (2012). Fortaleza, Cear.Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, 2012.Anual.

    1. Direitos Humanos - Peridicos. I. Brasil.Instituto Brasileiro de Direitos Humanos.

    CDU

    Conselho Editorial

    Projeto Grfico/Capa

    Diagramao

    Antnio Augusto Canado TrindadeCsar Oliveira de Barros LealPaulo BonavidesFides Anglica de Castro Veloso Mendes OmmatiAntnio lvares da SilvaAntnio Celso Alves PereiraAntnio Otvio S RicarteBleine Queiroz CalaCarlos WeisCatherine MaiaElkin Eduardo Gallego GiraldoEmilia SegaresEmmanuel Tefilo FurtadoGerardo CaetanoGonzalo Elizondo BreedyJuan Carlos MurilloJulieta Morales SnchezLlia Sales de MoraesManuel E. Ventura-RoblesMargarida GenevoisMaria Glaucria Mota BrasilPablo Saavedra AlessandriPhilippe CouvreurRenato Zerbini Ribeiro LeoRoberto CullarRuth Villanueva CastillejaSrgio Urquhart de CademartoriSlvia Maria da Silva LoureiroWagner Rocha DAngelis

    Nilo Alves Jnior

    Franciana Pequeno

    Homenageada especialSoledad Garca Muoz

    Ano 12, Vol. 12, Nmero 12 - 2012

  • ISSN 1677-1419

    Ano 12, Vol. 12, Nmero 12 - 2012

    S u m r i o

    VI- The Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons: The ICJ Advisory Opinion Reconsidered........................................................................................................................................................................85

    VII- Resea del Libro: Antnio Augusto Canado Trindade -, Belo Horizonte, Edit. del Rey, 2011

    ......................................................................................................................................................95

    VIII- La Ejecucin de Medidas de Seguridad en el Estado de Derecho, con Especial Atencin a la Problemticade los Menores de Edad y sus Derechos Humanos

    .................................................................................................................................................101

    IX- Reflexes Sobre a Judicializao da Sade no Brasil Luz dos Fundamentos Constitucionais dos Direitos Sociaise da Anlise Prospectiva Proposta pela Teoria dos Jogos

    ........................................................................................................................................119

    X- La Comisin Interamericana de Derechos Humanos y el Desafo de la Justiciabilidad de los Derechos Econmicos,Sociales y Culturales

    ......................................................................................................................................................155

    XI- La Detencin Preventiva y los Derechos Humanos en Derecho Comparado............................................................................................................................................185

    XII- Democracia y Derechos Humanos en la Carta Democrtica Interamericana.............................................................................................................................................................199

    XIII- El Tercer Protocolo de la Convencion de los Derechos del Nio: La Consagracin del Nio como Sujeto de DerechosHumanos y Los Nuevos Desafos del Comit de los Derechos del Nio

    ..........................................................................................................................................................211

    XIV- El Nuevo Rostro de la Justicia Constitucional en Amrica: Hacia una Garanta Real de los Derechos Humanos.......................................................................................................................................................229

    XV- Casos y : Un Paso atrs en cuanto al Fundamentode los Derechos de las Sociedades Tradicionales?

    ......................................................................................................................................................................243

    XVI- Das Polticas Migratrias ao Carnaval: O Multiculturalismo como Utopia Social...............................................................................................................................................................257

    XVII- A Hidreltrica de Belo Monte: Reflexes sobre a Explorao de Recursos Naturais sob a Perspectiva do Direito Internacionale dos Direitos Humanos

    ......................................................................................................................................................................265

    Daniel Threr

    Diego P. Fernndez Arroyo

    Emma Mendoza Bremauntz

    Gisele Chaves Sampaio Alcntara

    Gonzalo Aguilar Cavallo

    Javier Alberto Higuera Zazueta

    Jean-Michel Arrighi

    Jorge Cardona Llorens

    Julieta Morales Snchez

    Karine Rinaldi

    Larissa A. Coelho

    Leticia Sakai

    El Ejercicio de la Funcin Judicial Internacional - Memoriasde la Corte Interamericana de Derechos Humanos

    Pueblo Saramaka Pueblo Indgena Kichwa de Sarayaku

    I- Caso : Uma Anlise Luz da Abordagem Baseadaem Direitos Humanos

    e .....................11

    II- Os Indivduos como Sujeitos do Direito Internacional........................................................23

    III- Antnio Augusto Canado Trindade e a Humanizao do Direito Brasileiro...................................................................59

    IV- Los Derechos Humanos de las Personas Prisioneras.......................................................................71

    V- Las Transformaciones de la Pena en un Mundo en Transicin: Una BreveReflexin desde la Perspectiva de los Derechos Humanos

    ...................................................................79

    Alyne Pimentel

    Aline Albuquerque S. de Oliveira Julia Barros Schirmer

    Antnio Augusto Canado Trindade

    Antnio Celso Alves Pereira

    Antonio Snchez Galindo

    Csar Oliveira de Barros Leal

    Conselho Consultivo............................................................................... 05

    Apresentao............................................................................................09

    Ano 12, Vol. 12, Nmero 12 - 2012

  • XVIII- Iguais mas Diferentes: A Busca da Concretizao de Igualdade Real para Pessoas com Deficincia........................................................................................................................................................277

    XIX- Reparations at the International Criminal Court: Lessons from the Inter-American Court of Human Rights...............................................................................................................................................................295

    XX- Le Travailleur Migrant en Situation Irrgulire: L'accs Formel et Effectif aux Droits devant les OrgansJuridictionnels et Juridictionnels de Contrle

    ..........................................................................................................................................311

    XXI- La Jerarqua Normativa en la Corte Interamericana de Derechos Humanos: Evolucin Jurisprudencial del(1993-2012)

    ....................................................................................................................................................357

    XXII- Gnero e Direitos Humanos - A Contribuio do Juiz Antnio Augusto Canado Trindade.............................................................................................................................................377

    XXIII- O Reconhecimento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos das Vtimas Coletivas como Sujeitos do DireitoInternacional: Anlise da Evoluo Jurisprudencial em Casos de Reclamos Territoriais dos Povos Indgenas

    ...................................................................................................................................383

    XXIV- Address to the U.N. Human Rights Committee on the Occasion of the Commemoration of its 100 Session (2010)...........................................................................................................................403

    XXV- The Right of Access to Justice in its Wide Dimension...............................................................................................................................409

    XXVI- Discurso Proferido na Abertura do, no dia 18 de Junho de 2012, no auditrio da Assembleia Legislativa, em Fortaleza, Cear, Brasil

    ......................................................................................................................................417

    XXVII- Libres Propos d'un Ancien Juge International..................................................................................................................................................421

    XXVIII- Discurso Proferido na Abertura do, no dia 18 de Junho de 2012, no auditrio da Assembleia Legislativa, em Fortaleza, Cear, Brasil

    ...........................................................................................................................................................433

    ...................................................................................................................................................437

    Liliana Lyra Jubilut

    Miriam Cohen

    Paula Wojcikiewicz Almeida

    Ricardo Abello-Galvis

    Shelma Lombardi de Kato

    Slvia Maria da Silveira Loureiro

    ANEXOS

    Antnio Augusto Canado Trindade

    Antnio Augusto Canado Trindade

    Csar Oliveira de Barros Leal

    Mohammed Bedjaoui

    Roberto Cullar

    CONSELHO EDITORIAL

    Quasi

    Jus Cogens

    I Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos: Os Direitos Humanos desdea Dimenso da Pobreza

    I Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos: Os Direitos Humanos desdea Dimenso da Pobreza

    th

    1

  • 5CONSELHO CONSULTIVO DO IBDH

    Antnio Augusto Canado Trindade (Presidente de Honra)Ph.D. (Cambridge Prmio Yorke) em Direito Internacional; Professor Titular da Universidade de Braslia e do Instituto Rio Branco; Juiz e ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; ex-Consultor Jurdico do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil; Membro do Conselho Diretor do Instituto Internacional de Direitos Humanos (Estrasburgo) e da Assembleia Geral do Instituto Interamericano de Direitos Humanos; Membro Titular do Institut de Droit International e Juiz da Corte Internacional de Justia (Haia).

    Csar Oliveira de Barros Leal (Presidente)Ps-doutor em Estudos Latino-americanos (Faculdade de Cincias Polticas e Sociais da Universidade Nacional Autnoma do Mxico); Ps-doutor em Direito (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina); Doutor em Direito (UNAM); Procurador do Estado do Cear; Professor da Faculdade de Direito da UFC; Membro da Assembleia Geral e do Conselho Diretor do Instituto Interamericano de Direitos Humanos; Membro da Academia Brasileira de Direito Criminal e da Academia Cearense de Letras.

    Paulo Bonavides (1 Vice-Presidente)Doutor em Direito; Professor Emrito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear; Professor Visitante nas Universidades de Colnia (1982), Tennessee (1984) e Coimbra (1989); Presidente Emrito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional; Doutor Honoris Causa pela Universidade de Lisboa; Titular das Medalhas Rui Barbosa, da Ordem dos Advogados do Brasil (1996) e Teixeira de Freitas, do Instituto dos Advogados Brasileiros (1999).

    Fides Anglica de Castro Veloso Mendes Ommati (2 Vice-Presidente)Coordenadora do Curso de Direito do Instituto Camilo Filho; Presidente da Academia Piauiense de Letras Jurdicas; Membro da Academia Piauiense de Letras; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.

    Andrew Drzemczewski Ph. D. (Universidade de Londres); ex-Professor Visitante da Universidade de Londres; Diretor da Unidade de Monitoring do Conselho da Europa; Conferencista em Universidades de vrios pases.

    Alexandre Charles Kiss Ex-Secretrio Geral e ex-Vice-Presidente do Instituto Internacional de Direitos Humanos (Estrasburgo); Diretor do Centro de Direito Ambiental da Universidade de Estrasburgo; Diretor de Pesquisas do Centre National de la Recherche (Frana); Conferencista em Universidades de vrios pases.

  • Conselho Consultivo do IBDH

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    Antonio Snchez GalindoEx-Diretor do Centro Penitencirio do Estado do Mxico; ex-Diretor Geral de Pre-veno e Readaptao Social do Estado do Mxico; ex-Professor de Direito Penal da UNAM; Membro da Academia Mexicana de Cincias Penais e da Sociedade Mexicana de Criminologia; Diretor Tcnico do Conselho de Menores da Secretaria de Segurana Pblica do Mxico.

    Celso Albuquerque Mello Professor Titular de Direito Internacional Pblico da Pontifcia Universidade Cat-lica do Estado do Rio de Janeiro; Livre-Docente e Professor de Direito Internacional Pblico da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Juiz do Tribunal Martimo.

    Christophe Swinarski Ex-Consultor Jurdico do Comit Internacional da Cruz Vermelha (CICV-Gene-bra); Delegado do CICV no Extremo Oriente e ex-Delegado do CICV na Amrica do Sul (Cone Sul); Conferencista em Universidades de vrios pases.

    Dalmo de Abreu Dallari Professor da Universidade de So Paulo; ex-Secretrio de Negcios Jurdicos da Cidade de So Paulo; Membro da Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese de So Paulo.

    Dean SpielmannJuiz e Presidente da Corte Europia de Direitos Humanos, Membro do Conselho de Administrao do Instituto Internacional de Direitos Humanos (Estrasburgo).

    Elio Gmez GrilloAdvogado; Doutor em Direito; Professor Universitrio de Criminologia e Direito Penal em Caracas, Paris e Roma; Fundador do Instituto Universitrio Nacional de Estudos Penitencirios (IUNEP) da Venezuela; Presidente da Comisso de Funcio-namento e Reestruturao do Sistema Judicirio da Venezuela.

    Fernando Luiz Ximenes Rocha Desembargador do Tribunal de Justia do Estado do Cear; Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear; ex-Diretor Geral da Escola Superior da Magistratura do Cear; ex-Procurador Geral do Municpio de Fortaleza; ex-Pro-curador do Estado do Cear; ex-Procurador Geral do Estado do Cear; ex-Presidente do Tribunal de Justia do Estado do Cear.

    Hctor Fix-ZamudioProfessor Titular e Investigador Emrito do Instituto de Pesquisas Jurdicas da Uni-versidade Nacional Autnoma do Mxico; Juiz e ex-Presidente da Corte Interame-ricana de Direitos Humanos; Membro da Subcomisso de Preveno de Discrimi-nao e Proteo de Minorias das Naes Unidas; Membro do Conselho Diretor do Instituto Interamericano de Direitos Humanos.

  • Conselho Consultivo do IBDH

    7

    Hlio Bicudo Ex-Deputado Federal (Partido dos Trabalhadores So Paulo); ex-Presidente da Comisso Interamericana de Direitos Humanos.

    Jaime Ruiz de SantiagoEx-Professor da Universidade Ibero-americana do Mxico; ex-Encarregado de Misso do Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados (ACNUR) no Brasil; ex-Delegado do ACNUR em San Jos Costa Rica; Conferencista em Universidades de vrios pases.

    Jayme Benvenuto Lima JniorMestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Consultor Jurdico do GAJOP (Recife).

    Jean Franois FlaussSecretrio Geral do Instituto Internacional de Estrasburgo; Professor de Direito Internacional da Universidade de Lausanne (Suia).

    Jorge PadillaGraduado em Administrao de Negcios (Internacionais); Consultor Permanente do Instituto Interamericano de Direitos Humanos desde 2003; Consultor Corporativo em Projetos de Responsabilidade Social; Professor Titular da Faculdade de Cincias Sociais na Universidade Autnoma da Amrica Central; Articulista permanente em jornais de circulao nacional, na Costa Rica.

    Karel VasakEx-Secretrio Geral do Instituto Internacional de Direitos Humanos; Ex-Consultor Jurdico da UNESCO.

    Linos-Alexandre SicilianosJuiz da Corte Europia de Direitos Humanos, Membro do Conselho de Administrao do Instituto Internacional de Direitos Humanos (Estrasburgo);

    Nstor Jos Mndez GonzlezAdvogado; Professor da UNAM; Diretor Geral do Instituto Nacional de Apoio a Vtimas e Estudos em Criminalidade (Mxico).

    Sergio Garca RamrezInvestigador no Instituto de Investigaes Jurdicas e Membro da Junta de Governo da Universidade Nacional Autnoma do Mxico; ex-Juiz e ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    Sheila Lombardi de KatoDesembargadora do Estado de Mato Grosso; Coordenadora-Geral do Programa Nacional de Direitos da Mulher.

  • Conselho Consultivo do IBDH

    8

    Soledad Garca MnozAdvogada; Diplomada em Direitos Humanos pela Universidade Carles III de Madri; Professora da Universidade Nacional de La Plata e de outras universidades ibero-americanas; Coordenadora do Escritrio Regional da Amrica do Sul do Ins-tituto Interamericano de Direitos Humanos.

  • 9APRESENTAO

    O Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (IBDH) tem a satisfao de dar a pblico o dcimo-segun-do nmero de sua Revista, instrumento pelo qual contribui com periodicidade anual e distribuio gratuita (graas ao respaldo do Banco do Nordeste) ao desenvolvimento do ensino e da pesquisa na rea dos direitos humanos, visando a promov-los na realidade brasileira. No entendimento do IBDH, o ensino e a pesquisa em direitos humanos giram em torno de alguns conceitos bsicos, devendo-se afirmar, de incio, a prpria universalidade dos direitos humanos, inerentes que so a todos os seres humanos, e consequentemente superiores e anteriores ao Estado e a todas as formas de organizao poltica. Por conseguinte, as iniciativas para sua promoo e proteo no se esgotam no se podem esgotar na ao do Estado.

    H que destacar, em primeiro plano, a interdependncia e indivisibilidade dos direitos humanos (ci-vis, polticos, econmicos, sociais e culturais). Ao propugnar por uma viso necessariamente integral de todos os direitos humanos, o IBDH adverte para a impossibilidade de buscar a realizao de uma categoria de direitos em detrimento de outras. Quando se vislumbra o caso brasileiro, dita concepo se impe com maior vigor, porquanto desde os seus primrdios de sociedade predatria at o acentuar da crise social agravada nos anos mais recentes, nossa histria tem sido at a atualidade marcada pela excluso, para largas faixas populacionais, seja dos direitos civis e polticos, em distintos movimentos, seja dos direitos econmicos, sociais e culturais.

    A concepo integral de todos os direitos humanos se faz presente tambm na dimenso temporal, descartando fantasias indemonstrveis como a das geraes de direitos, que tm prestado um desservio evoluo da matria, ao projetar uma viso fragmentada ou atomizada no tempo dos direitos protegidos. Todos os direitos para todos o nico caminho seguro. No h como postergar para um amanh indefinido a realizao de determinados direitos humanos.

    Para lograr a eficcia das normas de proteo, cumpre partir da realidade do quotidiano e reconhecer a necessidade da contextualizao dessas normas em cada sociedade humana. Os avanos nesta rea tm--se logrado graas, em grande parte, s presses da sociedade civil contra todo tipo de poder arbitrrio, somadas ao dilogo com as instituies pblicas. A cada meio social est reservada uma parcela da obra de construo de uma cultura universal de observncia dos direitos humanos.

    Os textos, em vrios idiomas, que compem este dcimo-segundo nmero da Revista do IBDH, a exemplo das edies anteriores, enfeixam uma variedade de tpicos de alta relevncia atinentes temtica dos direitos humanos. O presente nmero coincide com a realizao em Fortaleza do II Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos: Acesso Justia e Segurana Cidad, no perodo de 6 a 17 de maio de 2013, uma iniciativa conjunta do IBDH e do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), contando com a parceria e o apoio de numerosas instituies.

    Este Curso, que rene cerca de 120 alunos de todo o Brasil, alm de observadores nacionais e estran-geiros, representa um divisor de guas na trajetria do IBDH, abrindo-lhe portas para alianas estratgicas com instituies pblicas e privadas.

    Agregue-se que no presente domnio de proteo se impem maior rigor e preciso conceituais, de modo a sustentar a vindicao dos direitos humanos em sua totalidade, e a superar o hiato existente entre o iderio contido na Constituio Federal e nos tratados em que o Brasil Parte e nossa realidade social. Essa dicotomia entre falar e agir provoca um considervel desgaste e uma descrena generalizada. Isso deplorvel, na medida em que devemos no apenas conhecer nossos direitos, mas tambm saber defend--los e exigir sua proteo por parte do poder pblico, reduzindo assim o espao ocupado pela injustia, pela violncia e pela arbitrariedade.

    Proclamaes de direitos no so suficientes, como j alertava h dcadas o lcido pensador Jacques Maritain: no admissvel perverter a funo da linguagem, a servio dos que nos roubam a f na efe-tivao dos direitos humanos, inerentes aos seres humanos e sua condio de dignidade. Aos direitos proclamados se acrescem os meios de implement-los, inclusive diante das arbitrariedades e mentiras

  • Apresentao

    10

    dos detentores do poder. Entende o IBDH que o direito internacional e o direito interno se encontram em constante interao, em benefcio de todos os seres humanos.

    Assim sendo, o IBDH continua manifestando sua estranheza ante o fato de no se estar dando apli-cao cabal ao art. 5, 2, da Constituio Federal Brasileira vigente, de 1988, o que acarreta responsa-bilidade por omisso. A juzo do IBDH, por fora do art. 5, 2, da Carta Magna, os direitos consagrados nos tratados de direitos humanos em que o Brasil Parte incorporam-se ao rol dos direitos constitucional-mente consagrados. Insta trat-los dessa forma, como preceitua nossa Constituio, a fim de alcanar uma vida melhor para todos quantos vivam em nosso pas.

    Nesse sentido, o IBDH volta a repudiar as alteraes introduzidas pelo posterior art. 5, 3, da emen-da constitucional n. 45 (promulgada em 08.12.2004), o qual revela inteiro desconhecimento da matria, na perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dando ensejo a todo tipo de incongruncias inclusive em relao a tratados de direitos humanos anteriores referida emenda ao sujeitar o status constitucional de novos tratados de direitos humanos forma de aprovao parlamentar dos mesmos. Esta bisonha novidade, sem precedentes e sem paralelos, leva o IBDH a reafirmar, com ainda maior veemncia, a autossuficincia e autoaplicabilidade do art. 5, 2, da Constituio Federal brasileira.

    Na mesma linha de pensamento, o IBDH tambm repudia as recentes crticas de determinados de-tentores do poder a decises de rgos internacionais de superviso dos direitos humanos, pelo simples fato de serem tais decises desfavorveis ao Estado brasileiro. Algumas crticas, reveladoras de ignorncia, chegam ao extremo de proporem represlias a rgos internacionais que esto cumprindo o seu dever, em defesa dos justiciveis. A esse respeito, nunca demais recordar que os Estados Partes na Conveno Ame-ricana dos Direitos Humanos, que reconheceram a competncia compulsria da Corte Interamericana de Direitos Humanos, assumiram o compromisso de dar plena execuo s Sentenas da Corte Interamerica-na. Isto se impe bona fides, em razo do princpio geral do direito pacta sunt servanda. A nenhum Estado Parte dado evadir-se do fiel cumprimento de suas obrigaes convencionais.

    Reiteramos, enfim, que a Revista do IBDH, como repositrio de pensamento independente e de anli-se e discusso pluralistas sobre os direitos humanos, persegue o desenvolvimento do ensino e da pesquisa sobre a matria no Brasil. Desse modo, na tarefa de consolidao de um paradigma de observncia dos direitos humanos em nosso meio social, espera o IBDH dar uma permanente contribuio.

    Antnio Augusto Canado Trindade

    Csar Oliveira de Barros Leal

  • 11

    Caso Alyne Pimentel: Uma Anlise Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

    1. INTRODUOO Caso Alyne Pimentel a primeira de-

    nncia sobre mortalidade materna acolhida pelo Comit para a Eliminao de todas as Formas de Discriminao contra a Mulher, doravante denominado Comit, incumbido de monitorar o cumprimento pelos Estados-parte da Conven-o relativa aos Direitos das Mulheres, adotada pelas Naes Unidas em 1979. Alm de o tema, mortalidade materna, ser um elemento diferen-cial do Caso, o fato de ser a nica condenao do Estado brasileiro proveniente de um rgo do Sistema Universal de Direitos Humanos tambm demonstra sua especificidade e relevo para a co-munidade nacional e internacional que lida com a proteo dos direitos humanos. Sendo assim, escolheu-se o Caso Alyne Pimentel em virtude de apresentar aspectos particulares que lhe conferem a qualidade de um caso paradigmtico, porquanto diz respeito morte de uma mulher - gestante, jovem, afrodescendente, e de baixa renda - decor-rente de ausncia de assistncia mdica adequada, fato que no foi posteriormente apurado, cujo pro-cesso judicial relativo responsabilizao civil do Estado ainda se encontra em trmite, decorridos quase dez anos aps o episdio.

    O Caso Alyne Pimentel trouxe tona a pro-blemtica da morte materna, enquanto violao do direito humano sade, que se reflete na razo de mortalidade materna no Brasil: 68.7 por 100.000 nascidos vivos (DATASUS, 2008). Ainda distante da razo de 35 por 100.000 nascidos vivos, meta apontada pelos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio (IPEA, 2010), assim como da realidade de outros pases do continente Americano, como, por

    exemplo, Cuba, que apresenta 43.1; Canad, 6.5; Estados Unidos, 12.7; Argentina, 55; Chile, 16.6 (PAHO, 2011). Como se nota, a alta taxa de morta-lidade materna demonstra que os esforos empre-endidos pelo Estado brasileiro com vistas a evitar a mortalidade derivada da maternidade, o que inclui o acesso a servios qualificados de parto, ateno obsttrica de emergncia, educao e informao sobre sade sexual e reprodutiva, alm de outros (HUNT, 2006), ainda no lograram reverter o qua-dro situacional de sade das mulheres no Brasil, embora se reconhea que foi registrada reduo da morte materna desde 1990 (IPEA, 2010).

    Nos ltimos anos, foi-se expandindo o en-tendimento conceitual da mortalidade derivada da maternidade como uma expresso dos direitos humanos, especificamente enquanto contedo do direito ao desfrute do mais alto nvel de sade f-sica e mental (Hunt, 2006), previsto no art. 12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econ-micos, Sociais e Culturais, ratificado e internali-zado pelo Estado brasileiro. Igualmente, a morte materna evitvel consiste em violao dignidade humana intrnseca da mulher, assim como fla-grante injustia social (YAMIN; MAINE, 2005). Tal entendimento impele integrao do direito sade na formulao de polticas e programas p-blicos de enfrentamento mortalidade materna. Nesse sentido, importante destacar a Resoluo n. 11/8, expedida pelo Conselho de Direitos Hu-manos das Naes Unidas, sobre mortalidade e morbidade materna evitvel1 e direitos humanos, na qual o rgo de direitos humanos afirma que a alta taxa inaceitvel de mortalidade materna e morbidade um desafio de sade, direitos huma-nos e desenvolvimento.

    CASO ALYNE PIMENTEL: UMA ANLISE LUZ DA ABORDAGEM BASEADA EM DIREITOS HUMANOS

    Aline Albuquerque S. de Oliveira

    Ps-Doutora em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Emory; Doutora em Cincias da Sade/Biotica pela Universidade Braslia e Visiting Scholar do Instituto de tica Biomdica

    da Universidade de Zurique; Advogada da Unio na Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica.

    Julia Barros SchirmerAssessora da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia

    da Repblica; Especializao em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008) e graduao em Direito pela mesma Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005); Integrante

    do Grupo de Pesquisa CNPQ Observatrio de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina.

  • 12

    Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

    Tendo em conta a perspectiva da violao do direito humano sade, retratado na ocorrncia de mortalidade materna, bem como do direito ao acesso justia e a ausncia de qualquer respon-sabilizao dos agentes no Caso Alyne Pimentel, este artigo tem como escopo analisar, do ponto de vista da Abordagem Baseada em Direitos Huma-nos - ABDH, a poltica mais atual e compreensiva endereada ao enfrentamento da mortalidade ma-terna, enquanto uma das medidas adotadas pelo Estado brasileiro como resposta s recomendaes do COMIT no Caso Alyne Pimentel. Sendo as-sim, considerando a limitao de dimenso deste trabalho, optou-se por focar a poltica de sade re-produtiva nacional, a intitulada Rede Cegonha. Tal investigao tem como objetivo verificar se o Estado brasileiro incorporou referida poltica o referencial terico-normativo dos direitos huma-nos, mediante o emprego da ABDH, que fornece um elenco de critrios para a verificao de polti-cas pblicas de sade pblica e sua conformidade com as normas e princpios de direitos humanos.

    Para tanto, foram adotados os seguintes pas-sos metodolgicos: i. descrio do Caso a partir do contedo da Comunicao n. 17/2008, e da de 2011, e as opinies e recomendaes elaboradas pelo COMIT correlatas denncia; ii. estudo da ABDH, especificamente no campo da sade pbli-ca, conforme formulao desenvolvida pela Orga-nizao Mundial de Sade, e os estudos de Singh (2010), Beracochea, Weinstein e Evans (2011), assim como os de Taket (2012), sendo o primeiro importante em razo de ser proveniente da agncia das Naes Unidas com mandato para a sade p-blica e direitos humanos, e os demais autores assi-nalados, por apresentarem estudos especializados na aplicao da ABDH sade pblica; iii. anlise, com base nos critrios apresentados pelo referen-cial da ABDH de avaliao de polticas e programas pblicos de sade, da Rede Cegonha, instituda pela Portaria n. 1.459/GM/MS, de 24 de junho de 2011, no mbito do Sistema nico de Sade.

    Em seguida, passa-se descrio do Caso Alyne Pimentel, conforme os termos do docu-mento do COMIT.

    2. O Caso Alyne PimentelEm 2007, os peticionrios do Caso, o Centro

    para os Direitos Reprodutivos e a Advocacia Ci-dad pelos Direitos Humanos, representantes de Maria de Lourdes da Silva Pimentel, me de Alyne Pimentel, apresentaram uma comunicao peran-te o Comit sobre a Eliminao da Discriminao contra a Mulher, alegando a violao do direito

    vida e sade da vtima, Alyne Pimentel. Segundo os peticionrios, Alyne Pimentel, grvida de seis meses, aos 11 de novembro de 2002, dirigiu-se Casa de Sade Nossa Senhora da Glria, loca-lizada na cidade de Belford Roxo, apresentando nusea grave e dor abdominal. No dia citado, o mdico que lhe atendeu prescreveu medicao de rotina e a liberou. Contudo, seu estado de sade piorou, e, no dia 13 de novembro, Alyne Pimentel teria retornado ao mesmo hospital com sua me. Na ocasio, outro mdico a examinou e no verifi-cou batimento cardaco fetal, o que foi confirmado por meio de ultrassonografia. O mdico lhe deu medicamento para acelerar o parto, o que ocorreu horas depois. No dia 14 de novembro, 14 horas aps o parto, Alyne Pimentel teria se submetido a uma curetagem para a retirada de parte da placen-ta, porm, sua condio de sade tornou-se cada vez mais grave, com hemorragia, vmito de san-gue, presso baixa, impossibilidade de ingesto de alimentos e desorientao prolongada. Em 15 de novembro, o quadro de sade de Alyne Pimentel no se alterou, mantendo as mesmas caracters-ticas do dia anterior. Os mdicos fizeram contato com hospitais de referncia a fim de transferi-la. Apenas o Hospital Geral de Nova Iguau tinha disponibilidade para tanto, contudo, no se pron-tificando a utilizar sua nica ambulncia para a remoo de Alyne Pimentel. A me e o marido da paciente aguardaram por oito horas para que a transferncia pudesse ser realizada. Nesse perodo, Alyne Pimentel j teria apresentado um quadro de coma. Quando a paciente chegou ao Hospital Geral de Nova Iguau, encontrava-se hipotrmica e teve que ser ressuscitada em uma maca, pois no havia leitos disponveis. Os peticionrios ale-gam que os mdicos no enviaram o pronturio de Alyne Pimentel para o hospital de referncia. No dia 16 de novembro, Alyne Pimentel morreu em decorrncia de hemorragia digestiva. Segundo os mdicos, teria falecido em razo do feto morto no ter sido removido de seu tero. Em fevereiro de 2003, o vivo de Alyne Pimentel ajuizou ao indenizatria em face do Estado do Rio de Janeiro (COMIT, 2011).

    Os peticionrios, ao formular a apontada comunicao, fundamentaram-se no Protocolo Conveno sobre a Eliminao de Todas as For-mas de Discriminao Contra a Mulher, internali-zado no ordenamento jurdico nacional em 2002, o qual estabelece procedimento de comunicaes individuais ou de grupos de indivduos, conhecido como quase judicial, porquanto no tem a na-tureza jurdica vinculante de uma sentena; con-tudo, apresenta-se vinculativo na medida em que

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    Caso Alyne Pimentel: Uma Anlise Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

    o Estado ratificador do tratado deve cumpri-lo de boa f, consoante a Conveno de Viena sobre os Direitos dos Tratados. Sendo assim, caso o CO-MIT entenda que tenha efetivamente ocorrido violao dos direitos humanos previstos na Con-veno referida, emitir observaes e recomen-daes, s quais o Estado deve dar devida conside-rao. Deve, ainda, apresentar ao Comit, dentro de seis meses, resposta por escrito, incluindo in-formaes sobre quaisquer aes realizadas luz das observaes e recomendaes anteriormente dirigidas ao Estado.

    Na comunicao do Caso Alyne Pimentel, os peticionrios sustentaram que o Estado brasileiro no assegurou o acesso a tratamento mdico de qualidade durante o parto, tendo em conta que a principal causa da morte da vtima teria sido a demora evitvel no recebimento de ateno obst-trica de urgncia e a ausncia de atendimento obs-ttrico qualificado. O fato de Alyne Pimentel, em seu primeiro atendimento, no ter sido submetida a exames mais precisos e tratamento apropriado, e de, no segundo atendimento, o feto e partes da placenta no terem sido completamente expe-lidos, causaram hemorragia e complicaes, e, consequentemente, sua morte. Sua transferncia tambm foi ineficaz, pois ela foi mantida numa maca sem atendimento qualificado, o que con-correu para sua morte evitvel (COMIT, 2011). Assim, os peticionrios alegam que houve falha no sistema de referncia dos servios de sade; ausncia de coordenao entre os servios de pr--natal e de parto; falta de ambulncia ou transpor-te apropriado e de leito; e no-apresentao pelos mdicos de seu pronturio no servio de refern-cia (COMIT, 2011).

    Ainda, os peticionrios sustentam que o Es-tado brasileiro falhou em assegurar aes judiciais efetivas e de proteo no contexto de violaes sade reprodutiva. A ausncia de responsabiliza-o por parte do sistema judicial aponta para uma sistemtica falha estatal no reconhecimento da necessidade de adotar medidas de reparao para a mulher que foi tratada de modo discriminatrio. A demora na prestao jurisdicional teria causado dano devastador para a famlia de Alyne Pimentel, principalmente sua filha, Alice Pimentel, pois foi abandonada pelo pai, e, em consequncia, dei-xou de contar com meios materiais dignos para sua sobrevivncia (COMIT, 2011).

    Especificamente no presente caso, o COMI-T decidiu que o Estado brasileiro violou o direito ao acesso sade; o direito ao acesso justia; e o direito a ter as atividades dos servios privados de sade regulados pelo Estado, conjuntamente com o direito a no ser discriminada. Segundo

    o COMIT (2011), a morte de Alyne Pimentel caracteriza-se como relacionada a complicaes obsttricas vinculadas gestao, observado que o profissional de sade que realizou seu primei-ro atendimento falhou ao no se certificar ime-diatamente da morte do feto, registrando-se que os testes de urina e sangue foram realizados dois dias depois do primeiro atendimento, e a cureta-gem, 14 horas aps o parto. Em suma, conforme o COMIT, tal morte pode ser classificada como materna. Quanto ao fato da Casa de Sade Nossa Senhora da Glria ser privada, para o COMIT (2011) o Estado diretamente responsvel pelos servios prestados por instituies privadas de sade, existindo o dever estatal permanente de regular e monitorar as instituies privadas de sade. Ainda, de acordo com o COMIT (2011), a ausncia de servios apropriados de sade ma-terna, dirigidos ao atendimento de objetivos es-pecficos e particulares, demandas em sade no interesse da mulher, constitui, alm de violao ao direito sade, discriminao contra a mulher. Para o Comit (2011), alm de Alyne Pimentel ter sofrido discriminao por ser mulher, tambm o foi por ser afrodescendente e pertencer camada da populao de baixa renda. Por fim, o COMI-T (2011) reconhece que o Estado brasileiro no assegurou proteo judicial efetiva e remdios ju-rdicos apropriados, acentuando que nenhum pro-cedimento foi iniciado contra aqueles que causa-ram diretamente a morte de Alyne Pimentel, bem como a ao indenizatria, interposta em 2003, ainda no havia sido julgada. Em referncia a tal ponto, o COMIT (2011) entendeu que o Estado brasileiro no cumpriu sua obrigao de assegurar proteo e ao judicial efetiva.

    As recomendaes feitas pelo COMIT (2011) foram sete, sendo uma de natureza com-pensatria, na qual prev que o Estado brasileiro deve indenizar a me e a filha de Alyne Pimentel; trs concernentes a polticas pblicas de sade: i. assegurar o direito da mulher maternidade sau-dvel e o acesso de todas as mulheres a servios adequados de emergncia obsttrica; ii. realizar treinamento adequado de profissionais de sade, especialmente sobre direito sade reprodutiva das mulheres; iii. reduzir as mortes maternas evi-tveis, por meio da implementao do Pacto Na-cional para a Reduo da Mortalidade Materna e da instituio de comits de mortalidade materna; trs recomendaes que dizem respeito accoun-tability: i. assegurar o acesso a remdios efetivos nos casos de violao dos direitos reprodutivos das mulheres e prover treinamento adequado para os profissionais do Poder Judicirio e operadores

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    do direito; ii. assegurar que os servios privados de sade sigam padres nacionais e internacionais sobre sade reprodutiva; iii. assegurar que sanes sejam impostas para profissionais de sade que violem os direitos reprodutivos das mulheres.

    Neste tpico, buscou-se expor o Caso Alyne Pimentel com foco nas alegaes dos peticionrios e no entendimento do COMIT, os quais, como se pode perceber, so convergentes. Os argumen-tos esposados pelo Estado brasileiro no foram objeto anlise, pois o COMIT no os acolheu, deliberando nos termos da comunicao dos pe-ticionrios. Dessa forma, partiu-se da deciso do COMIT de que houve violao de direitos humanos e da responsabilidade do Estado brasi-leiro para desenvolver a concepo central deste estudo, que consiste no exame da adequao da poltica de sade materna atual do Brasil e dos remdios e medida de responsabilizao com uma perspectiva de direitos humanos, a qual ser deli-neada em seguida.

    3. ABORDAGEM BASEADA EM DIREI-TOS HUMANOS APLICADA SADEA Abordagem baseada em Direitos Huma-

    nos aplicada Sade desenvolvida neste estudo parte de um marco terico institucional, constru-do pela Organizao Mundial de Sade e do Alto Comissariado das Naes Unidas para os Direi-tos Humanos, assim como acadmico, o qual se fundamenta nas pesquisas das tericas de Singh (apud TAKET, 2012), Beracochea, Weinstein e Evans (2011), bem como de Taket (2012). Mesmo que as autoras no empreguem a denominao Abordagem Baseada em Direitos Humanos, mas to somente Direitos, o escopo o mesmo, qual seja, a conexo explcita dos direitos humanos em questo com os documentos normativos no campo do Direito Internacional dos Direitos Hu-manos (BERACOCHEA; WEINSTEIN; EVANS, 2011), constituindo uma abordagem que auxilia a proteo e a promoo dos direitos humanos na esfera da sade pblica (TAKET, 2002).

    A ABDH busca conferir suporte mais ro-busto aos resultados buscados pelos Estados por meio de polticas pblicas, mediante a anlise e o foco em iniquidades, prticas discriminatrias e relaes de poder assimtricas. O suporte refe-rido se ancora no sistema de direitos humanos, civis, polticos, sociais, econmicos, culturais e nas obrigaes estatais correlatas (WHO; ORHC, 2012). Nas Naes Unidas, reconhecendo a ne-cessidade de adotar perspectivas coerentes no con-texto da colaborao entre agncias, acordou-se o

    Entendimento Comum das Naes Unidas sobre a Abordagem Baseada em Direitos Humanos, no ano de 2003, o qual serve como ponto de refern-cia e guia para inmeros parceiros. Na esfera da sade, a ABDH implica, especificamente, a busca da realizao do direito humano sade e dos de-mais direitos humanos correlatos, do que se ex-trai que poltica e programas sanitrios devem ser norteados por padres de direitos humanos, bem como pelo desenvolvimento da capacidade daque-les que so obrigados, em decorrncia de normas de direitos humanos, a efetivar suas obrigaes e a concretizar o empoderamento dos titulares de tais direitos (WHO; ORHC, 2012). Com efeito, ao se trazer a ABDH especificamente para o cam-po da sade, h que se fazer uma breve referncia para a interconexo entre sade pblica e direitos humanos. A penetrao do referencial dos direitos humanos na sade pblica recente, na dcada de noventa, Jonathan Mann desenvolveu inaugural abordagem das condies vivenciadas por pessoas que viviam com HIV e AIDS sob a tica do es-tigma e discriminao sofridos por elas, demons-trando que no era apenas uma questo sanitria, mas, mormente de direitos humanos (BERACO-CHEA; WEINSTEIN; EVANS, 2011).

    A ABDH enfatiza que o objetivo precpuo das polticas, estratgias e programas em sade a per-secuo da realizao do direito sade e outros direitos humanos relacionados, com base em nor-mativas de direitos humanos. Os padres de direi-tos humanos fornecem um norte para a definio precisa de elementos constituintes do escopo da atuao estatal no campo da sade. Sendo assim, se o propsito a efetivao dos direitos humanos, polticas e programas precisam estar sistematica-mente integrados com tais direitos. Com efeito, a ABDH preocupa-se no apenas com o resultado das aes e servios de sade efetivados pelo Es-tado, mas tambm com o processo, ou seja, com a forma com que os agentes polticos atuaro com vistas a atingir determinadas metas estabelecidas. O processo de constituio de polticas e progra-mas diagnstico, estabelecimento de prioridades, planejamento do programa e seu desenho, imple-mentao, monitoramento e avaliao deve estar conectado com os padres e princpios de direitos humanos (WHO; ORCH, 2012).

    A eliminao de todas as formas de discri-minao aspecto central da ABDH, nesse sen-tido, estratgias tendentes a alcanar a igualdade de gnero e a supresso da discriminao base-ada no sexo so centrais. Alm do princpio da no discriminao, a ABDH fundamenta-se nos princpios da participao, igualdade e accoun-

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    Caso Alyne Pimentel: Uma Anlise Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

    tability. O princpio da participao significa que as pessoas so autorizadas a atuar livremente em decises que diretamente as afetam. A participa-o aumenta a chance de que polticas e progra-mas correspondam s necessidades de seus des-tinatrios. O acesso informao um aspecto essencial do princpio da participao, pois sem informao disponvel, acessvel em linguagens e formatos variados, bem como sem a garantia do direito associao, a exequibilidade da partici-pao torna-se prejudicada (WHO; ORCH, 2012).

    O princpio da igualdade e da no discrimi-nao aponta para a imperiosidade do Estado ado-tar um conjunto de legislao, polticas e progra-mas no discriminatrios, tal como relativamente quelas tendentes a balizar a alocao de recursos sanitrios. A informao de sade deve estar es-truturada de modo desagregado, a fim de que per-mita a identificao de iniquidades em sade dos grupos mais vulnerveis (WHO; ORCH, 2012).

    No que tange accountability, esse princ-pio um componente-chave da ABDH aplicada sade pblica (BERACOCHEA; WEINSTEIN; EVANS, 2011). O princpio traz o comando da transparncia para o Estado, o qual deve aplic--lo a todos os processos decisrios e aes, assim como na adoo de mecanismos de responsabi-lizao. H variados meios de se materializar a accountability, dentre eles destacam-se: i. ratifi-cao dos tratados de direitos humanos e incor-porao de seus padres ao ordenamento jurdico nacional; ii. instituio de mecanismos judiciais e quase-judiciais, como comisses de direitos hu-manos e ombudsman; iii. criao de mecanismos administrativos e polticos, por exemplo, a revi-so de polticas de sade e estratgias, auditorias e avaliao de impacto nos direitos humanos; iv. elaborao de relatrios perante organismos in-ternacionais de direitos humanos, demonstrando o cumprimento de seus compromissos (WHO; ORCH, 2012). Com efeito, o princpio da accoun-tability requer dos governos e tomadores de deci-so que sejam transparentes sobre os processos e aes, bem como justifiquem suas escolhas, o que significa answerability (WHO, 2011). Contudo, sabe-se que os profissionais de sade no esto acostumados a responderem por suas prticas, ademais, as comunidades no esto organizadas para exigir seus direitos e demandas de accounta-bility dos governos em seus vrios nveis (BERA-COCHEA; WEINSTEIN; EVANS, 2011).

    A ABDH foca na capacidade dos agentes do Estado que detm o dever de adimplir as obriga-es de direitos humanos e nos titulares desses

    direitos. A capacidade aludida inclui competncia, habilidades, recursos, responsabilidades, autorida-de e motivao. Em relao aos agentes obrigados, a ABDH enfatiza a capacidade nos trs nveis, lo-cal, regional e federal, direcionada ao atendimen-to das obrigaes de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos. Na rea da sade, agentes obrigados so os gestores, diretores de unidades de sade, profissionais de sade e parlamentares. Por outro lado, a partir da perspectiva dos titulares, a nfase recai sobre seu empoderamento, visando ao entendimento de que so detentores de direitos humanos (WHO; ORCH, 2012).

    Ao se cotejar a Abordagem Baseada em Ne-cessidades ABN com a ABDH, verifica-se que a primeira foca-se na ajuda que se d aos que preci-sam, enquanto a segunda, no empoderamento dos titulares de direitos, buscando fomentar sua habi-lidade para exigi-los. A ABN, norteada pelo prin-cpio da utilidade, busca priorizar as demandas da maioria, objetivando o maior benefcio para o maior nmero de pessoas, subjugando as premn-cias individuais. A ABDH tem como pressuposto a dignidade ontolgica da pessoa humana, a qual deve ser tratada com igual respeito e considerao, o que conduz ao problema de conciliar a universa-lidade dos direitos humanos com a imperiosidade de restringi-los, em determinados contextos, em prol dos interesses coletivos, especialmente quan-do esto em jogo os direitos humanos de popula-es vulnerveis. A ABN tambm pode ser empre-gada como meio de justificar polticas pblicas de sade de baixa qualidade, pois quando as necessi-dades excedem os recursos disponveis justifica-se o no atendimento das demandas de sade das populaes de baixa renda, o que ocasiona resul-tados desfavorveis em suas condies de sade. Do ponto de vista da ABDH, os servios e bens sanitrios no devem ser acessveis to somente para ricos, destinando-se aos pacientes de baixa renda caridade e aes assistencialistas; ao revs, consoante a perspectiva da ABDH, o Estado deve prover aes e servios de sade para todos, in-dependentemente de sua classe econmica, etnia, sexo e outros fatores (BERACOCHEA; WEINS-TEIN; EVANS, 2011).

    Os quatro aspectos centrais ou princpios da ABDH, identificados por Singh (apud TAKET, 2012), sintetizam o contedo da abordagem: i. realizao dos direitos humanos sem discrimina-o; ii. aplicao do princpio da accountability aos agentes obrigados; iii. reconhecimento da par-ticipao no processo decisrio; iv. adaptao das aes ao contexto local. Igualmente, a proposta da

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    Organizao Mundial de Sade (2002) apresenta um quadro objetivo cujo contedo reflete os in-gredientes da ABDH na esfera da sade pblica. Tais ingredientes so divididos em trs blocos: i. direito sade; gnero; transparncia; dignidade humana; e princpios de Siracusa; ii. indicadores e benchmarks; salvaguardas; no discriminao e igualdade; accountability e desagregao; iii. aten-o aos grupos vulnerveis; participao; privaci-dade; direito educao; acessibilidade; vincula-o expressa com os direitos humanos; obrigaes concretas dos Estados.2 Tendo em conta que al-guns desses elementos do ABDH so autoexplica-tivos e que no tm relevncia para esta pesquisa, busca-se, neste momento, com o escopo de aplic--los subsequentemente neste artigo, a explicitao de alguns deles, conforme proposies formuladas pela OMS. As salvaguardas seriam medidas de proteo de grupos vulnerveis, incluindo aque-les considerados impopulares por dada sociedade. J a perspectiva de gnero impe a considerao de fatores sociais e biolgicos que interferem na sade de homens e mulheres. Em relao aces-sibilidade, servios e aes de sade devem ser acessveis para todos, principalmente, para os gru-pos mais vulnerveis. Quanto participao, esta implica a integrao daqueles que so afetados por programas e polticas na criao de seu desenho e no bojo de seus processos deliberativos. Os prin-cpios da transparncia e da accountability devem atravessar todas as fases das polticas e programas de sade. Quanto ao direito educao, abarca o direito informao em sade, essencial para o entendimento das condies de sade individual, o que permite ao indivduo realizar escolhas con-forme suas concepes de vida, significando res-peito sua dignidade (WHO, 2002).

    Neste estudo tem-se como objetivo a anlise da aplicao do ABDH sade pblica, especifi-camente a polticas e programas de sade repro-dutiva da mulher e accountability do sistema de sade brasileiro. Considerando tal enfoque, im-porta sistematizar a ABDH a partir da exposio do marco terico acima explorado. Sendo assim, a anlise de determinada poltica ou da accoun-tability referente a determinado sistema de sade pode ser balizada com fulcro nos seguintes crit-rios: i. se a poltica ou programa de sade partem da premissa de que a populao afetada titular de direitos humanos, e o Estado e os agentes so obrigados a respeitar, proteger e realiz-los; ii. se existe previso de meios assecuratrios para a participao da populao afetada; iii. se foram estabelecidos instrumentos que permitam a ac-countability relacionada aos responsveis pela im-

    plementao da poltica ou programa; iv. se houve instituio de medidas de salvaguarda de popula-es mais vulnerveis no contexto de dada pol-tica ou programa; v. se existe garantia do acesso informao concretizada mediante mecanismos especficos no mbito da poltica ou programa. Com base nesses critrios, nos itens subsequen-tes sero realizadas as anlises das atuais polticas de sade reprodutiva destinada ao enfrentamento da mortalidade materna no Brasil e a efetivao da accountability no caso Alyne Pimentel.

    4. POLTICA PBLICA DE ENFRENTA-MENTO DA MORTALIDADE MATERNAO COMIT estabeleceu, no bojo do Caso

    Alyne Pimentel, que o Estado brasileiro deve as-segurar que qualquer mulher, independentemente da raa ou status socioeconmico, tenha acesso no tempo adequado a servios apropriados sade materna (MESQUITA; KISMDI, 2012). Em res-posta comunicao formulada pelos peticion-rios no Caso Alyne Pimentel, o Estado informou que a violao do direito humano da vtima no se deu em decorrncia da falta de compromisso com o combate discriminao contra a mulher, mas sim como consequncia de falhas nos servios de sade, como um todo. O Estado aduziu que os Comits de Mortalidade Materna3 elaboram um relatrio anual que versa sobre estudos de caso e medidas preventivas implementadas para reduzir a mortalidade materna (COMIT, 2011).

    O Estado brasileiro reconheceu que a mor-talidade materna um srio problema no Brasil e que a falha no enfrentamento dessas mortes constitui grave violao dos direitos humanos; contudo, sustenta que o Caso em comento uma exceo causada por negligncia profissional e infraestrutura inadequada. Em contrapartida, o COMIT entendeu que a contnua alta taxa de mortalidade materna no Brasil constitui uma fa-lncia em priorizar os direitos humanos bsicos das mulheres, sendo a morte de Alyne Pimentel um exemplo de tal falncia. Com efeito, o Esta-do brasileiro no assegura acesso de qualidade assistncia mdica durante o parto e emergncia obsttrica a tempo, implicando o no cumprimen-to do direito a no discriminao, fundamentado na raa e no gnero (COMIT, 2011).

    Com o fito de demonstrar seu compromisso com os direitos sade sexual e reprodutiva, bem como a eleio da sade da mulher como priori-dade do Governo Federal brasileiro, o Estado ex-ps uma srie de medidas adotadas com vistas realizao dos direitos das mulheres, assim como

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    Caso Alyne Pimentel: Uma Anlise Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

    planos nacionais. Especificamente, o Estado expli-cou que uma das prioridades do Plano Nacional de Polticas para as Mulheres, referente ao perodo de 2008-2011, a promoo da ateno obsttri-ca, qualificada e humanizada, visando a reduzir a mortalidade materna, especialmente entre as mulheres negras e indgenas (PRESIDNCIA DA REPBLICA; SEPM, 2006). Tal Plano contm 18 aes, previstas at 2011, que deveriam ser efe-tivadas pelo Ministrio da Sade, todas relativas sade materna. Ainda, o Estado brasileiro in-formou que, j em 2004, o Ministrio da Sade lanou a Poltica Nacional de Ateno Integral Sade da Mulher, refletindo o compromisso com a implementao de aes de sade que contribuam para assegurar os direitos humanos das mulheres e reduzam a morbimortalidade por causas evit-veis (COMIT, 2011).

    Consoante se extrai do documento do CO-MIT, o Estado brasileiro buscou demonstrar que vem desenvolvendo uma srie de polticas e programas com foco na sade da mulher, e, es-pecificamente, na preveno da mortalidade ma-terna. A despeito desse esforo por parte do Esta-do, o COMIT constatou que h falta de servios adequados de sade materna. Da mesma forma, entende que o Estado brasileiro claramente vem falhando no atendimento das necessidades sanit-rias femininas, o que constitui violao ao direito sade das mulheres. Em decorrncia do enten-dimento do COMIT de que o Estado brasileiro, alm de ter violado os direitos humanos de Alyne Pimentel, no prov servios adequados de sade materna, o COMIT emitiu uma srie de reco-mendaes, as quais so ora repisadas: i. assegu-rar o direito da mulher maternidade segura e o acesso ateno obsttrica de emergncia adequa-da; ii. reduzir a mortalidade materna evitvel, me-diante a implementao do Pacto Nacional para a Reduo da Mortalidade Materna, inclusive es-tabelecendo comits de mortalidade materna nos locais onde no existem (COMIT, 2011).

    Em decorrncias das observaes e recomen-daes feitas pelo COMIT, ao Estado brasileiro foi concedido o prazo de seis meses para transmitir sua resposta por escrito, a qual deve incluir qual-quer informao sobre as medidas adotadas em atendimento s suas observaes e recomendaes. Transcorrido o prazo de seis meses, o COMIT po-der convidar o Estado a apresentar informao adicional sobre as medidas que adotou em cum-primento s citadas observaes e recomendaes.

    Sendo assim, tendo em conta que o Estado brasileiro deve fornecer ao COMIT o conjunto de providncias relativas s observaes e reco-

    mendaes constantes do Caso Alyne Pimentel, pode-se asseverar que uma das polticas pblicas que o Estado apresentar como resposta ao seu dever de reduo da mortalidade materna evitvel e de acesso a uma maternidade segura e a servi-os de ateno obsttrica de emergncia adequa-da, consiste na instituio da Rede Cegonha no ano de 2011 pelo Ministrio da Sade. Tal Rede constitui-se numa poltica pblica cuja finalidade assegurar mulher o direito ao planejamento re-produtivo e ateno humanizada gravidez, ao parto e ao puerprio. A Rede Cegonha apresenta trs objetivos: i. estimular a adoo de novo mo-delo de ateno sade da mulher e da criana; ii. organizar a Rede de Ateno Sade Mater-na e Infantil; iii. reduzir a mortalidade materna e infantil (BRASIL, 2011). Sendo assim, verifica-se que a instituio da Rede Cegonha por parte do Ministrio da Sade brasileiro tem como um dos seus escopos o objeto da recomendao feita pelo COMIT no Caso Alyne Pimentel, qual seja, a reduo da mortalidade materna.

    A Rede Cegonha organiza-se mediante o provimento contnuo de aes de ateno sade materna e infantil para a populao de determi-nado territrio, por meio da articulao de pon-tos de ateno sade diferenciados, do sistema de apoio, do sistema logstico e da governana da rede de ateno sade. A sua implementao gradativa de acordo com critrios epidemiol-gicos, tal como a razo de mortalidade materna (BRASIL, 2011).

    Em sua estrutura, a Rede Cegonha conta com quatro componentes: pr-natal; parto e nas-cimento; puerprio e ateno integral sade da criana; e sistema logstico: transporte sanitrio e regulao. Cada componente abrange uma srie de aes de ateno sade, especificamente as que interessam a este trabalho so: i. Componen-te Pr-Natal: realizao de pr-natal na Unidade Bsica de Sade; acolhimento s intercorrncias na gestao com avaliao e classificao de risco e vulnerabilidade; acesso ao pr-natal de alto ris-co em tempo oportuno; realizao dos exames de pr-natal de risco habitual e de alto risco e acesso aos resultados em tempo oportuno; vinculao da gestante desde o pr-natal ao local em que ser realizado o parto; apoio s gestantes nos deslo-camentos para as consultas de pr-natal e para o local em que ser realizado o parto, os quais sero regulamentados em ato normativo especfico; ii. Componente Parto e Nascimento: suficincia de leitos obsttricos e neonatais (UTI, UCI e Can-guru), de acordo com as necessidades regionais; garantia de acompanhante durante o acolhimento

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    e o trabalho de parto, parto e ps-parto imediato; realizao de acolhimento com classificao de risco nos servios de ateno obsttrica e neonatal (BRASIL, 2011). Verifica-se que a Rede Cegonha tenciona lidar com questes afetas ao Caso Aly-ne Pimentel, tais como o atendimento s inter-corrncias na gestao e realizao de exames de risco habitual e alto risco, cujos resultados devem estar disponveis em tempo adequado; ademais, destaca-se que o acolhimento do parto deve base-ar-se em classificao de risco, alm de garantir a presena de acompanhamento, bem como leitos obsttricos suficientes.

    Nas outras passagens da Portaria instituidora da Rede Cegonha, tm-se as fases de sua operacio-nalizao: adeso e diagnstico; desenho regional da Rede Cegonha; contratualizao dos Pontos de Ateno; qualificao dos componentes; certifica-o e sua pormenorizao. De igual forma, cons-tam dela distintos dispositivos que versam sobre os aportes financeiros da Poltica.

    Tendo em conta o recorte metodolgico ope-rado neste artigo, tem-se como escopo a anlise da poltica pblica instituda por meio da Rede Cegonha com fulcro no ABDH. No se tem como objetivo examinar a Rede Cegonha do ponto de vista da sade pblica ou de sua eficcia sanit-ria para a reduo da mortalidade materna. Prin-cipia-se, assim, reconhecendo que a Rede Cego-nha tem como princpios: o respeito, a proteo e a realizao dos direitos humanos; o respeito diversidade cultural, tnica e racial; a promoo da equidade; o enfoque de gnero, a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e a participao e a mobilizao social. Constata-se, com base no rol principiolgico da Rede Cegonha, que o Estado brasileiro buscou construir uma pol-tica aproximada do referencial terico-normativo dos direitos humanos, fazendo aluso expressa a tais direitos e s obrigaes estatais correlatas, bem como incorporando princpios, como o prin-cpio da no discriminao, da participao e da igualdade. Nota-se a ausncia do princpio da ac-countability, cuja falta corroborada pela lacuna de instrumentos que assegurem a transparncia das aes estatais e mecanismos que promovam e viabilizem a responsabilizao efetiva daqueles que detm atribuio para operacionalizar a Rede Cegonha, notadamente o Ministrio da Sade, a Secretaria Estadual de Sade e a Secretaria Mu-nicipal de Sade. No se verificam, na Rede Ce-gonha, quaisquer mecanismos de accountability. H a previso da organizao da Rede, as fases da sua implementao, e, no que tange ao acom-panhamento e monitoramento, h a disposio

    genrica acerca da verificao do cumprimento das aes de ateno sade definidas para cada Componente da Rede, a qual ser realizada anu-almente pelo Ministrio da Sade, em conjunto com Conselhos de Secretrios de Sade. Sabe-se que, consoante o prprio ttulo, a Rede Cegonha se afigura como uma rede de cuidados, que se per-fazem mediante aes e servios de sade, cuja obrigao de prest-los encontra-se assentada nos instrumentos normativos nacionais e interna-cionais, portanto, a Rede Cegonha deveria prever mecanismos de accountability, principalmente atrelados s aes constantes dos Componentes que a estruturam, tais como: i. adoo de meca-nismos de transparncia, pelos quais os entes da federao iro demonstrar para a sociedade os re-sultados alcanados com a poltica; ii. produo de informao especfica, como indicadores desa-gregados por regio, raa/cor, renda, a fim de expli-citar os avanos da poltica, principalmente, en-tre os grupos mais vulnerveis; iii. instituio de modos da populao afetada pela poltica externar suas falhas, como, por exemplo, a previso de um ombudsman com tal funo; iv. disponibilizao de remdios no judiciais queles cujos direitos que a poltica busca resguardar foram violados.

    A referida Portaria prev que a Rede Cego-nha deve contar com a instituio do Frum Rede Cegonha, cuja finalidade a construo de espa-os coletivos plurais, heterogneos e mltiplos para participao cidad na construo de um novo modelo de ateno ao parto e nascimen-to, mediante o acompanhamento e contribuio na implementao da Rede Cegonha na Regio (BRASIL, 2011). O dispositivo normativo que objetiva a materializao da participao e mobi-lizao social, princpios assentados na Portaria, no faz qualquer referncia aos meios efetivos de funcionamento do Frum, bem como no foca na populao afetada pela poltica. O Frum deveria ter como pblico-alvo as mulheres, medida que, segundo o princpio da participao, os instru-mentos estatais de participao devem priorizar o envolvimento dos grupos mais atingidos pelas polticas e programas, assim como de organiza-es no governamentais singularmente implica-das. Com efeito, o princpio da participao no se cinge ao intitulado controle social, o qual aponta para um envolvimento difuso da socieda-de. Por outro lado, a participao impe a incor-porao dos afetados nos processos de construo, operacionalizao e monitoramento das polticas e programas. Sendo assim, o Frum, tal como se encontra previsto na norma, alm de possuir difi-culdades para a sua instituio, no contempla o

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    Caso Alyne Pimentel: Uma Anlise Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

    princpio da participao, a despeito de revelar-se iniciativa louvvel por parte dos formuladores da poltica em questo.

    No h qualquer preceito na Portaria insti-tuidora da Rede Cegonha que preveja a proteo dos grupos vulnerveis, principalmente de mulhe-res afrodescendentes ou de baixa renda. Conforme Martins (2006), o risco de mortalidade materna maior entre as mulheres negras, o que inclui as pretas e pardas, configurando-se em importante expresso de desigualdade social. Sendo assim, uma poltica que pretende enfrentar o problema da mortalidade materna deve, imperiosamen-te, levar em conta as especificidades de grupos de mulheres vulnerveis, buscando, por meio de mecanismos particulares que tencionem atender s demandas diferenciadas de mulheres de etnias diferentes, de baixa renda ou residentes de certas regies do pas. Com efeito, o princpio da no discriminao impe aos Estados a adoo de po-lticas e programas destinados a assegurar o aces-so a servios de sade reprodutiva e materna, no-tadamente a emergncias obsttricas, mormente por mulheres afrodescendentes e de baixa renda, que dependem to somente dos servios pblicos.

    Por fim, quanto ao direito ao acesso in-formao, no se v no mbito da Rede Cegonha medidas peculiares destinadas a assegurar s mu-lheres envolvidas o acesso informao, notada-mente quelas que envolvem o planejamento fa-miliar, os meios efetivos de exerccio dos direitos sexuais e reprodutivos, e a assistncia concepo e contracepo. O acesso informao essencial para que as mulheres possam ter controle sobre suas prprias vidas e realizar suas escolhas pesso-ais. O referido acesso informao compreende o direito de solicitar, receber e difundir informaes e ideias, assim como o direito dos pacientes de te-rem seus dados pessoais relativos sade tratados com confidencialidade (CDESC, 2000).

    Conforme assinalado por Mesquita e Kis-mdi (2012), a ocorrncia da mortalidade mater-na evitvel encontra-se concentrada nos grupos de mulheres marginalizadas e so marcadas pela falta de accountability. As recomendaes do CO-MIT no sentido de assegurar o direito da mu-lher maternidade segura e o acesso ateno obsttrica de emergncia adequada, assim como da reduo da mortalidade materna evitvel, po-dem vir a ser adimplidas por meio da implemen-tao da Rede Cegonha e outras polticas pblicas de sade da mulher. Contudo, a despeito de tal avano, entende-se que a Rede Cegonha deve ser aprimorada para que incorpore, de acordo com a ABDH, princpios e comandos de direitos huma-

    nos, a fim de que, efetivamente, seja uma poltica pblica baseada em tais direitos, objetivando res-peit-los, proteg-los e realiz-los. A Rede Cego-nha, que apresenta como um dos seus objetivos a reduo da mortalidade materna, deveria contem-plar, alm de todos os mecanismos operacionais que viabilizam sua existncia, meios de efetivao dos direitos humanos das mulheres, como sua participao nas fases de operacionalizao; aes dos Componentes que abarquem o acesso infor-mao; instrumentos de accountability e medidas especficas para grupos de mulheres vulnerveis.

    5. CONSIDERAES FINAISO Caso Alyne Pimentel a primeira denn-

    cia aceita pelo COMIT que versa sobre morta-lidade materna. A mortalidade materna evitvel uma violao flagrante dos direitos humanos das mulheres, as suas elevadas taxas expem a falncia dos Estados em cumprir suas obrigaes de direitos humanos, notadamente a de realizar o direito ao desfrute do mais alto nvel de sade fsica e mental. Sendo evitvel, a mortalidade ma-terna pode ser enfrentada mediante a adoo de polticas e programas srios e comprometidos, os quais, uma vez operacionalizados devidamente, iro prevenir mortes absolutamente inaceitveis de mulheres. No Brasil, h dados que indicam que as mulheres afrodescendentes e de baixa renda so as que mais morrem em decorrncia de com-plicaes ocorridas durante a gestao ou dentro de perodo determinado aps seu trmino, pois dependem unicamente dos servios de sade ma-terna e reprodutiva providos pelo Estado, os quais muitas vezes no so adequados, como no Caso Alyne Pimentel. No caso do Brasil, reconhece-se que a Rede Cegonha um esforo do Estado brasi-leiro para reverso do quadro atual de mortalidade materna no pas, poltica que pode ser enquadrada como uma das providncias adotadas pelo Esta-do em resposta s recomendaes do COMIT. Entretanto, com fundamento na Abordagem Ba-seada nos Direitos Humanos, conclui-se que o Estado brasileiro ainda tem um largo percurso a ser percorrido, visando incorporao do referen-cial de direitos humanos a suas polticas pblicas de enfrentamento da mortalidade materna. Como exemplo, a Rede Cegonha no conta com instru-mentos de accountability, meios efetivos de par-ticipao das mulheres, recorte de etnia e renda, bem como no assegura o acesso informao para as destinatrias da poltica. Assim, consta-ta-se que a associao entre o enfrentamento da mortalidade materna e o referencial dos direitos humanos ainda no foi acolhida pelos rgos go-

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    Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

    vernamentais brasileiros, em consequncia, sus-tenta-se que a poltica pblica de sade, resposta ao Caso Alyne Pimentel, no suficiente para al-canar mudanas estruturais no sistema de sade pblico do Brasil, o que pressupe a insero do referencial terico-normativo dos direitos huma-nos em sua configurao. O Caso Alyne Pimentel

    paradigmtico, consiste num ponto de inflexo no cenrio internacional e nacional, expondo a ferida social, traduzida no baixo grau de compr o-metimento da cultura sanitria brasileira com os direitos humanos, principalmente dos direitos das mulheres afrodescendentes e pobres.

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    Caso Alyne Pimentel: Uma Anlise Luz da Abordagem Baseada em Direitos Humanos

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    REFERNCIAS

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    Aline Albuquerque S. de Oliveira e Julia Barros Schirmer

    1. A mortalidade materna uma das mais graves violaes dos direitos humanos das mulheres, por ser uma tragdia evitvel em 92% dos ca-sos. (MINISTRIO DA SADE, 2007).

    2. No foi includo o elemento referente har-monizao entre direitos humanos e interes-ses de sade publica por se entender que j es-to contemplados nos Princpios de Siracusa.

    3. Os comits de morte materna so organismos de natureza interinstitucional, multiprofissio-nal e confidencial que visam analisar todos os bitos maternos e apontar medidas de inter-veno para a sua reduo na regio de abran-gncia. Representam, tambm, um importante instrumento de acompanhamento e avaliao permanente das polticas de ateno sade da mulher (MINISTRIO DA SADE, 2007).

    NOTAS

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    Os Indivduos como Sujeitos do Direito Internacional

    I. INTRODUO: BREVES PRECISES PRELIMINARESH muitos anos venho dedicando minhas

    reflexes ao importante tema da personalidade e capacidade jurdicas do indivduo como sujeito do Direito Internacional. Integra um captulo funda-mental do Direito Internacional, que tem passado por uma evoluo considervel nas ltimas dca-das, a requerer assim uma ateno bem maior e mais cuidadosa do que a que lhe tem sido dispen-sada at o presente por grande parte da doutrina jurdica, aparentemente ainda apegada a posies dogmtico-ideolgicas do passado. A consolidao da personalidade e capacidade jurdicas do indiv-duo como sujeito do Direito Internacional cons-titui, como o tenho afirmado em sucessivos foros nacionais e internacionais, o legado mais precioso do pensamento jurdico do sculo XX, e que tem logrado novos avanos no sculo XXI.

    Ao retomar a presente temtica, buscarei re-capitular em resumo os pontos principais de meus trabalhos anteriormente publicados sobre a mat-ria,2 e abordar novos desenvolvimentos, consoan-te o seguinte plano de exposio: examinarei, de incio, a subjetividade internacional do indivduo no pensamento dos autores clssicos, e, a seguir, a excluso do indivduo do ordenamento jurdi-co internacional pelo positivismo jurdico estatal, assim como o resgate do indivduo como sujeito do Direito Internacional na doutrina jurdica do sculo XX, e sua projeo na atualidade.

    Ressaltarei, em sequncia, a atribuio de deveres ao indivduo diretamente pelo Direito Internacional, e a necessidade da legitimatio ad causam dos indivduos no Direito Internacional (subjetividade ativa). Passarei, em seguida, ao estudo da capacidade jurdica internacional do indivduo, concentrando-me nos fundamentos jurdicos do acesso do ser humano aos tribunais

    internacionais de direitos humanos, e sua partici-pao direta no procedimento ante estes ltimos, com ateno especial natureza jurdica e ao al-cance do direito de petio individual. Por ltimo, abordarei os desenvolvimentos pertinentes recen-tes e mais notveis nos sistemas internacionais de proteo da pessoa humana, apresentando enfim minhas reflexes derradeiras sobre a matria.

    Ao longo do presente estudo, referir-me-ei frequentemente aos conceitos de personalidade e capacidade jurdicas no plano internacional. A ttulo de introduo matria, podemos, no pre-sente contexto, entender por personalidade a ap-tido para ser titular de direitos e deveres, e por capacidade a aptido para exerc-los por si mesmo (capacidade de exerccio). Encontra-se, pois, a ca-pacidade intimamente vinculada personalidade; no entanto, se por alguma situao ou circuns-tncia um indivduo no disponha de plena capa-cidade jurdica (para exercer seus direitos por si prprio), nem por isso deixa de ser sujeito de direi-to. Com estas precises preliminares em mente, passo ao exame deste tema recorrente no Direito Internacional, de tanta significao e importncia e de perene atualidade.

    II. O INDIVDUO COMO SUJEITO DO DI-REITO DAS GENTES, NO PENSAMEN-TO DOS AUTORES CLSSICOSAo considerar a posio dos indivduos no

    Direito Internacional, no h que se perder de vis-ta o pensamento dos chamados fundadores do direito das gentes. H que recordar a considervel importncia, para o desenvolvimento do tema, sobretudo dos escritos dos telogos espanhis as-sim como da obra grociana. No perodo inicial de formao do direito internacional era consider-vel a influncia exercida pelos ensinamentos dos grandes mestres, - o que compreensvel, dada

    OS INDIVDUOS COMO SUJEITOS DO DIREITO INTERNACIONAL1

    Antnio Augusto Canado Trindade

    Juiz da Corte Internacional de Justia (Haia); ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Profes-sor Emrito de Direito Internacional da Universidade de Brasilia; Professor Honorrio da Universidade de Utrecht; Membro Titular do Institut de Droit International, do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia e da

    Academia Brasileira de Letras Jurdicas; Presidente Honorrio do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos.

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    Antnio Augusto Canado Trindade

    a necessidade de articulao e sistematizao da matria.3 Mesmo em nossos dias, imprescind-vel ter presentes tais ensinamentos.

    amplamente reconhecida a contribuio dos telogos espanhis Francisco de Vitoria e Francisco Surez formao do Direito Interna-cional. Na viso de Surez (autor do tratado De Legibus ac Deo Legislatore, 1612), o direito das gentes revela a unidade e universalidade do gne-ro humano; os Estados tm necessidade de um sistema jurdico que regule suas relaes, como membros da sociedade universal.4 Foi, no entan-to, o grande mestre de Salamanca, Francisco de Vitoria, quem deu uma contribuio pioneira e decisiva para a noo de prevalncia do Estado de Direito: foi ele quem sustentou, com rara lucidez, em suas aclamadas Relecciones Teolgicas (1538-1539), que o ordenamento jurdico obriga a todos - tanto governados como governantes, - e, nesta mesma linha de pensamento, a comunidade in-ternacional (totus orbis) prima sobre o arbtrio de cada Estado individual.5

    Em sua clebre De Indis - Relectio Prior (1538-1539), advertiu: - (...) No que toca ao di-reito humano, consta que por direito humano po-sitivo o imperador no senhor do orbe. Isto s teria lugar pela autoridade de uma lei, e nenhuma h que tal poder outorgue(...). Tampouco teve o imperador o domnio do orbe por legtima suces-so, (...) nem por guerra justa, nem por eleio, nem por qualquer outro ttulo legal, como pa-tente. Logo nunca o imperador foi senhor de todo o mundo.(...).6 Na concepo de Vitoria, o direito das gentes regula uma comunidade internacional constituda de seres humanos organizados social-mente em Estados e coextensiva com a prpria humanidade; a reparao das violaes de direitos humanos reflete uma necessidade internacional atendida pelo direito das gentes, com os mesmos princpios de justia aplicando-se tanto aos Es-tados como aos indivduos ou povos que os for-mam.7 Decorridos mais de quatro sculos e meio, sua mensagem retm uma notvel atualidade.

    A concepo do jus gentium de Hugo Gro-tius - cuja obra, sobretudo o De Jure Belli ac Pacis (1625), situada nas origens do Direito Interna-cional, como veio a ser conhecida a disciplina, - esteve sempre atenta ao papel da sociedade civil. Para Grotius, o Estado no um fim em si mes-mo, mas um meio para assegurar o ordenamento social consoante a inteligncia humana, de modo a aperfeioar a sociedade comum que abarca toda a humanidade.8 Os sujeitos tm direitos vis--vis o Estado soberano, que no pode exigir obedincia

    de seus cidados de forma absoluta (imperativo do bem comum); assim, na viso de Grotius, a ra-zo de Estado tem limites, e a concepo absoluta desta ltima torna-se aplicvel nas relaes tanto internacionais quanto internas do Estado.9

    No pensamento grociano, toda norma jurdi-ca - seja de direito interno ou de direito das gen-tes - cria direitos e obrigaes para as pessoas a quem se dirigem; a obra precursora de Grotius, j no primeiro meado do sculo XVII, admite, pois, a possibilidade da proteo internacional dos direi-tos humanos contra o prprio Estado.10 Ainda an-tes de Grotius, Alberico Gentili (autor de De Jure Belli, 1598) sustentava, em fins do sculo XVI, que o Direito que regula a convivncia entre os membros da societas gentium universal.11

    H, pois, que ter sempre presente o verda-deiro legado da tradio grociana do Direito Inter-nacional. A comunidade internacional no pode pretender basear-se na voluntas de cada Estado individualmente. Ante a necessidade histrica de regular as relaes dos Estados emergentes, sus-tentava Grotius que as relaes internacionais esto sujeitas s normas jurdicas, e no razo de Estado, a qual incompatvel com a prpria existncia da comunidade internacional: esta lti-ma no pode prescindir do Direito.12 O ser huma-no e o seu bem estar ocupam posio central no sistema das relaes internacionais.13 Nesta linha de pensamento, tambm Samuel Pufendorf (autor de De Jure Naturae et Gentium, 1672) tambm sustentou a sujeio do legislador mais alta lei da natureza humana e da razo.14 Por sua vez, Christian Wolff (autor de Jus Gentium Methodo Scientifica Pertractatum, 1749), ponderava que assim como os indivduos devem, em sua asso-ciao no Estado, promover o bem comum, a seu turno o Estado tem o dever correlativo de buscar sua perfeio.15

    Lamentavelmente, as reflexes e a viso dos chamados fundadores do Direito Internacional (notadamente os escritos dos telogos espanhis e a obra grociana), que o concebiam como um sistema verdadeiramente universal,16 vieram a ser suplantadas pela emergncia do positivismo jurdico, que personificou o Estado dotando-o de vontade prpria, reduzindo os direitos dos seres humanos aos que o Estado a estes concedia. O consentimento ou a vontade dos Estados (o positi-vismo voluntarista) tornou-se o critrio predomi-nante no direito internacional, negando jus standi aos indivduos, aos seres humanos. Isto dificul-tou a compreenso da comunidade internacional, e enfraqueceu o prprio Direito Internacional,

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    Os Indivduos como Sujeitos do Direito Internacional

    reduzindo-o a direito estritamente inter-estatal, no mais acima mas entre Estados soberanos.17 As conseqncias desastrosas desta distoro so sobejamente conhecidas.

    III. A EXCLUSO DO INDIVDUO DO ORDENAMENTO JURDICO INTER-NACIONAL PELAS DISTORES DO POSITIVISMO JURDICO ESTATALA personificao do Estado todo-poderoso,

    inspirada na filosofia do direito de Hegel, teve uma influncia nefasta na evoluo do Direito In-ternacional em fins do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX. Esta corrente doutrinria resistiu com todas as foras ao ideal de emancipa-o do ser humano da tutela absoluta do Estado, e ao reconhecimento do indivduo como sujeito do Direito Internacional. Contra esta posio re-acionria se posicionou, dentre outros, Jean Spi-ropoulos, em luminosa monografia intitulada Lindividu en Droit international, publicada em Paris em 1928:18 a contrrio do que se depreen-dia da doutrina hegeliana, - ponderou o autor, - o Estado no um ideal supremo submisso to s a sua prpria vontade, no um fim em si mesmo, mas sim um meio de realizao das aspiraes e necessidades vitais dos indivduos, sendo, pois, necessrio proteger o ser humano contra a leso de seus direitos por seu prprio Estado.19

    No passado, os positivistas se vangloriavam da importncia por eles atribuda ao mtodo da observao (negligenciado por outras correntes de pensamento), o que contrasta, porm, com sua total incapacidade de apresentar diretrizes, linhas mestras de anlise, e sobretudo princpios gerais orientadores.20 No plano normativo, o positivis-mo se mostrou subserviente ordem legal esta-belecida, e convalidou os abusos praticados em nome desta. Mas j em meados do sculo XX, a doutrina jusinternacionalista mais esclarecida se distanciava definitivamente da formulao hege-liana e neo-hegeliana do Estado como repositrio final da liberdade e responsabilidade dos indivdu-os que o compunham, e que nele [no Estado] se integravam inteiramente.21

    A velha polmica, estril e ociosa, entre mo-nistas e dualistas, erigida em falsas premissas, no surpreendentemente deixou de contribuir aos esforos doutrinrios em prol da emancipa-o do ser humano vis--vis seu prprio Estado. Com efeito, o que fizeram tanto os dualistas como os monistas, neste particular, foi personificar o Estado como sujeito do Direito Internacional.22

    Os monistas descartaram todo antropomorfis-mo, afirmando a subjetividade internacional do Estado por uma anlise da pessoa jurdica;23 e os dualistas - a exemplo de H. Triepel e D. Anzilotti - no se contiveram em seus excessos de caracteri-zao dos Estados como sujeitos nicos do Direito Internacional.24

    Toda uma corrente doutrinria, - do positi-vismo tradicional, - formada, alm de Triepel e Anzilotti, tambm por K. Strupp, E. Kaufmann, R. Redslob, dentre outros, passou a sustentar que somente os Estados eram sujeitos do Direito In-ternacional Pblico. A mesma postura foi adotada pela antiga doutrina sovitica do Direito Interna-cional, com nfase na chamada coexistncia pa-cfica interestatal.25 Contra esta viso se insurgiu uma corrente oposta, a partir da publicao, em 1901, do livro de Lon Duguit Ltat, le droit ob-jectif et la loi positive, formada por G. Jze, H. Krabbe, N. Politis e G. Scelle, dentre outros, sus-tentando, a contrario sensu, que em ltima an-lise somente os indivduos, destinatrios de todas normas jurdicas, eram sujeitos do Direito Inter-nacional (cf. infra).

    A idia da soberania estatal absoluta, que le-vou irresponsabilidade e pretensa onipotncia do Estado, no impedindo as sucessivas atrocida-des por este cometidas contra os seres humanos, mostrou-se com o passar do tempo inteiramente descabida. O Estado - hoje se reconhece - res-ponsvel por todos os seus atos - tanto jure gestio-nis como jure imperii - assim como por todas suas omisses. Criado pelos prprios seres humanos, por eles composto, para eles existe, para a realiza-o de seu bem comum. Em caso de violao dos direitos humanos, justifica-se assim plenamente o acesso direto do indivduo jurisdio interna-cional, para fazer valer tais direitos, inclusive con-tra o prprio Estado.26

    IV. A PERSONALIDADE JURDICA DO INDIVDUO COMO RESPOSTA A UMA NECESSIDADE DA COMUNIDADE INTERNACIONALO indivduo , pois, sujeito do direito tanto

    interno como internacional.27 Para isto tem con-tribudo, no plano internacional, a considervel evoluo nas ltimas dcadas no s do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como do mesmo modo do Direito Internacional Humani-trio. Tambm este ltimo considera as pessoas protegidas no como simples objeto da regula-mentao que estabelecem, mas como verdadeiros

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    Antnio Augusto Canado Trindade

    sujeitos do direito internacional. o que se depre-ende, e.g., da posio das quatro Convenes de Genebra sobre Direito Internacional Humanitrio de 1949, erigida a partir dos direitos das pessoas protegidas (e.g., III Conveno, artigos 14 e 78; IV Conveno, artigo 27); tanto assim que as qua-tro Convenes de Genebra probem claramente aos Estados Partes derrogar - por acordos espe-ciais - as regras nelas enunciadas e em particular restringir os direitos das pessoas protegidas nelas consagrados (I, II e III Convenes, artigo 6; e IV Conveno, artigo 7).28 Na verdade, as primeiras Convenes de Direito Internacional Humanit-rio (j na passagem do sculo XIX ao XX) foram pioneiras ao expressar a preocupao internacio-nal pela sorte dos seres humanos nos conflitos ar-mados, reconhecendo o indivduo como benefici-rio direto das obrigaes convencionais estatais.29

    Com efeito, j h muito vem repercutindo, no corpus e aplicao do Direito Internacional Huma-nitrio, o impacto da normativa do Direito Inter-nacional dos Direitos Humanos: as aproximaes e convergncias dentre estas duas vertentes do Di-reito, e tambm a do Direito Internacional dos Re-fugiados, nos planos tanto normativo como herme-nutico e operacional, tm contribudo a superar as compartimentalizaes artificiais do passado, e a aperfeioar e fortalecer a proteo internacional da pessoa humana - como titular dos direitos que lhe so inerentes - em todas e quaisquer circuns-tncias.30 Assim, o prprio Direito Internacional Humanitrio gradualmente se desvencilha de uma tica obsoleta puramente interest