205
ISSN. 2447-0171 Revista multitemas | n. 06 . setembro - dezembro/2017 DIREITO

Revista multitemas | n. 06 . setembro - dezembro/2017editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2017/01/olhar-diverso-n-6-re... · EDITORIAL Neste sexto número da Revista Olhar Diverso,

  • Upload
    others

  • View
    6

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

C r i a ç ã o

Revi

sta

mul

titem

as |

DIR

EITO

| n.

06

set

.-dez

./201

7

DIREITOS FUNDAMENTAISRoberta Conceição Almeida Nascimento

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVILLuiz Urquiza da Nóbrega Neto

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEMAdriana N. Santos

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIOFelipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTEBárbara Ferreira dos Reis

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIROGeraldo Melo de Oliveira Junior

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: UMA NOVA PERSPECTIVA FRENTE ÀS PRISÕES ARBITRÁRIASCarlos Issac dos Santos

TRANSAÇÃO PENAL: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL FACE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAISJoão Francisco Gagno Campagnaro

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI Nº 11.340/2006Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES Artur Pereira dos Reis Barbosa

ISSN. 2447-0171

Revista multitemas | n. 06 . setembro - dezembro/2017

DIREITO

PROJETO GRÁFICOAdilma Menezes

FOTOGRAFIA DA CAPA: © Roxana Gonzalez | Dreamstime.com

Olhar diverso - Multidisciplinar Revista Multitemas da Criação Editora. n 6. set-dez. 2017. Direito. - Aracaju: Criação, 2017 ISSN. 2447-0171

1. Direito 2. Revista Multitemas. 3. Olhar Diverso (Periódico) I. Olhar Diverso - Multidisciplinar II. Assunto

CDU 340

O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva dos autores.

Catalogação – Claudia Stocker – CRB 5/1202

EDITORJosé Afonso do Nascimento

CONSELHO EDITORIALFábio Alves dos Santos

Universidade Federal de Sergipe

José Eduardo Franco Universidade de Lisboa/ CLEPUL

Luiz Eduardo MenezesUniversidade Federal de Sergipe

Jorge Carvalho do NascimentoUniversidade Federal de Sergipe

José Afonso do NascimentoUniversidade Federal de Sergipe

José Rodorval RamalhoUniversidade Federal de Sergipe

Justino Alves LimaUniversidade Federal de Sergipe

Martin Hadsell do NascimentoUniversidade do Texas, Austin

Rita de Cácia Santos SouzaUniversidade Federal de Sergipe

CONSELHO CIENTÍFICOAcássia Araújo Barreto

Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Tecnologia - NUCA

Lilian Cristina Monteiro FrançaUniversidade Federal de Sergipe

Lucas Aribé AlvesInstituto ILUMINAR

Olhar diversoA revista Olhar diverso é um periodico da Criação Editora que tem o intuito de incentivar a

publicação de resultados de pesquisas nas diferentes áreas do conhecimento. Agrega artigos, resumos

expandidos, resenhas, debates sobre temáticas que encorajem o debate interdisciplinar.

N. 6 | setembro-dezembro/2017

EDITORIAL

Neste sexto número da Revista Olhar Diverso, apresentamos um con-junto de textos selecionados e escritos por jovens pesquisadores, analistas e técnicos do Ministério Público do Estado de Sergipe, que apontam algu-mas das tendências verificadas através de pesquisas em diversas áreas do Direito.

Os Direitos Fundamentais, lançados na constituição de 1988 a condi-ção de cláusulas pétreas, são desmembrados por Roberta Conceição Almei-da Nascimento que defende a proteção jurídica ampla já que são direitos inalienáveis, imprescritíveis, inerentes à natureza humana. Sobre a apli-cação do Novo Codigo Civil, Luiz Urquiza da Nobrega Neto observa que a atual legislação processual civil pátria vem adotando uma nova forma de técnica de julgamento de processos nos tribunais. Fazendo uma abordagem acerca do direito personalíssimo da imagem, Adriana N. Santos revela a incidência de possíveis responsabilizações civis.

O estudo de Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota demonstra “As repercussões no ordenamento por meio das inovações implementadas pela Lei 13.058/2014”, referente ao sempre polêmico tema da guarda comparti-lhada. O Ministério Público, em sua missão de defender os direitos cons-titucionalmente garantidos, na omissão da Administração Pública, dispõe de importantes mecanismos extrajudiciais que são expostos no artigo de Bárbara Ferreira dos Reis.

Os aspectos processuais da Lei Maria da Penha é abordado no artigo de Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade que faz análise da violência doméstica e familiar, confrontando o aspecto criminal com dispositivos da Lei nº 9.099/95, com o Codigo Penal e o Codigo de Processo Penal. A pes-quisa de Artur Pereira dos Reis Barbosa, “Meios preventivos de combate à fraude em licitações”, traz exemplo das mais comuns condutas ilícitas uti-lizadas em licitações públicas e sugere mecanismos de combate preventivo utilizados no exterior, analisando a aplicabilidade destes no ordenamento jurídico brasileiro.

“Transação penal: uma abordagem constitucional face aos princípios constitucionais” é o artigo de João Francisco Gagno Campagnaro que apre-senta uma análise do instituto da transação penal na esfera dos Juizados Especiais Criminais, regulado pela Lei n° 9.099/1995, limitando-se a uma visão constitucional consubstanciado aos princípios processuais. Ainda sobre o enfoque do Direito Penal dois artigos instigantes completam esta coletânea: “A valoração probatoria do hearsay testimony à luz do direito processual penal brasileiro”, por Geraldo Melo de Oliveira Junior e o tema atual, “Audiência de custodia: uma nova perspectiva frente às prisões arbi-trárias” é o artigo de Carlos Issac dos Santos.

A Criação Editora vem cumprindo o seu papel de divulgar estudos cien-tíficos, fomentando o debate e instaurando algumas possibilidades críticas analíticas acerca da ciência jurídica brasileira. Com apenas cinco edições inauguramos o reconhecimento das nossas publicações, com o registro da nossa Revista Olhar Diverso na lista de publicações avaliadas pela Capes. A classificação “Qualis C” sinaliza que estamos, embora embrionária, seguin-do em direção das maiores publicações científicas do país.

Boa leitura!

Ana Menezes

SUMÁRIO

5 EDITORIAL

9 DIREITOS FUNDAMENTAIS Roberta Conceição Almeida Nascimento

23 INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

45 A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM Adriana N. Santos

61 APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

85 O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

Bárbara Ferreira dos Reis

101 A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

Geraldo Melo de Oliveira Junior

117 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: UMA NOVA PERSPECTIVA FRENTE ÀS PRISÕES ARBITRÁRIAS

Carlos Issac dos Santos

135 TRANSAÇÃO PENAL: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL FACE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

João Francisco Gagno Campagnaro

157 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI Nº 11.340/2006

Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

183 MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

Artur Pereira dos Reis Barbosa

201 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Roberta Conceição Almeida Nascimento

Analista do Ministério Público de Sergipe. Tem pos-graduação lato sensu em Direito Constitucio-nal pela Universidade do Sul da Santa Catarina em 02/02/2009.

DIREITOS FUNDAMENTAIS

RESUMOOs direitos fundamentais possuem um embrião na Antiguidade, o Antigo testamento já consagrava preceitos de éticos da igualdade entre os homens e o respeito à pessoa humana. No direito moderno, os direitos fundamentais estão intimamente ligados a Democracia e a defesa do homem contra o Estado. Diante do mundo globalizado os direitos fundamentais buscam de modo mais concreto tais direitos, em uma constante tentativa de adaptar as novas noções de comunidade. A Constituição Federal de 1988, editada depois do período do regime militar, tratou dos direitos fundamentais em todo os seu texto, mas especialmente apos o preâmbulo como uma forma de como parâme-tros hermenêuticos para toda ordem constitucional e jurídica vigente. Além disso, eles foram colocados sob o manto das cláusulas pétreas e como tais por conseguinte for-mam um núcleo de direitos intocáveis, imutáveis, consagrando proteção suprema que impede qualquer forma de restrição pelo constituinte derivado. O que parece inques-tionável sobre esse tema é que eles são direitos que são inalienáveis, imprescritíveis, inerentes à natureza humana, sobre os quais deve ser dada proteção jurídica.

ABSTRACTFundamental rights have an embryo in antiquity, the Old Testament already ensh-rined ethical precepts of equality between men and respect for the human person. In modern law, fundamental rights are closely linked to democracy and the defense of man against the state. In the face of the globalized world, fundamental rights seek these rights more concretely, in a constant attempt to adapt the new notions of community. The Federal Constitution of 1988, edited after the period of the military regime, dealt with fundamental rights throughout its text, but especially after the preamble as a way of as hermeneutical parameters for all constitutional and legal order in force. Moreover, they were placed under the cloak of the stony clauses and as such therefore form a nucleus of untouchable, immutable rights, enshrining supreme protection which prevents any form of restriction by the derived consti-tuent. What seems unquestionable about this theme is that they are rights that are inalienable, imprescriptible, inherent in human nature, on which legal protection must be given.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

10 Roberta Conceição Almeida Nascimento

1. IDEIAS PARA A FORMAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A essência dos direitos fundamentais reside na ideia da proteção à dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem.

O embrião desses postulado pode ser apreendido basicamente dos ensinamentos advindas da Antiguidade através de documentos que mesclavam preceitos jurídicos, morais e religiosos. O maior exem-plo, pode ser aferido no Antigo Testamento da Bíblia, em que dispõe os preceitos fundaram a religião judaica basearam-se em preceitos éticos da igualdade entre os homens e o respeito à pessoa humana. Os greco-romanos inspirados nos ideais humanísticos tinham a crença na fraternidade dos homens eram livres e dotados de individualida-de. Na Idade Média, os teoricos ao repudiarem o poder absoluto dos governantes, sustentavam a ideia de que toda autoridade encontra-se limitada pelas regras promanadas no ordenamento divino em que os homens eram iguais e livres (LEWANDOWSKI, 2005, p. 168-171).

A base para a doutrina que proclamou as primeiras declarações escritas sobre os direitos fundamentais, em meio às revoluções libe-ral-burguesas, foram construídas a partir de ideias iluministas, jus-naturalistas e contratualistas dos séculos XVII e XVIII. O iluminismo foi tomado como ponto de partida, por considerar o homem em seu estado natural antes do seu ingresso na vida social, com a valorização do espírito crítico e a fé na ciência, considerando que os direitos fun-damentais por sua vez são inalienáveis e imprescritíveis e que estão acima da vontade dos governantes, sendo Descartes, Leibniz, Berke-ley e Hume os principais teoricos dessa corrente. Para os jusnatura-listas e contratualistas existiam direitos naturais, eternos, absolutos, que seriam válidos para todos os homens e todos os tempos e lugares sendo que a principal função do Estado seria assegurar a fruição des-ses direitos. Os principais nomes dessa corrente foram Hobbes, Locke e Rousseau. Lewandowski destacou as principais ideias anunciadas por esses teoricos:

11

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Hobbes, por exemplo, em meados do século XVII, dizia que o

Estado – identificado por ele com um monstro bíblico, o Leviatã,

- foi criado pelos homens com a exclusiva tarefa de garantir a

segurança, de maneira a superar as situações de “guerra de todos

contra todos”, que imperava na natureza, onde o “homem é o lobo

do próprio homem”. Já Locke, que escreveu o Second Treatise on

Civil Government (1689), o Estado foi estabelecido mediante um

contrato, com o único objetivo de assegurar o direito à vida, à

liberdade e à propriedade. Numa outra linha, Rousseau, em seu Du

Contrat Social, redigido quase um século depois (1768), enfatizava

a igualdade de todos diante do pacto social (2005, p. 173).

A noção dos direitos fundamentais do ponto de vista ocidental perpassa pela ideia de democracia, em que o povo escolhe os seus representantes que exercerão o poder por ele delegado, mas sujeito a limitações, daí o porquê da concepção dos direitos fundamentais está ligada a defesa do homem contra o Estado.

2. CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O conceito de direitos fundamentais depende do momento his-torico-social em que ele será desenvolvido, mas uma das principais ideias que norteiam esse conceito é que existem direitos que são ina-lienáveis, inerentes à natureza humana, sobre os quais deve ser dada proteção jurídica.

Para Hesse, em uma concepção lata, os direitos fundamentais criam e mantêm pressupostos elementares de uma vida na liberdade e dignidade humana, já em uma concepção mais restrita, os direi-tos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tal (apud, BONAVIDES, 2001, p. 514).

Carl Schmitt considerou que os direitos fundamentais são todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no texto constitu-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

12 Roberta Conceição Almeida Nascimento

cional, recebendo deste diploma legal o mais elevado grau de garantia ou de segurança (apud, BONAVIDES, 2001, p. 515).

Canotilho definiu os direitos fundamentais como aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera constitucional positiva determinado Estado (apud, SARLET, 1998, p. 31).

3. DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS ORDENAMENTOS

A positivação dos direitos fundamentais nos ordenamentos ju-rídicos através das constituições escritas decorre da dialética entre o progressivo desenvolvimento do direito positivo e a divulgação da ideologia liberal. Os primeiros diplomas constitucionais assumiram um caráter de declarações e impuseram a todos - inclusive ao Estado - a observância e a conservação dos direitos nelas proclamados.

A Inglaterra, em 1215, com a promulgação a Magma Carta pelo Rei João Sem-Terra, consagrou os direitos dos barões e prelados in-gleses, alijando a massa da população do acesso aos direitos con-sagrados no pacto. Mas esse diploma teve seus méritos, posto que serviu de referência para outras legislações, como a Petition of Right (1628), forçou o Rei Carlos I a respeitar os direitos imemoráveis dos cidadãos ingleses; o Habeas Corpus act (1679), que impedia as pri-sões arbitrárias, sendo um marco na luta pela liberdade; e o Bill of Right (1689), que previa que as eleições do parlamento estariam li-vres, que o rei não podia revogar as leis feitas pelo parlamento, proi-bia as fianças excessivas e as penas cruéis ou incomuns, entre ou-tras medidas que resguardavam os direitos dos cidadãos (RAMOS, 2005, p. 740-741).

Os ideais do movimento inglês influenciaram as colônias da América do Norte, a Virgínia em 1776, antes mesmo da independên-cia dos Estados Unidos, proclamou a primeira Declaração de Direitos, que marca a transição dos direitos legais ingleses para os direitos fun-damentais constitucionais refletindo o pensamento iluminista com

13

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

DIREITOS FUNDAMENTAIS

destaque para o direito natural. Posteriormente, outras ex-colônias americanas aprovaram declarações semelhantes.

Segundo Bonavides, as declarações inglesas e americanas ga-nharam concretude, porém dirigia-se a uma camada social privile-giada (barões feudais) ou a um povo que se libertava politicamente. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, 1789, tinha como destinatário o gênero humano, em caráter univer-sal (2001, p. 516).

Os direitos proclamados pela declaração francesa foram fruto da revolução que ocasionou a ruptura de um regime. Inspirada nos direi-tos naturais, reconheceu os direitos fundamentais como inalienáveis, invioláveis e imprescritíveis que emanavam as ideias de que todos os homens nascem livres e iguais em direitos, que as sociedades políti-cas devem manter os direitos humanos inalienáveis (a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistência contra as opressões), e que a liberdade consiste em cada um poder praticar aquilo que não preju-dique os outros.

A Revolução Russa, de 1917, buscou instituir uma nova concep-ção social, o Estado Socialista, em que o homem não seria explorado por ele proprio assegurando assim a todos os homens uma vida com-patível com a dignidade da pessoa humana a fim de implementar uma sociedade sem classes.

Em meio a uma situação degradante dos operários da Alemanha apos a primeira guerra mundial, foi aprovada a Constituição de Wei-mar, em 1919, um marco no constitucionalismo social, posto que além de inserir clássicos direitos fundamentais, introduziu uma série de direitos fundados na justiça, na liberdade de contratação, na moe-da forte, na proteção à mão de obra (FIGUEREDO, 2001, p. 147).

Depois das atrocidades cometidas durante a segunda guerra mun-dial, percebe-se que não basta proteger os direitos fundamentais, o mais importante seria evitar a sua violação. Exemplos de documen-tos que formalizam esse posicionamento: a Carta das Nações Unidas

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

14 Roberta Conceição Almeida Nascimento

de 1945, que se destinava a fornecer as bases para a paz mundial; a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela ONU em 1948, que consolidou uma nova fase dos direitos fundamentais caracterizada pela universalidade não so para os seres humanos, mas também para os Estados com uma nítida aproximação ao Direito In-ternacional, a ONU editou inúmeros documentos que estabelecem de modo mais concreto esses direitos em uma constante tentativa de adaptar os direitos fundamentais as novas noções de comunidade.

4. GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Tradicionalmente, os direitos fundamentais são classificados em três gerações sucessivas de acordo com uma ordem historica.

De acordo com os ensinamentos de Bobbio “os direitos de pri-meira, segunda, da terceira e da quarta geração gravitam em torno dos três postulados básicos da Revolução Francesa, quais sejam, a liberdade, a igualdade e a fraternidade” (apud, SARLET, 2001, p. 56).

Os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) são os primeiros direitos a constarem nos instrumentos normativos constitucionais, representando a positivação dos direitos naturais de inspiração individualista. Foram consagrados pelo constitucio-nalismo ocidental expresso primeiramente na Declaração dos Di-reitos da Virgínia em 1776, na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América no mesmo ano, na Declaração dos Di-reitos do Homem e do Cidadão da França em 1789. Realçam os princípios da liberdade tendo como titulares os indivíduos. Segun-do a classificação de Jellinek, assumem o status negativus, posto que são dirigidos a uma conduta de abstenção por parte do Estado em que se ressalta na ordem dos valores políticos a separação en-tre a sociedade e o Estado, o direito de defesa, à vida, à liberda-de, à propriedade e à igualdade perante a lei (BONAVIDES, apud JELLINEK, 2001, p. 517).

15

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Embora o indivíduo estivesse protegido do arbítrio do Estado apos a consagração dos direitos civis e políticos ainda estava des-guarnecido em relação ao sistema econômico que se instaurou apos a Revolução Industrial, bem como os graves problemas sociais que com ela advieram. Surgem os direitos da segunda geração para dar solução aos problemas sociais, econômicos e culturais em resposta à ideolo-gia liberal e o modo a buscar resguardar o princípio da igualdade real. Os documentos pioneiros dessas ideias foram a Constituição Mexi-cana, de 1917, a Declaração do Homem Trabalhador e Explorados da União Soviética, em 1918, e a Constituição de Weimar de 1919. Os direitos de segunda geração, para Figueiredo “tornam reais os direitos formais”, posto que entre as principais garantias destaca-se: o acesso aos meios de vida e de trabalho, um salário mínimo, duração máxima da jornada de trabalho, amparo à doença, velhice invalidez, morte, garantia à educação e a cultura, sindicalização, greve, repouso sema-nal remunerado (2001, p. 149).

Seguem os direitos da terceira geração que se assentam nos direi-tos de fraternidade e solidariedade. Os direitos fundamentais advin-dos dessa geração possuem um alto teor de humanismo e universa-lidade. Destina-se a proteger o indivíduo em sua singularidade, mas em grupos humanos (família, povo, nação).

Vasak identificou cinco direitos da terceira geração: o direito ao

desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o

direito à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade

e o direito de comunicação (apud, BONAVIDES, 2001, p. 523).

A clássica divisão dos direitos fundamentais em três gerações esbarra na tendência da globalização política e econômica que se desenvolve atualmente e fez com que alguns doutrinadores se po-sicionassem no sentido de constituir uma quarta geração de direitos fundamentais. Para esses teoricos os direitos de quarta geração esta-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

16 Roberta Conceição Almeida Nascimento

riam relacionados ao direito de democracia que se sustenta na infor-mação e no pluralismo das relações de convivência.

Jorge Miranda crítica a utilização do termo geração dos direitos fundamentais pelas seguintes razões:

(...) o termo geração de direitos, afigura-se enganador por sugerir

uma sucessão de categorias de direitos, umas substituindo-se às

outras – quando, pelo contrário, o que se verifica em Estado

social de direito é um enriquecimento crescente em respostas

às novas exigências das pessoas e das sociedades. (2005, p. 203)

Na realidade a ideia que se pretende ao dividir os direitos fun-damentais em gerações é a tradução de um processo quantitativo e qualitativo para uma universalidade material e concreta dos direitos.

5. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

No Estado constitucional a aplicabilidade efetiva dos direitos fundamentais passa a ser considerada condititio sine qua non para o de Estado Democrático de Direito. Na evolução dos direitos funda-mentais descritos nos topicos anteriores contata-se que eles transmu-daram da função originária de instrumentos de defesa das liberdades individuais e se tornaram o fundamento material que norteia todo or-denamento jurídico, na medida em que institui que os orgãos estatais possuem uma atuação delimitada, ou seja, programada e controlada assegura os parâmetro do Estado Democrático de Direito. Pérez Luño descreve com eficiência a íntima relação entre os direitos fundamen-tais e o Estado Democrático de Direito:

Existe um estreito nexo de independência genético e funcional

entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez

17

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

DIREITOS FUNDAMENTAIS

que o Estado de Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia

dos direitos fundamentais, ao passo que exigem e implicam

para a sua realização, o reconhecimento e a garantia do Estado

de Direito (apud, SARTLET, 1998, p. 61).

Os direitos fundamentais podem ser considerados simultanea-mente pressupostos, instrumentos e garantias para a concretização dos valores da igualdade, liberdade, fraternidade e da democracia. O alcance desses elementos é imprescindível para resguardar o Estado Democrático de Direito.

A democracia é o governo do povo. O exercício da democracia de maneira direta como realizado durante a Grécia Clássica não pode mais ser exercido, tanto por questões de ordem fática (impossibilida-de de reunir todo o povo para deliberar sobre determinado assunto) bem como em virtude da complexidade das atuais relações sociais. Por essa razão o constitucionalismo moderno tem implementado conjuntamente a democracia representativa e semidireta, em que fica assegurado que o poder emana do povo, que de forma pragmática impõe algumas limitações como a tripartição dos poderes cuja noção se desenvolve conjuntamente com as ideais dos direitos fundamen-tais. Na democracia representativa o povo concede a alguns cidadãos a condição de representantes para que externem a vontade popular (DALLARI, 2001, p. 155). A democracia semidireta permite a con-sulta direta aos cidadãos sobre determinado assunto, a Constituição Federal elencou no art. 14, as hipoteses de exercitar essa forma de democracia através: a) plebiscito que constitui uma consulta prévia sobre a opinião popular sobre determinada matéria, a depender do resultado posteriormente poderá ser discutida pelo Congresso Nacio-nal; b) referendo constitui em uma consulta posterior sobre determi-nado ato governamental para ratifica-lo concedendo eficácia ou re-voga-lo retirando do mundo jurídico; c) iniciativa popular é exercida com a apresentação de um projeto de lei à Câmara dos Deputados

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

18 Roberta Conceição Almeida Nascimento

subscrito, por no mínimo, um por cento do eleitorado distribuído, em pelo menos, cinco Estados com não menos de três décimos por cento dos eleitores em cada um deles (MORAES, 2002, p. 237, 533).

6. DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CONSTITUCIONALISMO PÁTRIO

A Carta Magma de 1988 foi antecedida de um período marcado pelo intenso autoritarismo (regime militar), e em virtude desse pre-cedente o constituinte demonstrou sua reação através das manifes-tações sociais e políticas contidas no texto constitucional, gerando inovações significativas nos direitos fundamentais.

A desconfiança do legislador infraconstitucional fez com que o constituinte originário salvaguardasse uma série de reinvidicações e conquistas em um extensivo título sobre os direitos fundamentais. Até mesmo por uma questão topográfica, como salienta Sarlet, iden-tifica-se a importância dada aos direitos fundamentais, posto que fo-ram colocados apos o preâmbulo, podendo ser considerados como parâmetros hermenêuticos para toda ordem constitucional e jurídica (1998, p. 69).

O rol dos direitos fundamentais está sob o Título II que assim dis-pôs “dos direitos e garantias fundamentais” contemplando em seus cinco extensos capítulos os direitos fundamentais de todas as gerações.

De acordo com o §1o do art. 5o da CF os direitos e garantias fun-damentais constituem normas jurídicas de aplicabilidade imediata. O §2o do mesmo artigo outorga aos tratados internacionais em que o Brasil seja parte integram as garantias e os direitos fundamentais, para que passem a integrar a ordem constitucional na qualidade de emendas constitucionais. A Emenda n° 45/2004 acrescentou o §3o que possibilitou que as convenções e os tratados internacionais fos-sem aprovados em dois turnos, em cada casa do Congresso Nacional, por três quintos de votos.

Diante das conquistas obtidas historicamente na seara dos direi-

19

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

DIREITOS FUNDAMENTAIS

tos fundamentais Canotilho aponta a necessidade de uma especial proteção de cunho formal e material. A proteção formal está relacio-nada à preponderância dos direitos fundamentais do ordenamento jurídico e serem submetidas a limites para integração ao sistema; a proteção material diz respeito à impossibilidade de reformas (apud, SARLET, 1998, p. 78).

A Constituição Federal de 1988, através das chamadas cláusulas pétreas (art. 60, §4o, IV da CF), entendeu que os direitos fundamentais formam um núcleo de direitos intocáveis, imutáveis, consagrando a eles uma proteção suprema que impede qualquer forma de restrição pelo constituinte derivado.

7. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Em geral, as normas constitucionais são dotadas de certo grau de aplicabilidade. José Afonso da Silva criou uma tradicional classifica-ção para a eficácia das norma constitucionais, em que se identifica: a) norma constitucionais de eficácia plena – seriam aquelas que desde a entrada em vigor da constituição podem produzir os seus efeitos; b) normas constitucionais de eficácia contida – são aquelas que tratam de interesses relativos a determinadas matérias, deve o poder público estabelecer leis que fixem os seus liames; c) normas de eficácia limi-tada – são aquelas que apresentam aplicabilidade indireta, necessita de uma normatividade ulterior que lhe dê aplicabilidade (apud, MO-RAES, 2002, p. 41).

Através de uma análise dos direitos fundamentais conforme as gerações, compreende-se que os direitos individuais, isto é, os di-reitos civis e políticos, são normas que implicam em uma conduta negativa por parte do Estado que é protegido por uma série de garan-tias bem definidas. O indivíduo que se sentir ofendido dessa gama de direitos poderá recorrer ao judiciário, utilizando-se dos remédios processuais adequados para fazer cessar a violação, visto que são

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

20 Roberta Conceição Almeida Nascimento

normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Os direitos so-ciais, econômicos e culturais dependem, em regra, da ação positiva do Estado para a sua concretização, e a sua satisfação é muito mais política que jurídico-processual. A proteção a tais direitos de tercei-ra geração é ainda mais complexa, posto que versam sobre direitos difusos de titularidade coletiva a eficácia atrelada a ações políticas (LEWANDOWSKI, 2005, p. 177).

A Constituição Federal garantiu no art. 5o, §1o da CF que os di-reitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata. Acontece que esses direitos possuem uma “multifuncionalidade” (SARLET, 1998, p. 234), ou seja, possuem um rol bastante abrangente o que ocasiona uma certa dificuldade na aplicação de tal dispositivo constitucional.

De acordo com a organização topográfica do art. 5o, §1o da CF, ele está contido no Título II que trata sobre os direitos e das garantias fun-damentais inserido no Capítulo I que versa sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, a estes direitos é clarividente a aplicabilidade imediata da sua eficácia. Porém existem outras normas contidas no proprio Título II, como em outras partes do texto constitucional e até mesmo os tratados internacionais que foram recepcionados pelo Brasil que são considerados direitos fundamentais e sobre estes se discute a aplicabilidade imediata.

Em nenhum momento o texto constitucional evidenciou qual-quer tipo de distinção entre os direitos fundamentais, assim o art. 5o, §1o da CF consagra a aplicabilidade aos direitos e garantias fun-damentais, mesmo diante de posicionamentos diversos, a maioria da doutrina tem adotado a interpretação de que o art. 5o, §1o da CF abrange todos os direitos fundamentais consagrados na Lei Maior e nos tratados internacionais recepcionados pelo Brasil (SARLET, 1998, p. 236-237).

Foram consagrados expressamente pelo constituinte de 1988 uma variada gama de direitos fundamentais, tendo como base de sustenta-ção o art. 5o, §1o da CF, constituindo normas de cunho inequivocamen-

21

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

DIREITOS FUNDAMENTAIS

te principiologico, considerado como um mandado de otimização de modo que os poderes legislativo, executivo e judiciário reconheçam a eficácia imediata dos direitos fundamentais.

Todas as normas constitucionais são dotadas de uma mínima efi-cácia, mas aos direitos fundamentais foi outorgada a presunção da aplicabilidade imediata, posto que a Lei Fundamental agregou um plus para a concretização dos preceitos dispostos nos direitos funda-mentais qual seja a aplicabilidade imediata, negar tal condição signi-ficaria a propria negativação da fundamentalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Ma-lheiros, 2001.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Lisboa: Almedina, 1999.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

FIGUEREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 31-39.

LEWANDOWISKI, Enrique Ricardo. A formação da doutrina dos direitos fundamentais. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferrei-ra; TAVARES, André Ramos (Coord.). Lições de Direito Constitucional em Homenagem ao jurista Celso Bastos. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Direito constitucional. Vol. 5. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

MIRANDA, Jorge. Estado social e direitos fundamentais. In: Doutrina do Su-perior Tribunal de Justiça: Edição comemorativa – 15 anos. Brasília, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

RAMOS, Dircêo Torrecillas. A formação da doutrina dos direitos fundamen-tais. A forma do Estado e a proteção dos direitos: opção pelo federalismo.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

22 Roberta Conceição Almeida Nascimento

In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; TAVARES, André Ramos (Coord.). Lições de Direito Constitucional em Homenagem ao jurista Celso Bastos. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005

SARLET. Ingo Wolfgang. Eficácia dos Direitos Fundamentais, A. 3 Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

Graduado em Direito pelo UNIPE – Centro Universitário de João Pessoa. Pos-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Guanambi. Analista de Direito do Ministério Público do Estado de Sergipe.

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

RESUMOAinda que o Brasil possua um sistema jurídico essencialmente construído espelhado na Civil Law, é possível constatar que a atual legislação processual civil pátria vem adotando uma nova forma de técnica de julgamento de processos nos tribunais, que se assenta na relevância do caso concreto, a partir da análise da repercussão social e do interesse público. Essa técnica, intitulada de Incidente de Assunção de Competência, em muito se assemelha ao sistema do Common law, estreitando suas relações com o stare decisis e aproximando cada vez mais o ordenamento brasileiro do sistema britânico. No Novo Codigo de Processo Civil fica fácil de se perceber a proximidade dos fundamentos do Com-mon law e do stare decisis com o instituto acima citado, objetivando privilegiar a busca pela uniformização e estabilização da jurisprudência e garantir a efetividade do processo.Palavras-chave: Common Law. Stare Decisis. Incidente de Assunção de Competência. Novo Codigo de Processo Civil. Uniformização e estabilização de jurisprudência.

ABSTRACTAlthough Brazil possesses an essentially constructed legal system mirrored in the Civil Law, it is possible to verify that the current civil procedural law of the country has adopted a new form of technique of trial of proceedings in the courts, which is based on the relevance of the concrete case, from The analysis of social repercus-sions and the public interest. This technique, titled Incident of Assumption of Com-petence in much resembles the system of Common law, narrowing its relations with the stare decisis and approaching more and more the Brazilian order of the British system. In the New Code of Civil Procedure, it is easy to perceive the proximity of the Common Law and the stare decisis foundations with the aforementioned institute, with the aim of favoring the search for the standardization and stabilization of juris-prudence and guaranteeing the effectiveness of the process.Keywords: Common Law. Stare Decisis. Incident of Assumption of Competence. New Code of Civil Procedure. Uniformization and stabilization of jurisprudence.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

24 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

1 INTRODUÇÃO

Há muito se busca no Brasil soluções para dirimir o grave proble-ma do excesso de demandas em massa, ditas coletivas, com grande repercussão social, envolvendo idênticas questões de direito. O Novo Codigo de Processo Civil, visando de alguma forma mitigar essa pro-blemática, trouxe consigo alguns novos institutos, técnicas proces-suais, a exemplo do ora estudado Incidente de Assunção de Compe-tência, previsto no art. 947 do diploma legal suso citado. Vejamos a redação:

Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o

julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de

competência originária envolver relevante questão de direito,

com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos

processos.

Trata-se, portanto, de uma nova técnica processual de julgamento de processos nos tribunais, que se assenta na relevância do caso con-creto, a partir da análise da repercussão social e do interesse público envolvidos na hipotese concreta.

Em oportuno, é importante registrar que o Incidente de Assunção de Competência não se imiscui obrigatoriamente no âmbito das de-mandas em massa, também não se trata de uma medida apartada, de um novo processo ou de um recurso. Nos dizeres de Rodrigo Becker e Victor Trigueiro, em artigo publicado na internet, temos que o Inci-dente de Assunção de Competência é:

Tão somente de uma dinâmica diferenciada de julgamento,

chamada de incidente, porque ocorrerá a partir de um impulso

de um dos seus legitimados, no curso de um processo em

tramitação no Tribunal.

25

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Esse impulso será processado como um incidente, nos proprios

autos, e, caso admitido, será julgado na forma determinada pelo

art. 947, § 1º, do CPC/15, que estabelece que tal julgamento

ocorra no orgão colegiado indicado pelo regimento interno dos

tribunais.

Com o brilhantismo de sempre, o Professor Alexandre Freitas Câ-mara, traz um otimo exemplo acerca da matéria, litteris:

Pense-se, por exemplo, na interpretação dos requisitos para a

desconsideração da personalidade jurídica. Esta é uma questão de

direito que pode surgir em processos completamente diferentes,

muito distantes de qualquer tentativa de caracterização das

demandas repetitivas. Basta pensar na possibilidade de se ter

suscitado questão atinente ao preenchimento dos requisitos da

desconsideração da personalidade jurídica em uma execução

de alimentos devidos por força de relação familiar e em outro

processo em que se executa dívida de aluguel garantida por

fiança. Estas duas demandas não são, evidentemente, repetitivas,

mas a questão de direito que nelas surgiu é a mesma: quais os

requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica nas

causas em que incide o disposto no art. 50 do Codigo Civil.

Idealize, outrossim, “o julgamento que envolva a alteração de um registro de nascimento para a mudança de sexo, de feminino para masculino, depois de realizada cirurgia de redesignação sexual. Este julgamento, apesar de ser de um caso isolado, aparenta ser de grande importância para a sociedade, diante da evolução da consciência mo-ral que a condição do gênero não pode se dissociar da dignidade da pessoa humana. O relator, ao apreciar o recurso, poderá, ou mesmo deverá, tratando-se de uma relevante questão de direito e tenha re-percussão social, determinar da instauração do incidente de assunção

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

26 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

de competência. Uma vez que a decisão do Tribunal terá o condão de servir como precedente para outras situações idênticas, deverá ela ser proferida por um orgão colegiado maior. Entendendo este orgão que não se pode vedar a alteração de registro de nascimento, esta decisão será um precedente, que vinculará todos os juízes e orgãos fracioná-rios daquele tribunal” (MARCOS JOSÉ PORTO SOARES).

Apenas por esses exemplos suso citados, vemos que o Incidente de Assunção de Competência é um incidente processual destinado a conferir uma melhor formação e estabilização jurisprudencial, e que certamente ajudará em muito o nosso sistema processual.

2. O COMMON LAW E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES POR MEIO DA TÉCNICA DO INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA DO NCPC

O Codigo de Processo Civil de 2015 trouxe consigo novos institu-tos, e manteve algumas técnicas de vinculação das decisões, sejam os precedentes ou equiparados, aproximando ainda mais o nosso siste-ma processual civil do sistema britânico da common law.

O poder de vinculação do acordão proferido em um incidente de assunção de competência está previsto em diversos dispositivos do NCPC.

O § 3º do artigo 947, assinala que: “Art. 947. § 3º O acordão profe-rido em assunção de competência vinculará todos os juízes e orgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.”

Não apenas o Incidente de Assunção de Competência possui for-ça vinculante, mas também outros institutos do codigo processual civil foram igualmente abarcados por este efeito, quais sejam: a) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; b) os enunciados das súmulas vinculantes; c) os acordãos em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e em julgamento de recursos extraordinários e repetitivos; d) os enun-

27

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

ciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria consti-tucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitu-cional; e, e) as orientações do plenário ou do orgão especial aos quais estiverem vinculados.

Assim é a redação do Art. 927 do NCPC:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle

concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acordãos em incidente de assunção de competência

ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de

recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal

em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em

matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do orgão especial aos quais

estiverem vinculados.

Noutro ponto, boa parte da doutrina entende que o incidente de assunção de competência é a técnica que mais se aproxima daquela em que se cria um precedente no sistema common law, se comparado com os demais institutos assemelhados pátrios. Assim é a visão do professor Marcos José Porto Soares, que aduz o seguinte:

Ousa-se dizer, como forma de exaltar a sua importância, que

o incidente de assunção de competência, em comparação com

os demais institutos vinculantes acima dispostos,. É a única

técnica vinculante, entre as outras do nosso sistema processual,

em que há o julgamento de um caso concreto isolado (e não

apenas formação de teses jurídicas), o que é condição sine qua

non para a formação de um precedente. Além do mais, todos os

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

28 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

outros elementos de formação de um precedente, como a não

derrogação via overrulling, e o respeito a posição hierárquica

do orgão que emana a decisão - a chamada força vertical -, estão

presentes como requisitos para a formação e aplicação de uma

decisão no incidente de assunção de competência.

Uníssona a orientação doutrinária no sentido de que há obriga-toriedade de se ter um caso concreto e específico a ser julgado, e não apenas de fixação ou enunciado da tese relativa à “relevante questão de direito”, e assim é o entendimento de renomados processualistas a exemplo de Cassio Scarpinella Bueno.

Essa peculiaridade, intrínseca ao instituto do IAC ora estudado, é o que o difere em relação as demais técnicas de formação de decisões vinculantes.

O Jurista Júlio César Rossi, quando se refere ainda a outros gran-des doutrinadores, aduz o seguinte:

Podemos, desde logo, perceber que nosso modelo de precedentes

(Súmula vinculante, Recurso Extraordinário com repercussão

geral, Recurso Especial repetitivo e o IRDR) difere, em muito,

do genuíno precedente estadunidense ou inglês, como já

asseveramos neste trabalho, bem como indicam Humberto

Theodoro Júnior, Dierle Nunes, Alexandre Melo Franco Bahia e

Flávio Quinaud ao analisarem os fundamentos do Novo CPC à

luz das particularidades ínsitas à nossa tradição do civil law se

comparadas ao common law.

Por conta disto, ou seja, do julgamento efetivo de um caso es-pecífico e concreto, com a explicitação de uma ratio decidendi, para formação dos precedentes é que corretamente a doutrina as-severa ser esse sistema do IAC o que mais se aproxima do sistema do common law.

29

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Note-se que isto não acontece quando estamos tratando da cria-ção das súmulas vinculantes (normas abstratas e genéricas), das orientações jurisprudenciais, e do incidente de resolução de deman-das repetitivas.

3 DISTINÇÃO ENTRE O INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA DO NOVO CPC E O ART. 555, §1° DO CPC DE 1973

Para iniciarmos o estudo comparativo entre as duas normas, me-lhor começar a tecer alguns comentários sobre a mais antiga (e agora não mais vigente) regra preceituada no art. 555, §1° do diploma pro-cessual civil vetusto. Vejamos:

Art. 555, § 1º. Ocorrendo relevante questão de direito, que

faça conveniente prevenir ou compor divergência entre

câmaras ou turmas do tribunal, poderá o relator propor seja o

recurso julgado pelo orgão colegiado que o regimento indicar;

reconhecendo o interesse público na assunção de competência,

esse orgão colegiado julgará o recurso. (CPC 1973)

Notemos que naquele diploma pretérito, exigia-se apenas a “rele-vante questão de direito” como requisito para se suscitar o incidente, fato que, a posteriori, veremos a sua distinção na legislação atual.

Já o atual CPC de 2015 pede para que esta relevante questão de di-reito seja capacitada pela “repercussão social” e ainda expressamente o aparta das hipoteses em que há repetição em múltiplos processos. Vejamos:

DO INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA

Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o

julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de

competência originária envolver relevante questão de direito,

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

30 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos

processos. (grifo nosso)

Atente-se, assim, para a necessidade de cumulatividade destes requisitos, devendo todos eles estarem presentes para que seja admi-tido pelo relator e levado a julgamento pelo orgão colegiado.

E ainda quanto aos requisitos, infere-se que pode a questão de direito ser tanto de direito material quanto processual, excluindo-se, por certo, as questões fáticas.

Outro ponto de interessante alusão é no que tange ao campo de atu-ação do incidente no CPC antigo, o qual era mais restrito, pois antes o Incidente de Assunção de Competência era cabível apenas nos agravos e apelações, e hoje, conforme facilmente se percebe pela leitura rápida do art. 947 do Novo Codex, temos que o IAC poderá ser admitido em:

a) qualquer recurso;b) remessa necessária e;c) em processos de competência originária do tribunal.A seguir, trazemos a modificação trazida pela lei vigente:

DO INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA

Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o

julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de

competência originária envolver relevante questão de direito,

com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos

processos. (grifo nosso)

Igualmente não se pode deixar de fazer o registro à sútil, embora elogiável alteração na redação do dispositivo, dizendo respeito a obri-gatoriedade que recai sobre o relator de propor o incidente, caso seja verificada a possibilidade da assunção de competência.

Atente que, uma simples substituição da palavra “poderá”, presen-te no conteúdo da norma pregressa, pela expressão “proporá” constan-

31

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

te na redação da legislação processual civil hodierna, não mais faculta, mas sim obriga o relator a propor o incidente, caso este seja verificado. Alteração esta que mais uma vez merece ser destacada com aplausos.

Seguindo, ainda no orbe das diferenças entre os dois dispositivos, ver-saremos neste instante sobre a legitimação para se requerer o incidente.

Novamente, começando a diferenciação pelo instituto mais an-tigo, dispomos que, naquele tempo, apenas e tão somente o relator estava legitimado para propor o incidente de assunção de competên-cia, ao passo que nos dias atuais, com a vigência do CPC de 2015, passaram a ser também legitimados para requerer a propositura do incidente, as partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Observemos abaixo como ficou o dispositivo com a nova redação:

§ 1o Ocorrendo a hipotese de assunção de competência, o relator

proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério

Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa

necessária ou o processo de competência originária julgado

pelo orgão colegiado que o regimento indicar. (grifo nosso)

Outra medida salutar, pois é sabido que em algumas Cortes se têm falhado no intento de estabilização de sua jurisprudência.

Não são poucos os casos de divergência entre orgãos componen-tes do proprio Tribunal, desprestigiando o princípio da uniformiza-ção dos posicionamentos jurídicos, situação que em nada beneficia a visão que a sociedade tem do proprio Poder Judiciário.

Quiça a mais importante mudança neste incidente seja a que ven-tilaremos agora.

O §3º do art. 947 do CPC atual diz o seguinte:

§ 3o O acordão proferido em assunção de competência vinculará

todos os juízes e orgãos fracionários, exceto se houver revisão

de tese. (grifo nosso)

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

32 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

Isso significa que, uma vez proferido acordão em um incidente de assunção de competência, todos os demais juízes e orgãos fracioná-rios estarão à ele vinculados, ou seja, com a propositura do incidente objetiva-se a formação de um precedente vinculante.

Sendo assim, com essas alterações trazidas pela nova lei, privi-legiar-se-á sobretudo o disposto no artigo 926 do NCPC, segundo o qual “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

4 SEMELHANÇA COM O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS

A luz do que estudamos no capítulo anterior, cumpre-nos inicial-mente frisar que o Incidente de Assunção de Competência não faz parte do chamado “microssistema de resolução de casos repetitivos”, ao qual alude o art. 928 do NCPC, litteris:

Art. 928. Para os fins deste Codigo, considera-se julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em:

I - incidente de resolução de demandas repetitivas;

II - recursos especial e extraordinário repetitivos.

Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por

objeto questão de direito material ou processual.

Para não pairar dúvida alguma a respeito do topico ora aborda-do, destacamos a seguir enunciado firmado no Forum permanente de Processualistas Civis, qual seja:

Enunciado do Forum Permanente de Processualistas

334. (art. 947). Por força da expressão “sem repetição em

múltiplos processos”, não cabe o incidente de assunção de

competência quando couber julgamento de casos repetitivos.

33

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A exemplo do que também ocorre com o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), o Incidente de Assunção de Com-petência (IAC) tem o poder de vincular todos os juízes e orgãos fra-cionários (art. 947, §3º do CPC), uniformizando-se posicionamentos jurídicos a fim de trazer segurança jurídica à sociedade em geral.

A posição doutrinária majoritária hoje, também defende com cer-ta estabilidade a participação do amicus curiae e a ampla publicidade nos processos de tomada de decisão iniciados a partir da instauração do IAC. Vejamos o entendimento levantado nos Enunciados nº 201 e 591 do FPPC:

Enunciados do Forum Permanente de Processualistas

201. (arts. 947, 983 e 984) Aplicam-se ao incidente de assunção

de competência as regras previstas nos arts. 983 e 984.

591. (arts. 927, §5º; 950, §3º; 979) O tribunal dará ampla

publicidade ao acordão que decidiu pela instauração do

incidente de arguição de inconstitucionalidade, incidente

de assunção de competência ou incidente de resolução de

demandas repetitivas, cabendo, entre outras medidas, sua

publicação em seção específica no orgão oficial e indicação

clara na página do tribunal na rede mundial de computadores.

Por último, não devemos olvidar que caberá reclamação para ga-rantir a força vinculante do acordão proferido no julgamento de IAC, conforme descrito no art. 988, inciso IV, do NCPC. Vejamos:

DA RECLAMAÇÃO

Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do

Ministério Público para:

IV – garantir a observância de acordão proferido em julgamento

de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de

incidente de assunção de competência;

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

34 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

5 A EMENDA REGIMENTAL 24 DO STJ E SUAS IMPLICAÇÕES NO PROCEDIMENTO DO INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA

5.1 Os precedentes qualificados - art. 121-A do RISTJ

De acordo com a Reforma Regimental, os recursos especiais re-petitivos, os enunciados de súmula do STJ, e os acordãos proferidos em julgamento de incidente de assunção de competência agora são identificados como “precedentes qualificados”. Litteris:

“Do Registro e da Formação dos Precedentes Qualificados

Art. 121-A. Os acordãos proferidos em julgamento de incidente de

assunção de competência e de recursos especiais repetitivos bem

como os enunciados de súmulas do Superior Tribunal de Justiça

constituem, segundo o art. 927 do Codigo de Processo Civil,

precedentes qualificados de estrita observância pelos Juízes e

Tribunais.” (art. 121-A do Regimento Interno do STJ). (grifo nosso)

Em virtude disto, as teses adotadas em assunção de competência devem ser observadas de forma estrita por juízes e tribunais.

Mas questiona-se, o que seriam esses precedentes qualificados?Para melhor entendermos o significado da norma, se faz necessá-

rio um estudo, ainda que por mais sucinto que seja, sobre sua origem e características.

A técnica processual do precedente qualificado, se inspira na doutrina do stare decisis, cuja origem provém do direito inglês, decor-rente da expressão latina stare decisis et non quieta movere (respeitar as coisas decididas e não mexer no que está estabelecido), sendo uti-lizado ou aplicado na esfera civil para se referir à doutrina segundo a qual as decisões de um orgão judicial criam precedente (jurisprudên-

cia) e vinculam futuras decisões.

35

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Como dissemos acima, a técnica dos precedentes qualificados tem como característica principal dar força ao precedente, para que este tenha poder de vincular futura decisão.

Porém, nem toda decisão judicial é um precedente. Para que uma decisão venha a se tornar um precedente, ela haverá de ser provida de determinadas características, tais como ser emanado por uma Corte hierarquicamente superior e da mesma jurisdição daquele orgão julgador que o utilizará; no caso em estudo, deverá ter se constituído sobre um caso concreto; da mesma forma, deverá haver identidade entre as matérias, ou seja, que os casos julgados possuam a mesma ratio decidendi, no Brasil utilizamos a técnica do distinguishing; e por último, que ela não tenha sido superada (overruling - técnica que se difere do distinguishing, na medida em que este se caracteriza pela conformação do caso à ratio decidendi, enquanto aquele corresponde à revogação do entendimento paradigmático consubstanciado no precedente).

5.2 Julgamento pelo órgão colegiado fracionado - Art. 271-B, e art. 271-B, §1º do RISTJ

Art. 947. § 1o Ocorrendo a hipotese de assunção de competência, o

relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério

Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa

necessária ou o processo de competência originária julgado pelo

orgão colegiado que o regimento indicar.

Em conformidade com o art. 947, §1° transcrito acima, na qual o CPC remete ao regimento interno a escolha do orgão colegiado que deverá julgar o incidente, e ainda em razão da necessidade de se regulamentar esse incidente no âmbito da Corte, o Superior Tribunal de Justiça publicou a Emenda Regimental 24, de 28 de setembro de 2016.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

36 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

Continuando o nosso estudo, a emenda afirma que, caso preen-chidos os requisitos regulados no codigo, o relator ou o presidente proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, mediante decisão irrecorrível, que o julga-mento seja realizado pelo orgão colegiado indicado pelo Regimento Interno. (art. 271-B do RISTJ).

Através do IAC, e pela redação dada pelo dispositivo processu-al civil, em consonância com a Emenda Regimental 24/2016 do STJ, tem-se que o processo pode ser julgado por um orgão fracionário di-ferente daquele que teria, originalmente, competência para a matéria. O RISTJ aduz que, cabe à Corte Especial o julgamento do IAC quando a matéria for comum a mais de uma seção (art. 11, VI, do RISTJ, alte-rado pela emenda 24), e à Seção quando a matéria for restrita a uma seção (art. 12, IX, do RISTJ, alterado pela emenda 24).

Art. 271-B, § 1º - A Corte Especial ou a Seção, conforme o

caso, admitirá o recurso, a remessa necessária ou o processo

de competência originária se reconhecer interesse público

na assunção de competência.”(art. 271-B, §1° do Regimento

Interno do STJ).

Art. 11. Compete à Corte Especial processar e julgar:

VI - o incidente de assunção de competência quando a matéria

for comum a mais de uma seção; (art. 11, inc. VI do Regimento

Interno do STJ).

Art. 12. Compete às Seções processar e julgar:

IX - o incidente de assunção de competência quando a matéria

for restrita a uma Seção; (art. 12, inc. IX do Regimento Interno

do STJ).

A votação quanto à admissibilidade de o processo ser julgado sob o rito da assunção de competência se dará em meio eletrônico, com voto objetivo de todos os ministros componentes do respectivo orgão julgador.

37

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

5.3 Desistência e/ou abandono

Mesmo em caso de desistência ou de abandono, não impedirá a análise do mérito, visto que, nessa hipotese, desde que não seja re-querente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente e assumirá a titularidade do processo (parágrafos 2º e 3º do artigo 271-B, do RISTJ).

Art. 271-B, § 2º A desistência ou o abandono do processo não

impedem o exame do mérito.

§ 3º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá

obrigatoriamente no processo e deverá assumir sua titularidade

em caso de desistência ou de abandono.” (art. 271-B, §2º e §3°

do Regimento Interno do STJ).

5.4 O Amicus curiae no IAC

Art. 271-D. O relator ou o Presidente ouvirá as partes e os demais

interessados, inclusive pessoas, orgãos e entidades com interesse na

controvérsia, que, no prazo comum de quinze dias, poderão requerer

a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias

para a elucidação da questão de direito controvertida; em seguida,

manifestar-se-á o Ministério Público Federal no mesmo prazo.

§ 1º A fim de instruir o procedimento, pode o Presidente ou

o relator, nos termos dos arts. 185 e 186 deste Regimento,

fixar data para ouvir pessoas ou entidades com experiência e

conhecimento na matéria em audiência pública.

§ 2º Concluídas as diligências, o Presidente ou o relator

solicitará dia para julgamento do processo.” (art. 271-D, §1º e

§2° do Regimento Interno do STJ).

A reforma regimental também permitiu que o relator ou o Pre-sidente façam diligências necessárias para elucidação da controvér-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

38 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

sia, e igualmente permitiu a presença de ‘amicus curiae’’ (pessoas, orgãos e entidades com interesse na controvérsia), que no prazo co-mum de 15 (quinze) dias poderão requerer a juntada de documentos, bem como outros procedimentos que considerarem necessários. Em seguida, o representante ministerial se manifestará no mesmo prazo (artigo 271-D, do RISTJ).

5.5 Quorum para iniciar o julgamento e transparência das decisões

Art. 271-E. No julgamento do incidente de assunção de

competência, a Corte Especial e as Seções se reunirão com o

quorum mínimo de dois terços de seus membros.” (art. 271-E

do Regimento Interno do STJ).

A emenda determina que o quorum mínimo de presença para iniciar o julgamento seja de dois terços dos membros do colegiado (art. 271-E).

Já quando se trata do quorum de votação, este exige apenas maio-ria simples.

Seguindo o texto do NCPC, o acordão proferido pela Corte Espe-cial vinculará todos os orgãos do tribunal, e, se prolatado por Seção, vinculará as turmas e os ministros que a compõem, exceto se houver revisão de tese (artigo 271-G).

Art. 271-G. O acordão proferido, em assunção de competência,

pela Corte Especial vinculará todos os orgãos do Tribunal e,

pela Seção, vinculará as Turmas e Ministros que a compõem,

exceto se houver revisão de tese.

Parágrafo único. O Superior Tribunal de Justiça manterá, em

sua página na internet, em destaque, relação dos incidentes de

assunção de competência pendentes de julgamento e julgados,

com a indicação da respectiva descrição da questão de direito e

39

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

com o número sequencial do incidente.”(art. 271-G, parágrafo

único do Regimento Interno do STJ).

Por fim, para dar mais transparência à tramitação desses prece-dentes, o parágrafo único do artigo 271-G, do RISTJ, determina que a relação dos incidentes de assunção de competência pendentes de julgamento e julgados, delimitados e numerados, deve ser divulgada, em destaque, no site do STJ na internet.

O Superior Tribunal de Justiça agiu bem em regulamentar o inci-dente de assunção de competência. Resta-nos agora, aguardar o julga-mento dos primeiros incidentes para que possamos debater acerca da eficiência de tal instituto, em cima das decisões proferidas pelo STJ.

6 STJ ADMITE OS DOIS PRIMEIROS INCIDENTES DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA EM RESP

O STJ admitiu, até a presente data, os primeiros dois Incidentes

de Assunção de Competência (IAC) desde que esse instituto, antes chamado de deslocamento de competência ou afetação, foi revitaliza-do e fortalecido pelo NCPC 2015.

Com a admissão dos incidentes, a 2ª Seção julgará dois recursos especiais nos quais se discute os seguintes temas:

Primeiro Incidente prestigiado

IAC no REsp 1604412 (2016/0125154-1 – 13/02/2017)

- Data da admissão: 08/02/2017

- Questão submetida a julgamento:

a) Cabimento da prescrição intercorrente e eventual

imprescindibilidade de intimação prévia do credor;

b) Necessidade de oportunidade para o autor dar andamento ao

processo paralisado por prazo superior àquele previsto para a

prescrição da pretensão veiculada na demanda.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

40 Luiz Urquiza da Nóbrega Neto

Neste primeiro caso, o relator do recurso, ministro Marco Auré-lio Bellizze, propôs a assunção de competência para que o caso seja julgado na Segunda Seção, tendo em vista estar-se diante de matéria exclusivamente de direito, de relevante interesse social, e a divergên-cia de entendimentos entre a Terceira e a Quarta Turmas do tribunal, especializadas em direito privado.

A decisão do relator seguiu os ditames do art. 271-B do Regimen-to Interno do STJ e do art. 947 do novo CPC. Segundo estes dispositi-vos, o IAC pode ser proposto pelo relator, quando o processo envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social e sem repetição em múltiplos processos.

Segundo Incidente prestigiado :

IAC no REsp 1303374 (2012/0007542-1 – 01/08/2017)

- Data da admissão: 14/06/2017

- Questão submetida a julgamento:

a) Prazo anual de prescrição em todas as pretensões que

envolvam interesses de segurado e segurador em contrato de

seguro.

Nesse segundo caso, cuja relatoria do recurso ficou a cargo do mi-nistro Luis Felipe Salomão, este propôs a assunção de competência para que o caso seja julgado igualmente na Segunda Seção, tendo em vista estar-se diante de relevância na matéria e repercussão social, sem aferir repetição em múltiplos processos, a fim de prevenção da divergência, e conseguinte uniformização do entendimento acerca da matéria.

7 CONCLUSÃO

Diante de tudo, ainda que haja uma certa apreensão quanto à aplicação da técnica do incidente de assunção de competência no Brasil, é inegável a possibilidade de se vislumbrar o desafogamento

41

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

do Judiciário, propiciando, outrossim, maior segurança jurídica aos jurisdicionados haja vista uma melhor maneira de se alcançar a uni-formização e estabilização da jurisprudência e consequente coerência nas decisões.

As técnicas que valorizam os precedentes judiciais e, consequen-temente, a celeridade processual, a isonomia e a segurança jurídica, devem servir para aprimorar o sistema processual civil. Tudo leva a crer que o instituto do IAC nos trará uma maior celeridade no anda-mento dos processos, o que garantirá também a aplicação do princí-pio constitucional da efetividade.

Cumpre-nos destacar, porém, que não se deve levar tudo ao extre-mo, ou seja, a técnica processual do Incidente de Assunção de Com-petência não caberá, obviamente, em toda e qualquer situação no mundo dos casos concretos. A razoabilidade, assim como em outros ramos do Direito, deve ser aplicada neste instituto.

REFERÊNCIAS

ALVIM, Rafael; MOREIRA, Felipe. Incidente de Assunção de Competência no NCPC. Disponível em: <http://www.cpcnovo.com.br/blog/incidente-de--assuncao-de-competencia-no-ncpc/>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

ASSUNÇÃO de competência ganha maior relevância no STJ apos reforma regimental. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Assun%C3%A7%-C3%A3o-de-compet%C3%AAncia-ganha-maior-relev%C3%A2ncia-no-STJ--ap%C3%B3s-reforma-regimental>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

BECKER, Rodrigo; TRIGUEIRO, Victor. O novo incidente de assunção de competência e o STJ. Disponível em: <https://jota.info/colunas/coluna--cpc-nos-tribunais/o-novo-incidente-de-assuncao-de-competencia-e-o-s-tj-15122016>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

BRASIL. Código de Processo Civil Anotado - OAB/ Ordem dos Advogados do Brasil - Paraná, 2015.

________. Novo código de Processo Civil Anotado / OAB. – Porto Alegre : OAB, 2015.

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteira-mente estruturado à luz do novo CPC – Lei n. 13.105, de 16-3-2015. São Paulo: Saraiva, 2015.

CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento- modelo (Musterver-fahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de processo, v. 32, n.147, p. 123-146, São Paulo, 2007.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2017, p. 458-459.

COUTINHO, Fabiana de Oliveira. A “stare decisis” da common law: seme-lhanças no efeito vinculante brasileiro?. Disponível em: <http://www.ambi-to-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9535&re-vista_caderno=9>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao di-reito processual civil, parte geral e processo de conhecimento I Fredie Didier Jr. - 17. ed. Salvador: Jus podivm, 2015.

DONIZETTI, Elpídio. A Força dos Precedentes do Novo Código de Pro-cesso Civil. Disponível em: <https://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/ar-tigos/155178268/a-forca-dos-precedentes-do-novo-codigo-de-processo-ci-vil>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematiza-do. -6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

LEITE, Gisele; HEUSELER, Denise. O poder dos precedentes judiciais no CPC/2015. Disponível em: <http://www.prolegis.com.br/o-poder-dos-prece-dentes-judiciais-no-cpc2015/>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – Volume único – 8. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.

NOGUEIRA, Gustavo. Incidente de assunção de competência no Novo CPC. Disponível em: <https://patriciadantasadvogada.jusbrasil.com.br/no-ticias/205538450/incidente-de-assuncao-de-competencia-no-novo-cpc>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

NOGUEIRA, Cláudia Albagli. O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo da decisão judicial. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/ef/index.php/noticias/o-novo--codigo-de-processo-civil-e-o-sistema-de-precedentes-judiciais-pensando-um-pa-radigma-discursivo-da-decisao-judicial-2/>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

O poder dos precedentes judiciais no CPC/2015. Disponível em: <https://www.prolegis.com.br/o-poder-dos-precedentes-judiciais-no-cpc2015>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

43

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

ROSSI, Júlio Cesar. Precedente à Brasileira: A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC. São Paulo: Atlas, 2015. P. 314.

SOARES, Marcos José Porto. Do Incidente de Assunção de Competência se-gundo o Novo Código de Processo Civil. Disponível em: <https://marcosjps.jusbrasil.com.br/artigos/296243608/do-incidente-de-assuncao-de-compe-tencia-segundo-o-novo-codigo-de-processo-civil>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

STJ admite primeiro incidente de assunção de competência em recur-so especial. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,-MI254574,11049-STJ+admite+primeiro+incidente+de+assuncao+de+-competencia+em+recurso>. Acesso em: 15 de ago. 2017.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Novo Código de Processo Civil Anotado - 20º ed. revista e atualizada, Rio de Janeiro: Forense, 2016.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Adriana N. Santos

Técnica do Ministério Público. Graduada em Enfermagem pela UFS. Graduanda em Direito pela UNIT. Pos-Graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela LFG. E-mail: [email protected]

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

RESUMOO presente artigo tem como ponto fulcral a abordagem acerca do direito à imagem e a incidência de possíveis responsabilizações civis. É notorio pontuar que o direito à imagem, integra o rol dos direitos personalíssimos, que eventualmente pode sofrer violação e, consequentemente gerar danos. A reprodução da imagem, necessita de emanação da propria pessoa ou seja, de prévia autorização, caso contrário, caracte-riza atentado à imagem, atingindo e lesionando os interesses jurídicos extrapatrimo-niais do dono da imagem. A efetiva proteção da imagem no ordenamento jurídico consta no art. 20 do codigo civil de 2002, como também na Carta Magna de 1988, no inciso XXVIII, alínea a, art.5°, que foi explícita em assegurar ao lesado, direito à indenização por dano material ou moral decorrente da violação da imagem. Palavras-chave: direito à imagem, violação, responsabilização.

ABSTRACTThis article has as its focal point the approach on the right of personal portrayal and the incidence of possible civil liabilities. Is notorious score that when dealing with the right of personal portrayal, we are facing a right which integrates the role of the personal rights and which eventually can suffer rape and consequently cause some damage. For reproduction of the image, you need an emanation of the own person, because if it is reproduced without permission foresaw featuring an attack to the image, as it will be reaching and injuring legal interests off the owner of the image. The effective image protection the legal system set out in art. 20 of the civil code of 2002, as well as in the Magna Carta of 1988, XXVIII, in item a, art. 5º, was explicit in ensuring, to the injured person, the right to compensation for material or moral damage resulting from the violation of the image.Keywords: right of personal portrayal, violation, right.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

46 Adriana N. Santos

INTRODUÇÃO

O presente artigo destina-se a tratar sobre a temática do direito à imagem e a incidência de responsabilização civil. É de suma impor-tância, ao tratar sobre tal tema, pontuar sobre os direitos da persona-lidade, que são aqueles que buscam as defesas dos valores do homem como um ser. É um campo muito amplo e engloba muitos direitos, inclusive o direito à imagem.

O direito à imagem ganhou bastante visibilidade e consequente-mente proteção do ordenamento jurídico pelo modo como vem sendo exaltado no campo da publicidade, associado ao avanço das comuni-cações e a valores econômicos que se podem auferir ao utilizar-se de imagens de pessoas públicas notorias.

Dotado de suas particularidades, o direito que o ser humano tem à sua propria imagem é irrenunciável, não podendo privar-se deste. Porém, pode usufruir economicamente, porque dele pode dispor para tal fim. Sendo assim, é importante ressaltar os casos em que não há a responsabilidade civil imputada a quem divulga a imagem com ou sem a devida autorização, fazendo uma análise direta com o mundo das celebridades, distinguindo privacidade e intimidade.

É evidentemente necessário analisar sobre este viés de direito da personalidade a imagem do morto, visto que este, segundo o Codigo Civil, tem cessada a sua personalidade jurídica, com a morte. Porém, segundo este mesmo diploma, resta assegurado o seu direito à imagem.

O artigo possui como objetivo geral: explanar as peculiaridades do direito à imagem, assim como, pontuar que o nosso ordenamento jurídico resguarda tal direito em casos de violações e, por conseguinte demonstrar as possíveis responsabilizações caso ocorra uma lesão ao direito à imagem. Em se tratando dos específicos: primeiro, levar a todos a compreensão do direito à imagem e demonstrar sua extrema importância por ser um direito de caráter personalíssimo; segundo, demonstrar que além das pessoas vivas o ordenamento jurídico dis-

47

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

põe de aparato legal para proteger a imagem do morto; e por fim, levantar diversas indagações acerca da existência da lesão ao direito à imagem e quando haja vista prévia autorização para sua divulgação.

A metodologia utilizada no presente artigo é de cunho qualitati-vo porquanto rege por discorrer livremente sobre a temática da res-ponsabilização civil do direito à imagem, com apreciações de obras e conceitos.

1. DIREITO À IMAGEM

1.1 Direito à imagem como um direito personalíssimo

Ao tratarmos do direito à imagem, para angariarmos maiores compreensões do presente direito, faz-se necessário explorar os direi-tos da personalidade. De acordo com Maria Helena Diniz, os direitos da personalidade são:

Direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é proprio,

ou seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação,

a honra, a autoria, etc. Por outras palavras, os direitos de

personalidade são direitos comuns da existência, porque são

simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa,

de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira

primordial e direta (Maria Helena Diniz, p 92, 2014).

Para Gonçalves os direitos da personalidade são direitos inalie-náveis, que se encontram fora do comércio, e que merecem proteção legal. Sua existência tem sido proclamada pelo direito natural, des-tacando-se, dentre outros, o direito à vida, à liberdade, ao nome, ao proprio corpo, à imagem e à honra.

No Brasil, o aparato de proteção aos chamados direitos da perso-nalidade ganhou dimensão especial com a Constituição de 1988, vis-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

48 Adriana N. Santos

to como um grande passo. Tais direitos estão explanados no espectro dos direitos do homem, previstos no art. 5° da Constituição Federal. Referindo-se expressamente ao inciso V do art. 5º, este assegura o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Além do que o inciso X do mes-mo artigo comanda que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. O Codigo Civil trata expressamente desse direito em seus art. 11 ao 21.

Apos compreensão do que trata os direitos da personalidade, sur-ge necessidade de fazer o apontamento de encaixe do direito à ima-gem na classificação dos direitos considerados subjetivos, pois pos-suem como objeto os bens e valores essenciais da pessoa. O direito à imagem se faz presente no rol dos direitos que tratam da integridade moral do indivíduo, juntamente com a honra, o nome, o pseudônimo, entre outros.

É de suma importância tratar do direito à imagem e fazermos menções a categoria de direitos que são inerentes à pessoa humana. Depois de pontuar o direto à imagem como um direito personalíssimo, indisponível e de eminente aparato legal em decorrência principalmente da chegada da fotografia e com o seu inevitável avanço, os primeiros questionamentos envolvendo a imagem foram surgindo, e começaram a ser alvo de proteção do direito no Século XIX, conseguindo no entan-to, regulamentação jurídica plena apenas no século XX.

Urge assim a necessidade de explanar o que vem a ser o direito à imagem propriamente dita. Segundo Francesco Degni, citado por Mariana da Silva Siqueira e Luciana Aparecida Guimarães: a ima-gem é o sinal característico de nossa individualidade, é a expressão externa do nosso eu, é por ela que provocamos nas pessoas, com as quais entramos em contato, os sentimentos diversos de simpatia. “É ela que representa a causa principal, de nosso sucesso ou de nosso insucesso”.

49

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

A imagem é entendida como uma forma de representar a figura humana, impossibilitando publicar e reproduzir sem prévias auto-rizações da pessoa. Para Maria helena Diniz a imagem é analisada sobre três oticas: a imagem é a reprodução física da pessoa, como um todo ou em partes separadas do corpo (pernas, olhos, rosto, boca, nariz etc.) que possibilitem a identificação da pessoa. Por outra otica é caracterizada como conjunto de atributos cultivados pela pessoa, enfatizando sua visão social. E por último pontua a imagem com a re-produção biográfica, adentrando sobre possíveis dados que denotem falsidade, possibilitando responsabilidade no âmbito cível.

A utilização da imagem consente somente ao titular, mas não im-possibilita autorização para uma terceira pessoa divulgá-la, não po-dendo no entanto causar-lhe qualquer dano à honra, à vida privada, à reputação, etc. Frisa-se que o direito à imagem não é absoluto, pois é cabível em algumas hipoteses divulgação de imagem sem prévio consentimento do titular, mediante manutenção da ordem pública, da prevalência da informação, dentre outros casos.

1.2 Dos direitos da personalidade do de cujus

O artigo 2º do Codigo Civil Brasileiro de 2002 expõe que a perso-nalidade da pessoa natural se inicia a partir do nascimento com vida, determinando a sua capacidade jurídica. Assim, conclui-se que ao nascer o indivíduo imediatamente torna-se sujeito de direitos.

No que atine ao término da capacidade jurídica, versa o artigo 6º do Codigo Civil, que a existência da pessoa natural termina com a morte, deixando o de cujus, por conseguinte, de ser sujeito de direitos e deveres.

Observa-se que o referido diploma legal, nos artigos supracita-dos, distancia-se da realidade fática, doutrinária e jurisprudencial, não reconhecendo a existência dos direitos da personalidade quanto ao nascituro e ao de cujus, sujeitos que, logicamente, não possuem

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

50 Adriana N. Santos

deveres, mas abarcam um patrimônio moral a zelar, decorrente dos vestígios de sua existência.

Percebe-se que os direitos da personalidade deveras não se extin-guem com a morte. Tanto é verdade que o ordenamento jurídico esta-belece normas em favor da personalidade do de cujus, como a Lei nº 8.501/92, que dispõe sobre a utilização de cadáveres não reclamados para fins de estudos e pesquisas; a Lei nº 9.434/1997, que regula sobre a remoção de orgãos, tecidos e partes do corpo humano de cadáveres para fins de transplante e tratamento; os crimes contra o respeito aos mortos, tipificados nos artigos 209, 210, 211 e 212 do Codigo Penal; o crime de calúnia contra os mortos, previsto no artigo 138, § 2º, também do Codigo Penal, entre outros. Logo, todas essas normas pos-suem uma característica em comum: a tutela jurídica dos direitos da personalidade do falecido.

Gonçalves (2005, p. 115) ressalta a possibilidade de reabilitação da memoria do morto, tendo em vista que não é completo o aniqui-lamento do de cujus pela morte. Sua vontade sobrevive por meio do testamento devendo ser dado ao cadáver o devido respeito sob pena de sofrer sanções penais. Além do que militares e servidores públicos podem ser promovidos post mortem e aquinhoados com medalhas e condecorações.

Anteriormente se entendia que ao de cujus não caberia o reco-nhecimento dos direitos da personalidade, por este possuir natureza jurídica de coisa nula. Ocorre que, apos algum tempo, a ideia foi su-perada, constatando-se que a lesão realizada, de qualquer modo, ao cadáver, atingia diretamente seus direitos personalíssimos e a seus herdeiros e familiares indiretamente, o chamado dano em ricochete ou reflexo, causando-lhes dor e sofrimento.

Nesse contexto, reconhece o artigo 12 do Codigo Civil: pode-se exi-gir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágra-fo único: em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medi-

51

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

da prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau (BRASIL, 2002, s. p.).

Seguindo a mesma linha, versa o artigo 20 do referido diploma legal: salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da jus-tiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único: em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes (BRASIL, 2002, s. p.).

O Codigo Civil transmite a ideia de que a demanda processual deve ser ajuizada em nome proprio, ou seja, de um dos legitimados ativos, e não em nome do morto. Sendo assim, valendo-se de uma interpretação dogmática, a morte extinguiria os direitos da persona-lidade do de cujus e criaria um novo direito aos familiares. Destarte, não se poderia dizer que o morto possui direitos da personalidade, mas que estes pertenceriam a seus legitimados.

Sobre este aspecto, Cupis (2004, p. 153-154), ao discorrer sobre direito à imagem, explica:

Com a morte da pessoa, o direito à imagem atinge o seu

fim. Determinadas pessoas que se encontram em relação

de parentesco com o extinto têm direito de consentir ou

não na reprodução, exposição ou venda do seu retrato e,

não consentindo, podem intentar as ações pertinentes. [...]

isto, naturalmente, não significa que o direito à imagem se

lhe transmita, mas simplesmente que aqueles parentes são

colocados em condições de defender o sentimento de piedade

que tenham pelo defunto. Trata-se, em suma, de um direito

novo, conferido a certos parentes depois da morte da pessoa.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

52 Adriana N. Santos

É de suma importância repensar o Direito Civil hermeneutica-mente, aproximando-o ao máximo possível da realidade fática. Não é plausível concordar com a ideia acima explanada. A tese que defende o surgimento de um novo direito encontra-se frágil e despida de con-teúdo, sendo criada tão somente para satisfazer a fundamentação da tutela judiciária. Silva (2000, p. 21), em sua obra Tratado de Direito Funerário:

Os mortos continuam a agir para além da morte. Os cadáveres

se dissolvem, mas as obras que eles criaram, as instituições

que animaram, as ideias que lançaram ao mundo, os afetos que

suscitaram continuam a agir e a fermentar. Quando um corpo volta

ao nada, a consciência segue um destino social entre os vivos.

É assente no ordenamento jurídico brasileiro que a limitação dos direitos da personalidade da pessoa é delineada, mormente, pelo Co-digo Civil de 2002. Registre-se, porém, que mesmo sobrevindo a mor-te, a pessoa não deixa de ser amparada, notadamente, porque vigora, como um dos fundamentos constitucionais, a dignidade da pessoa humana. Daí que o de cujus continua a ser sujeito de direitos, de or-dem subjetiva, isto é, participando dos fenômenos jurídicos.

1.3 Do direito à imagem post mortem

Sob o aspecto da abrangência do direto à imagem do indivíduo post mortem tem-se que é plenamente possível sua aplicação, pois a proteção à memoria do morto visa garantir ou preservar os valores inerentes a sua personalidade. A respeito do tema, versa Cavalieri Filho (2014, p. 141):

A imagem de um ancestral é muitas vezes para seus descendentes

patrimônio moral mais valioso que os bens materiais por ele

53

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

deixados. [...] seria cruel e até desumano exigir que os parentes

proximos do falecido - descendentes, ascendentes e cônjuges

- quedassem inertes diante das ofensas contra ele assacadas.

Assim, mesmo depois da morte, a memoria, a imagem, a honra

das pessoas, continuam a merecer a tutela da lei. Essa proteção

é feita em benefício dos parentes do morto, para se evitar os

danos que podem sofrer em decorrência da injusta agressão

moral a um membro da família já falecido.

Hodiernamente, com a rapidez na veiculação desencadeada pelas redes sociais e sites de notícias, tornou-se comum a conduta crimi-nosa de divulgação de imagens fortes e brutais de pessoa cuja morte foi violenta. As fotografias desmoralizantes costumam retratar cor-pos ensanguentados em situações desagradáveis, pessoas em leito de morte ou até mesmo em velorios, ofendendo excessivamente os sen-timentos dos familiares, ocasionando danos reflexos a estes, o que enseja a cobrança de indenizações que, de fato, não são aptas a suprir o sofrimento e a revolta.

A conduta em comento constitui tipo penal de vilipêndio a ca-dáver, previsto no artigo 212 do Codigo Penal Brasileiro, com pena máxima de 3 anos de detenção. O vilipêndio inclui o desrespeito, menosprezo, depreciação, ofensa ao cadáver.

No ano de 2015, no Brasil, houve um caso de grande repercussão, envolvendo o delito em comento. Eis que foram difundidas na mídia imagens e vídeos do cadáver do cantor sertanejo Cristiano Araújo, em seu leito de morte e durante o procedimento de necropsia, causando revolta e clamor diante da ausência de bom senso e ética por parte dos transgressores.

Atualmente tramitam no Congresso Nacional dois projetos de leis: o primeiro, proposto pelo deputado Cesar Halum do Partido Republi-cano Brasileiro (PRB), visando à criminalização do compartilhamento de fotos/vídeos/materiais contendo imagens aviltantes de cadáveres,

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

54 Adriana N. Santos

considerando que atualmente so é punível a conduta de quem as re-produz; e o segundo, sugerido pelo senador Davi Alcolumbre, do Par-tido Democratas (DEM), que tende a qualificar o crime de vilipêndio a cadáver, em casos de publicação de imagens/fotos/vídeos na rede. A regulação e a punição dos agentes violadores do direito à imagem e da honra são necessárias para salvaguarda os direitos da personalidade, inclusive post mortem porquanto os sujeitos de direitos, nessas situa-ções, são expostos a situações humilhantes e degradantes.

1.4 Dano moral x dano patrimonial

É de extrema necessidade compreender as situações em que serão cabíveis a responsabilização pelo uso não autorizado da imagem de outrem, bem como o entendimento dos casos em que essa respon-sabilização enseja danos morais ou danos materiais (patrimoniais). Assinala Carlos Roberto Gonçalves:

Cabe ao lesado, direito à indenização por dano material ou

moral decorrente da violação da intimidade, da vida privada,

da honra, e da imagem das pessoas. Nos termos do artigo 20 do

Codigo Civil, a reprodução de imagem para fins comerciais, sem

autorização do lesado, enseja o direito à indenização, ainda que

não lhe tenha atingido a honra, a boa fama ou a respeitabilidade

(GONÇALVES, p 99, 2014).

O dano patrimonial será devido quando a exploração da imagem se der de forma comercial cumulada com a não autorização do titular lesado, ou seja, se a utilização desse direito da personalidade for para um fim econômico, aquele que o utilizou responde por danos mate-riais. Ademais, seguindo o viés de proporcionalidade, tal indenização deverá ser calculada na mesma medida em que o ofendido deixou de ganhar em pecúnia, ou perdeu. Assim, não é necessário lesão à honra,

55

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

pois trata-se de patrimônio, logo, de dano relacionado efetivamente a perdas ou àquilo que se deixou de lucrar. Outrossim, nos casos em que a utilização da imagem sem autorização for feita com fins econô-micos e comerciais, aduz a súmula Nº 403/09 do STJ: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. Entende-se então, ser um dano presumido, ou “in re ipsa”.

Quando se trata do dano moral relacionado ao uso não autorizado da imagem, entende-se ser indenizável quando há a humilhação, exposição vexatoria e/ou desrespeito à imagem do indivíduo, causando a este qual-quer tipo de dor, sofrimento ou vergonha. Em casos que tem como objeto o dano moral, resta uma complexidade quanto à quantificação deste, ficando a cargo do juiz arbitrar dentro da proporcionalidade.

É possível ainda, que hajam cumulativamente o dano patrimo-nial e o dano moral sobre o mesmo caso, porém independentemente de qual seja a “modalidade” é necessário que haja a correta quanti-ficação sobre ela. Deve ser estipulada como indenização um valor que seja superior ao normal de uma contratação, por conta do ca-ráter sancionatorio que deve ter a responsabilidade civil. Segundo jurisprudência, “a indenização deve corresponder à quantia que a autora receberia se tivesse autorizado a publicação, mais um per-centual pela ausência de autorização, apurada em liquidação por arbitramento.” (TJRJ, 1ª C., Ap. Cível 4.371/97, rel. Des. Martinho Campos).

1.5 Limites do direito à imagem

O direito à propria imagem não pode ser conceituado como aque-le que impede terceiros de olharem e conhecerem a imagem da pes-soa, mas sim aquele que impede que terceiros se utilizem desta sem a sua autorização. Todavia, em alguns casos, é possível não haver a responsabilização.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

56 Adriana N. Santos

Sérgio Cavalieri Filho (2012) ensina que:

Se a imagem de uma pessoa estiver inserida em um contexto

amplo e genérico, de modo a ficar claro na composição gráfica

que o seu proposito principal não é a exploração econômica,

tampouco a identificação da pessoa, mas sim noticiar

determinado acontecimento, o direito à imagem não é violado.

Ou seja, se no contexto da imagem estiver claramente expresso o desejo apenas de noticiar o ocorrido com o uso daquela imagem, fica excluso a quem publicou a imagem o dever de indenização, por conta do acesso à informação.

O direito à propria imagem encontra as suas restrições no direito coletivo, pois este, de acordo com o princípio da concordância práti-ca, está sobreposto ao direito individual, havendo um desnivelamen-to. Também será permitido o uso da imagem para fins meramente culturais, haja vista que a informação sobrepõe-se ao direito particu-lar de imagem. Nesse mesmo sentido o uso da imagem de pessoas pú-blicas sem autorização também será permitido em algumas situações que serão tratadas em topico posterior.

Nos casos de utilização da imagem para um viés de segurança pública também revelam uma limitação do direito à imagem, uma vez que o direito coletivo, mais uma vez, se sobrepõe ao direito individu-al. Além do que, o retratado pode assentir com o uso de sua imagem, caso em que não haverá a indenização, desde que o uso consentido não exceda os limites que foram impostos pelo indivíduo.

Os casos expressos acima mostram excludentes de responsabi-lidade, que tornam a utilização da imagem, mesmo que não haja a autorização daquele exposto, em atos lícitos.

57

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

1.6 A Imagem da pessoa pública

O direito à imagem também é uma forma do exercício do funda-mento constitucional da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF), pois este engloba todos os direitos fundamentais. Salienta Pris-cylla Juzt Mariz Costa (2016) “a exploração do direito à imagem deve ser feita tendo como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana, mesmo nos casos de pessoas públicas, pois este princípio é um dos fundamentos da República”.

Nesse contexto, é plausível que se faça a distinção entre direito à privacidade e direito à intimidade. Este último está relacionado com as relações subjetivas do indivíduo, enquanto o primeiro abarca todas as relações da pessoa inclusive as objetivas (trabalho, estudo, etc). Entende-se então que a intimidade tem uma menor amplitude.

Entende-se por pessoa pública, aquela que está ligada a vida pú-blica e se dedica a esta, como por exemplo atores, modelos, artistas e políticos. É por esse motivo que estas terão seu direito à privacidade um pouco reduzido, haja vista que é do interesse coletivo ser noticia-do sobre as pessoas notorias.

Como essas pessoas precisam se expor para dar continuidade ao trabalho, há portanto, uma “presunção de consentimento” do uso da imagem, contanto que sua intimidade esteja sendo preservada. Nesse contexto, as pessoas de grande projeção não podem reclamar direito à imagem quando seus atos praticados por sua vida profissional são di-vulgados, porém, essa divulgação pode extrapolar a limitação dada pelo indivíduo ou até mesmo ser utilizada para outros fins que não a notícia.

Para saber se haverá ou não o dever de indenizar a pessoa pública é necessário entender se existe ou não o interesse público e a intenção de quem veiculou a imagem. Preceitua Pricylla Juzt Mariz Costa (2016):

O interesse público na veiculação da imagem está diretamente

ligado ao conteúdo da imagem veiculada; assim, se faz

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

58 Adriana N. Santos

necessário avaliar o interesse do agente ao divulgar uma

determinada imagem e consequentemente se estão presentes

alguns requisitos que tornem legítima essa veiculação.

Percebe-se então, que caso seja veiculada a imagem de uma pes-soa, mesmo pública, e esta não seja de interesse público, não tenha cunho historico, cultural ou jornalístico, ou o titular do direito não tenha autorizado a sua veiculação, é cabível a indenização por dano moral e material. Porém, não é possível adotar uma regra, deve-se sempre analisar-se o caso concreto.

CONSIDEREÇÕES FINAIS

O sistema jurídico brasileiro apos a promulgação da Constituição Federal de 1988, passou a tutelar de forma expressa à imagem do indivíduo, elevando-a a categoria de direito fundamental. Posterior-mente, com a entrada em vigor do Novo Codigo Civil brasileiro de 2002, a tutela da imagem também recebeu proteção jurídica no direi-to privado, estando inserida no rol dos direitos da personalidade. O direito à imagem representa a essência do indivíduo, assegurando à pessoa a defesa do que lhe é proprio, ou seja, sua integridade física, moral e intelectual.

É importante ressaltar que essa proteção abarca também a ima-gem do morto, cabendo ao cônjuge ou familiares pleitear indenização pelos danos sofridos. Logo, todos são titulares desse direito, estejam elas vivas ou mortas, porém, não são raras as vezes que esse direito é violado, seja pela imprensa, pelo Estado, ou mesmo por outro indi-víduo. Destaca-se que a via judicial é a mais adequada para a busca de uma resposta do Estado, nas situações de violação ou iminente violação.

Infelizmente, a sociedade atual se depara com a inversão de va-lores, onde a informação perde espaço para o sensacionalismo, o res-

59

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEM

peito ao proximo perde para os interesses individuais mais escusos, onde a dor pela perda de um ente querido é menosprezada para que se mate primeiramente a curiosidade de ver o corpo esquartejado ou exposto da forma mais triste e lamentável. Assim, como direito ex-pressamente previsto, cabe a todos seguir as normas inerentes a ele, evitando-se deste modo, a violação a um direito fundamental, que como tal merece e deve ser respeitado por todos cidadãos.

REFERÊNCIAS

CHAVES, Antônio. Direito à propria imagem. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 67, p. 45-75, 1972.

FRANCIULLI NETTO, Domingos. A proteção ao direito à imagem e a Cons-tituição Federal. Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, 2004.

SIQUEIRA, Mariana da Silva; GUIMARÃES, Luciana Aparecida. DIREITO DE IMAGEM. Revista Ciências Jurídicas e Sociais-UnG, v. 5, n. 1, p. 04-10, 2016

CAVALIERI filho, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10ª Edição. São Paulo. Editora Atlas. 2012.

FILHO, Olni Lemos. A normatização do direito de imagem e suas limita-ções . In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 108, jan 2013. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitu-ra&artigo_id=12670>. Acesso em nov 2016.

COSTA, Priscylla Just Mariz. A tutela do direito à imagem da pessoa pública. Re-vista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3010, 28 set.2011. Disponível em: <ht-tps://jus.com.br/artigos/20093>. Acesso em: 1 nov. 2016.

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, Volume 4: Responsabili-dade civil / Carlos Roberto Gonçalves – 9.ed – São Paulo: Saraiva, 2014.

Diniz, Maria Helena; curso de direito civil brasileiro, volume 7; responsabili-dade civil/ Maria Helena Diniz; -28, Ed.- São Paulo: Saraiva,2014.

BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum compacto Saraiva. 11. ed. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015.

CIFUENTES, Santos. Derechos personalíssimos. 2. ed. Buenos Aires, 1995.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

60 Adriana N. Santos

CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Campinas: Romana Jurí-dica, 2004.

DSILVA, Justino Adriano Farias da. Tratado do direito funerário. vol.1. São Paulo: Método, 2000.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

Técnico do Ministério Público

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

RESUMOO escopo do presente artigo é demonstrar a importância da repercussão de um assunto de acentuada importância, que é a guarda compartilhada aplicada na atualidade, nos termos da Lei 13.058/2014. Cediço que tal instituto está umbilicalmente ligado ao Poder Familiar, bem como a outros princípios basilares do direito de família. A imple-mentação do modelo de guarda compartilhada em nosso ordenamento surgiu para garantir a continuidade do exercício simultâneo e igualitário do Poder Familiar apos o rompimento do vínculo conjugal dos genitores, minimizando os efeitos negativos que a ruptura provoca na vida dos filhos. Sendo assim, necessário compreender o surgimento historico, bem como suas vantagens e desvantagens, quando da utiliza-ção como regra no Direito de Família brasileiro. Por fim, entenderemos as repercus-sões no ordenamento por meio das inovações implementadas pela Lei 13.058/2014.Palavras-chave: Poder Familiar; Guarda Compartilhada; Lei 13.058/2014.

ABSTRACTThe purpose of this academic work carried out through research on websites, articles, journals, jurisprudence and doctrine is to demonstrate the importance of the reper-cussion of a matter of significant relevance that is shared custody currently applied as a rule in the legal order of the country after the advent of Law 13.058/2014. It is true that this institute is closely linked to Family Power, to the Principle of the Best Interests of Children and Adolescents, and to other constitutional principles relevant to Family Law. The implementation of the shared custody model in the Brazilian legal system emerged to guarantee the continuity of the simultaneous and egalitarian exercise of Family Power after the rupture of the conjugal bond of the parents of the child, minimizing the negative effects that said rupture causes in the children’s lives. Thus, there is a need to understand the historical emergence, the main purpose, the advantages and disadvantages as well as the scope of the Shared Guard institute, now used as a rule in Brazilian Family Law. Finally, we will understand the reper-cussions in the Brazilian legal system through the innovations implemented by Law 13.058/2014.Key words: Family; Custody; Law 13.058/2014.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

62 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como tema a guarda compartilhada e, a partir de um estudo sobre a matéria, é possível apontar a repercussão que o instituto causou em nosso ordenamento jurídico no momento em que começou a ser utilizado como regra para solucionar a proble-mática da guarda dos filhos apos a ruptura do vínculo conjugal.

Importante registrar que, em toda relação, o melhor interesse da criança e do adolescente há de ser entendido, observado e respeitado por se tratar de um princípio supremo e norteador.

Dessa forma, essa pesquisa levanta diversas questões, como o que é a guarda compartilhada, sua evolução historica, como é aplicada pelo mundo, qual a responsabilidade dos pais separados quando os filhos estão sob o regime da guarda compartilhada, as vantagens e desvantagens do modelo, como deve ser a vida dos filhos e a impres-cindível observância dos seus interesses.

A guarda compartilhada é um instituto inovador do Direito de Família e foi inserido em nosso ordenamento no ano de 2008, por meio da Lei 11.698/08. Contudo, so no ano de 2014 é que foi possível notar o impacto da vigência do instituto já que as modificações nos artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 do Codigo Civil, inseridas pela Lei 13.058/2014, trouxeram não so dois conceitos de guarda compartilha-da, mas também a possibilidade do magistrado aplicá-la, mesmo sem o consenso dos pais, já que, a partir daquele momento, o modelo seria utilizado como regra.

Há pouco tempo era comum a guarda unilateral e ficar sob a responsabilidade materna. Com o surgimento Lei 11.698/2008, que implantou a guarda compartilhada, e posteriormente com as mudan-ças trazidas pela Lei 13.058/2014, que trouxe a aplicação do instituto como uma determinação jurídica, a responsabilidade de criação, a to-mada de decisões na educação, oferecer carinho, afeto, amor, além da custodia física dos filhos, agora são incumbências exercidas de forma

63

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

conjunta entre os cônjuges, cujos direitos e deveres serão igualitários.Pode-se afirmar que o presente artigo buscará demonstrar que o

fator preponderante para a utilização da guarda compartilhada como nova modalidade foi a busca pela concretização do melhor interes-se do infante bem como a postura da família atual que começou a entender a necessidade de convivência afetiva mútua e equilibrada na criação dos filhos, evitando sequelas. Realizar-se-á, portanto, uma abordagem sobre a guarda compartilhada legal e física e será destaca-da a importância do papel do Poder Judiciário quando intervém nas causas em que é acionado a fim de tentar disponibilizar aquilo que foi previsto na Lei e na Constituição salvaguardando o superior interesse da criança.

O tema proposto se justifica para mostrar a sociedade que o insti-tuto denominado guarda compartilhada foi criado pensando no bem--estar e numa melhor criação e formação das crianças e adolescentes cujos pais romperam o vínculo conjugal de maneira que agora pode-rão estar na companhia de ambos. Além disso, o presente artigo tam-bém procurará analisar a cooperação conjunta de responsabilidades dos pais separados e como isso reflete na vida dos filhos postos em guarda compartilhada.

Portanto o principal motivo que impulsionou a tratar acerca do tema é o fato de acreditar que esse instituto contribui para trazer in-formações sobre como as famílias o têm visto, sua aceitação e até sua aplicação pelo magistrado, mesmo não havendo consenso entre os genitores. Além disso, os aspectos positivos que foram gerados para os filhos, pois são eles os maiores beneficiados com a divisão equili-brada de responsabilidades entre os pais bem como as repercussões positivas e negativas apontadas por doutrinadores.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

64 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ÍNSITOS ÀS RELAÇÕES FAMILIARES

O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil impôs uma hermenêutica interpretativa diferenciada nas relações familiares ten-do o escopo de criar novas perspectivas e desafios sociais no âmbito do Direito de Família.

Os princípios constitucionais são como alicerces e sua reunião contribui para o firmamento do sistema jurídico, ou seja, são valores que norteiam os comandos jurídicos de uma sociedade devendo ser obedecidos uma vez que fundamentam todos os outros elementos de coordenação jurídico-constitucional.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, é possível admitir que a existência dos princípios no mundo jurídico possui grande força valorativa haja vista não regular apenas situações de-terminadas e específicas. Sua atuação vincula tudo que é produzido, executado e julgado na esfera de atuação legal tornando-os pilares do ordenamento jurídico vigorante em nosso país.

Em consonância com a Carta Magna, a família é a base da socie-dade e tem como função estar presente na realização e no desenvolvi-mento de todos os seus membros, na condição de sujeitos de direitos, dotados, portanto, de dignidade.

Com base nisso, é prudente atentarmos a alguns princípios cons-titucionais aplicados ao Direito de Família, observando seus signifi-cados.

O princípio da Dignidade da Pessoa Humana nas relações de fa-mília deve ser compreendido como aquele que deve ser respeitado não so perante todas as pessoas integrantes do grupo familiar mas também a cada uma delas.

Ademais, tem-se o Princípio da Solidariedade, previsto no art. 3º, I, da Carta Maior, como consequência da dignidade da pessoa huma-na, de maneira ser acertado dizer que, se este privilegia o indivíduo,

65

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

aquele rege a vivência de cada pessoa em uma relação comunitária. Este princípio acaba por repercutir nas relações familiares justifi-

cando sua presença na relação entre os cônjuges e companheiros, na proteção à criança e adolescentes, bem como no âmbito dos alimen-tos, ou seja, a solidariedade possui implicações em todas as relações familiares e afetivas, porque os vínculos criados entre os familiares so ser sustentados e desenvolvidos em um ambiente recíproco de co-operação e compreensão, de modo que cada ser possa mutuamente respeitar e ajudar o outro.

Nesse sentido, certifica Flávio Tartuce e José Fernando Simão1 que “a solidariedade não é so patrimonial, é afetiva e psicologica”.

Também representam significativa importância nas relações de família os Princípios da Liberdade e da Igualdade, pois tais princípios se manifestam tanto em relação aos cônjuges ou companheiros, como também em relação aos filhos que poderão participar da vida familiar sem discriminação expressando suas opiniões.

O Princípio da Liberdade está previsto no artigo 1.513 do Codigo Civil dispondo ser possível a liberdade aos indivíduos de constituir uma comunhão de vida familiar seja pelo casamento seja pela união estável sem qualquer imposição ou restrição de pessoa jurídica de direito público ou privado.

Já no que tange ao Princípio da Igualdade, este se estende tanto na igualdade jurídica entre os cônjuges e companheiros bem como na igualdade jurídica dos filhos.

Primeiramente, quanto à Igualdade Jurídica entre os Cônjuges e Companheiros, consigne-se tratar de uma isonomia constitucional re-conhecendo a igualdade entre homens e mulheres no que se refere a sociedade conjugal ou convivencial, conforme previsto no art. 226, §5º, da Constituição Federal.

Então referido dispositivo conseguiu não so disciplinar os direi-

1 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família 5. São Paulo: Método, 2010, p. 38.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

66 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

tos entre ambos os cônjuges e companheiros, criando um sistema de cogestão, pois todos os direitos são exercidos agora pelo casal, como também conseguiu afastar diferenças historicas de uma era patriarcal não mais admitida em nosso ordenamento.

Quanto à incidência da Igualdade Jurídica entre os Filhos, esta está prevista no art. 227, §6º, da Constituição Federal2 e deixa claro não ser mais possível se admitir a distinção entre filhos legítimos, naturais e adotivos, quanto ao nome, poder familiar, alimentos e sucessão.

Nesse contexto, é permitido, a qualquer tempo, o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, é proibido que conste na certidão de nascimento da criança qualquer referência a filiação ilegítima, bem como são vedadas designações discriminatorias relativas à filiação.

Por meio da igualdade dos filhos, acabou-se por atribuir um valor jurídico à Afetividade. Desse modo, desponta a família socioafetiva em contraposição ao endeusamento conferido à família pautada, ex-clusivamente, no critério da consanguinidade.3

É certo afirmar que o afeto atualmente seja apontado como principal fundamento das relações familiares, pois ele decorre da valorização constante na dignidade da pessoa humana, ou seja, ele é o principal responsável pela prosperidade familiar notadamente por introduzir um caráter partidário aos integrantes da família, à medida que desenvolve relações de respeito e considerações mútuas.

Justamente diante desses novos redirecionamentos nas relações de filiação é imprescindível dizer que a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação.

Ainda sobre a égide principiologica, importante destacar o Princí-pio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente.

Em se falando de proteção ao menor, o que deve prevalecer é o direito a dignidade e o desenvolvimento integral de maneira que a

2 Idem.3 ALBUQUERQUE. Fabíola Santos. Famílias No Direito Contemporâneo. Estudos em home-

nagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. 1 ed. Bahia: JusPodivm, 2010, p. 40.

67

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

convivência familiar deve ser regida por um ambiente de amor e se-gurança para o indivíduo em formação.

Diante dessa relevância, há de ser levado em considera-ção que referido princípio não é uma recomendação ética. Trata-se, em verdade, de uma diretriz determinante nas re-lações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado, não sendo prudente aos pais causarem a ruptura desse ambiente de amor e se-gurança com o fim da relação conjugal e convivencial para valorizar seus proprios interesses e esquecerem o da criança e do adolescente.

3 DO PODER FAMILIAR

Primeiramente, faz-se necessário informar que a expressão “po-der familiar” diz respeito ao “pátrio poder”, termo utilizado antiga-mente no direito romano. Esse pátrio poder nada mais era do que o direito absoluto e ilimitado que detinha o chefe familiar, ou seja, o poder que o homem detinha em face de sua esposa como marido e de seus filhos como pai.

Assim como a propria natureza do ser humano, o conceito de família é mutável e deve ser interpretado de acordo com o contexto historico de uma determinada época e no tempo de uma determina-da sociedade. Podemos afirmar que o conceito atual de família, com certeza, não é mais o mesmo das antigas civilizações, tendo em vista a evolução ao longo dos anos, notadamente com a com a inclusão de novos valores e costumes que foram incorporados pela coletividade.

O Codigo Civil de 1916 utilizava a expressão “pátrio poder” e o conferia exclusivamente ao pai, sendo transferido para a mulher so-mente na hipotese da ausência do homem. Caso a mulher contraísse novo matrimônio, considerar-se-ia perdido o referido poder, que seria repassado ao novo cônjuge.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

68 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

Contudo, com o advento do Estado Democrático de Direito du-rante o século XX, houve uma mudança na instituição familiar, tanto estrutural como funcional, sendo a promulgação da Constituição Fe-deral de 1988 o marco dessa transição otica, que deixa de ser materia-lista e patrimonial, conforme norteava o Codigo Civil de 1916, para se tornar mais humanística e afetiva.

Então foi nesse contexto de inovação e mudança que a Carta Maior consagrou o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, da CF)4 e o poder familiar passou a ser desempenhado pelo casal. O Codigo Civil de 2002, por sua vez, no art. 1.6315, passou a estabelecer a igualdade de condições aos pais e diz: “Durante o casa-mento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade”.

Para Maria Berenice Dias6, a criação da Lei 8.069/1990, que trata sobre o Estatuto da Criança de do Adolescente, alterou o sentido de dominação que tinha o poder familiar, para ser visto como proteção dos pais para com seus filhos.

Diante da relevante mudança de diretrizes e da tutela do di-reito à convivência familiar, Carlos Roberto Gonçalves7 assim con-ceitua o poder familiar: “Poder familiar é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante às pessoas e aos bens dos filhos menores”.

Muito mais do que o dever material com relação aos seus filhos, os pais devem satisfazer outras necessidades como a criação, educa-ção, necessidades afetivas, espirituais, morais e sociais. Em outras palavras, o poder familiar é aquele exercido pelos pais em relação aos

4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 08 jun. 2017.

5 BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br /ccivil_03 /leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 08 jun. 2017.

6 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2010, p. 417.

7 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 372.

69

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

filhos, dentro da mesma ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto8.

Como se pode verificar, podemos afirmar que o poder familiar é baseado no interesse dos filhos e da família, não apenas nos dos seus genitores.

Levando em consideração que o poder familiar nada mais é do que um dever atribuído aos pais, que têm o dever de praticá-lo no interesse do filho, e, caso um ou ambos deixem de cumpri-lo, poderá ocorrer a suspensão do poder familiar ou até mesmo sua extinção.

O Estatuto da Criança e do Adolescente trata desses assuntos nos artigos 155 a 163 e o Codigo Civil, em seu art. 1.635, elenca as possi-bilidades nas quais o poder familiar poderá ser extinto.

Já a suspensão do poder familiar ocorre na hipotese prevista no art. 1.637 do Codigo Civil. Pela leitura do artigo mencionado, faz-se importante esclarecer que diz respeito ao cumprimento dos deveres e obrigações dos genitores para com sua prole e o papel estatal como agente fiscalizador quando os deveres e as obrigações não forem res-peitadas, podendo acarretar em suspensão do poder familiar.

A suspensão do poder familiar deve ser considerada um ato ex-tremo, a ser aplicado quando houver necessidade da preservação dos interesses da criança e do adolescente, da família e da propria socie-dade tendo em vista que a interferência do Estado no seio familiar é também, em verdade, uma intromissão na intimidade do lar.

4 A GUARDA DOS FILHOS

Um longo caminho foi percorrido pelo instituto da guarda dos fi-lhos no direito brasileiro até conseguirmos chegar à situação atual, que sempre procura atender o interesse do menor. Até aqui diversas e su-cessivas leis foram criadas e tinham como escopo a proteção dos filhos.

8 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família 5. São Paulo: Método, 2010, p. 387.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

70 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

A guarda, no Direito Brasileiro, é o dever dado aos pais para cui-dar dos filhos, cuidado este muito mais no sentido de fazer compa-nhia aos menores do que, propriamente, ao dever de cuidar deles, educá-los e assisti-los. É o conjunto de direitos e deveres que os pais têm sobre os filhos menores, no intuito de protegê-los, já que exercem uma responsabilidade legal.

O Codigo Civil de 1916 tratou sobre o tema em seus artigos 325 e 326, sendo que o primeiro falava das situações de dissolução ami-gável de um casamento, onde deveria os cônjuges respeitar aquilo que ele mesmos acordassem sobre a guarda dos filhos, e o segundo dissertava que o motivo do termino do relacionamento deveria ser observado, se “por culpa de um ou de ambos os cônjuges e a idade e sexo dos filhos.”

Somente em 1941 é que o legislador brasileiro voltou a tratar es-pecificamente da guarda, quando surgiu o Decreto Lei 3.200/41, que determinava em seu art. 16 que o filho natural ficaria sob a guarda do genitor que o reconhecesse, ou, na hipotese de ambos reconhecerem, sob o poder paterno. É importante frisar que o magistrado podia deci-dir de forma diversa, desde que o menor se manifestasse demonstran-do, portanto, com quem queria ficar.

Conforme a doutrinadora, o artigo citado anteriormente foi mo-dificado pela Lei 5.582/70, e estabeleceu que o filho natural, na hipo-tese de ambos os genitores o reconhecerem, ficaria sob a guarda da mãe, alterando totalmente o que previa o dispositivo do Decreto Lei 3.200/41.

Já em 1962 entrava em vigor a Lei 4.121 (Estatuto da Mulher Ca-sada), cujo escopo era regulamentar alguns conflitos familiares, den-tre eles o desquite religioso que gerou alterações em dispositivos do Codigo Civil de 1916.

As alterações ocorridas no Codigo Civil de 1916 duraram até a entrada em vigor da Lei 6.515/77 (Lei do Divorcio). Na elabora-ção desta, foram inseridos princípios e dispositivos que buscavam

71

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

atender principalmente os interesses dos filhos menores: a opção da prole de escolher com quem gostaria de ficar, assegurando o di-reito de visitas; a ampliação dos direitos dos genitores de ter em sua companhia os seus filhos e o papel de fiscalização, educação e manutenção dos mesmos. Vale destacar que tais direitos foram con-sagrados no ordenamento jurídico atual, mantendo, portanto, a sua aplicabilidade.

Com a redemocratização ocorrida no Brasil e a consequente pro-mulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos da criança e do adolescente foram ainda mais assegurados. O art. 227 da Carta Maior é que garante para os menores o direito a uma convivência no seio da família e junto à comunidade.

Como consequência da Carta Maior, surgiu o Estatuto da Crian-ça e do Adolescente (Lei 8.069/90)9, diploma destinado a regular as relações respectivas, inclusive no tocante à guarda, especialmente em seus artigos 3º e 4º. O ECA é considerado um dos instrumentos legislativos mais avançados do mundo, pois consolidou princípios constitucionais sendo o principal deles, o Melhor Interesse da Crian-ça e do Adolescente já explanado anteriormente.

As transformações ocorridas na sociedade geraram uma maior va-lorização dos sujeitos componentes da família e não somente a figura do pai, seu chefe. Hodiernamente o exercício da guarda de menores recebeu a influência de novos valores, que devem ser considerados também no momento da fixação da guarda, pois as relações parentais passaram a ser analisadas sob uma nova perspectiva que privilegia o melhor interesse do menor.

Nesta senda, a prole ganha destaque especial no ambiente fami-liar, já que ainda não alcançou maturidade suficiente para conduzir a propria vida sozinha, sendo fundamental a presença dos pais ou de alguém que venha substituir a função materna e paterna.

9 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Disponível em: < http:// www.planalto. gov.br/ ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 13 jun. 2017.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

72 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

Diante de tudo isso é que o Codigo Civil de 2002 trata sobre a guarda em seus artigos 1.583 a 1.590. Entre outras situações, tais dispositivos legais estabelecem a exclusão da figura da culpa pela separação, como critério para definição da guarda. Pela pesquisa re-alizada, percebeu-se que a doutrina e o sistema jurídico brasileiro reconhecem algumas modalidades de guarda de acordo com a sua origem e suas finalidades. São elas: guarda comum, guarda única ou exclusiva, guarda alternada, aninhamento ou nidação e guarda com-partilhada.

Na guarda comum, os progenitores são casados ou conviventes e habitam numa mesma casa, além disso, deliberam, em comum acor-do, as decisões a serem adotadas com relação aos filhos, ou seja, tra-ta-se de uma guarda desmembrada do poder familiar e ideal para a prole, já que essa espécie é desempenhada por ambos os genitores de forma igualitária.

Outra modalidade de guarda é a chamada guarda única ou ex-clusiva. Essa espécie de guarda passa a existir em consequência do divorcio ou da dissolução da união estável e é exercida por apenas um dos cônjuges. Aqui apenas um dos genitores ficava com a guarda física e jurídica da criança ou do adolescente, controlando e deci-dindo tudo que envolve o menor. Na maioria dos casos, é a mãe que assumia esse controle.

Essa modalidade de guarda ainda pode ser subdividida em provi-soria e definitiva. A primeira é de tal modo designada porque so tem vivência enquanto persistirem as pendências no processo de sepa-ração e divorcio/dissolução de união estável, tornando-se definitiva a partir do momento da prolação de sentença. A quem for conferido a guarda única ou exclusiva da criança será dada a responsabilidade direta pelos filhos, cabendo ao não guardião o direito de visitas.

A guarda alternada, por sua vez, ao contrário do que prevê a co-mum, outorga a ambos os pais o direito de ter a custodia dos filhos. Todavia, esse direito não ocorre concomitantemente para os possui-

73

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

dores, ou seja, a alternância está ligada ao momento em que a criança encontrar-se em habitação com o pai ou a mãe.

Trata-se da possibilidade de ambos os pais terem a guarda dos filhos, mas de forma alternada, estabelecendo-se um período onde cada genitor terá em sua companhia a sua prole. Este tempo deve ser previamente estabelecido pelos pais, ou seja, o direito que cada um dos genitores possui tem início a partir do momento em que inter-rompe o direito do outro com a entrega da criança ou do adolescente.

Registre-se que esse modelo de guarda recebe fortes críticas da doutrina brasileira bem como da de direito comparado em diversos países do mundo, além de ser raramente aplicada pelos tribunais, exceto quando há uma convenção entre as partes.

Registre-se ainda o quarto modelo de guarda, que é o aninhamen-to ou nidação. Tal espécie tem sua eficácia bastante limitada, por ser um tipo raro de guarda dos filhos. Aqui são os pais que se revezam, mudando-se para a casa onde vivem os menores. Esse modelo, pouco usado, observa o princípio da continuidade do lar, ou seja, os filhos permanecem residindo somente em uma casa, e os pais que periodi-camente revezarão nessa residência.

A lei 11.698/2008 modificou os art. 1.583 e 1.584 do Codigo Civil, introduzindo o modelo de guarda compartilhada no Brasil. Originou também o conceito de guarda compartilhada legal concedendo, por-tanto, a possibilidade de aplicação de uma guarda conjunta entre os pais, decretada pelo juiz, em atenção ao interesse dos filhos.

Contudo, foi com a posterior entrada em vigor da Lei 13.058/2014, que alterou o §2º do artigo 1.583 do Codigo Civil, que se visualizou significativa mudança no instituto da guarda compartilhada, passan-do agora a constar expressamente que o tempo de convivência com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre os cônjuges, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses daqueles.

Podemos afirmar que, hodiernamente, a guarda compartilhada vigora como prioritária no ordenamento jurídico brasileiro, tornando

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

74 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

a unilateral uma opção excepcional aplicada somente aos casos em que um dos genitores declarar expressamente o seu desejo de não compartilhá-la ou quando o juiz, de maneira justificada, opinar pela unilateralidade da mesma.

Assim, na guarda compartilhada, o que é compartilhado não é a posse, mas o encargo pela saúde, educação, comodidade, bem estar, entre outros fatores, para a criança e o adolescente. A guarda com-partilhada, hoje aplicada como regra em nosso ordenamento jurídico, veio para reorganizar a família, diminuir os possíveis traumas gera-dos aos filhos e propiciar a estes o conforto, a segurança, o afeto que a presença dos pais provoca em todos os filhos.

Passadas as explicações, vale registrar uma última ressalva no que diz respeito a definição do tipo de guarda, pois ela é mutável e relativa. Em outras palavras, deve sempre ser analisado cada caso específico, podendo a guarda ser modificada a qualquer tempo, pois a decisão que fixa a guarda tem natureza continuativa e precisa sempre estar de acordo com os melhores interesses da criança e do adolescen-te e somente cessa quando o menor atinge a maioridade10.

5 APLICAÇÃO DA GUARDA COMPARTILHADA COMO REGRA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E SUA REPERCUSSÃO PARA O DIREITO DE FAMÍLIA

A guarda compartilhada corresponde a instituto do direito de fa-mília utilizado em sujeição aos princípios da igualdade entre os côn-juges, do poder familiar e, principalmente, ao princípio da proteção integral à criança e ao adolescente.

Tal instituto surgiu por volta da década de 60, na Inglaterra, com a introdução do sistema Common Law, que cooperou com o rompi-mento do tradicional deferimento da guarda única. Por conseguinte,

10 MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda Compartilhada: Física e Jurídica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 103

75

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

as decisões dos tribunais ingleses passaram a beneficiar o interes-se do menor e a igualdade parental, possibilitando assim uma maior convivência entre o pai a mãe e os filhos. O modelo inglês é a verda-deira vanguarda deste exercício conjunto.

Essa noção de guarda compartilhada se espalhou em diversos países, como França, Estados unidos, Canadá, Alemanha, Portugal e Argentina. É importante ressaltar que a aplicação desse tipo de guar-da, nesses países, foi proveniente de motivos diversos, a depender da realidade e dos costumes de cada lugar.

Assim, levando em consideração o historico da aplicação da guar-da compartilhada em outros países, faz-se importante esclarecer que no Brasil não foi diferente.

Devido às transformações sociais e culturais ocorridas por todo o mundo, inclusive com grande destaque para entrada da mulher no mercado de trabalho, assim como a promulgação da Constituição Fe-deral de 1988, que inseriu o conceito de igualdade de direitos entre homens e mulheres, e a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do adolescente e, ainda, a influência do direito comparado, não tardou para o legislador brasileiro, ao formular o Codigo Civil de 2002, en-tender que a melhor condição para o menor deve prevalecer.

Sobre a guarda dos filhos no Codigo Civil de 2002 é válido re-gistrar que a ideia conservadora de guarda unilateral dos filhos foi cada vez mais perdendo espaço, do mesmo modo que a definição e o papel das famílias. A criação de uma nova modalidade de guarda que busca colocar em prática o interesse dos filhos era cada vez mais ine-vitável, ou seja, uma guarda compartilhada entre os pais se tornava o caminho mais adequado à realidade social e cultural da família na atualidade.

Pode-se afirmar que, por todo esse contexto, o direito brasileiro já demonstrava ser capaz de utilizar o novo modelo de guarda, inclusive como forma de eliminar todas as consequências negativas da modali-dade unilateral. Nesse sentido foi que em 13 de junho de 2008 entrou

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

76 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

em vigor no Brasil a Lei 11.698/08 (instituiu e disciplinou a guarda compartilhada), modificada seis anos depois, em 22 de dezembro de 2014, pela Lei 11.058/14 (estabeleceu o significado da expressão guar-da compartilhada e dispôs sobre sua aplicação) que alterou os artigos 1.584, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei Adjetiva Civil.

Esse novo panorama de guarda foi instituído com o escopo de gerar um melhor desenvolvimento dos filhos, com benefícios signifi-cativos para aqueles que tinham convívio diário com ambos os pais. Por conta disso, o melhor interesse dos filhos e a situação igualitária atribuída aos pais, levaram os tribunais a propor em suas decisões guardas conjuntas, acreditando que dessa forma o menor sentiria me-nos o fim do relacionamento dos pais e a família permaneceria, na medida do possível, intacta.

Apos a análise do surgimento historico do instituto da guarda compartilhada, sua conceituação e característica encontram funda-mento em nosso ordenamento jurídico de modo que passou a ter definições muito parecidas entre os doutrinadores, cujas visões, em que pesem as ponderações pessoais de cada um, são apresentadas refletindo a ideia principal expressa na lei.

Importante trazer a conceituação expressa da lei. O art. 1.583, §1º do Codigo Civil11, com redação dada pela Lei 11.698/2008, defi-ne a guarda compartilhada da seguinte maneira: “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um so dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsa-bilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.

Podemos entender que a guarda compartilhada é aquela que gera uma situação jurídica de responsabilização conjunta dos genitores que, de forma igualitária, mesmo separados judicialmente ou divor-

11 BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br /ccivil_03 /leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 27 jul. 2017.

77

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

ciados, mantém juntos o direito de guarda e responsabilização dos menores, ou seja, os pais irão manter o poder familiar sobre os filhos exercendo direitos e deveres.

Podemos dizer ainda que a guarda compartilhada é um modelo que acarreta um menor surgimento de sequelas emocionais e sociais no desenvolvimento dos filhos possuindo a finalidade de minimizar os traumas tendo em vista que a ausência do referencial materno ou paterno traz consequência inimagináveis, acabando por desenvolver na criança lacunas psíquicas ou, ainda, um conflito de lealdade po-dendo ocasionar, também, uma divisão na personalidade dos filhos comprometendo, portanto, a integridade psíquica do menor12.

Desse modo, a guarda compartilhada é um poderoso instrumento de auxílio para os casais que romperam o vínculo conjugal, pois pro-porciona a possibilidade de participação ativa na vida dos filhos bem como na tomada de decisões exercendo os genitores, portanto, com plenitude, o poder familiar.

Em meio a tudo isso, a guarda conjunta provocou entre os doutri-nadores brasileiros uma forte divergência no que tange as inúmeras vantagens e desvantagens do modelo, e com bastante propriedade se-rão descritas abaixo.

Entre as vantagens, podem ser citadas: a importância para o me-nor que a guarda compartilhada promoverá, já que permanecerá ten-do uma relação constante com ambos os genitores, primordial para o desenvolvimento dos filhos; evitará que aquele ascendente que ficou sem a guarda, hipotese possível em outras modalidades, se ausente da responsabilidade, não transmitindo ao menor tudo aquilo que um verdadeiro genitor, presente na vida dos filhos, deve fazer.

Por outro lado, inúmeros são os argumentos contrários à guarda compartilhada. Entre as desvantagens, podemos apontar: o fato de so poder ser utilizado por casais que, mesmo com término da relação

12 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 201.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

78 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

amorosa, mantém um bom convívio, isto é, condições de acordarem conjuntamente sobre todos os assuntos relacionados aos menores. Es-tando os genitores brigados e em permanente conflito, a solução é in-serir a guarda unilateral, restando ao genitor que ficar sem a guarda, o direito de visita.

A lei 13.058/2014 foi publicada no Diário Oficial da União em 23 de dezembro de 2014 e alterou os artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 do Codigo Civil estabelecendo o significado da expressão guar-da compartilhada e dispondo sobre sua aplicação13.

O advento da Lei 13.058/14 trouxe inovações para o Direito de Família e uma de suas maiores repercussões é o fato do instituto da guarda compartilhada ser utilizada como prioridade, não ficando mais como uma segunda opção. Os genitores separados agora passam a ter tempo de convívio de modo igualitário e equilibrado e deveram decidir sobre os interesses do filho em cooperação conjunta. Ressalta-se que mesmo não havendo acordo entre os pais, o juiz, ainda assim, poderá decidir pela aplicação da guarda compartilhada de maneira que não será excepcionalmente aplicada nas seguintes hipoteses: quando, havendo motivos graves as condições fáticas contraindica-rem; quando não atender aos superiores interesses do menor; se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do me-nor; e quando o juiz verificar que o folho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe.14

Pela dicção do artigo 1.583 do Codigo Civil, podemos perceber que o conceito de guarda compartilhada não foi modificado com a inserção da Lei 13.058/14, continuando a ser entendida como “a res-ponsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.

13 BRASIL. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13058.htm>. Acesso em: 01 ago. 2017.

14 MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda Compartilhada: Física e Jurídica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 231

79

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

Entretanto, aludido artigo trouxe uma nova repercussão para o Direito de Família ao apresentar um novo conceito de guarda com-partilhada em §2º para completar o conceito já inserido pela lei 11.698/08. Podemos afirmar que agora o instituto passa a contemplar duas modalidades de guarda, quais sejam: guarda compartilhada le-gal e guarda compartilhada física.

Desse modo, é correto afirmar que a lei 11.698/08 trata da guarda compartilhada em sua essência ao impor o compartilhamento efetivo das responsabilidades dos pais para com seus filhos, garantindo, as-sim, o exercício do Poder Familiar, do qual nenhum genitor pode se esquivar em razão do fim do vínculo conjugal. A 13.058/14, por sua vez, reflete a pura posse física da criança.

Induvidosamente, as legislações em vigor ampliam a participação dos pais em relação aos cuidados que devem dedicar aos seus filhos, mas outra repercussão importante diz respeito a dificuldade que ine-vitavelmente poderá surgir na aplicação da guarda compartilhada fí-sica já que haverá uma decisão de como será feita a distribuição tem-poral da criança e do adolescente de modo que consiga contemplar igualitariamente o pai e a mãe.

Seja qual for a forma de distribuição equitativa de tempo decidi-da pelos genitores (diária, semanal, quinzenal, semestral) é de bom alvitre relembrar que sempre deve ser considerado as prioridades dos filhos e o melhor interesse para eles. Por esse contexto, é que o §3º do art. 1.583 do Codigo Civil estabeleceu que: “Na guarda compartilha-da, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos”, ou seja, a prole terá uma residência fixa tendo em vista que a distância geográfica não impede o compartilhamento físico da guarda e nestes casos haverá uma alter-nância maior de períodos devendo comportar o calendário escolar e o interesse da criança.

Outro ponto importante é sobre como será conduzida a determi-nação da guarda dos filhos. Sobre esse assunto a Lei 13.058/14 passou

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

80 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

a trazer uma repercussão diferente em nosso ordenamento jurídico deixando claro sua predileção pela compartilhada inclusive preven-do que tal modalidade deve ser estimulada pelo magistrado.

Assim, segundo os inciso I e II do art. 1.584 do Codigo Civil15 a guarda compartilhada poderá ser: “requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divorcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribui-ção de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe”.

A legislação, entretanto, vai mais além e ainda prevê a possibili-dade de o juiz impor o compartilhamento, mesmo não havendo um consenso entre os pais e restando demonstrado que os dois estão ap-tos a exercê-lo.

O §2º do art. 1.584 do Codigo Civil trata a guarda compartilha-da como um mandamento para magistrado tornando-a automática aos genitores que estiverem aptos a criar seus filhos. Neste momento deve o juiz impor regras claras e atribuir os encargos de cada genitor, podendo se valer, caso necessário, de auxiliares técnicos como psico-logos e assistentes sociais e, ainda, do parecer ministerial para dividir o tempo da criança de forma equilibrada entre o pai e mãe, conforme orienta o §3º do art. 1.584 do Codigo Civil.

O compartilhamento da guarda legal e física por imposição ju-dicial recebe críticas por parte da doutrina já que seria impossível não questionar a convivência quando não existe o consenso dos pais, justo quando a prática do instituto prevê participação conjunta e colaboração dos genitores para darem continuidade ao exercício recí-proco da autoridade parental.

Mesmo diante das ponderações doutrinárias, o Superior Tribunal de Justiça tem posicionando firme no sentido de impor o exercício conjunto das funções e responsabilidades parentais.

15 BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 02 ago. 2017.

81

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

Em relação ao §4º do art. 1.584 do Codex16, ficou estabelecido que na audiência de conciliação, o magistrado irá informar a ambos os pais a respeito das sanções que podem ser impostas caso haja o descumprimento de suas atribuições, advertindo-os quanto a neces-sidade de estrita obediência ao que foi decretado ou homologado ju-dicialmente.

No tocante a possibilidade de se atribuir a guarda a terceira pes-soa, trata-se de um método excepcional, conforme preleciona o §5º do art. 1.584 do Codigo Civil17, devendo ser adotado como critério de escolha o melhor interesse para a criança ou adolescente, priorizando o grau de parentesco e as relações e afetividade e afinidade.

Estando o pai e a mãe desabilitados e desaconselhados de prati-carem a guarda do infante, seja ela unilateral ou compartilhada, ante a incapacidade de exercerem o poder familiar deve o juiz conferir a guarda a terceiro. Nesse caso, geralmente são os avos que se ocupam das tarefas que os genitores deveriam preencher.

Por último, conforme estabelecido no §6º do art. 1.584 do Co-dex18, os estabelecimentos públicos ou privados são obrigados a pres-tarem informações para ambos os genitores sobre os filhos e em caso de descumprimento da solicitação podem sofrer pena de multa diária de R$200,00 (duzentos) a R$500,00 (quinhentos reais).

As repercussões advindas das interferências ocasionadas pelo advento da Lei 13.058/2014 almejam, em verdade, a efetiva concre-tização dos princípios de proteção e do melhor interesse da criança e do adolescente motivo pelo qual o intérprete da norma deve com-preender as necessidades dos menores incapazes envolvidos com o escopo de mostrar aos pais que a guarda compartilhada é um pode-roso instrumento de auxílio, adequado ao desenvolvimento da prole

16 ________. Código Civil de 2002. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br /ccivil_03 /leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 03 ago. 2017.

17 Idem.18 BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br /ccivil_03 /

leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 03 ago. 2017.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

82 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

notadamente por proporcionar a possibilidade de participação ativa na vida deles.

5. CONCLUSÃO

O presente trabalho abordou a importância de a guarda compar-tilhada hoje ser utilizada como regra em nosso ordenamento jurídico e sua repercussão para o Direito de Família. É certo que o padrão fa-miliar em vigor é caracterizado pela regularidade de funções entre os pais que dividem conjuntamente e de forma equilibrada as responsa-bilidades com a prole. Neste contexto, pais responsáveis e correspon-sabilidade parental são vocábulos empregados com frequência nas relações familiares de maneira que o contexto previsto na legislação, no que tange a guarda dos filhos, não pode ser aplicado sem acolher o princípio da proteção integral, por se tratar de um direito fundamen-tal do indivíduo menor e incapaz.

Pode-se afirmar que esse trabalho procurou refletir e analisar de forma mais aprofundada a questão da guarda compartilhada, já que esse tema apresenta bastante discussão na doutrina e na jurisprudên-cia, principalmente no que diz respeito a guarda compartilhada legal e física bem como a possibilidade de o juiz aplicar a guarda conjunta mesmo sem o consenso dos pais.

Desse modo, deve ser levado em consideração que ainda mais importante do que a determinação da guarda legal e física é a for-ma como os genitores irão desempenha-la. Quando estes, de manei-ra concreta, acatam e colocam primeiramente a peculiar situação da criança e do adolescente, priorizando seus interesses acima de qual-quer pretensão, estão exercendo o Poder Familiar de forma equilibra-da e respeitando o melhor interesse da prole.

Impende registrar ainda que o objetivo do trabalho foi analisar e demonstrar que a guarda compartilhada é um padrão legítimo que proporciona a continuidade, de forma real, do vínculo que já existia

83

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

entre filhos e pais antes do rompimento do vínculo conjugal do ca-sal, possibilitando, assim, o desenvolvimento físico e psicologico dos infantes.

Dessa forma, o presente trabalho pretendeu demonstrar que esse modelo de guarda conjunta objetiva a harmonia entre as funções pa-rentais, a democratização das afeições entre todos os integrantes do vínculo afetivo e as atividades e responsabilidades praticadas pelos genitores exercidas de forma igualitária quando colocados no papel parental. Também procurou esclarecer qual a importância do papel desempenhado pelo Poder Judiciário no assunto, uma vez que este tende a impor a instituição da guarda compartilhada já que esta não se sujeita as desavenças entre os cônjuges separados.

Diante disso, é perfeitamente válido e louvável o posicionamen-to que vem sendo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, no to-cante à guarda compartilhada, uma vez que está se posicionando de tal forma que os genitores devam deixar a animosidade de lado para estreitarem seus laços de afetividade. O que importa é o desenvolver da consciência dos genitores para começarem a enxergar que seus vínculos de consanguinidade e afeição estão ligados aos filhos para toda a vida, do mesmo modo que os direitos e deveres que possuem diante dos menores.

Portanto, conferida a ambos os genitores a responsabilidade sobre os filhos, de forma igualitária e simultânea, o desfrute no convívio, possibilitado pela guarda compartilhada, se mostra essencial para o progresso dos filhos já que os enriquecerá emocionalmente e permiti-rá a edificação dos vínculos afetuosos benéficos, expressivos e praze-rosos para todos que fazem parte dessa relação. Além do que dispõe de um novo equilíbrio nos direitos e obrigações dos genitores, o que beneficia diretamente as determinações judiciais tornando-as mais justas e em conformidade com os anseios da família moderna.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

84 Felipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE. Fabíola Santos. Famílias No Direito Contemporâneo. Es-tudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. 1 ed. Bahia: JusPodivm, 2010.

BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br /ccivil_03 /leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 08 jun. 2017.

_________. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dis-ponível em: < http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui-cao.htm>. Acesso em: 08 jun. 2017.

_________. Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 08 jun. 2017.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda Compartilhada: Física e Jurídica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

TARTUCE, Flávio. SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família. 5 ed. São Paulo: Método, 2010.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Bárbara Ferreira dos Reis

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, Pos graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Guanambi e Analista de Direito do Ministério Público de Sergipe.

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

RESUMOA proteção do meio ambiente é atualmente tratada como uma matéria de ordem pública constitucional, caracterizada como de interesse difuso, pois é do interesse de todos os cidadãos, tanto no que pertine ao controle quanto à prevenção de danos ambientais. Por conseguinte, o Direito Ambiental, antes de ser uma ramo de natureza repressiva, busca, primordialmente, prevenir danos ao meio ambiente e ao homem. E, em decorrência do interesse público estar acima dos interesses privados, bem assim, considerando-se que a preservação do meio ambiente e do bem estar social são direitos constitucionalmente garantidos, cabe ao Ministério Público a sua defesa, na omissão da Administração Pública, visando garantir a saúde e o bem-estar da comunidade. Para tal intento, dispõe de importantes mecanismos extrajudiciais para a defesa desse bem jurídico, dentre os quais citam-se: o inquérito civil, a firmatura de termos de ajustamento de conduta e a divulgação de recomendações.Palavras-Chave: meio ambiente; ministério público; mecanismos extrajudiciais.

ABSTRACTProtection of the environment is currently treated as a matter of constitutional law and order, characterized as a diffuse interest as it is in the interest of all citizens, both in respect to the control for the prevention of environmental damage. There-fore, the Environmental Law, before a branch repressive nature, seeks primarily to prevent damage to the environment and man. And, due to the public interest be above private interests, as well, considering that the preservation of the environment and social welfare are constitutionally guaranteed rights, it is up to the prosecutor for his defense, the omission of Public Administration, aiming ensure the health and community well -being. For this purpose, has significant extra-judicial mechanisms for the protection of legal texts, among which we mention: the civil investigation, the making terms of adjustment of conduct , dissemination of recommendations and the holding of public hearings with the entities involved in the cause.Keywords: environment; public ministry; extra-judicial mechanisms.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

86 Bárbara Ferreira dos Reis

INTRODUÇÃO

O meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado passou a ser visto como um direito fundamental de todos apos a Constituição Federal de 1988. Ou seja, a nossa atual Constituição reconheceu que as questões relativas ao meio ambiente são de suma importância para a sociedade, eis que se trata de bem de uso comum do povo e essen-cial a uma sadia qualidade de vida.

Esse fato acarreta, não somente ao Estado, mas também aos par-ticulares e à coletividade, o dever de proteger o meio ambiente, de-fendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Por essa razão, tem-se que qualquer violação ao direito ambiental deva ter, por consequência, a responsabilização do infrator.

Dessa maneira, notando-se que o meio ambiente está cada vez mais vulnerável, numa sociedade de riscos como a atual, faz-se im-prescindível uma atuação preventiva e eficaz do Estado a fim de que seja assegurado o equilíbrio ecologico. O Ministério Público, como integrante do Poder Estatal possui, pois, a missão constitucional de atuação pro-ativa em prol da preservação ambiental, porquanto a sua anterior posição no ordenamento jurídico, qual seja, reativa, proces-sual e judicial, com toda a burocracia que lhe é peculiar, não seria eficaz para a causa ambiental.

Cabe, assim, ao Ministério Público, a função de fiscalizar a atua-ção administrativa dos orgãos que fazem parte da Administração Pú-blica e que atuam no amparo ao meio ambiente, além de promover a Ação Civil Pública, na esfera judicial, pois ele possui o dever consti-tucional de proteger o meio ambiente, tanto nas esferas civil e penal, quanto na administrativa.

A ação do Promotor de Justiça que atua nas causas ambientais tende, por isso, a ser dinâmica, exercendo ele uma importante fun-ção social e utilizando-se dos mecanismos que lhe foram assegurados para exercer a sua função constitucional, como o inquérito civil, o

87

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

procedimento administrativo, o termo de ajustamento de conduta, as recomendações e a realização de audiências públicas.

2. MISSÃO INSTITUCIONAL

Com o advento da Constituição de 1988, o Ministério Público ad-quiriu uma nova missão institucional, tendo obtido inúmeras con-quistas no sentido de angariar novas garantias e funções. E isso teve por objetivo principal dotar a Instituição, que é de extrema impor-tância para a defesa dos interesses difusos e coletivos da sociedade atualmente, de mecanismos eficientes de atuação, garantindo-lhe li-berdade de atuação na busca do interesse público.

Ressalte-se que, hoje, há um grande movimento de conscientiza-ção mundial quanto à defesa do meio ambiente, e, diante de tal fato, o legislador constituinte vem buscando mecanismos para a sua prote-ção, através de uma tutela efetiva, que, além de promover o controle e a redução da degradação dos recursos naturais, também promova uma conscientização da população.

Eis a redação dos artigos 127, caput, e 129, III do texto constitu-cional:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente,

essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-

lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos

interesses sociais e individuais indisponíveis.

Art. 129. São Funções institucionais do Ministério Público:

[...]

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a

proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de

outros interesses difusos e coletivos;

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

88 Bárbara Ferreira dos Reis

Esse diploma normativo atual, então, consagrou o papel do Mi-nistério Público na busca dos interesses difusos e coletivos, através da promoção de instrumentos extrajudiciais como o inquérito civil, além das medidas judiciais disponíveis, a exemplo da ação civil pú-blica, para a proteção, dentre outros aspectos, do meio ambiente.

No que concerne aos direitos sociais constitucionalmente fixa-dos, caracterizando-se o Ministério Público como seu defensor pelo texto do artigo 127, considere-se que todo e qualquer ato atentatorio a eles dará ensejo à atuação ministerial.

Quanto à defesa do meio ambiente, essa missão institucional pode ser mais facilmente identificada, diante da imperiosa necessi-dade de proteção do meio ambiente como forma de assegurar a sadia qualidade de vida essencial à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do ordenamento jurídico nacional.

De fato, depreende-se que a nova configuração constitucional do orgão ministerial o fez evoluir do mero papel de acusador no processo penal e “fiscal da lei” no processo civil, para assumir uma posição pro-ativa em relação aos direitos sociais e individuais indisponíveis, notadamente em relação a matérias relativas ao meio ambiente, con-sumidor, saúde e patrimônio público.

Com o intuito de dar efetividade às normas constitucionais cria-doras de direitos fundamentais, a exemplo dos direitos sociais e di-fusos, dentre os quais está inserido o direito ao meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Constituição Federal1, impõe-se a atuação incisiva do Ministério Público, a quem compete assegurar a materialização dos ditames constitucionais no Estado So-cial e Democrático de Direito.

Entretanto, o tema não se restringe somente aos dispositivos constitucionais, mas também existem normas infraconstitucionais

1 CF. Art. 225. caput: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

89

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

que versam a respeito, como é o caso da Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação.

Objetivando a tutela do meio ambiente, pois, o orgão ministerial possui diversos intrumentos extrajudiciais que fortalecem a sua atua-ção, como o inquérito civil, o compromisso de ajustamento de conduta e a expedição de recomendações, no intuito de resolver as problemáti-cas emergentes acerca da matéria, os quais serão tratados a seguir.

3. INSTRUMENTOS EXTRAJUDICIAIS DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

Mesmo que a ação civil pública seja atualmente reconhecida como um caminho adequado para a efetivação dos direitos garantidos pela Ordem Constitucional no âmbito Socioambiental, é imperioso reconhecer os muitos obstáculos a serem vencidos para assegurar-lhe a efetividade.

Existem outras razões, ademais, para que se dê preferência à so-lução extrajudicial dos conflitos, que se apresenta como a via mais célere e eficaz de defesa dos interesses coletivos lato sensu tutelados pelo Ministério Público. De fato, tem a Instituição optado, moderna-mente, pela busca da composição dos litígios na via administrativa, relegando a judicialização das questões ambientais a segundo plano, caso não obtenha êxito na atuação extrajudicial.

Poder-se-ia acrescentar, ademais, que na esfera extrajudicial tra-balha-se com o mútuo acordo, contando o Ministério Público com a boa-vontade do responsável para o cumprimento voluntário das obri-gações, o que passa a inexistir quando do ajuizamento de demanda perante o Poder Judiciário.

De outra parte, extrajudicialmente pode o Ministério Público ob-ter resultados mais efetivos, não so pela celeridade ou até imediatida-de, mas também pela qualidade da atitude pretendida.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

90 Bárbara Ferreira dos Reis

De fato, na via extrajudicial tem o Ministério Público a possibili-dade de considerar todos os fatores que envolvem a questão analisa-da, prevendo a realização dos atos pretendidos em prazos razoáveis e com a superação das etapas necessárias, inclusive financeiras.

Assim, através dos instrumentos do Inquérito Civil, das Reco-mendações e do Compromisso de Ajustamento de Conduta, que sur-gem como alternativas à jurisdição, pode o Ministério Público atingir com maior eficiência os seus objetivos constitucionais.

Ressalte-se, todavia, que a utilização desses mecanismos alter-nativos não ofende o monopolio da jurisdição, tendo em vista não constituirem meios impositivos, já que dependem da anuência do eventual transgressor da norma. O seu cumprimento forçado, portan-to, necessita da judicialização, seja pela propositura de ação civil pú-blica ou pela execução de compromisso de ajustamento de conduta.

Acerca desse novo papel institucional do Ministério Público, vale a pena mencionar o comentário do doutrinador Edis Milaré:

Além disso, pode também o promotor de justiça celebrar

acordos extrajudiciais em matéria ambiental, com força de

título executivo, de modo a desafogar o já saturado aparelho

judiciário de uma pletora de processos.

Trata-se, mais que tudo, de uma notável transformação, que

colocou o Brasil como um dos países pioneiros no mundo de

uma nova função do Ministério Público, e fez com que este

se firmasse como a instituição mais bem credenciada para a

tutela dos interesses sociais, difusos e coletivos, na ordem civil.

Isto sem prejuízo de sua tradicional atuação na área criminal,

inclusive na repressão aos chamados crimes ecologicos.”

(MILARÉ, 2005, p. 241)

91

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

3.1. Inquérito civil

Trata-se de um mecanismo utilizado exclusivamente pelo orgão ministerial, o qual permite ao Promotor de Justiça que o preside a reu-nião dos documentos necessários para a formação de sua convicção sobre os fatos trazidos ao seu conhecimento, apontados como viola-dores de interesses e direitos merecedores de tutela no âmbito das atribuições conferidas à Instituição.

Através dele, e no uso de suas prerrogativas requisitorias, o Mi-nistério Público pode ter acesso às informações necessárias ao deslin-de da questão posta, sendo colecionada a prova sem intermediários, além de possibilitar a sua conclusão através da adoção de uma solu-ção legitimada, inclusive, pelo consenso entre as partes.

O Inquérito Civil é essencialmente inquisitorio, desempenhando um tríplice papel, qual seja: o preventivo, quando objetiva a firma-tura de um compromisso de ajustamento de conduta, ao impedir a ocorrência de um dano iminente; o reparatorio, ao ensejar a colheita e análise dos elementos necessários à propositura da ação civil pública pelo dano causado ao meio ambiente; e o repressivo, quando serve como subsídio ao ajuizamento de uma ação penal pública.

Nesse sentido, o Inquérito Civil é fundamental, embora não obri-gatori, à busca da verdade que deve orientar a atuação ministerial, identificando-se, através desse importante meio, os interesses por-ventura atingidos e as soluções mais adequadas ao caso concreto.

Nesse sentido, pode o Ministério Público utilizar-se do Inqué-rito Civil para formar sua convicção quanto à licitude da omissão administrativa na implementação de políticas públicas em matéria ambiental, de modo a embasar sua atuação e a possibilitar a conclu-são do procedimento pela realização de compromisso de ajustamento de conduta, pela expedição de recomendação, pelo ajuizamento de demanda junto ao Poder Judiciário ou pelo arquivamento dos autos perante o Conselho Superior do Ministério Público.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

92 Bárbara Ferreira dos Reis

3.2. Recomendação

O poder de recomendar do Ministério Público está previsto em três modalidades legais, sendo a primeira delas específica ao âmbi-to da Infância e Adolescência, no art. 201, §5º, alínea “c”, da Lei nº 8.069/90. As duas modalidades restantes interessam ao presente es-tudo, por se adequarem a diversas hipoteses de incidência, estando previstas no art. 27, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), e no art. 6º, inciso XX, da Lei Complementar nº 75/93 (Estatuto do Ministério Público da União).

Destaca-se o presente instrumento, sobretudo, no exercício da função política2 do órgão ministerial, possuindo uma eficácia solucionadora dos conflitos em boa parte dos casos postos à sua apreciação. De fato, atra-vés da expedição de recomendação, tem o Ministério Público a possibilidade de corrigir condutas de forma a evitar a produção de danos ou minorar os já causados.

No âmbito das políticas públicas, especialmente, a atuação do Ministério Público, por meio desse mecanismo, abre espaço ao cumprimento espontâneo pelo responsável dos deveres alusivos à concretização dos direitos e garantias expressos na Ordem Constitucional Socioambiental.

A espontaneidade referida deve-se ao fato de que a recomendação minis-terial não se impõe como ordem de coação: seu descumprimento não implica execução forçada, visto que não se constitui em título executivo. Assim, ao ente recomendado cabe a decisão acerca de sua observância ou não, sendo cer-to que o recebimento da recomendação o cientifica das possíveis conseqüên-cias do seu não-cumprimento. Nesse último caso, permite-se, quando cabível, a via judicial de solução de controvérsias.

Os ditames objetos de ciência por meio da recomendação também abran-ge o conhecimento da inadequação de determinada conduta (ativa ou omissi-

2 Hugo Nigro Mazzilli (“O Inquérito Civil”, p. 415) destaca, além da força moral, a força polí-tica da recomendação.

93

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

va) levada a efeito pelo destinatário. Afasta-se, com isso, eventual alegação futura de boa-fé na sua atuação.

Não restam dúvidas, por fim, em relação à eficácia e à conveniência da utilização responsável do poder de recomendar pelo Ministério Público. Espe-cialmente quando as posturas desejadas digam respeito à realização progressi-va de ações tendentes a garantir o exercício de direitos assegurados constitu-cionalmente, mostra-se a recomendação como instrumento hábil à consecução das finalidades institucionais.

Assim entende a estudiosa Luiza Cristina Fonseca Frischeisen:

A Recomendação, na área dos direitos sociais, permite a

administração incorporar em seu ordenamento e planejamento

de políticas públicas, linhas de atuação que auxiliam o

efetivo exercício dos direitos assegurados na Constituição,

possibilitando também a conciliação de interesses, que

foram levados pela Sociedade Civil ao Ministério Público,

ou que surgiram da propria ação de fiscal da lei do Parquet.

(FRISCHEISEN, 2010)

Pode o Ministério Público, pois, estimular a definição de políticas públicas da Ordem Socioambiental também através do importante instrumento da recomendação, de notável caráter moral e político, além de eficácia comprovada no plano fático.

Além desses três mecanismos extrajudiciais já referidos, o ente ministerial também pode se valer de outros meios de resolução ex-trajucial das problemáticas ambientais, seja através da realização de audiências públicas com outros entes sociais, da participação em conselhos deliberativos, da atuação política em geral, da atuação no processo legislativo ou, até mesmo, por meio da fiscalização de Fun-dos e Conselhos Gestores da área.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

94 Bárbara Ferreira dos Reis

3.3. Compromisso de ajustamento de conduta

O compromisso de ajustamento de conduta é, sem dúvida, o mais relevante instrumento de atuação extrajudicial do Ministério Público. Revestindo-se de natureza de título executivo, na forma do art. 5º, §6º, da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), introduzido pelo Codigo de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90)3, constitui uma fer-ramenta corriqueira de alcance de suas finalidades institucionais na defesa dos interesses e direitos protegidos.

O estudioso Hugro Nigro Mazilli (2008, p. 406) destaca as seguintes ca-racterísticas do termo de ajustamento de conduta:

a) é tomado por termo por um dos orgãos públicos legitimados à

ação civil pública; b) nele não há concessões de direito material

por parte do orgão público legitimado, mas sim por meio dele

o causador do dano assume obrigação de fazer ou não fazer

(ajustamento de conduta às obrigações legais); c) dispensa

testemunhas instrumentárias; d) dispensa a participação de

advogados; e) não é colhido nem homologado em juízo; f)

o orgão público legitimado pode tomar o compromisso de

qualquer causador do dano, mesmo que este seja outro ente

público (so não pode tomar compromisso de si mesmo); g) é

preciso prever no proprio título as cominações cabíveis, embora

não necessariamente a imposição de multa; h) o título deve

conter obrigação certa, quanto à sua existência, e determinada,

quanto ao seu objeto, e ainda deve conter obrigação exigível.

O compromisso assim obtido constitui título executivo

extrajudicial.

3 L. 7.347/85. Art. 5o. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: [...] §6° Os orgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajusta-

mento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.

95

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

No âmbito das políticas públicas da Ordem Socioambiental Cons-titucional, poderão ser tomados pelo Ministério Público compromis-sos de ajustamento de conduta dos entes públicos responsáveis pelas ações materiais que assegurem à coletividade a fruição dos direitos assegurados na Constituição de 1988. Assim, é atribuição do orgão ministerial a definição de políticas locais para o trato da questão ambiental, obrigando o Poder Público, mediante o compromisso de ajustamento de suas atividades, por meio da adoção das providências necessárias e adequadas ao atingimento das finalidades do Estado So-cial de Direito.

Ademais, esse mecanismo de resolução de questões ambien-tais proporciona uma melhora na imagem do administrador público diante da sociedade. Isso porque há um grande desgaste político no acionamento da Administração Pública perante o Poder Judiciário, quando aquela descumpre a lei. Sendo assim, o termo de ajustamento de conduta, ao ser celebrado espontaneamente, demonstra a vonta-de política do administrador em ajustar-se à vontade do detentor do poder político expressa na lei, o que resulta em uma melhor imagem daquele perante a opinião pública.

Evidencia-se, pois, a posição privilegiada que ocupa o compro-misso de ajustamento no trato das questões ambientais. Esse mecanis-mo, indubitavelmente, ocupa um espaço único na busca da solução ambientalmente adequada ao caso concreto, visto que poderão ser previstos nesse instrumento todas as nuances da problemática posta em exame, em especial questões técnicas, temporais e financeiras.

Em se tratando de título executivo extrajudicial, tem-se que se o acordante não cumprir as condições nele previstas, ensejará a execu-ção do título, sendo-lhe permitida a defesa via embargos, na forma do art. 725, V, do CPC.

Caso o dano seja irreversível, caberá a indenização em dinheiro. Poderá, entretanto, ser estabelecida uma cláusula penal, que servirá como uma espécie de pena pecuniária. Tais quantias deverão ser re-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

96 Bárbara Ferreira dos Reis

vertidas ao fundo gerido pelo Conselho Federal ou pelos Conselhos Estaduais (art. 13, LACP4).

O compromisso de ajustamento de conduta eficaz poderá acarretar o impe-dimento da propositura de uma ação civil pública, seja pelo órgão público que o assina, seja pelos demais entes, em decorrência da falta de interesse de agir.

Entretanto, não estarão excluídas as demais responsabilidades ambien-tais, como a administrativa e a penal, excluindo-se apenas a civil e produzin-do-se efeitos entre as partes.

3.4 Audiências Públicas

As audiências públicas a serem realizadas pelo Ministério Públi-co no âmbito de atuação extrajudicial tratam-se de reuniões em que a sociedade e as pessoas interessadas possam discutir acerca de um determinado tema de interesse social, no intuito de obter e agrupar opiniões e sugestões, a fim de que o Ministério Público possa adotar as providências cabíveis para a solução do objeto da discussão, ins-taurando o procedimento administrativo correspondente, se cabível.

Destaque-se, nesse ponto, o que dispõe o art. 27, inciso IV, da Lei nº 8.625 (Lei Orgânica do Ministério Público):

Art. 27 Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos

assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que

se cuidar de garantir-lhe o respeito:

4 Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.

§ 1o. Enquanto o fundo não for regulamentado, o dinheiro ficará depositado em estabeleci-mento oficial de crédito, em conta com correção monetária.

§ 2o Havendo acordo ou condenação com fundamento em dano causado por ato de discri-minação étnica nos termos do disposto no art. 1o desta Lei, a prestação em dinheiro reverterá diretamente ao fundo de que trata o caput e será utilizada para ações de promoção da igual-dade étnica, conforme definição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, na hipotese de extensão nacional, ou dos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial esta-duais ou locais, nas hipoteses de danos com extensão regional ou local, respectivamente.

97

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

I - pelos poderes estaduais e municipais;

[...]

Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este

artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências:

[...]

IV - promover audiências públicas e emitir relatorios, anual

ou especiais, e recomendações dirigidas aos orgãos e entidades

mencionadas no “caput” deste artigo, requisitando ao

destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como

resposta por escrito. (Grifo do autor)

Também, é de interesse mencionar o relevante apontamento feito pelo doutrinador Hugro Nigro Mazilli (2002, p. 325-327) acerca des-ses instrumentos extrajudiciais de atuação do Parquet:

[...] as audiências públicas competidas ao Ministério Público, consi-

derada a sua relevância para o desempenho da missão institucional

do Parquet. Observa que se trata de um mecanismo novo na legis-

lação orgânica da Instituição, importado de outros países onde ser-

via para que os cidadãos participassem da gestão da coisa pública,

envolvendo-os no proprio processo de decisão do Governo, reves-

tindo, assim, a decisão, de maior publicidade e legitimidade.

As audiências públicas são instrumentos fundamentais de par-ticipação popular no processo de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), por exemplo, cuja realização se dá depois da execução do Estu-do de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatorio de Impacto Ambiental (RIMA), com a consequente apresentação destes ao orgão ambiental. A sua realização, pois, caracteriza-se em um processo educativo, uma vez que o orgão fornece informações ao público, promovendo a divul-gação e a discussão do projeto e de seus impactos.

O público, assim, repassa as informações à administração públi-ca, por meio dessas audiências, as quais servirão de subsídio à análise

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

98 Bárbara Ferreira dos Reis

e emissão de parecer final sobre o empreendimento proposto, para fins de obtenção de licenciamento ambiental.

As audiências públicas, na seara ambiental, servem, dentre ou-tras utilidades, para informar, discutir, ouvir opiniões e tirar dúvidas sobre assuntos alvos de anseios da comunidade, especialmente da população diretamente afetada, cujas preocupações o orgão ministe-rial encarregado do licenciamento respectivo levará em consideração no procedimento decisorio sobre a aprovação ou não do projeto obje-to de discussão.

Pelo exposto, denota-se que essas reuniões promovidas pelo or-gão ministerial com entes da sociedade na defesa do meio ambiente, representam, em verdade, a passagem de uma democracia represen-tativa para uma democracia mais participativa.

A realização de audiências públicas pelo Ministério Público, que é posta como um dos meios mais importantes para o desempenho de sua missão institucional, proporciona a coleta de fortes subsídios para a sua atuação na defesa de relevantes interesses público que lhe são confiados, no objetivo de que sejam adotadas, por ele, providên-cias mais proximas da realidade e dos anseios da coletividade, legiti-mando, ainda mais, suas ações.

O juízo de conveniência acerca da necessidade de realização de audiências públicas, a depender da complexidade do problema, será feito pelo Membro do Ministério Público, representado pelo Promotor ou pelo Procuador de Justiça, que será responsável pela expedição do ato convocatorio e do regulamento para o correto processamento da audiência, em conformidade os objetivos perseguidos.

As reuniões que objetivam a concessão de licenciamento ambien-tal serão integradas, dentre outras pessoas ou orgãos eventualmente interessados, pelo representante do orgão ambiental, pelos membros da equipe de consultoria, responsáveis pela elaboração do EIA/RIMA, pelo empreendedor ou seu representante legal, pelo solicitante da au-diência pública (orgão ministerial) e pelo público interessado.

99

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Designado constitucionalmente para a tarefa de salvaguardar a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e indivi-duais indisponíveis, conta o Ministério Público, hoje, com um pode-roso instrumental voltado à tutela desses valores, judicial e extrajudi-cialmente, podendo tais mecanismos serem utilizados para o controle da omissão administrativa na implementação de políticas pública da área ambiental, por exemplo.

No campo extrajudicial, por sua vez, faz-se mister reconhecer a excelência dos mecanismos postos à disposição do Ministério Públi-co, dentre os quais se destacam o inquérito civil, o compromisso de ajustamento de conduta, a expedição de recomendações e a realiza-ção de audiências públicas como meios céleres e eficazes de solução de conflitos, surgidos como uma alternativa à jurisdição, revestindo--se, inclusive, o termo de ajustamento de conduta, da qualidade de título executivo extrajudicial.

O Ministério Público, seja como provocador da ação do Judiciário, seja atuando extrajudicialmente através de algum dos meios legalmente assegurados, deve reunir esforços no sentido de buscar a efetiva imple-mentação de políticas públicas imprescindíveis a assegurar à coletividade o gozo dos direitos consagrados na Constituição Federal, dentre os quais se situa o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Hoje, torna-se imprescindível que o representante ministerial se-lecione as demandas que serão levadas a Juízo, tendo em vista que não seria conveniente deixar a sociedade suportar a grande delonga na resolução dos litígios que são submetidos à apreciação do Poder Judiciário, agravando-se e comprometendo-se, muitas vezes, a pacifi-cação dos conflitos sociais.

O Ministério Público, então, torna-se uma Instituição essencial no contemporâneo regime democrático de direito, à medida que atua como um guardião da cidadania e defensor dos interesses sociais e

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

100 Bárbara Ferreira dos Reis

individuais indisponíveis. Atua, dessa maneira, o promotor de justi-ça, como um agente político de transformação social, e valendo-se de instrumentos eficazes para desempenhar essa transformação. Somen-te através de sua efetiva atuação, junto aos demais entes públicos, portanto, é que se poderá alcançar uma efetiva justiça ambiental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA, Paulo. O inquérito civil e a proteção ambiental. São Paulo: BH, 2001.

FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas: A responsabilida-de do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2010.

GOMES, Luís Roberto. O Ministério Público e o Controle da Omissão Ad-ministrativa: O Controle da Omissão Estatal no Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 8ª ed. Revista e atu-alizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito Civil: investigações do Ministério Pú-blico, compromissos de ajustamento e audiências públicas. São Paulo: Sa-raiva, 2002.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Propostas de um novo Ministério Público. In: Temas atuais do Ministério Público: a atuação do parquet nos 20 anos da Consti-tuição Federal. Coordenação: Cristiano Chaves de Farias, Leonardo Barreto Moreira Alves e Nelson Rosenvald. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambien-te, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses . 21 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina-prática-jurisprudência-glos-sário. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2ª ed., atualizada. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Geraldo Melo de Oliveira Junior

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

RESUMOO presente artigo científico tem por objetivo analisar a valoração probatoria da tes-temunha de ouvir dizer. Tendo em vista o poder punitivo do Estado como interme-diário da aplicação de penas ressocializantes aos agentes que infringem os deveres e normas de vida em sociedade, faz-se necessária a observação de que, durante o desenrolar do processo penal, sejam garantidas às partes os princípios e garantias constitucionais. Neste âmbito se inserem as provas, que são os meios indispensá-veis para que o magistrado possa realizar o justo julgamento, dentre elas, a prova testemunhal, devendo ser analisada a sua fragilidade como instrumento probatorio, mediante a falibilidade humana, especialmente quando se tratar de testemunha de “ouvir dizer”, ou hearsay testimony.Palavras-chave: Processo Penal. Prova testemunhal. Valoração probatoria. Hearsay testimony.

ABSTRACTThe present scientific article aims to analyze the probative valuation of hearsay witnesses. In view of State’s punitive power as an intermediary for application of resocializing penalties to agents who violate the duties and standards of living in society, it is necessary to observe that, during the course of criminal procedure, the principles and constitutional warranties must be guaranteed to subjects. In this con-text proofs are inserted; trey are the indispensable means that judges have to make a fair trial, among them, the testimonial proof, and its fragility must be analyzed as a probative instrument, through human fallibility, especially when came across a hearsay testimony.Keywords: Criminal Procedure. Testimonial proof. Probative valuation. Hearsay testimony.

Técnico do Ministério Público de Sergipe.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

102 Geraldo Melo de Oliveira Junior

INTRODUÇÃO

Corriqueiramente tomada como elemento decisivo e altamente influente para a formação da convicção do julgador, a prova testemu-nhal é o meio probatorio mais comumente utilizado para tanto, tendo em vista sua acessibilidade, sendo por vezes sua força probante tão valorada quanto uma prova técnico-científica.

No entanto, não é recomendável que, apesar de toda a importân-cia que a prova testemunhal represente para o desenvolvimento do processo penal, sejam totalmente colocados de lado os seus aspectos negativos que colocam à prova sua credibilidade.

A prova testemunhal é baseada na percepção sensorial, física e psíquica que o agente tem de determinado fato, aquele sobre o qual se litiga, tendo em vista seus sentidos e toda a perspectiva inerente a si, devendo o seu relato ser o mais fiel possível do que aconteceu, de modo que a subjetividade seja afastada de suas impressões.

Dentre essa espécie probatoria, está inserida a testemunha de ou-vir dizer, ou testemunha de “ouvi dizer”, ou testemunha de ouvida alheia ou hearsay testimony. A hearsay testimony nada mais é do que a testemunha que relata um fato o qual não presenciou, ou seja, é aquele que sabe de um acontecimento por terceiros ou por um rumor público e testemunha sobre isso.

Nesse momento, cabe o questionamento: um conjunto probatorio alicerçado estritamente em testemunhas de ouvir dizer é suficiente para estruturar um decisum condenatorio?

DESENVOLVIMENTO

a) A valoração probatória do hearsay testimony à luz do Direito Processual Penal Brasileiro

O principal objetivo da prova no processo penal é permitir que o magistrado, antes de proferir sua sentença, conheça o conjunto dos

103

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

fatos, à medida em que aquela deve ser baseada nos fatos que a ele foram relatados e na legislação a ser aplicada.

Nesta seara insere-se a prova testemunhal que, por sua vez, per-tence à parte oral da reprodução dos fatos ocorridos que ensejaram no processo penal, estando prevista nos artigos 202 a 225 do Codigo de Processo Penal.

Renato Brasileiro (2016, p. 926) traz o conceito de testemunha em sua obra:

Testemunha é a pessoa desinteressada e capaz de depor que,

perante a autoridade judiciária, declara o que sabe acerca de

fatos percebidos por seus sentidos que interessam à decisão da

causa. A prova testemunhal tem como objetivo, portanto, trazer

ao processo dados de conhecimento que derivam da percepção

sensorial daquele que é chamado a depor no processo.

O artigo 202 do Codigo de Processo Penal explicita que qualquer pessoa pode ser testemunha, desde que seja dotada de capacidade física para depor. Logo, a incapacidade jurídica é irrelevante, pois po-dem depor no processo penal menores de 18 (dezoito) anos, doentes e deficientes mentais.

Portanto, a testemunha não é considerada como parte integrante do processo, sendo considerada sujeito processual secundário ou “ter-ceiro desinteressado”, haja vista esta não precisar ter participado efe-tivamente do fato acerca do qual se litiga, bastando apenas que tenha presenciado ou tenha conhecimento dos fatos, de modo que as infor-mações trazidas por esta sejam relevantes para a decisão do magistrado.

Consoante Renato Brasileiro (2016, p. 927), prova testemunhal é dotada de diversas características, sendo elas: judicialidade, oralida-de, objetividade, retrospectividade e individualidade.

Por judicialidade entende-se a necessidade de a testemunha ser ouvida em juízo, a fim de que sejam observados os princípios do con-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

104 Geraldo Melo de Oliveira Junior

traditorio e da ampla defesa; oralidade, a necessidade de o depoimen-to ser prestado oralmente; retrospectividade, a requisição de que a testemunha se atente aos fatos passados debatidos no processo; indi-vidualidade, a inquisição individual de testemunhas, evitando-se que testemunha que ainda não tenha sido ouvida entre em contato com o depoimento de outra.

Finalmente, por objetividade se tem a inevitabilidade de que a testemunha emita qualquer juízo de valor ou apreciações pessoais em seu depoimento sobre os fatos, salvo quando inseparáveis da nar-rativa do fato, conforme o artigo 213 do CPP. Ou seja, pressupõe-se que, a testemunha, ao emitir sua versão dos fatos, deve se abster de subjetividade em suas opiniões e se limitar à exposição dos fatos tec-nicamente passíveis de comprovação.

Pelo olhar da perspectiva historica, a prova testemunhal sempre foi utilizada como meio de convencimento quando do julgamento de casos pela Justiça, a partir do momento em que o homem se viu des-garrado da Lei de Talião e passou a se subordinar a um sistema puni-tivo implementado por uma relação jurídica.

Considerada como um dos meios de prova mais antigos e uti-lizados para o esclarecimento de fatos, a prova testemunhal é peça fundamental no desenrolar de processos, atuante na busca incessante pela verdade, à medida em que o depoente tenta reconstruir o que aconteceu ao momento do fato.

No entanto, ao lado da importância presente na prova testemu-nhal para que os fatos sejam desvendados - o que por muitas vezes a torna indispensável ao esclarecimento destes, caminha ao seu lado a sombra da falibilidade, creditada àqueles que, devido à falha huma-na, fazem mau uso do testemunho.

Nesse cenário, resta comprovada a existência de dois tipos pro-batorios testemunhais. Há o testemunho como prova direta, quando o depoente estava presente à hora do fato e relata o que aconteceu, e há o testemunho como prova indireta, quando o depoente não estava

105

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

presente ao momento do fato, ou seja, fica ciente do acontecido por relatos de terceiros, aí está inserida a testemunha do “ouvi dizer” ou a hearsay testimony.

Ao se observar a essência da característica da objetividade que repousa sobre a prova testemunhal, fica comprovada a possibilidade de que esta contenha uma visão subjetiva de quem depõe, além da possibilidade de que o testemunho seja manipulado para que os fatos reais sejam mascarados.

Assim, a prova testemunhal deve ser cautelosamente analisada e valorada quando do julgamento da sentença, para que o magistrado não cometa equívocos baseados em falsos ou dissimulados testemu-nhos, nem condene injustamente inocentes. De acordo com Giglio e Correia (2007, p. 246):

O Direito não contém regras tarifadas para auxiliar o intérprete

na valoração dos depoimentos das testemunhas. A variabilidade

do comportamento humano é infinita, e todos os conhecimentos

de ciências diversas da jurídica são úteis na tarefa de

interpretação e avaliação dos depoimentos, principalmente as

noções de psicologia, de sociologia e de economia, nessa ordem

de importância.

No mesmo sentido, Nucci (2012, p. 48) explicita que:

[...] é essencial deva o magistrado tomar as cautelas devidas

para interpretar e valorar um depoimento, conferindo-lhe ou

não credibilidade, crendo tratar-se de uma narração verdadeira

ou falsa, enfim, analisando-o com precisão [...] pois, é curial ter

o julgador a sensibilidade para compreender que as pessoas são

diferentes na sua forma de agir, captar situações, armazená-las

na memoria e, finalmente, reproduzi-las. Descortinar e separar

o depoimento verdadeiro e crível do falso e infiel é meta das

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

106 Geraldo Melo de Oliveira Junior

mais árduas no processo, mas imprescindível para chegar ao

justo veredicto.

Como fatores que fortemente influenciam a testemunha, pode-mos citar, dentre eles: a memoria, que pode fazer com que as lembran-ças fiquem distorcidas caso decorrido um grande lapso de tempo do acontecimento ao testemunho; o interesse, que determinará a inten-sidade do que será lembrado pelo depoente, haja vista a quantidade de atenção investida no momento do fato a este; a comunicabilidade, que será determinante à medida em que a pessoa que irá testemunhar pode ter altos ou baixos índices de discernimento e comunicação.

À luz dos deveres que a testemunha tem de depor, de comparecer e de prestar o compromisso de dizer a verdade, resta escancarada a im-prescindibilidade inerente à prova testemunhal, mas cabível a observa-ção acerca da valoração probatoria que a ela pode e deve ser atribuída quando do processo penal, tendo em vista a existência de inúmeros fatores que podem influenciar e comprometer o testemunho.

A partir do momento que o Codigo de Processo Penal prenuncia em seu artigo 203 que a testemunha - à exceção das enumeradas no artigo 206 - fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, o que se tem é uma expectativa de que esse dever será cumprido, à medida em que não se tem no Poder Judiciário quaisquer meios de que essa dita verdade seja comprovada, e também não há garantia absoluta de veracidade.

Em um cenário ideal, para cada testemunha seria feito um estudo psicologico, a fim de que fosse fixado um grau de credibilidade a ser conferido ao seu depoimento, tendo em vista a latente falibilidade humana, mas resta indiscutível sua inviabilidade para a celeridade processual.

O magistrado deve se utilizar de suas percepções sensoriais, am-parado nos princípios do livre convencimento motivado do juiz e da persuasão racional, para valorar o depoimento, a fim de que as reais

107

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

motivações e intenções do depoente sejam esclarecidas, observado o princípio da razoabilidade, bem como a avaliação se o depoente foi imparcial, se induziu o Judiciário a erro, se tentou obstruir a verdade e a justiça.

Teoricamente, a importância e relevância atribuída à prova tes-temunhal se devem ao fato de que, pela testemunha não fazer parte do processo, esta deve ser neutra e íntegra ao expor os fatos, evitando inserir no relato suas impressões pessoais, exceto quando imprescin-díveis a este.

Esse quadro se agrava quando o magistrado é colocado de frente a uma testemunha de “ouvi dizer”, a chamada hearsay testimony, ou seja, a pessoa que, em relação ao fato que deve ser esclarecido, não o presenciou, tendo apenas ouvido de terceiros acerca do que realmen-te teria acontecido.

À medida em que o artigo 203 do CPP afirma que a testemunha deve relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade, eis a problemática ao serem admitidos os depoimentos das testemu-nhas de “ouvi dizer”, tendo em vista a impossibilidade de a eles ser atribuída a fidedignidade para que uma prova tão importante seja inse-rida nos autos a fim de influenciar e orientar a decisão do magistrado.

Pois, em virtude da busca da verdade real e o sistema da livre apreciação das provas, cabe ao juiz a atribuição de valor probatorio ao conteúdo do depoimento, conferindo-lhe ou não credibilidade, de-vendo restar totalmente questionável o testemunho de alguém que não estava presente no momento do fato ao qual se litiga, que depõe com base em algo que ouviu dizer.

Ao ouvir um testemunho com base no “ouvi dizer”, a existência de imprecisões e de incoerências que comprometam o valor probato-rio da prova testemunhal é de grande vulto, o que impõe que o juiz a analise de maneira extremamente cautelosa até que chegue ao deci-sum condenatorio.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

108 Geraldo Melo de Oliveira Junior

Mediante os fatores expostos acima, a figura da hearsay testimony é altamente contraditoria com o rito processual penal, à medida em que o Codigo de Processo Penal, na parte final do seu artigo 203, exi-ge que a testemunha fundamente o seu depoimento, de modo que o juiz tenha condições de verificar a relação do que se diz com o que efetivamente aconteceu.

Por conseguinte, cabe ao julgador admitir determinado testemu-nho apenas em situações extremamente excepcionais, de modo que a sua convicção possa se basear em elementos seguros a ponto de findarem em uma condenação.

Ao determinar que o que se sabe é apenas o que se ouviu de outro alguém, a testemunha de ouvida alheia é considerada frágil e permeá-vel, à medida em que o que é repassado à testemunha de “ouvi dizer” pode ser derivado e contaminado de inverdades que se multiplicam conforme são transmitidos.

b) Testemunha de ouvir dizer: decisões dos tribunais a respeito da valoração e credibilidade dos depoimentos

Antigamente, em regra, não era admitida a testemunha de “ouvi dizer”, apenas excepcionalmente o magistrado poderia atribuir uma valoração à esta para que, em determinadas situações, não fosse dei-xada de fora do litígio. Assim, a testemunha so poderia prestar relatos acerca de acontecimentos dos quais tivesse efetivamente participado e presenciado, ou seja, o testemunho so seria cabível como prova efe-tiva caso houvesse o conhecimento direto acerca do fato.

Esse quadro de inadmissibilidade da testemunha de “ouvi dizer” remonta a toda a sua fragilidade como elemento probante, e a torna, quando aceita, repleta de desconfianças e incongruências, como visto no direito norte-americano, bem como no direito inglês, no qual a hearsay testimony é completa e totalmente desvalorizada como prova

109

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

primária, tendo em vista a aura de insegurança que a recobre.No mesmo sentido, o Direito Processual Penal Português, no que

se refere ao testemunho de ouvir dizer, estabelece em seus artigos 129 e 130 o chamado depoimento indireto:

Artigo 129

1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas

determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer,

o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como

meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não

for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou

impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que

o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de

pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o

depoimento de quem recusar ou não estiver em condições

de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou

conhecimento dos factos.

Artigo 130

1 - Não é admissível como depoimento a reprodução de vozes

ou rumores públicos.

O que se percebe com a legislação portuguesa é que, desde que excepcionalmente e obedecidas certas condições, admite-se o depoi-mento indireto. Tal quadro se agrava quando a testemunha de ouvida alheia é o único meio de comprovação do fato sobre o qual se litiga, o que requer uma cautela ainda maior do julgador.

Entretanto, em nossa legislação processual penal, nada se expõe acerca da testemunha de “ouvi dizer”, ou seja, não há proibição jurí-dica à admissibilidade da testemunha por ouvir dizer, o que significa

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

110 Geraldo Melo de Oliveira Junior

que o magistrado, baseado no princípio do livre convencimento mo-tivado, lhe atribuirá o valor que julgar cabível, diante da fragilidade probatoria contida.

Logo, reforça-se a ideia de que o magistrado, se utilizando de seu senso crítico e logico, deve valorar tal testemunho a fim de que este não prejudique ou influencie negativamente a sua decisão, avaliando as condições que possam afetar a credibilidade desse testemunho, devendo haver a distinção do que a testemunha efetivamente sabe e vivenciou e o que pode ser considerado como ouvida alheia ou mero rumor.

Dessa forma, o que ampara o campo penal e processual penal acerca dessa espécie de testemunha são as decisões jurisprudenciais, que comumente seguem a relativização da valoração probatoria da prova testemunhal obtida mediante testemunha de ouvir dizer:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CONJUNTO PROBATÓRIO

INSUFICIENTE PARA ALICERÇAR A SENTENÇA DE

PRONÚNCIA DO RECORRENTE. AUSÊNCIA DE QUALQUER

INDÍCIO DE AUTORIA. DECISÃO QUE NÃO PODE SER

BASEADA EM MERA PRESUNÇÃO OU SUPOSIÇÃO DA

AUTORIA, BASEADA EM TESTEMUNHOS DE “OUVIR

DIZER”. IMPRONÚNCIA QUE IMPÕE. RECURSO PROVIDO À

UNANIMIDADE DE VOTOS. I - A sentença de pronúncia deve

demonstrar, no conjunto probatorio emanado dos autos, indício

suficiente da autoria imputada ao acusado, não podendo

valer-se de mera presunção ou suposição da autoria, baseada,

tão somente, em testemunhos de familiares da vítima por “ouvir

dizer”. II - Inexistindo qualquer indício de autoria relativamente

ao recorrente, o mesmo deve ser impronunciado. III - Recurso a

que se dá provimento. Decisão unânime.

(TJ-PE - RECSENSES: 564953820088170001 PE 0021943-

111

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

79.2010.8.17.0000, Relator: Alexandre Guedes Alcoforado

Assuncao, Data de Julgamento: 12/07/2011, 4ª Câmara Criminal,

Data de Publicação: 134/2011)

HOMICÍDIO QUALIFICADO. PARTICIPAÇÃO. IMPRONÚNCIA.

AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES. TESTEMUNHO

DE OUVI DIZER. DEPOIMENTOS PRESTADOS DURANTE O

INQUÉRITO. 1. A PRECARIEDADE DO TESTEMUNHO DE

OUVI DIZER, INCONFUNDÍVEL COM INDÍCIO SUFICIENTE

DE AUTORIA, NÃO LEGITIMA DECISÃO DE PRONÚNCIA. 2.

ADEMAIS, ESSE TIPO DE TESTEMUNHO NÃO SE AMOLDA

À PLENA GARANTIA DO CONTRADITÓRIO E DA DEFESA,

DADO O CARÁTER EXTRAJUDICIAL, ALIÁS, EXTRA-OFICIAL,

DO DEPOIMENTO DO SUPOSTO CONFIDENTE - QUE SERIA

A TESTEMUNHA DIRETA -, PRESTADO SEM COMPROMISSO

NEM POSSIBILIDADE DE CONTRADITA E REPERGUNTAS,

ALÉM DE TER A SUA CREDIBILIDADE SUBTRAÍDA À

IMEDIATA VALORAÇÃO JUDICIAL. 3. A DECISÃO TAMBÉM

NÃO PODE ALICERÇAR-SE EXCLUSIVAMENTE EM

ELEMENTOS DE CONVICÇÃO RESTRITOS À FASE POLICIAL

E, DE RESTO, CONCERNENTES À CONDUTA DISTINTA DA

QUE FOI IMPUTADA AO RÉU.

(TJ-DF - RSE: 46773519998070003 DF 0004677-

35.1999.807.0003, Relator: FERNANDO HABIBE, Data de

Julgamento: 28/04/2005, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação:

31/08/2005, DJU Pág. 139 Seção: 3)

RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO

QUALIFICADO. INDÍCIOS DE AUTORIA. INSUFICIÊNCIA.

TESTEMUNHOS DE OUVIR DIZER. 1. No procedimento dos

delitos dolosos contra a vida, ao juízo de pronúncia exige-se o

convencimento quanto à materialidade do fato e a constatação

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

112 Geraldo Melo de Oliveira Junior

de indícios suficientes de autoria ou participação. Assim é

porque se trata de mero juízo de admissibilidade da acusação, do

que resulta dispensável o grau de certeza inerente às sentenças

de mérito. O artigo 413 do CPP, porém, exige a suficiência dos

indícios, a indicar que, quando insuficientes, impõe-se a decisão

de impronúncia. 2. No caso, ainda que haja menções aos nomes

dos réus, todas partem de testemunhos de “ouvir dizer”, não

tendo quaisquer das testemunhas confirmado que, no momento

dos fatos, efetivamente visualizou os réus atentarem contra a

vida da vítima. Inexistência de indícios de sua participação

no crime, dentre os elementos probatorios produzidos na fase

judicial. Ausência de testemunhas presenciais a afirmar a

participação dos acusados. Inadmissibilidade do testemunho

de “ouvir dizer”, denominado hearsay testimony. Viabilidade

da acusação não demonstrada. Impronúncia que se impõe.

RECURSO DEFENSIVO PROVIDO, POR MAIORIA. RECURSO

MINISTERIAL PREJUDICADO, UNÂNIME. (Recurso em Sentido

Estrito Nº 70065756827, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado

em 10/12/2015).

(TJ-RS - RSE: 70065756827 RS, Relator: Sérgio Miguel

Achutti Blattes, Data de Julgamento: 10/12/2015, Terceira

Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia

29/01/2016)

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. JÚRI. HOMICÍDIO

QUALIFICADO. PRONÚNCIA. PROVAS. PRINCÍPIO IN

DUBIO PRO SOCIETATE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL

EVIDENCIADO. I - Em se tratando de crime afeto à competência

do Tribunal do Júri, o julgamento pelo Tribunal Popular so

pode deixar de ocorrer, provada a materialidade do delito,

caso se verifique ser despropositada a acusação, porquanto

113

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO

aqui vigora o princípio in dubio pro societate. II - Não obstante

esse entendimento sedimentado nos Tribunais Superiores,

cabe à primeira fase do procedimento relativo aos crimes

da competência do Tribunal do Júri denominada iudicium

accusationis, afastar da apreciação do Conselho de Sentença

acusações manifestamente infundadas, destituídas, portanto,

de qualquer lastro probatorio mínimo. III- Na espécie, consta

em desfavor do paciente tão somente um testemunho prestado

em sede inquisitorial, que, com supedâneo no “ouvi dizer”,

atribui a pratica do crime ao paciente que, frise-se, ora alguma

foi submetido a reconhecimento formal. Não bastasse isso,

a referida testemunha já faleceu assim como quem havia

lhe relatado os fatos. Assim, resta evidente não remanescer

qualquer possibilidade de repetição destes indícios colhidos

no inquérito em juízo por ocasião de realização do iudicium

causae. IV - Este o quadro, tem-se que a manifesta ausência de

indícios impõe o restabelecimento da decisão de primeiro grau

que impronunciou o paciente. Ordem concedida

(STJ - HC: 106550 SP 2008/0106885-2, Relator: Ministro FELIX

FISCHER, Data de Julgamento: 27/11/2008, T5 - QUINTA

TURMA, Data de Publicação: 20090323 --> DJe 23/03/2009)

Nesse sentido, percebe-se que, ao serem examinadas as informa-ções trazidas pelas testemunhas em audiência, a subjetividade pecu-liar a cada agente deve ser cautelosamente analisada, para que a per-cepção da testemunha não contamine o julgamento do magistrado, nem seja tomada como verdade absoluta do que se busca com o relato do acontecimento, tendo em vista os limites particulares da compre-ensão de cada testemunha.

Faz-se necessária uma delicada análise para que uma valoração positiva concedida ao testemunho por ouvir dizer não seja acentu-ada a ponto de ultrapassar o limite do real e imaginário, resultando

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

114 Geraldo Melo de Oliveira Junior

em uma condenação alicerçada em depoimentos de testemunhas que não estavam presentes à cena objeto do litígio. Ou seja, é crescente o aumento do questionamento acerca da efetiva fidedignidade dessa determinada prova probatoria.

Portanto, baseando-se no sistema do livre convencimento do jul-gador, a valoração probatoria da prova testemunhal não deve ser qua-lificada pelo quantitativo de testemunhas, mas sim pela suficiência e força probante de cada testemunha, o que resta prejudicado quando a fonte de referência da testemunha é apenas um relato transmitido por outra pessoa que supostamente está ciente do acontecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O historico do direito probatorio é caracterizado por uma cons-tante evolução em busca do ideal de justiça célere e eficaz. No en-tanto, para que tal justiça seja alcançada, o magistrado tem que se munir de meios para tal alcance, dentre eles a prova testemunhal, que impõe ao juiz cautela na sua admissibilidade, colheita e valoração.

Nesse quadro de evolução das provas processuais penais, é evi-dente a massiva utilização da prova testemunhal como método de convencimento do julgador, destinando-se a trazer ao processo dados novos, em busca da verdade processual.

Desta feita, sabe-se que o juiz não forma sua convicção arbi-trariamente, mas guiado pelas percepções colhidas durante a apre-ciação probatoria. Guiado pelo princípio do livre convencimento motivado, o magistrado deverá se ater aos fatos e circunstâncias constantes dos autos e indicar na sentença os motivos formadores de seu convencimento.

A credibilidade testemunhal é colocada à prova devido ao difi-cultoso processo de perfeita memorização das informações, de modo que as lembranças da testemunha não sofram influências externas ou internas, e o fato seja expressado da exata maneira como ocorrido.

115

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Jamais seria possível cogitar a possibilidade de retirar a prova testemunhal do processo penal, esta tão relevante e essencial para ajudar o magistrado na busca pela verdade e na elaboração de uma sentença mais justa e condizente com a realidade dos fatos.

Porém, tendo em vista os diversos fatores que influenciam no tes-temunho, alterando as percepções pessoais sobre o fato, e consequen-temente o entendimento do magistrado, discute-se a fragilidade da prova testemunhal. Resumidamente, o magistrado deve, ao analisar a credibilidade da prova testemunhal, se valer de comparações e con-frontos a fim de que a verdade seja atingida.

A decisão judicial no âmbito da seara penal é deveras memorável para que sua base seja composta de provas porosas e fragilizadas, ten-do em vista a mudança psicossocial trazida pela imputação das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, de modo que o magis-trado deve buscar provas certas e indubitáveis para que a condenação do réu seja a mais justa e coerente possível.

Logo, com base no princípio do livre convencimento motivado do juiz, o nosso sistema de direito processual penal não exclui e nem desvaloriza radicalmente a testemunha por ouvir dizer, fican-do esta submetida ao arbítrio do magistrado que, se utilizando de suas percepções, considerará as limitações e riscos inerentes ao testemunho.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei n° 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 15 maio de 2017.

GIGLIO, Vagner D.; CORREIA, Claudio Giglio Vetri. Direito Processu-al do Trabalho. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume úni-co. 4 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

116 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 11 ed. rev. at. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

PORTUGAL. Decreto-Lei n° 78, de 17 de fevereiro de 1987. Código de Pro-cesso Penal. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_ar-ticulado.php?ficha=101&artigo_id=&nid=199&pagina=2&tabela=leis&n-versao=&so_miolo=>. Acesso em: 15 maio de 2017.

SPENCER, J R. Hearsay Evidence in Criminal Proceedings. Reino Unido: Bloomsbury Publishing, 2014.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Carlos Issac dos Santos

Técnico Administrativo do Ministério Público de Sergipe

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: UMA NOVA PERSPECTIVA FRENTE ÀS PRISÕES ARBITRÁRIAS

RESUMOO presente artigo científico objetiva estudar de maneira clara e concisa a audiência de custodia no ordenamento jurídico brasileiro, matéria recente no Direito Contem-porâneo e que vem ocasionando inúmeras interrogações. O estudo irá colher dados na legislação internacional e na doutrina nacional, com o escopo de sinalizar como se comporta o Brasil, agente signatário de acordos, em se tratando da instrumentali-zação das audiências de custodia. Analisar-se-á, ainda, a contraposição da liberdade à prisão, frisando todo o arcabouço jurídico disponível e aplicado.Palavras-chave: Audiência. Custodia. Liberdade.

ABSTRACTThe present scientific article aims to study in a clear and concise way the hearing of custody in the Brazilian legal system, a recent issue in Contemporary Law and that has been causing numerous questions. The study will gather data in international law and national doctrine, with the scope of signaling how Brazil behaves, agent sig-natory of agreements, when it comes to the instrumentalization of custody hearings. It will also analyze the contraposition of the freedom to the prison, emphasizing all the juridical framework available and applied.Keywords: Court hearing. Custody. Freedom.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

118 Carlos Issac dos Santos

INTRODUÇÃO

Ab initio, salientamos que a presente exposição tem como intuito magno demonstrar a materialização da audiência de custodia no or-denamento jurídico pátrio. Para tanto, faz-se mister contrapor a pri-são com a liberdade, visto que ambos representam polos antagônicos, passíveis de balizar tanto uma resposta da sociedade ao delito, como a promoção de dignidade, em respeito aos direitos mínimos de todo e qualquer cidadão.

Princípio imutável e constante da Constituição Federal da Re-pública Brasileira de 1988, a liberdade é uma das maiores riquezas angariadas pela sociedade contemporânea. Nesse sentido, e com o intuito de proteger o cidadão contra possíveis abusos da máquina es-tatal – esta com força notadamente desproporcional, se contraposta ao indivíduo –, vários mecanismos de proteção, gradativamente, fo-ram surgindo. A audiência de custodia, portanto, vem a representar um desses instrumentos de proteção, motivo que nos conduz a uma análise minuciosa desse mecanismo em nosso sistema jurídico, tanto em sua teoria, como em sua concretude no dia a dia forense.

1 – ORIGEM, NATUREZA JURÍDICA E PREVISÃO LEGAL

A audiência de custodia é um mecanismo processual que garante a apresentação pessoal do preso, em regra no prazo de vinte e quatro horas, ao magistrado, para que o mesmo assegure o fiel cumprimento das prerrogativas e garantias do preso, a fim de garantir a incolumida-de do indivíduo e uma prisão dentro dos ditames da lei.

Esta audiência decorre dos tratados e pactos internacionais de di-reitos humanos em que o nosso país é signatário, como por exemplo o pacto de são José da costa rica e o pacto internacional de direito civis e políticos. Assim, o artigo 7º da Convenção Americana dos Direitos

Humanos diz que:

119

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem

demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada

por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada

em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de

que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada

a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

As ratificações desses pactos ocorreram em 1992, porém, somente neste ano houve a implantação maciça deste instrumento processu-al, ocorrendo esporadicamente em anos anteriores, sendo o Conselho Nacional de Justiça o principal fomentador desse mecanismo.

Não existe, em nosso país, uma legislação que trate deste assun-to, porém há um projeto de lei de número 554/2011 que visa a sua regulamentação, sendo provisoriamente regulado pelo provimento conjunto 3/2015.

Esta audiência tem início com a apresentação do flagranteado pe-rante a autoridade judiciária revestida de competência para tal ato, em seguida o Ministério Público faz sua manifestação e logo apos, ocorre interposição da defesa técnica com a entrevista do preso. Apos esta sequência de atos, o magistrado poderá relaxar a prisão ilegal, conceder liberdade provisoria, com ou sem fiança, aplicar medidas cautelares diversas da prisão ou converter a prisão em flagrante em prisão preventiva e ainda aplicar outras medidas de natureza extra-judiciais.

2 – O DIREITO À LIBERDADE COMO PARADIGMA CONSTITUCIONAL

A liberdade, de forma genérica, constitui um dos nossos maiores bens. Esse direito nos possibilita realizar todas as práticas da vida cotidiana, bem como podemos nos abster de realizar condutas inde-sejadas de forma livre e espontânea. Várias são as derivações do di-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

120 Carlos Issac dos Santos

reto à liberdade, dentre eles temos o direto a liberdade de expressão, reunião, religiosa, informação e etc.

A liberdade de locomoção também constitui uma espécie de li-berdade, entendida como o direito de ir, voltar e permanecer, como estatui o art. 5º, XV da Carta Magna. No entanto, como nenhum di-reito ou garantia constitucional é absoluta, esta liberdade está sujeita a restrições, sendo uma delas a imposição legal de pena privativa de liberdade, ou seja, o direito de ir e vir não pode ser aplicado de ma-neira inconteste.

Nesse diapasão, cumpre ressaltar que o direito à liberdade cons-titui a regra do nosso ordenamento jurídico, enquanto a prisão a ex-ceção.

A garantia da liberdade pode ser entendida como um consectário do princípio da presunção de inocência, também previsto no texto magno, art. 5º, LVII. Segundo esse princípio, ninguém poderá ser ta-xado como culpado pela prática de um crime antes do trânsito em jul-gado de sentença penal condenatoria, não sendo possível a aplicação da pena privativa de liberdade, salvo nas hipoteses da prisão cautelar, previstas no Codigo de Processo Penal, desde que seja comprovada sua necessidade e obediência aos requisitos previstos em lei.

Por se tratar de uma exceção, a prisão está revestida de uma série de mecanismos, que objetivam garantir sua legalidade e observância das formalidades exigidas em lei, estando todo o procedimento sujei-to à análise da autoridade judiciária. Assim, estando a prisão eivada de qualquer irregularidade caberá seu relaxamento imediato. Nesse sentido, argui Guilherme de Souza Nucci:

É impositivo constitucional que toda prisão seja fielmente

fiscalizada por juiz de direito. Estipula o art. 5º, LXV, que “a

prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade

judiciária”. No mesmo sentido, dispõe o art. 310, I, CPP. Além

disso, não se pode olvidar que, mesmo a prisão decretada por

121

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

magistrado, fica sob o crivo de autoridade judiciária superior,

através da utilização dos instrumentos cabíveis, entre eles o

harbeas corpus: “conceder-se-á harbeas corpus sempre que

alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou

coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou

abuso de poder” (art. 5º, LXVIII, CF).

Entretanto, mesmo estando envolto por um vasto sistema proteti-vo, é, lamentavelmente, comum a prática de irregularidades nas efeti-vações de prisões, principalmente nas prisões em flagrante, tendo em vista a redução de formalidades legais para sua efetivação.

A existência de irregularidades nas prisões, assim como a cres-cente prática de abusos por parte das autoridades, com vistas a trans-mitir uma imagem de “segurança e eficácia”, sejam as autoridades policiais, sejam as judiciárias; impedem, veementemente, o exercício da liberdade do indivíduo, sendo necessária a criação de mecanismos de proteção para a parte mais frágil na relação com o Estado.

Nesse sentido surgem as audiências de custodia, com o escopo de mitigar os abusos cometidos pelas autoridades contra os particulares e ver o direito de liberdade respeitado e efetivado, como previsto no ordenamento.

3 – PAPEL DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NA PRESERVAÇÃO DA LIBERDADE

Várias pessoas são presas em flagrante todos os dias em várias partes do país. O flagrante consiste na prisão no instante ou logo apos a prática de uma infração penal, podendo ser efetuada pela autorida-de policial, que é a regra, ou por qualquer do povo; daí sua constante reiteração. (NUCCI, 2014, p. 533).

Todavia, essa modalidade de prisão cautelar, que, via de regra, não deixa dúvidas quanto a materialidade do fato e sua autoria, pode

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

122 Carlos Issac dos Santos

ensejar uma grave injustiça, ocasionando o cerceamento da liberda-de de um cidadão inocente por um suposto flagrante. Por vezes, é comum a prática de condutas abusivas e irrazoáveis por parte das autoridades policiais, que efetuam prisões de forma deliberada e sem uma análise do caso concreto; influência de fatores externos, como condição social, origem racial; e até mesmo a ocorrência de coinci-dências atuam como fatores determinantes na efetivação da prisão.

Como supracitado, a audiência de custodia consiste na garantia de realização de uma entrevista na presença de um juiz, no prazo de 24 horas, apos a prisão em flagrante, o que promove uma série de be-nefícios ao acusado da prática de determinado fato típico.

Essa medida promove um rápido e efetivo contato entre a autori-dade judiciária e o acusado, sendo-lhe oferecida a garantia de ofere-cer uma defesa prévia e ágil, com o fito de evitar prisões eivadas de vícios. (CNJ, 2015).

Ocorrida a prisão, Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa discorrem que:

Uma vez apresentado o preso ao juiz, ele será informado do

direito de silêncio e assegurada a entrevista prévia com defensor

(particular ou público). Nesta ‘entrevista’ (não é um interrogatorio,

portanto), o artigo 6º, § 1º determina expressamente que “não serão

feitas ou admitidas perguntas que antecipem instrução propria

de eventual processo de conhecimento.” Eis um ponto crucial da

audiência de custodia: o contato pessoal do juiz com o detido. Uma

medida fundamental em que, ao mesmo tempo, humaniza-se o

ritual judiciário e criam-se as condições de possibilidade de uma

análise acerca do periculum libertatis, bem como da suficiência e

adequação das medidas cautelares diversas do artigo 319 do CPP.

(...)

Uma vez ouvido o preso, o juiz dará a palavra ao advogado ou

ao defensor público para manifestação, e decidirá, na audiência

123

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

fundamentadamente, nos termos do artigo 310 do CPP, acerca

da homologação do flagrante ou relaxamento da prisão e, apos,

sobre eventual pedido de prisão preventiva ou medida cautelar

diversa. Aqui é importante sublinhar, uma vez mais, que a prisão

preventiva somente poderá ser decretada mediante pedido do

Ministério Público (presente na audiência de custodia), jamais

de ofício pelo juiz (até por vedação expressa do artigo 311

do CPP. A tal ‘conversão de ofício’ da prisão em flagrante em

preventiva é uma burla de etiquetas, uma fraude processual,

que viola frontalmente o artigo 311 do CPP (e tudo o que se sabe

sobre sistema acusatorio e imparcialidade), e aqui acaba sendo

(felizmente) sepultada, na medida em que o Ministério Público

está na audiência. Se ele não requerer a prisão preventiva,

jamais poderá o juiz decretá-la de ofício, por elementar.

O objeto da audiência de custodia é, por demais, restrito, não se revestindo de natureza interrogatoria, tampouco de colheita de pro-vas. É, em verdade, uma materialização do postulado constitucional do contraditorio (o qual legitima a decisão judicial), com acentuada oralidade e em defesa do regime democrático, mesmo porque a com-posição não se restringe à presença do custodiado e do magistrado, ampliando-se para a participação da Defesa e do Ministério Público.

Ainda acerca do caráter restrito do objeto da audiência, é cediço a impossibilidade de arrolamento de testemunhas para eventual par-ticipação no efeito, cabendo, doutro modo, aos agentes processuais, a juntada de documentos, a fim de balizar o pleito.

Acerca do procedimento da audiência de custodia, ressalte-se a lição de Jr. e Rosa:

Essa entrevista não deve se prestar para análise do objeto da

imputação (leia-se, autoria, materialidade e culpabilidade),

reservada para o interrogatorio de eventual processo de

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

124 Carlos Issac dos Santos

conhecimento. A rigor, limita-se a verificar a legalidade da

prisão em flagrante e a presença ou não dos requisitos da prisão

preventiva, bem como permitir uma melhor análise da(s) medida(s)

cautelar(es) diversa(s) adequada(s) ao caso, dando plenas

condições de eficácia do artigo 319 do CPP, atualmente restrito, na

prática, a fiança. Infelizmente, como regra, os juízes não utilizam

todo o potencial contido no artigo 319 do CPP, muitas vezes até

por falta de informação e conhecimento das circunstâncias do

fato e do autor. Não se trata de produção antecipada de provas,

especialmente porque sequer existe imputação formalizada.

Apesar de, numa análise sumária, a audiência se revestir de uma

aparência de unicidade, entende-se que a mesma pode ter continui-dade, conforme se apresente a peculiaridade da matéria, como nos casos de violência doméstica, conforme ressaltam JR. e ROSA:

(…) especialmente nos casos de violência doméstica. É muito

comum que nos casos de ação penal privada ou condicionada

à representação a vítima seja instada a participar do ato.

Nessa situação a Delegacia de Polícia já deve deixar a vítima

ciente do ato judicial. Alguns juizados de violência doméstica

já estipularam horários diários para apresentação do preso

e orientam a autoridade policial que intime a vítima para

comparecer oportunamente. Como a conduta recém aconteceu,

em alguns casos, a vítima está sob efeito de forte emoção e solicita

um prazo maior para decidir sobre a continuidade da ação penal.

Claro que sabemos da decisão do Supremo Tribunal Federal no

caso de lesões corporais, mas as condutas não se restringem a

ela. Daí ser possível que ausente, por exemplo, comprovação da

residência ou de vínculo certo do conduzido, possa-se redesignar

a audiência. Em todos os casos, todavia, a decisão sobre a custodia

e eventuais medidas cautelares deve ser tomada.

125

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A videoconferência, instrumento que aos poucos vem ganhando seu espaço no campo processual nacional, tem presença compatível com o instituto das audiências de custodia. Para tanto, a lição de JR. e ROSA:

Em alguns estados americanos a audiência de custodia é

feita por videoconferência. Essa modalidade encontra ainda

certa desconfiança dadas as condições de pressão que podem

ocasionar no estabelecimento penal. Existe a possibilidade

de um Defensor permanecer no local de custodia e participar

conjuntamente do ato ou mesmo de um estar com o conduzido

e outro na sala de audiências. Não podemos dizer que sempre

será possível. Entretanto, com as devidas garantias, parece-

nos viável não como regra, mas exceção. Assim, cai por terra a

histeria de que muitos policiais serão obrigados a se deslocar no

transporte do conduzido ao juízo.

A efetividade e a ausência de qualquer prejudicialidade referente à audiência de custodia, então, resta demonstrada pela análise acura-da da jurisprudência nacional, exposta a seguir, na qual o magistrado, agente condutor do processo, logo apos o interrogatorio do réu, deci-de pela revogação da prisão preventiva:

RECURSO CRIMINAL – TENTATIVA DE HOMICÍDIO –

SEGREGAÇÃO CAUTELAR DECRETADA – LIBERDADE

CONCEDIDA APÓS O INTERROGATÓRIO DO ACUSADO

– PRISÃO PREVENTIVA REQUERIDA NOVAMENTE AO

ARGUMENTO DE COAÇÃO DE TESTEMUNHA NO CURSO

DO PROCESSO – DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO –

RECURSO MINISTERIAL IMPETRADO – PRISÃO DECRETADA

LOGO APÓS A INTERPOSIÇÃO DO RECURSO, EM AUTOS

INSTAURADOS PARA APURAR O DELITO DE COAÇÃO –

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

126 Carlos Issac dos Santos

SEGREGAÇÃO QUE PERDUROU ATÉ A EFETIVA PRODUÇÃO

DA PROVA, QUANDO ENTÃO O PRÓPRIO REPRESENTANTE

DO PARQUET OPINOU FAVORAVELMENTE À REVOGAÇÃO

DA CUSTÓDIA – MOTIVOS QUE ENSEJARAM O PEDIDO JÁ

SUPERADOS – RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. Tribunal

de Justiça de Santa Catarina. Rec. Crim. nº 2006.017738-5, Rel.

Des. Tulio Pinheiro, julgado em 29/08/2006) (Grifo nosso)

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REVOGAÇÃO DE PRISÃO

PREVENTIVA APÓS O INTERROGATÓRIO DO ACUSADO.

APLICAÇÃO DO ARTIGO 316 DO CÓDIGO DE PROCESSO

PENAL. TORNANDO-SE DISCUTÍVEL A EXISTÊNCIA DO

DELITO DE ROUBO, UM DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO

PREVENTIVA NO CASO, ALIADA AS CIRCUNSTANCIAS DO

ACUSADO, COM A IDADE DE 35 ANOS, TER DOMICILIO E

PROFISSÃO E NÃO POSSUIR NENHUM ANTECEDENTE

CRIMINAL, É MEDIDA ADEQUADA À REVOGAÇÃO DA

PRISÃO DECRETADA. (4 FLS.) (BRASIL. Tribunal de Justiça do

Estado do Rio Grande do Sul. RESE nº 70000688564, Rel. Des.

Carlos Cini Marchionatti, julgado em 30/05/2000) (Grifo nosso)

Nesse diapasão, podemos elencar como um dos principais ob-jetivos da audiência de custodia evitar as prisões ilegais, como uma medida limitadora de sua liberdade de ir e vir. Entende-se que o cer-ceamento da liberdade, mediante o uso de prisões cautelares, so é aplicada em último caso, quando insuscetível à aplicação de outras medidas cautelares.

4 – (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 22 de janeiro de 2015, procedeu à feitura do Provimento n.º 03/2015, regulamentando a

127

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

matéria da audiência de custodia no âmbito do referido Tribunal. Acer-ca de tanto, visualize-se alguns dispositivos da norma em comento:

Art. 1º Determinar, em cumprimento ao disposto no artigo

007°, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos

(pacto de San José da Costa Rica), a apresentação de pessoa

detida em flagrante delito, até 24 horas após a sua prisão,

para participar de audiência de custódia.

(...)

Art. 3º A autoridade policial providenciará a apresentação da

pessoa detida, até 24 horas apos a sua prisão, ao juiz competente,

para participar da audiência de custodia.

§ 1º O auto de prisão em flagrante será encaminhado na forma

do artigo 306, parágrafo 1º, do Codigo de Processo Penal,

juntamente com a pessoa detida.

(...)

Art. 5º O autuado, antes da audiência de custódia, terá contato

prévio e por tempo razoável com seu advogado ou com

Defensor Público.

Art. 6º Na audiência de custodia, o juiz competente informará

o autuado da sua possibilidade de não responder perguntas

que lhe forem feitas, e o entrevistará sobre sua qualificação,

condições pessoais, tais como estado civil, grau de alfabetização,

meios de vida ou profissão, local da residência, lugar onde

exerce sua atividade, e, ainda, sobre as circunstâncias objetivas

da sua prisão.

§ 1º Não serão feitas ou admitidas perguntas que antecipem

instrução proprio de eventual processo de conhecimento.

§ 2º Apos a entrevista do autuado, o juiz ouvirá o Ministério

Público que poderá se manifestar pelo relaxamento da prisão

em flagrante, sua conversão em prisão preventiva, pela

concessão de liberdade provisoria com imposição, se for o caso,

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

128 Carlos Issac dos Santos

das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Codigo de

Processo Penal.

§ 3º A seguir, o juiz dará a palavra ao advogado ou ao

Defensor Público para manifestação, e decidirá, na audiência,

fundamentadamente, nos termos do artigo 310 do Codigo

de Processo Penal, podendo, quando comprovada uma das

hipoteses do artigo 318 do mesmo Diploma, substituir a prisão

preventiva pela domiciliar.

(...)

Art. 7º O juiz competente, diante das informações colhidas na

audiência de custodia, requisitará o exame clínico e de corpo de

delito do autuado, quando concluir que a perícia é necessária

para a adoção de medidas, tais como:

I – apurar possível abuso cometido durante a prisão em flagrante,

ou a lavratura do auto;

II – determinar o encaminhamento assistencial, que repute

devido. (Grifo nosso)

Apos a edição da predita norma, esta, instantaneamente, tornou--se objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5240-SP) pro-movida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol).

A referida Associação – com legitimidade assegurada pelo art. 103, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – alegou inconstitucionalidade formal, aduzindo que a matéria, imperativamente, deveria ser editada por meio de lei federal, e não por meio de um provimento independente, porquanto ser de com-petência legislativa privativa da União (art. 22, I, da CRFB/88), por intermédio do Congresso Nacional.

O Supremo Tribunal Federal – responsável pelo processamento e julgamento de ADI, segundo preceitua o art. 102, I, “a”, da CF/88 –, ao analisar o objeto da ação, julgou improcedente a demanda, declaran-do a constitucionalidade do Provimento n.º 03/2015.

129

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

No mérito, a Corte aduziu que o item 5, do art. 7º, da Conven-ção Americana dos Direitos Humanos sustou a eficácia de toda a le-gislação ordinária conflitante com o referido preceito convencional, haja vista a supralegalidade que reveste a norma mencionada. Desse modo, reconheceu, o STF, a inovação do sistema jurídico pátrio por parte da CADH, com a institucionalização da audiência de custodia.

Acerca da referida supralegalidade, discorreu o STF sobre a na-tureza infraconstitucional e supralegal concernentes aos tratados internacionais que versem sobre Direitos Humanos, excetuando-se, ressalte-se, os tratados que forem aprovados segundo o rito do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, os quais, aprovados em dois turnos de votação em cada uma das casas dos Congresso Nacional, passam a se alocar no topo da pirâmide normativa de Kelsen, revestindo-se, então, de caráter constitucional. Nesse sentido, a jurisprudência da Corte:

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS

TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS.

INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII

DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988.

POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS

INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão

do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana

sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica

(art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal

para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial

desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes

reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando

abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna.

O status normativo supralegal dos tratados internacionais de

direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

130 Carlos Issac dos Santos

legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela

anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art.

1.287 do Codigo Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69,

assim como em relação ao art. 652 do Novo Codigo Civil (Lei

n° 10.406/2002). […] (RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres

Britto) (Grifo nosso)

Corroborando o exposto, JR. e ROSA:

A partir disso, o controle de compatibilidade das leis não se

trata de mera faculdade conferida ao julgador singular, mas sim

de uma incumbência, considerado o princípio da supremacia

da Constituição. No exercício de tal controle deve o julgador

tomar como parâmetro superior do juízo de compatibilidade

vertical não so a Constituição da República (no que diz respeito,

propriamente, ao controle de constitucionalidade difuso), mas

também os diversos diplomas internacionais, notadamente no

campo dos Direitos Humanos, subscritos pelo Brasil, os quais,

por força do que dispõe o artigo 5º, parágrafos 2º e 3º, da Cons-

tituição Federal, moldam o conceito de “bloco de constitucio-

nalidade” (parâmetro superior para o denominado controle de

convencionalidade das disposições infraconstitucionais).

Assim, o Supremo entendeu que o supracitado Provimento do TJSP, quando tratou da audiência de custodia, não inovou no ordena-mento jurídico pátrio, limitando-se, apenas, a explicitar e desenvol-ver matéria já sedimentada em sede de CADH.

Outrossim, ressaltou que o Codigo de Processo Penal, quando do tratamento ao Habeas Corpus e, mais intimamente, ao proprio direito fundamental à liberdade, já leciona a matéria em encontro ao insti-tuto, uma vez que estabelece, no art. 656, que “recebida a petição de ‘habeas corpus’, o juiz, se julgar necessário, e estiver preso o pacien-

131

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

te, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar” (Grifo nosso).

Por derradeiro, o Colegiado Maior extirpou qualquer possibi-lidade de afronta ao princípio da separação de poderes (art. 2º da CRFB/88), mesmo porque não foi o Provimento que editou deveres para as autoridades policiais, mas sim a referida Convenção e a pro-prio Carta Processualista Penal.

5 – A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA FRENTE À SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA

É de sabença geral a situação caotica que gira em torno do sistema carcerário brasileiro, o qual, por diversos fatores, encontra-se super-lotado e, também, marginalizado.

O Estado, responsável pela atual situação-problema e, conse-quentemente, pelo direcionamento futuro do setor, é consenso, deve, por meio de políticas públicas, buscar a redução da população carce-rária, com a ressocialização dos agentes delitivos.

Doutro modo, e revestindo-se de um caráter preventivo, as audiências de custodia permitem ao Julgador se deparar com um oportuno momento jurisdicional no qual, diante de aspectos que desabonem o encarceramento, se condicione a prestigiar a liberda-de do indivíduo.

Nesse sentido, MASI expõe que:

Com a implantação da prática, haverá um potencial auxílio na

redução do alto índice de presos provisorios no país, que é de

42% da população carcerária, segundo recentes dados do CNJ,

amenizando a superpopulação carcerária e o déficit de vagas,

de modo a propiciar melhorias nas condições de cumprimento

de pena nos estabelecimentos prisionais, aliadas a redução de

custos (MASI, 2015, p. 83).

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

132 Carlos Issac dos Santos

Sabe-se que a superlotação representa incontrovertida afronta a normas e princípios constitucionais, representando verdadeira e in-justa “dupla penalidade”, porquanto o convívio e estadia do preso provisorio em um presídio se materializa em um sofrimento mais ele-vado do que a propria pena imposta.

Ademais, e em termos pragmáticos, tratando-se de Brasil, país detentor de um sistema em que o convívio conjunto de presos provi-sorios e definitivos é cada vez mais frequente e solido, o instituto da audiência de custodio é, clarividente, instrumento passível de ameni-zar uma problemática de vultosa relevância jurídico-social, uma vez que minimizaria a, é possível taxar, precoce superlotação do sistema carcerário brasileiro.

Outrossim, em recente decisão no julgamento da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 347), o Supremo Tribunal Federal, por seu Plenário, anotou que a ocorre violação ge-neralizada de direitos fundamentais dos presos, no que tange à sua dignidade, higidez física e integridade psíquica, no sistema prisional brasileiro. Em decorrência de tamanha e generalizada violação, deter-minou-se, ao sistema predito, o status de “estado de coisas inconsti-tucional”.

Por tudo quanto exposto, revela-se, a audiência de custodia, como medida instrumentalizadora da mais extrema, necessária e clamada justiça social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise minuciosa da liberdade como direito funda-mental garantido pela Carta de Gente de 1988, denota-se o seu status magno na presente sociedade, devendo, a liberdade, como demonstra-do, ser reprimida apenas em hipoteses estritamente previstas em lei. Em havendo erro ou vício quando do cerceamento da liberdade, surge, portanto, a audiência de custodia como mecanismo de proteção.

133

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Ex positis, depreende-se que, indubitavelmente, a audiência de custodia representa um mecanismo de defesa imprescindível ao ci-dadão em contraposição a possíveis abusos por parte do Estado – en-tendido em seu vasto conjunto de orgãos – no exercício da jurisdição.

REFERÊNCIAS

AUDIÊNCIA de Custodia. [S.l.: s.n.], set. 2016. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia>. Acesso em: 17 setembro 2016.

BERNIERI, Natali. Audiência de Custódia no Processo Penal Brasileiro. Pas-so Fundo -RS, p. 03-04. Disponível em:< http://soac.imed.edu.br/index.php/mic/ixmic/paper/viewFile/193/27>. Acesso em: 17 setembro 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. O difícil caminho da Au-diência de Custódia – Por. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-dificil-caminho-da-audiencia-de-custodia-por-aury-lopes-jr-e-alexan-dre-morais-da-rosa/>. Acesso em: 05/06/2017.

MASI, C. V. A audiência de custodia frente à cultura do encarceramento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

João Francisco Gagno Campagnaro

Advogado, com título de Bacharel em Direito pela Faculdade Vale do Cricaré, Pos Graduado em Docência Superior e Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected]

TRANSAÇÃO PENAL: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL FACE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

RESUMOO presente estudo tem por escopo o instituto da transação penal na esfera dos Juiza-dos Especiais Criminais, regulado pela Lei n° 9.099/1995, limitando-se a uma visão puramente constitucional consubstanciado aos princípios processuais. Ainda que a Carta Maior discipline o referido instituto em seu artigo 98, inciso I, o artigo regula-dor da transação penal é norma constitucional de eficácia limitada, ou seja, necessita normas infraconstitucionais que abordem o tema proposto pela Constituição, por esse argumento, não está imune a questionamentos acerca de sua constitucionali-dade e possíveis afrontamentos com a norma Maior. Deve-se, portanto, interpretar a transação fazendo uma abordagem num contexto principiologico, confrontando o tema com os direitos fundamentais, dos quais considere-se: devido processo legal; ampla defesa; contraditorio e ainda o princípio da presunção de inocência, de forma a impedir qualquer ameaça de violação aos preceitos constitucionais. Neste sentido, é apresentado uma análise da legislação abordada, os princípios por ela invocados, e seus procedimentos. A presente produção acadêmica se orientará através de pes-quisa bibliográfica, tendo como instrumento de coleta de dados em artigos científi-cos, doutrinas e legislação pátria.Palavras-chave: Juizado Especial Criminal; Transação Penal; Princípios Constitucionais.

ABSTRACTThe present study has as scope the institute of the criminal transaction in the sphere of the Special Criminal Courts, regulated by Law 9999/1995, limiting itself to a purely constitutional view embodied in the procedural principles. Although the Major Char-ter governs the said institute in its article 98, item I, the article regulating the criminal transaction is a constitutional norm of limited effectiveness, that is, it needs infra-constitutional norms that approach the theme proposed by the Constitution, because

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

136 João Francisco Gagno Campagnaro

of this argument, is not Immune to questions about its constitutionality and possible hot flashes with the Major rule. It is therefore necessary to interpret the transaction taking an approach in a principiological context, confronting the theme with funda-mental rights, of which it is considered: due process of law; Wide defense; And also the principle of the presumption of innocence, in order to prevent any threat of viola-tion of constitutional precepts. In this sense, an analysis of the legislation addressed, the principles invoked by it, and its procedures are presented. The present academic production will be oriented through bibliographical research, having as instrument of data collection in scientific articles, doctrines and national legislation. Keywords: Special Criminal Court; Criminal Transaction; Constitutional principles

INTRODUÇÃO

O processo evolutivo humano é pautado na mudança de hábitos, de ideias e valores. Tal qual o desenvolvimento da sociedade, a esfera jurídi-ca também se insere nesse sistema de evolução com suas reformulações e inovações legislativas, adaptando a realidade jurídica ao tempo social.

Na atualidade, é de se constatar que a sociedade brasileira exige cada vez mais a celeridade dos atos judiciais, concomitantemente, necessário que se crie meios que possibilitem a maior acessibilidade e agilidade ao judiciário. Seguindo essa necessidade da sociedade, que está cada vez mais complexa, dado o aumento populacional e todo o desenvolvimento, além de todos os demais aspectos, sociais e culturais, e visando criar formas alternativas, o Juizado Especial sur-ge como um desafogo ao sistema jurídico brasileiro.

A Constituição Federal Brasileira institucionalizou-se como um marco da efetivação da democracia no país, e, por consequência, dos direitos de todos os cidadãos. Nela encontram-se expressas normas gerais e especificas que vão muito além dos direitos do indivíduo, de-finindo pormenorizadamente os princípios fundamentais e basilares do Estado de Direito, sendo estes considerados garantias fundamen-tais e essenciais ao bem comum.

Em virtude da hierarquia das leis, tão bem explicadas pela pirâ-mide de Kelsen, todas as leis devem se adequar à Lei Maior, que é a

137

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

Constituição. Como seria inviável a revogação de todas as leis infra-constitucionais, pelo princípio jurídico da recepção, infere-se que as leis que estiverem em acordo com a Constituição serão recepcionadas por ela, ao passo que as demais serão consideradas inconstitucionais. Visando a presente pesquisa, correlacionar os princípios constitucio-nais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditorio e da presunção de inocência com a transação penal.

Para aferir todo esse questionamento em torno do instituto da transação penal, urge ressaltar que o presente estudo inicialmente fará uma abordagem sucinta acerca da regulamentação da Lei 9.099, seguindo-se de comentários sobre os princípios norteadores da men-cionada lei. Para mencionar a aplicabilidade do instituto da transação penal o trabalho explicará os ritos processuais estabelecidos na lei, bem como fixará um paralelo entre a transação penal e sua infringên-cia aos princípios constitucionais.

Sendo assim, a presente pesquisa visa pontuar aspectos relevan-tes à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da transação penal que ocorre no Juizado Especial Criminal, levando em consideração todos os meios pesquisados e com a abordagem a seguir pretende-se estabelecer um comparativo com os princípios processuais garanti-dos constitucionalmente.

1. NOÇÕES GERAIS

As relações interpessoais consequências da vida em sociedade, determinam a formulação de regras de conduta que disciplinem a in-teração entre as pessoas, com o objetivo de alcançar o bem comum, a paz e a organização social. O Direito surge nesse supedâneo com suas normas jurídicas a fim alcançar essa comunhão social. Essa ciência jurídica, que não é estática, cria a todo o momento novas normas, leis e tratados com o intuito de adequar a sociedade à realidade de sua época.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

138 João Francisco Gagno Campagnaro

Em atenção a tal processo de adequação, a comunidade jurídica firma a atenção em um processo penal eficaz. Por muito tempo tem-se sentido a necessidade de uma reforma das leis processuais com o fim de atualizá-las nos pontos que as tornam disfuncionais e ultrapassadas, levando não so os estudiosos e os aplicadores do Direito, mas também os leigos a um sentimento de descrédito sobre a administração da Jus-tiça penal.

Na intenção de moldar a realidade brasileira a essa esfera jurídi-ca mais eficaz, notou-se que o abarrotamento de processos na esfera penal exigia uma mudança no sistema processual. Visando esse fim, previamente estabelecido na Constituição da República, e concernen-te às medidas despenalizadoras do Direito Comparado, em atenção a três institutos importantes, quais sejam, o Plea Bargaining, o Guilty Plea, e o Non Contendere, o Legislativo passou a formular e regula-mentar o contexto de Juizados Especiais.

Nesse contexto, em 26 de setembro de 1995 foi criada a Lei n° 9.099 dispondo sobre os Juizados Cíveis e Criminais, diploma esse que entrou em vigor em 28 de novembro de 1995, não obstante as alterações pela Lei n° 10.250/2001 e apos pela Lei n° 11.313/2006.

A institucionalização de Juizados Especiais propiciou uma gama de modificações na estrutura judiciária, estabelecendo uma grande reformulação de conceitos e ideias. Tais alterações se deram para que a aplicação da justiça se desse de forma mais célere nos casos penalmente menos complexos, quais sejam os ilícitos de me-nor potencial ofensivo. Concomitantemente a essa nova realidade, novos princípios foram postos em prática com a promulgação desse diploma legal.

Esse processo evolutivo se destaca principalmente no que tange ao fortalecimento de um novo modelo de justiça que busca a agilida-de no procedimento, com economia processual, pois o clássico não mais respondia aos anseios da sociedade, que necessitava de respos-tas ágeis e seguras.

139

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

Desta feita, no que se refere ao impacto da lei no sistema pro-cessual penal nacional, ressalta-se o entendimento de Ada Pelegrini quando afirma que:

Em sua aparente simplicidade, a Lei 9.099/95 significa uma

verdadeira revolução no sistema processual-penal brasileiro.

Abrindo-se às tendências apontadas no início desta introdução,

a lei não se contentou em importar soluções de outros

ordenamentos, mas - conquanto por eles inspirado - cunhou um

sistema proprio de Justiça penal consensual que não encontra

paralelo no direito comparado. (Pg. 41)

1.1. Princípios reguladores da Lei 9.099/95

A palavra “princípio” vem do latim “principium”, que signi-fica, numa acepção vulgar, início, começo, origem das coisas. Se-gundo o Aurélio, princípio tem o significado de causa originária. A noção de princípio, ainda que fora do âmbito jurídico, sempre se relaciona a causas, alicerces, orientações de caráter geral. Trata-se, indubitavelmente, do começo ou origem de qualquer coisa, numa posição elevada de hierarquia, atuando como vetor para todo o sistema jurídico.

Na esfera Especial, além dos princípios constitucionais inerentes a todos os procedimentos, tais como o da anterioridade da lei, da imparcialidade do juiz e do duplo grau de jurisdição, objetivou o le-gislador infraconstitucional estabelecer novos princípios norteadores dos Juizados Especiais Criminais.

Os princípios norteadores do Juizado Especial Criminal estão previstos no artigo 62 da Lei 9.099/95, os quais servem de alicerce para a reafirmação do papel a que se presta, permitindo o processa-mento dos autos pertinentes aos juizados sem maiores burocracias.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

140 João Francisco Gagno Campagnaro

Art. 62. O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade,

simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade,

buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

Nesse diapasão, os atos processuais fixados na Lei dos Juizados, são regidos pelos princípios, ou critérios, da oralidade, informalida-de, economia processual e celeridade, de forma que eles atinjam o escopo aos quais se destinam.

1.1.1. PrincíPio da oralidade

O Princípio da oralidade surge como auxiliar à tendência desbu-

rocratizante contemporânea, tornando os procedimentos mais ágeis, simples e econômicos, impondo à algumas fases do processo trata-mentos diferenciados.

Damásio Evangelista de Jesus, discorrendo sobre os aspectos da oralidade no âmbito do artigo 62 da mencionada lei, assim se mani-festou:

Sua aplicação, na Lei n° 9.099/95, limita a documentação ao

mínimo possível (arts. 65, caput, 67, 77, caput e 1° e 3°, e 81,

§2°). As partes debatem e dialogam, procurando encontrar uma

resposta penal que seja justa para o autor do fato e satisfaça,

para o Estado, os fins de prevenção geral e especial.

No que tange aos Juizados Especiais, algumas medidas adotadas pela legislação representam ampla manifestação da oralidade em pro-cesso criminal, tais como: a elaboração pela autoridade policial de termo circunstanciado o qual evidentemente será fundado nas infor-mações orais prestadas pelos depoentes (art. 69); os esclarecimentos que o juiz, na audiência preliminar, deve prestar às partes sobre a possibilidade de composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade (art. 72); na

141

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

fase preliminar, a audiência é marcadamente oral e a vítima tem opor-tunidade de apresentar representação verbal (art. 75, caput); a acusa-ção é oral (art. 77, caput, e §3°); e a defesa também é oral, apresentada antes do recebimento da denúncia ou da queixa (art. 81, caput).

Nota-se que pelo princípio acima fundamentado, recomenda-se a prevalência da palavra falada sobre a escrita nos processos. Ainda que não haja a suplantação da oralidade sobre a escrita, mas a coexis-tência das duas linguagens com maior ou menor ênfase.

1.1.2. PrincíPio da simPlicidade

Segundo Silva (1998), trata-se de um dos pressupostos de admis-sibilidade da Lei 9099/95, consistente no fato de que as questões a serem julgadas pelos Juizados Especiais Criminais sejam de menor complexidade. Não sendo admitidas as causas complexas, conforme preleciona o artigo 77, § 2°: “se a complexidade ou circunstâncias do caso não permitirem a formulação da denúncia, o Ministério Público poderá requerer ao Juiz o encaminhamento das peças existentes, na forma do parágrafo único do art. 66 desta Lei”, ou seja, o encami-nhamento das peças existentes ao Juízo comum. Dispõe-se ainda a supressão do inquérito policial pela instauração de termo circunstan-ciado (art. 69, caput), e a dispensa do exame de corpo de delito para o oferecimento da denúncia com a admissão de boletim médico ou prova equivalente (art. 77, §1°).

1.1.3. PrincíPio da informalidade

Para Mirabete (1997, p. 25), tal Princípio “revela a desnecessidade da adoção no processo de formas sacramentais, do rigorismo formal do processo.”

Na esfera dos Juizados Especiais, a informalidade pode ser consta-tada quando, atendidos os critérios estabelecidos em lei, os atos proces-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

142 João Francisco Gagno Campagnaro

suais sempre preencherem as finalidades para as quais foram realizados (art. 65); não se pronunciando qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo (art.65, §1°); a comunicação entre comarcas poderá ser solicita-da por qualquer meio hábil de comunicação (art. 65, §2°); a intimação poderá ser realizada por correspondência ou ainda por qualquer meio inidôneo de comunicação (art. 67); sendo registrados apenas os atos es-senciais (art. 65, § 3°); o relatorio da sentença fica dispensado (Art. 81, §3°), e a súmula do julgamento servirá de acordão (art. 81, §5°). A infor-malidade também pode ser observada quando da audiência preliminar ao tentar a conciliação (art. 72), assim como quando proposta a transação (art. 76, caput) e sua apreciação pela defesa (art. 77, §§ 3° e 4°).

1.2.4. PrincíPio da economia Processual

Pela adoção do princípio da economia processual, conclui-se que um dos objetivos dos Juizados Criminais é que as ações sejam ágeis e eficazes na solução da lide, devendo ser simples na sua tramitação, priorizar a informalidade dos atos, assim como econômicas e com-pactas na execução das atividades processuais.

Nos trâmites dos Juizados Criminais, esse princípio da economia processual instaura-se praticamente em todos os procedimentos, des-de a fase preliminar até o encerramento da demanda: evita-se o in-quérito policial (art. 77, §1°); busca-se o acordo entre as partes e o ar-quivamento do procedimento mesmo antes da formação da lide (art. 72); e as intimações serão feitas desde logo (art. 67, parágrafo único).

Esse princípio tem por escopo, portanto, atingir o resultado mais eficiente utilizando o mínimo de atividades processuais.

1.2.5. PrincíPio da celeridade

O proposito da celeridade processual na esfera dos Juizados Es-peciais decorre da necessidade imposta pela sociedade de uma pres-

143

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

tação jurisdicional mais rápida, que busque diminuir o tempo entre a prática da infração penal e a solução jurisdicional esperada.

Nestes termos, a lei estabelece uma via direta entre a autoridade policial e a judicial, pelo encaminhamento imediato do termo cir-cunstanciado (art. 69, caput); permitindo a aplicação de pena não privativa de liberdade, ainda na audiência preliminar (art. 72); ad-mitindo que os atos processuais possam ser realizados em horário noturno e em qualquer dia da semana (art. 64); e que nenhum ato seja adiado, mesmo que sob condução coercitiva de quem deva compare-cer, quando imprescindível o ato (art. 80), por exemplo.

2. TRANSAÇÃO PENAL

O instituto da transação penal é previsto constitucionalmente no artigo 98, I, no entanto, essa inovação jurídica somente foi regula-mentada com o advento da Lei 9.099 de 1955, em seu artigo 76 que assim dita:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação

penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento,

o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena

restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

§ 1º Nas hipoteses de ser a pena de multa a única aplicável, o

Juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime,

à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de

cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos

termos deste artigo;

III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e

a personalidade do agente, bem como os motivos e as

circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

144 João Francisco Gagno Campagnaro

§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será

submetida à apreciação do Juiz.

§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo

autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos

ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada

apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo

de cinco anos.

§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação

referida no art. 82 desta Lei.

§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não

constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os

fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis,

cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

Trata-se de um novo instrumento decorrente do princípio da oportunidade da propositura da ação penal, que tem o Representante do Ministério Público a faculdade de dispor da ação penal, isto é, de não promovê-la, sob certas condições.

De acordo com os ensinamentos de Alexandre de Moraes:

A transação penal é o novo instrumento de política criminal de

que dispõe o Ministério Público para, entendendo conveniente

ou oportuna a resolução rápida do litígio penal, propor ao

autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação sem

denúncia e instauração de processo, de pena não privativa de

liberdade.

A transação, portanto, não se trata apenas de um mecanismo que atenua a formalidade processual, mas sim, de um mecanismo que tem por escopo a pronta solução de litígios.

Tourinho Neto relata sobre a obrigatoriedade do Ministério pú-blico apresentar a proposta de transação penal “se o autor preencher

145

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

os requisitos para a obter a transação, o Ministério Público deverá – e não poderá (faculdade) – propô-la, desde que satisfeitos os requisitos estabelecidos em Lei”.

Nos termos do inciso III, as condições pessoais do agente e outras circunstâncias podem ser empecilho à proposta de transação. A lei apresenta a única causa impeditiva de natureza subjetiva, que pode-rá autorizar discricionariedade do Ministério Público na negativa de proposta de transação penal (GRINOVER, et al. 2005).

Analisados os pressupostos para a realização da transação penal, cabe ao Ministério Público efetuar a proposta consistente na aplica-ção imediata de pena restritiva de direitos ou multa.

Efetuado a proposta de transação penal, para que esta seja le-vada ao conhecimento do juiz para fins de homologação, a mesma deve ser aceita simultaneamente pela defesa e pelo autor da infra-ção. Com o aceite da medida, apos a análise do juiz, a proposta é homologada. O Juiz então aplica a pena decorrente do acordo, que não importará em reincidência (art. 76, §4°), não constará de certi-dão de antecedentes criminais e não terá efeitos civis, impedindo apenas nova concessão do benefício pelo prazo de 05 (cinco) anos (art. 76, § 6°).

Não havendo transação penal, o Ministério Público oferecerá de-núncia oral, de imediato, ao Juiz, se não houver necessidade de dili-gências imprescindíveis.

3. TRANSAÇÃO E INFRIGÊNCIA CONSTITUCIONAL

3.1. Abordagem preliminar da constituição

No âmbito constitucional, é estabelecido um conjunto de direitos e deveres aos cidadãos brasileiros, no tocante aos direitos, alguns são considerados como Direitos Fundamentais. Assim, a Carta Política como lei superior, enumera em seu conteúdo regras definidas pelo

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

146 João Francisco Gagno Campagnaro

Estado com o objetivo de assegurar os direitos mínimos ao cidadão e organizar o proprio ordenamento jurídico estatal.

Este conceito ideal identifica-se fundamentalmente com os pos-tulados políticos-liberais, considerando-os como elementos materiais caracterizadores e distintivos os seguintes: (a) a constituição deve consagrar um sistema de garantias da liberdade, no sentido do reco-nhecimento de direitos individuais e da participação dos cidadãos nos atos do poder legislativo através do parlamento; (b) a constituição contém o princípio da divisão dos poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estaduais; (c) a constituição deve ser escrita.

Ressalta-se diante da argumentação proposta que além de assegu-rar a efetivação da democracia no país, há que se destacar, na consti-tuição, seus aspectos substantivos, tendo em vista os valores estabele-cidos pela mesma, ou seja, direitos sociais, fundamentais e coletivos. Consubstanciado ao fato de a Carta Magna não referir-se apenas ao seu caráter de SER, mas também de um DEVER SER. Portanto, a cons-tituição reflete a organização jurídica fundamental de um Estado.

3.2. A constituição federal e a legislação especial

No bojo da Lei Fundamental há referência sobre os Juizado Espe-cial Cíveis e Criminais, nos seguintes termos:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territorios, e os Estados

criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou

togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e

a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações

penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos

oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipoteses previstas em lei,

a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de

primeiro grau.

147

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

Inicialmente tal dispositivo legal afere a constitucionalidade na aplicação do instituto da transação penal, afastando qualquer suspei-ta de infringência constitucional no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. No entanto, numa análise pormenorizada do referido ar-tigo, nota-se que tal dispositivo limitou-se a garantir a sua aplicação, sem apontar os detalhes acerca de seus institutos, o que foi discipli-nado por lei infraconstitucional.

Neste sentido, Grinover (2005, p. 50) argumenta:

A Lei 9.099/95, de 26.09.1995, como se percebe, inovou pro-

fundamente nosso ordenamento jurídico-penal. Cumprindo-se

uma determinação constitucional (CF, art. 98, I), foi posto em

prática um novo modelo de Justiça Criminal (grifo nosso).

Na mesma linha de raciocínio, Cabette (2007) lembra que:

[...] a Constituição apenas legitima o legislador ordinário a defi-

nir quais sejam as infrações de menor potencial ofensivo e regu-

lar seu procedimento, inclusive o instituto da transação penal.

A Constituição não nos diz quais seriam tais infrações e quais

seriam as regras para seu processamento, inclusive no que se

refere ao instituto da transação penal.

Ainda que a criação dos Juizados Especiais Criminais esteja prevista constitucionalmente, a simples permissão legal não basta para aferir sua constitucionalidade, exige-se, portanto, que todo pro-cedimento e princípios pela Lei 9.099/95 estabelecidos, não sejam contrários à norma superior, qual seja, a Constituição Federal.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

148 João Francisco Gagno Campagnaro

4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Toda norma jurídica que venha a vigorar num determinado Esta-do, ora pelos anseios da sociedade, ora em decorrência da vontade do poder constituinte, é baseada em princípios, que, manifestados em normas constitucionais, modelarão aquele Estado, e/ou aquela socie-dade que o instituiu.

Sobre a relação das leis com a Constituição e seus fundamentos, Streck (2007) ensina que o legislador está verticalmente obrigado a legislar nos limites das normas constitucionais, compreendidas no seu todo princípiologico, ou seja, seu conteúdo material. Lei alguma pode ser promulgada se qualquer de seus preceitos confrontar um fundamento do Estatuto Básico. Nestes termos, a Constituição é um remédio contra maiorias.

Não resta qualquer dúvida que no âmbito jurídico, todo direito e dever abarcados em um novo ordenamento tem estrita relação com o todo constitucional, representado pelos preceitos e princípios que contemplam a noção de Estado Democrático de Direito. Nesse diapa-são, cumpre destacar a seguinte norma Constitucional, que trata dos direitos fundamentais do cidadão:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,

nos termos seguintes:

[...]

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o

devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e

aos acusados em geral são assegurados o contraditorio e ampla

defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

149

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

No que tange ao emprego do instituto da transação penal, o dis-positivo constitucional acima destacado, abarca uma série de obstá-culos para a sua aplicação, visto que qualquer procedimento da esfera penal deve obrigatoriamente ater-se aos princípios contidos na Cons-tituição e no sistema processual penal.

4.1. Princípio de devido processo legal

O preceito do devido processo legal, de cunho constitucional, atém-se ao “conjunto de garantias de ordem constitucional que, de um lado, asseguram às partes o exercício de sua faculdade e poderes de natureza processual e, de outro lado, legitimam a Propria função jurisdicional.” ( Silva, 1997, p. 44)

Nesse ínterim, trata-se de princípio insculpido na Constituição, garantindo o ingresso do cidadão no sistema judiciário, e por tal fun-damento, inferem-se algumas características notáveis para assegurar um sistema democrático, como por exemplo, o da instrução do con-traditorio e a da ampla defesa, dentre tantos outros de igual valor.

Desta feita, o devido processo legal representa o direito a regular curso de administração da justiça pelos juízes e tribunais, visando a pro-teger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. (SILVA, 1997, p. 44) Arbitrariedade esta, que pode ser averiguada durante a proposta da apli-cação da transação penal, de forma que antes mesmo de existir qualquer acusação contra o suposto autor do fato, já lhe é imputado uma pena.

No que tange ao descaso face ao devido processo legal na aplica-ção antecipada das penas, Grinover (2005, p. 42) explica que:

Mas a transação penal continua sendo atacada por alguns. Três

são os fundamentos para tanto: a) a aplicação da pena sem

processo e sem reconhecimento de culpa infringiria o inc. LIV do

art. 5° da Constituição, que estabelece que “ninguém será privado

da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, [...].

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

150 João Francisco Gagno Campagnaro

O Juizado Especial Criminal não pode, mesmo que para privile-giar a celeridade, desobedecer aos preceitos constitucionais, atrope-lando os direitos assegurados.

Entende-se assim que o procedimento previsto na Lei 9.099/95 ao formular o instituto da transação penal, fere o preceito constitucional do devido processo legal, tendo em vista que antes mesmo de acusar alguém por ato criminoso, mediante oferecimento da denúncia, lhe é imposto uma pena, ainda que na espécie de multa.

4.2. Princípio da ampla defesa

Entende-se por este princípio “o asseguramento que é feito ao acusado de condições que lhe possibilitem trazer para o processo to-dos os elementos tendentes a esclarecer a verdade”. (SILVA, 1997, p. 48) Assim, explica Capez (2006, p. 20):

Implica o dever de o Estado proporcionar a todo réu a mais com-pleta defesa, seja pessoal (autodefesa), seja técnica (efetuada por de-fensor), e de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos ne-cessitados. Desse Princípio também decorre a obrigatoriedade de se observar à ordem natural do processo, de modo que a defesa se mani-feste sempre em último lugar.

Por tal princípio, nota-se que o mesmo objetiva manter a igualda-de entre partes integrantes da lide. Apenas estará inteiramente certi-ficada quando uma verdade tiver iguais possibilidades de persuasão do magistrado, sendo ela alegada pela vítima, ou pelo autor do fato (SILVA, 2007, p. 49). Assim a “ampla defesa não é aquela que é sa-tisfatoria segundo os critérios do réu, mas sim aquela que satisfaz a exigência do juízo.” (SILVA, Op. cit.)

Nesta linha de raciocínio Cabette (2007) afirma que a Lei 9099/95 teve sua constitucionalidade questionada pelo fato de supostamente violar os fundamentos constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditorio e da presunção de inocência, ao per-

151

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

mitir imposição de sanções por acordo em que o suposto autor do fato dispõe daquilo que seria indisponível.

No entender de Amorim (2006), a busca por uma solução con-sensual para os conflitos nos Juizados Especiais Criminais não é con-tundente, tendo em vista que há uma troca de permissões entre o su-posto autor do fato e o Representante do Ministério Público, na qual o suposto autor do fato abriria mão de ter uma defesa ampla à luz do contraditorio, permitindo ao Ministério Público propor uma pena não privativa de liberdade.

Em seu artigo científico, Amorim (Op. cit.) explana o procedi-mento adotado pela legislação em análise quando da oferta de aplica-ção da transação para suposto autor do fato durante audiência preli-minar, e enfatiza a maneira como a proposta dessa transação ocorre como meio de pressão sobre o então autor do fato:

Pois bem. Nesse quadro, ao chegar à audiência preliminar,

diante de um Juiz e de um membro do Ministério Público, o

autor do fato é perguntado se deseja aceitar a transação penal,

com todos os seus fogos de artifício (não aceitação de culpa,

não gera reincidência, não traz os efeitos normais de uma

sentença condenatoria, etc.), recebendo uma pena restritiva

de direito, ou se vai “enfrentar” o processo, neste último caso,

quase como se fosse enfrentar o Juiz e o Ministério Público, tal

é o inconveniente indisfarçável gerado por quem não aceita a

“benéfica” proposta.

Ou seja, no desenvolver da audiência o princípio da ampla defesa se quer é suscitado, visto que o suposto autor do fato não possui o direito de expor sua versão dos fato e trazer aos autos elementos que possam esclarecer a verdade fática, até porque, ainda não existi a de-núncia, mas apenas informações superficiais acerca de um possível fato criminoso anteriormente descrito.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

152 João Francisco Gagno Campagnaro

4.3. Princípio do contraditório

Acerca do princípio do contraditorio Silva (Op. cit., p. 46) o defi-ne nos seguintes termos:

O contraditorio impõe a conduta dialética do processo. Isso

significa dizer que em todos os atos processuais às partes

deve ser assegurado o direito de participar, em igualdade de

condições, oferecendo alegações e provas, de sorte que se

chegue à verdade com equilíbrio, evitando-se uma verdade

produzida unilateralmente.

Assim, todos os mecanismos utilizados devem ser usados, a fim de que não revele posição contrária em prol de uma das partes e em detrimento da outra. “Somente quando as forças do processo, de bus-ca e revelação da verdade, são efetivamente distribuídas com irres-trita igualdade é que se pode falar em processo caracterizado pelo contraditorio e ampla defesa” (SILVA, Op. cit.).

E mais, “amplitude do alcance do contraditorio está literalmente prevista no texto constitucional, não podendo haver dúvida de que abarca todos os processos” (SILVA, Op. cit., p. 47).

De tal forma, a defesa não pode sofrer gravames por falta de pos-sibilidade de manifestação, mesmo porque o princípio garante com-pleta igualdade entre acusação e defesa (TOURINHO FILHO, 2007). A fim de equiparar os polos litigantes, é concedido ao suposto autor do fato, dever de instituir defensor técnico, para que possa em pé de igualdade, discutir os direitos existentes. Por esses termos discutidos, é o parecer de Tourinho Filho (Op. cit., p. 46):

Da análise do corpo constitucional infere-se a certeza de que a tutela jurisdicional, devida pela esfera estatal à sociedade, não se li-mita a um simples comprometimento de repostas ao direito de ação, praticada de maneira igual pelo autor e pelo réu. O que se assegura,

153

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

verdadeiramente, é o devido processo legal, com todos os atributos que a historia do constitucionalismo universal conseguiu construir (SILVA, 1997, p. 46).

No que concerne à proposta de transação penal da Lei 9.099/95, proposta pelo Promotor de Justiça, no momento de sua homologação, transparece um claro desrespeito diante do princípio estudo, visto que o suposto autor do fato tem de escolher pela restrição de seus direitos ou encarar o processo, mesmo que não tenha sido ouvido ou que tenha produzido qualquer tipo de prova em seu favor e em sentido contrário ao que está escrito no Termo Circunstanciado de Ocorrência.

Por tais explanações, a transação penal, torna-se, no tocante ao seu procedimento, inconstitucional, pois, o suposto autor dos fatos não pode abrir mão de uma garantia individual constitucional, que é absolutamente indeclinável.

4.4. Princípio da presunção da inocência

Advinda do princípio do devido processo legal, foi reconhecido na doutrina e na jurisprudência, a expressão presunção da inocência. A atual Constituição, contudo, não presume a inocência, mas decla-ra que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatoria” (art. 5º, inciso LVII), ou seja, embo-ra opte pela não culpabilidade, deixa claro que tal somente se dará quando do trânsito em julgado da sentença penal condenatoria.

Por isso, ninguém será considerado culpado até o trânsito em jul-gado de sentença penal condenatoria. Assim, ”nada mais natural do que a inversão do ônus da prova, ou seja, a inocência é presumida, cabendo ao Ministério Público provar a culpa. Caso não o faça, a ação penal deverá ser julgada improcedente” (LENZA, 2006).

A proposta de transação penal assegurada pela legislação dos Jui-zados Especiais Criminais, impõe ao suposto autor do fato uma pena,

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

154 João Francisco Gagno Campagnaro

restritiva de direito ou multa, sem profunda investigação dos fatos, direito de defesa, ou sequer processo instaurado na sua devida forma e, portanto, sem sentença condenatoria.

Assim, o princípio da presunção de inocência é descumprido, pois, mesmo havendo a presunção de inocência, o suposto autor acei-ta uma pena, resultado da aceitação do suposto benefício da tran-sação penal, em desmerecimento aos fundamentos constitucionais mencionados.

Por todo o exposto, obsta ressaltar que não se pode, em nome de um desejo de celeridade processual, instituir a inobservância das ga-rantias constitucionais do cidadão, impondo a aceitação da aplicação antecipada de pena. Esse procedimento especial representa, não so um prejuízo ao cidadão envolvido (suposto autor do fato), mas tam-bém, uma afirmação de descrédito tão comum à justiça brasileira.

CONCLUSÃO

O enfoque do presente trabalho limitou-se a apresentar o insti-tuto da transação penal, confrontando com os princípios processuais determinados pela Constituição Federal. Registrou-se para tanto, os aspectos regulamentadores da Lei 9.099/95, bem como os princípios por ela recepcionados e os dispositivos procedimentais do rito ora analisado.

A Lei dos Juizados trouxe diversas inovações que se faziam ne-cessárias no nosso ordenamento processual clássico, dando realmen-te mais efetividade e agilidade ao sistema jurídico clássico.

Sem dúvida, o maior objetivo da lei é desburocratização sem des-penalizar. O enfoque da questão deve se concentrar no ganho para o cidadão, decorrente da maior segurança propiciada à população, deri-vada da eficaz atuação policial, somada a uma rápida e célere respos-ta jurisdicional aos delitos que permite. Esta é uma medida simples, mas extremamente eficaz no combate à criminalidade.

155

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

TRANSAÇÃO PENAL

Urge avaliar com bons olhos a intenção do legislador diante do instituto da transação penal, o qual não pode significar aniquilação dos direitos e garantias fundamentais da pessoa, senão o combate à criminalidade.

Deste modo, atendendo aos princípios que guiam a lei 9099/95 e fazendo uma interpretação sistemática dos dispositivos jurídicos, das disposições doutrinárias e da jurisprudência acima relatados não se pode deixar de entender que qualquer lei nova, para ser bem interio-rizada pelos operadores jurídicos, também exige uma nova mentali-dade. Ainda mais quando se trata de lei profundamente inovadora, que introduz a transação penal em nosso sistema jurídico.

Por todo o exposto, conclui-se a transação penal no Juizado Espe-cial Criminal é um instituto possível, e visa a celeridade judicial, um benefício sem dúvidas. Todavia, para que seja justo, merece reformas, atendendo assim ao devido processo legal e respeitando os princípios fundamentais.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Considerações sobre a (in)cons-titucionalidade da transação penal.Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=9341>.Acesso em: 23 out. 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF, 05 out., 1988.

BRASIL. Lei n.° 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF, 26 set., 1995.

CABETTE , Eduardo Luiz Santos. Art. 28 da Lei nº 11.343/06: uma transação inconstitucional?. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.as-p?id=10219>. Acesso em: 11 out. 2011.

GRINOVER, Ada Pellegrini. [et. al] Juizados Especiais Criminais: Comentá-rio à lei 9.099, de 26.09.1995. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

JESUS, Damásio E. de, Leis dos Juizados Especiais Anotada. São Paulo: Ed. Saraiva, 10ª edição – 2007.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

156 João Francisco Gagno Campagnaro

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10 ed. São Paulo: Método, 2006.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais: Comentário, Ju-risprudência e Legislação. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1997.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 34.

MORAES, Alexandre de. SMANIO, Gianpaolo P. Legislação Penal Especial. Fundamentos Jurídicos. 9 ed. São Paulo: Atlas S.A., 2006.

SILVA, Marco Antonio da. Juizados especiais criminais. São Paulo: Saraiva, 1997.

STRECK, Lenio Luiz. Os juizados especiais criminais á luz da jurisdição constitucional: A filtragem hermenêutica a partir da aplicação da técnica da nulidade parcial sem redução de texto. Disponível em: <http://leniostre-ck.com.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=25&dir= DESC&order=date&Itemid=40&limit=10&limitstart=10>. Acesso em: 10 set. 2011.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

SILVA, Ovídio A. Batista da. Jurisdição e execução na tradição romana ca-nônica. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais, São Paulo, Saivá, 2007.

TOURINHO NETO, Fernando Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados especial estaduais cíveis e criminais: comentário à Lei 9.099/95. 5. ed. Rev., atual e amplliada – São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2007.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes. Pos Graduada em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Analista – Especialidade Direito - do Ministério Público do Estado de Sergipe.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI Nº 11.340/2006

RESUMOEsse artigo científico aborda como tema a violência doméstica e familiar contra a mulher, mais precisamente os aspectos criminais da Lei nº 11.340/2006 confrontados com a Lei nº 9.099/95, com o Codigo Penal e o Codigo de Processo Penal. A Lei nº 11.340/2006 que é conhecida como “Lei Maria da Penha” não criou tipos penais pro-prios, mas trouxe implicações de cunho penal e processual para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. O presente trabalho confrontará os ditames processuais da Lei dos Juizados Especiais Criminais com artigos da Lei Maria da Penha, bem como as implicações desta no Codigo Penal e no Codigo de Processo Penal. Tal estudo se dará através de uma pesquisa qualitativa consistindo em pesquisas bibliográficas explorando artigos científicos e doutrinas, bem como de pesquisa na Internet que tem por finalidade conhecer as diferentes formas de contribuição científica que se realizaram sobre tal assunto descrevendo as posições encontradas sobre o tema, estabelecendo correlações entre elas, além de utilizar o método dedutivo, partindo das fontes formais do Direito e dos princípios que inte-gram a ciência jurídica, como base conceitual a doutrina, obtendo um sentido crítico frente às distintas opiniões formuladas a respeito do problema jurídico objeto deste trabalho. Devido à especialidade da Lei Maria da Penha, os procedimentos por ela adotados prevalecem sobre aqueles elencados na lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no Codigo Penal e no Codigo de Processo Penal.Palavras-chaves: Violência doméstica; Procedimentos; Alterações.

ABSTRACTThis scientific article focuses on domestic and family violence, specifically the crimi-nal aspects of Law 11,340 / 2006, which are confronted with Law 9999/95, with the Criminal Code and the Code of Criminal Procedure. Law No. 11,340 / 2006, which is known as the “Maria da Penha Law”, did not create its own penalties, but had cri-minal and procedural implications for crimes committed with domestic and family

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

158 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

INTRODUÇÃO

Esse artigo científico aborda como tema a violência doméstica e familiar contra a mulher, mais precisamente os aspectos processuais da Lei nº 11.340/2006 confrontados com a Lei nº 9.099/95, o Codigo Penal e o Codigo de Processo Penal.

Devido a especialidade da Lei Maria da Penha, os procedimen-tos por ela adotados prevalecem sobre aqueles elencados na lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no Codigo Penal e no Codigo de Processo Penal, é o que a doutrina jurídica brasileira denomina de efeito repristinatorio da lei.

O primeiro capítulo desse trabalho discute a constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.

No segundo capítulo, confronta-se os procedimentos previstos na Lei dos Juizados Especiais Criminais e os artigos da Lei Maria da Penha. Enfatiza ainda os tipos penais que antes da Lei Maria da Pe-nha eram processados e julgados nos Juizados Especiais Criminais e atualmente seguem o procedimento comum nas varas criminais até que seja criado o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de acordo com o que dispõe a propria Lei nº 11.340/2006.

violence against women. The present will confront the procedural dictates of the Law of Special Criminal Courts with articles of the Maria da Penha Law, as well as the implications of this in the Criminal Code and in the Code of Criminal Procedure. This study will be done through a qualitative research consisting of bibliographical research exploring scientific articles and doctrines, as well as Internet research that aims to know the different forms of scientific contribution that have been made on this subject describing the positions found on the subject, establishing a correlation between them, as well as using the deductive method, starting from the formal sour-ces of Law and the principles that integrate legal science, having as a conceptual basis the doctrine, obtaining a critical sense regarding the different opinions formu-lated regarding the legal problem object of this job. Due to the specialty of the Maria da Penha Law, the procedures adopted by it prevail over those listed in the Law of Special Civil and Criminal Courts, in the Criminal Code and in the Code of Criminal Procedure.KEY-WORDS: Domestic violence; Procedures; Changes.

159

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

O terceiro capítulo discute as implicações da Lei Maria da Penha no Codigo Penal, a inaplicabilidade de penas de cesta básica ou ou-tras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa; a inserção no artigo 61, inci-so II, na alínea “f”, do Codigo Penal, de uma circunstância agravante para os crimes praticados com violência doméstica e familiar; a alte-ração do quantitativo da pena do § 9º, do artigo 129, do Codigo Penal e o acréscimo de mais uma causa de aumento de pena prevista no § 11 igualmente do artigo 129.

Ainda do terceiro capítulo examina-se as implicações da Lei Ma-ria da Penha no Codigo de Processo Penal, a exemplo das disposições do artigo 12, desta lei especial; o constante no artigo 16, da Lei n° 11.340/2006 que prevê a possibilidade de “renúncia” à representação nos crimes de ação penal pública condicionada, definindo também a competência para julgar e processar os crimes praticados com violên-cia doméstica e familiar contra a mulher e tece comentários acerca de mais uma hipotese de cabimento de prisão preventiva.

Por último, o presente trabalho apresenta pontos conclusivos no tocante aos aspectos criminais da Lei Maria da Penha e seus reflexos na área penal e processual penal.

1 A QUESTÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA

Alguns acreditam que a Lei nº 11.340/2006, é um discurso femi-nista, devido à extrema preocupação em tutelar a mulher, gerando in-clusive disposições inconstitucionais e certo caráter discriminatorio ao expor a mulher como sendo o sexo frágil que necessita de uma super-proteção estatal para garantir direitos inerentes a qualquer ser humano.

Analisando o artigo 5º da Constituição Federal, Valter Foleto San-tin (apud CUNHA; PINTO, 2007:22), defende a inconstitucionalidade dessa lei especial ao afirmar que a pretexto de proteger a mulher,

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

160 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

numa postura politicamente correta, a Lei Maria da Penha é visivel-mente discriminatoria no tratamento de homem e mulher, quando a mesma prevê sanções a uma das partes do gênero humano, o homem, e proteção especial à outra parte, a mulher, sem reciprocidade, trans-formando a pessoa do sexo masculino num cidadão de segunda cate-goria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especialmente a pessoa do sexo feminino, numa aparente formação de casta.

Outros doutrinadores acreditam que a Lei Maria da Penha é fruto de uma ação afirmativa do Estado diante das barbáries sofridas pelas mulheres e os posicionamentos incisivos da lei têm o objetivo de coi-bir eficazmente a violência doméstica e familiar contra a mulher que ocorre no Brasil

Quanto ao fato de que a Lei Maria da Penha feriria o princípio da igualdade, Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti (2007:177) desta-ca que a Lei Maria da Penha atribui à mulher um tratamento diferen-ciado, promovendo sua proteção de forma especial em cumprimento às diretrizes constitucionais tendo em vista que a mulher é a maior vítima da violência doméstica. Alega ainda que a fim de dirimir qual-quer dúvida quanto à constitucionalidade, o legislador estabeleceu já no primeiro artigo da lei especial o seguinte:

Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a

violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do

§ 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,

da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar

a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais

ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a

criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra

a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às

mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

161

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

A Lei Maria da Penha não seria inconstitucional porque a propria Constituição Federal reconhece que o Poder Público deve promover o amparo às mulheres vítimas de violência doméstica, criando meca-nismos eficientes para a proteção delas.

Portanto, a Lei nº 11.340/2006 não feriria a igualdade entre os sexos, mas sim seria aplicada a igualdade formal, ou seja, a igualdade de direitos em razão de todos serem humanos e a igualdade material, que é a igualdade real entre os cidadãos, no caso dos gêneros femini-no e masculino, através de ações afirmativas estatais.

Nessa questão é importante esclarecer que será aceita a discri-minação em razão do sexo do indivíduo quando for escolhida com o proposito de atenuar as desigualdades existentes entre homem e mulher, como ocorre na maioria dos casos de violência doméstica, em que é expressa a situação de vulnerabilidade da mulher ofendida em relação ao seu agressor.

Nesse sentindo, entende o Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LEI Nº 11.340/06 – GÊNEROS

MASCULINO E FEMININO – TRATAMENTO DIFERENCIADO.

O artigo 1º da Lei nº 11.340/06 surge, sob o ângulo do

tratamento diferenciado entre os gêneros – mulher e homem

–, harmônica com a Constituição Federal, no que necessária a

proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a

cultura brasileira. COMPETÊNCIA – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

– LEI Nº 11.340/06 – JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

E FAMILIAR CONTRA A MULHER. O artigo 33 da Lei nº

11.340/06, no que revela a conveniência de criação dos juizados

de violência doméstica e familiar contra a mulher, não implica

usurpação da competência normativa dos estados quanto à

propria organização judiciária. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

162 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

– AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar,

nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº

9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do

artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade

de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no

âmbito das relações familiares. (STF. ADC 19 / DF - DISTRITO

FEDERAL. Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento:

09/02/2012 Órgão Julgador: Tribunal Pleno)

2 A LEI Nº 11.340/2006 E OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS

Ao confrontar a Lei Maria da Penha com a Lei dos Juizados Espe-ciais Criminais deve-se começar expondo as disposições constantes no artigo 41 da Lei nº 11.340/2006: “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena pre-vista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

A princípio não se aplica mais o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais. Não se realiza mais a composição cível dos danos, nem a transação penal nos crimes praticados com vio-lência doméstica e familiar contra a mulher. Não se aplica também a suspensão condicional do processo, sendo o investigado, denun-ciado, quando assim houver elementos de prova, ou seja, nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não se aplica mais as medidas despenalizadoras prevista na Lei dos Juizados Especiais Criminais, ante a sordidez de tais delitos.

Ocorre que, por estar previsto na Constituição Federal o instituto da transação penal, há quem defenda a inconstitucionalidade do arti-go 41, pois a transação não estaria sob a discricionariedade do mem-bro do Ministério Público, mas, desde que preenchidos os requisitos exigidos, deve ser obrigatoriamente proposta.

Contudo, há outra corrente que defende que no artigo 41 da lei es-pecial o legislador ordinário pretendeu deixar claro que todos os crimes

163

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

que forem praticados com violência doméstica e familiar contra a mu-lher não se aplicam a Lei nº 9.099/95, e consequentemente a transação penal, porque não são considerados crimes de menor potencial ofensivo, não importando a pena in abstrato, mas sim o tipo penal pela sua nature-za, recebendo então a mulher uma proteção especial do Estado.

Quando se verifica essa proteção estatal, ou seja, a inaplicabilida-de da Lei nº 9.099/95, não se trata do princípio da igualdade literal e sim do princípio da isonomia, isto é, o tratamento desigual entre os desiguais (no caso homem e mulher) na medida das suas desigualda-des, a fim de que seja promovida a igualdade entre os sexos, igualdade esta garantida constitucionalmente, como já analisado neste trabalho. Não é apenas o fato da pessoa ser mulher que é abrangida pela prote-ção estatal, mas sim apenas aquelas que forem vítimas de crimes que ocorrem no cenário de violência doméstica e familiar, restringindo o alcance da Lei nº 9.099/95.

Tal limitação é constitucional, haja vista a propria Carta Magna de-legar à lei infraconstitucional a determinação do que seria infração de menor potencial ofensivo e as hipoteses em que se admitiria a transação.

Frise-se que não é o caso de tratar a mulher como sendo mais frágil em relação ao homem, mas sim de tratar com severidade a si-tuação de calamidade pública ainda existente nos dias de hoje de agressões contra a mulher no proprio ambiente familiar e doméstico.

De fato, o legislador foi sábio ao determinar a não aplicação da lei dos Juizados Especiais, pois analisando os casos de violência doméstica contra a mulher quando eram regidos pelos ditames da Lei nº 9.099/95, percebia-se uma banalização das transações penais para os agressores criando um jargão popular de que “para bater precisa apenas pagar”.

Vejamos o entendimento jurisprudencial abaixo:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL

EM RECURSO ESPECIAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. VIAS

DE FATO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DOMÉSTICAS.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

164 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

INAPLICABILIDADE DOS INSTITUTOS DESPENALIZADORES

DA LEI N. 9.099/95. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

Os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, dentre eles

a suspensão condicional do processo, não têm aplicação no

tocante às contravenções penais contempladas pela Lei Maria

da Penha. 2. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no REsp

1662511 / RS. Relator(a) Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS

MOURA. Órgão Julgador: SEXTA TURMA. Data do Julgamento

02/05/2017).

Outro impasse criado pelo artigo 41 da lei especial é no tocante a representação nos crimes de ação penal pública condicionada. Nes-ses crimes o Ministério Público somente pode oferecer a Denúncia apos a expressa representação da ofendida.

Não há dúvidas quanto aos crimes previstos no Codigo Penal onde já está prevista a natureza da ação penal, que se procede me-diante representação por parte da ofendida, a exemplo do tipo penal de ameaça. No entanto, quando se trata especificamente do crime de lesão corporal leve, a necessidade de representação da parte ofendida está prevista no artigo 88 da Lei nº 9.099/95.

A necessidade de representação nos crimes de lesões corporais está prevista no artigo 88, da Lei nº 9.099/95, mas o artigo 41 supramencio-nado afirma que não se aplica tal lei nos casos de violência doméstica contra a mulher. Existem duas posições doutrinárias acerca da ação penal se é pública condicionada ou incondicionada a representação.

A corrente defendida por Pedro Rui da Fontoura Porto (2006), afirma que a ação deve ser pública condicionada a representação ale-gando que essa não teria sido a intenção do legislador, pois tiraria a possibilidade da ofendida tentar reestruturar a harmonia no seu lar, acabando por impedir uma possível conciliação com o seu agressor.

Alega que o objetivo de tal lei foi apenas de excluir a aplicação de penas alternativas para o autor, como por exemplo, a multa e a pres-

165

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

tação pecuniária que sempre se resumiam em cestas básicas, como exposto no artigo 17, da Lei nº 11.340/2006.

Defende ainda que é necessária a representação da ofendida haja vista o disposto no artigo 12 da Lei nº 11.340/2006 que diz que a au-toridade policial deve ouvir a vítima, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, pois estaria sendo em benefício da vítima uma vez que caberia a ela a discricionariedade de que seja ini-ciado um processo criminal contra o seu agressor ou não, já que em várias situações a ofendida não pretende a punição penal do autor do fato, mas somente que cessem as agressões.

Mantida a representação, mantém-se também a conciliação e,

nesse caso, o poder de barganha da vítima é fortalecido pela

inexistência de outras medidas despenalizadoras posteriores,

ou seja, ou o agressor aceita as condições do acordo proposto

pela vítima, ou terá de submeter-se de vez ao processo criminal,

sem direito à transação ou suspensão condicional do processo

que lhe poderiam ser mais benéfica que a propria compensação

dos danos civis (PORTO, 2006).

A outra corrente sustenta que a ação penal é pública incondicio-nada, pois o artigo 41 exclui expressamente a aplicação da lei dos juizados como um todo, incluindo então, o artigo referente a repre-sentação nos crimes de lesões corporais leves como condição de pro-cedibilidade da ação penal.

A Lei Maria da Penha, no seu artigo 41, fez com que retornasse para o Ministério Público a competência de deflagrar a ação penal com o oferecimento da Denúncia, concluindo que tais delitos quando ocor-ridos com violência doméstica e familiar contra a mulher não mais dependem da vontade das vítimas para o seu processamento, pois no lar é evidente a pressão que acontece com a ofendida, no aspecto psico-logico, para que ela não represente criminalmente o seu agressor.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

166 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

Sendo assim, igualmente às lesões corporais leves praticadas de forma dolosa, o crime de lesão corporal de natureza culposa não se exige a representação por parte da ofendida, sendo o artigo 88 da Lei nº 9.099/95 derrogado.

No que toca aos crimes culposos, Sergio Ricardo de Souza (2007:160) diz que o disposto no artigo 41 da Lei nº 11.340/2006 não o abrange, mas apenas os dolosos, quando praticados nas condições expressas no artigo.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu da seguin-te forma:

PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO

ESPECIAL. ART. 129, §9º, DO CÓDIGO PENAL. VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA. INDISPONIBILIDADE DA AÇÃO PENAL. ADI N.

4.424/DF. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Os crimes de lesão corporal, ainda que leve ou culposa,

praticados no âmbito das relações domésticas, serão sempre

processados por meio de ação penal pública incondicionada,

ainda que o fato praticado tenha ocorrido antes do julgamento

da ADI n. 4.424/DF pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal,

em 9/2/2012. 2. Agravo regimental não provido. (STJ. AgRg no

REsp 1440089 / SP. Relator(a) Ministro ROGERIO SCHIETTI

CRUZ. Órgão Julgador: SEXTA TURMA. Data do Julgamento:

05/11/2015).

Outro ponto que se deve dar destaque se refere às contravenções penais. No geral, as contravenções penais são consideradas delitos de menor potencial ofensivo.

Quando passou a entrar em vigência a Lei Maria da Penha en-tendia-se que a vedação para se aplicar a Lei dos Juizados Especiais referia-se apenas aos crimes, não fazendo menção as contravenções. Portanto, concluía-se que as contravenções penais em desfavor da

167

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

mulher vítima de violência doméstica deveriam continuar a ser con-sideradas de menor potencial ofensivo e, portanto, de competência dos Juizados Especiais Criminais e não do Juízo Comum.

Hoje, o entendimento pacificado é o de que a vedação da apli-cação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais também atingem as contravenções penais.

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL

EM RECURSO ESPECIAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. VIAS

DE FATO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DOMÉSTICAS.

INAPLICABILIDADE DOS INSTITUTOS DESPENALIZADORES

DA LEI N. 9.099/95. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. Os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, dentre eles

a suspensão condicional do processo, não têm aplicação no

tocante às contravenções penais contempladas pela Lei Maria

da Penha.

2. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no REsp 1662511

/ RS. Relator(a) Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS

MOURA. Órgão Julgador: SEXTA TURMA. Data do Julgamento:

02/05/2017).

Igualmente, quanto a representação da ofendida na contravenção de vias de fato a antiga discussão devido à necessidade que se fazia de representação quanto aos crimes de lesões corporais leves, não mais existe.

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO

ESPECIAL. VIAS DE FATO EM AMBIENTE DOMÉSTICO.

AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA.

1. Nas contravenções penais de vias de fato, praticadas no

âmbito das relações domésticas e familiares, a ação penal

é pública incondicionada, nos termos do art. 17 da Lei

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

168 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

de Contravenções Penais, que não foi alterado pela Lei n.

9.099/1995, nem pela Lei n. 11.340/2006. Precedentes.

2. Agravo regimental desprovido. (STJ. AgRg no AREsp 1036763

/ SP. Relator(a) Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO.

Órgão Julgador: SEXTA TURMA. Data do Julgamento:

06/04/2017)

Como última consequência do artigo 41, nota-se que o termo de ocorrência circunstanciado previsto no artigo 69, da Lei dos Juizados Especiais, não é mais lavrado ainda que a pena máxima da infração cometida não ultrapasse dois anos, devendo-se, portanto, ser instau-rado o inquérito policial e lavrado o auto de prisão em flagrante deli-to. Apos a conclusão do procedimento investigativo, segue-se a fase judicial com as normas procedimentais do Codigo de Ritos.

Apos mais de dez anos da vigência da Lei nº 9.099/95, o legisla-dor pretendeu afastar dos Juizados Especiais Criminais o julgamento dos delitos praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, devido ao grande número de tais crimes e da leveza da res-posta penal, tendo em vista que os mecanismos impostos por esta lei não eram capazes de coibir e/ou prevenir a atitude agressiva.

3 IMPLICAÇÕES DA LEI MARIA DA PENHA NO CÓDIGO PENAL E NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

3.1 Implicações no Código Penal

Ao analisar as implicações processuais da Lei Maria da Penha no Codigo Penal, primeiramente é cabível observar as disposições con-tidas no artigo 17 da Lei nº 11.340/2006: “é vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substitui-ção de pena que implique o pagamento isolado de multa”.

169

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Neste artigo percebe-se claramente que o legislador vedou de for-ma expressa qualquer aplicação de pena substitutiva prevista no arti-go 43 do Codigo Penal, a saber, cesta básica, prestação pecuniária ou mesmo pena de multa.

Anteriormente à entrada em vigor da Lei Maria da Penha e com a consequente aplicação da Lei dos Juizados Especiais nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, houve uma banalização na utilização de penas alternativas, ao ponto de que existia apenas a imposição do pagamento de cestas básicas, ficando demonstrado o fracasso da Lei dos Juizados Especiais em coibir a prática destas infrações.

Diante de tal fato, o legislador proibiu a imposição de tais penas de cestas básicas ou de prestação pecuniária, bem como apenas o pa-gamento de multa, afim de que o agressor cumpra a pena, sendo ela privativa de liberdade ou restritiva de direitos.

A Lei Maria da Penha pretendeu que o réu acusado da prática de qualquer crime resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena cominada, seja jul-gado pela infração penal e, na hipotese de condenação, seja-lhe aplicada uma pena que, ainda que venha a ser substituída por pena restritiva de direito, possa, em caso de descumprimento in-justificado, ser convertida em prisão, de modo que o agressor se sinta afligido com a sanção penal imposta e, desta forma, seja demovido da ideia de persistir na prática da violência doméstica (BASTOS, 2006).

Outro ponto a se destacar é a aplicação do artigo 61, alínea “f”, do Codigo Penal, acrescentado pelo artigo 43 da Lei Maria da Penha.

Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando

não constituem ou qualificam o crime:

(...)

II - ter o agente cometido o crime:

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

170 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações

domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência

contra a mulher na forma da lei específica.

Aplica-se esse dispositivo em todos os delitos cometidos com vio-lência doméstica com exceção da lesão corporal prevista no artigo 129, §9º, do Codigo Penal, haja vista este último ser um tipo penal proprio e no artigo já se prevê o aumento da pena pelo fato do delito ter sido praticado com violência doméstica contra a mulher, caso contrário, se fosse aplicado a alínea “f” do inciso II, artigo 61, do Codigo Penal, ocor-reria o fenômeno do bis in idem que seria a dupla punição pelo mesmo fato, ou seja, mesma circunstância agravante sendo aplicada em desfa-vor do mesmo agente, o que é proibido no Direito Penal Pátrio.

Vale registrar que o artigo 129, do Codigo Penal, já havia sido modificado pela Lei nº 10.883/2004 que acrescentou o § 9º que trata da agressão ocorrida no âmbito doméstico e familiar, porém este pa-rágrafo não especifica que a vítima tinha que ser mulher, podendo ser também homens e menores de idade, independente do sexo ou idade da vítima, fazendo referência a qualquer tipo de violência ocorrido no âmbito doméstico ou familiar. O legislador da Lei nº 11.340/2006 teve como principal foco a vítima mulher, mas também não ignorou as outras vítimas de violência doméstica.

No entanto, enfatiza-se que estes artigos, tanto o artigo 61, inciso II, alínea “f”, quanto o artigo 129, § 9º, ambos do Codigo Penal, não abrangem apenas a vítima mulher, mas também o homem, a criança e o idoso, vítimas de violência doméstica, contudo, quando esses três últimos são sujeitos passivos, é possível a aplicação da suspensão condicional do processo, benefício este previsto na Lei dos Juizados Especiais.

Com o advento da Lei nº 11.340/2006, precisamente em seu artigo 44, o tipo penal de lesão corporal cometido com violência doméstica permaneceu, mas com alteração no quantitativo da pena, com previ-

171

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

são de 3 (três) meses a 3 (três) anos, não devendo mais ser comparado ao delito de lesão corporal leve.

Guilherme de Souza Nucci (2006) afirma que essa é uma moda-lidade qualificada de lesão corporal já que é uma circunstância que está no tipo penal incriminador, aumentando a pena obrigatoriamen-te dentro de um mínimo e um máximo previstos pelo legislador.

Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti (2007:159) afirma que o artigo 129, § 9º, do Codigo Penal constitui figura qualificada, em que são cominados mínimo e máximo da pena, incidindo apenas quando o delito seja doloso e leves as lesões.

Com isso, o delito previsto no artigo 129, § 9º, do Codigo Penal, saiu da competência dos Juizados Especiais Criminais, independen-temente da vítima ser mulher ou não, pois o artigo 61 da Lei dos Juiza-dos Especiais estabelece que para ser considerada infração de menor potencial ofensivo a pena máxima não pode ser superior a 2 (dois) anos, permanecendo apenas a possibilidade do sursis processual em virtude da pena mínima ser inferior a 1 (um) ano, quando estiverem presentes os requisitos ensejadores e a vítima não seja mulher.

Quando a vítima de tal delito for mulher, será aplicado o disposto do artigo 41, da Lei Maria da Penha, ou seja, a não aplicação da Lei nº 9.099/95, e consequentemente a não propositura da suspensão condi-cional do processo pelo Ministério Público.

É interessante ressaltar um exemplo citado por Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2007:142;143):

Num crime de lesão corporal leve contra um irmão, o agente

não terá direito a transação penal, devendo, nesse caso, ser

instaurado o respectivo inquérito policial, já que não se trata de

infração penal de menor potencial ofensivo, em virtude da pena

máxima prevista de três anos.

.......................................................................................................

...................

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

172 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

Sendo a vítima mulher, o agente não merecerá a transação penal

e tampouco nenhum dos outros benefícios da lei 9.099, como a

composição civil ou a suspensão condicional do processo, em vista

do disposto no art. 41 da lei em exame. Já se o ofendido é homem

(e sendo o agressor ascendente, descendente etc.), o agressor não

terá direito a transação penal, em vista da pena máxima prevista,

agora, para o crime de lesões corporais leves, mas poderá receber

os demais favores típicos do JECrim acima mencionados.

Além dessas alterações, o artigo 44 da Lei Maria da Penha trouxe mais uma causa de aumento de pena, o § 11 do artigo 129, do Codigo Penal, referente a hipotese do crime de lesão corporal ser cometido nas condições do § 9º deste mesmo artigo, contra pessoa portadora de deficiência.

Como última implicação penal, de acordo com o magistério de Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti (2007:158), a violência do-méstica so admite a forma dolosa, já que a Lei nº 11.340/2006 não previu, especificamente, forma culposa para este delito. E, sendo a forma culposa excepcional, deve ter previsão legal expressa para ser possível sua tipificação.

3.2 Implicações no Código de Processo Penal

Ponderando a Lei Maria da Penha com o Codigo de Processo Pe-nal, observemos o disposto no artigo 12 daquela lei especial.

De acordo com esse artigo, os crimes e as contravenções cometi-dos com violência doméstica contra a mulher admitem a prisão em flagrante.

A despeito do artigo 69, da Lei nº 9.099/95, declarar que não será preso em flagrante o autor da infração de menor potencial ofensivo que for de imediato ao Juizado Especial Criminal ou se comprometer a comparecer; o artigo 41 da Lei 11.340/2006, estabelece que não inci-

173

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

dirá nos casos de violência doméstica a Lei nº 9.099/95, sendo assim, em qualquer espécie de infração caberá prisão em flagrante.

Nos casos em que os crimes forem de ação penal pública con-dicionada à representação da ofendida ou de ação penal privada, o agressor somente será preso em flagrante mediante a oitiva da vítima que expressará a sua vontade de representar contra o autor do fato ou de ingressar com a queixa-crime, respectivamente.

Infere-se também que os laudos ou prontuários médicos podem servir para o oferecimento da Denúncia ou da Queixa-crime, bem como para condenação criminal sendo dispensável o Laudo de Exa-me Pericial (exame de corpo de delito). Esse é o entendimento atual!

PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO

ESPECIAL. FALTA DE CABIMENTO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

LESÃO CORPORAL. LAUDO PERICIAL REALIZADO 2

MESES APÓS O FATO. EXISTÊNCIA DE BOLETIM DE

ATENDIMENTO AMBULATORIAL PARA COMPROVAÇÃO DA

MATERIALIDADE. LEI MARIA DA PENHA. POSSIBILIDADE.

PROVAS DE AUTORIA E MATERIALIDADE COM BASE NO

BOLETIM DE OCORRÊNCIA, LAUDO MÉDICO E PROVA

ORAL. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça,

em recentes decisões, não admitem mais a utilização do habeas

corpus como sucedâneo do meio processual adequado, seja

o recurso proprio, seja a revisão criminal, salvo em situações

excepcionais.

2. Tratando-se de lei especial incidente na espécie, o Superior

Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que o

art. 12, § 3º, da Lei Maria da Penha, reconhece a validade,

como meio de prova da materialidade do delito, do laudo

médico fornecido apos atendimento da vítima em hospital ou

posto de saúde.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

174 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

3. Na hipotese dos autos, ficou comprovada a lesão pelo boletim

de atendimento ambulatorial, assinado por profissional.

4. Habeas corpus não conhecido. (STJ. HC 316680 / RS.

Relator(a) Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR. Órgão Julgador:

SEXTA TURMA. Data do Julgamento: 16/02/2017).

O artigo 16, da Lei nº 11.340/2006 prevê a possibilidade de renún-cia à representação nos crimes de ação penal pública condicionada.

Segundo Sérgio Ricardo de Souza (2007:92), a grande maioria das infrações penais (ou seja, a regra geral), a instauração do inquérito policial e a posterior apresentação da ação penal (Denúncia) são pro-vidências que devem ser praticadas ex officio (artigo 5º e 24, do CPP e artigo 100, caput, do CP), sendo que nestes casos as respectivas ações penais são denominadas de ação penal pública incondicionada, não dependendo da vontade da vítima.

Como exceção a regra acima, existem alguns delitos que o legis-lador fez a opção de somente permitir que o Estado interviesse tanto na fase do inquérito policial quanto na fase processual, caso a vítima ou o seu representante legal se manifestasse nesse sentido, haja vista o entendimento que nestes casos o interesse da vítima está sobre o interesse da sociedade.

Então, a manifestação do ofendido, através de representação, é que provoca a atuação estatal em tais casos. Sem essa manifestação a autoridade policial não pode instaurar o procedimento administrati-vo e o membro do Ministério Público não pode deflagrar a ação penal.

Ocorre que a representação é retratável, isto é, o ofendido pode voltar atrás e decidir que não deseja mais que o Estado investigue o fato e processe o autor, contudo, a retratação deve ser feita até o mo-mento anterior ao oferecimento da Denúncia, exclusiva do Ministério Público.

Todavia a Lei Maria da Penha traz, erroneamente, a denominação “renúncia à representação” que apenas é utilizada nas ações penais

175

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

privativas do ofendido, já que é a abdicação do direito de oferecer a queixa-crime, que deve ocorrer até o oferecimento desta peça acusa-toria. Então, quando a Lei n° 11.340/2006 fala de renúncia, refere-se na verdade a retratação.

A “renúncia” significa que a mulher ofendida abdica de exercer um direito seu. De acordo com a regra geral expressa no artigo 25, do Codigo de Processo Penal, a “renúncia” à representação somente pode ocorrer até o oferecimento da Denúncia. Verifica-se uma di-ferenciação quanto aos crimes cometidos com violência doméstica contra a mulher em que a “renúncia” será aceita até o recebimento da Denúncia pelo Juiz e em uma audiência designada especificamente para esse fim com a oitiva do representante do Parquet, derrogando, portanto, o artigo 25, do Codigo de Ritos.

Nos casos em que ocorra violência física contra a mulher não cabe mais a “renúncia”, já que tais crimes não são mais de ação penal pública condicionada à representação da ofendida considerando o disposto no artigo 41, da Lei Maria da Penha, aplica-se apenas para os outros crimes, como exemplo a ameaça previsto no artigo 147, pará-grafo único, do Codigo Penal.

Diante da ocorrência de inúmeros casos em que a mulher apre-senta o desejo de representar contra seu agressor na Delegacia e apos busca a retratação para evitar o ajuizamento da ação, a vontade da lei foi a de evitar que a vítima de qualquer maneira fosse pressionada para que retirasse a notitia criminis contra o seu agressor, o que cons-tantemente ocorria antes da vigência da Lei n° 11.340/2006.

É importante registrar que nos crimes de ação penal privada (a exemplo do crime de injúria – artigo 140, caput, do Codigo Penal), a Lei 11.340/2006 apenas afastou destes a incidência das medidas despenalizadoras da Lei n° 9.099/95, permanecendo inalterados os demais procedimentos, a exemplo da necessidade de queixa-crime.

Outro aspecto de implicância processual penal é o fato de que até serem criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

176 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

Mulher, as varas criminais acumularão competências cível e criminal para processar e julgar tais causas.

Sérgio Ricardo de Souza (2007:142;143) leciona que até que haja a instalação e o efetivo funcionamento dos Juizados de Violência Do-méstica e Familiar contra a Mulher, o legislador estabeleceu que a competência em relação às matérias previstas na Lei n° 11.340/2006 (cível e criminal) deverá ser absorvida pelas Varas Criminais, eviden-ciando-se que a natureza predominante dos novos Juizados é crimi-nal e que o procedimento adotado é aquele previsto na lei respectiva, já que no Juízo transitorio (vara criminal) ou no JVDFCM (Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher), a competência é tanto criminal, quanto cível, e a cada um é reservado um procedi-mento específico.

O proprio artigo 33 da Lei nº 11.340/2006 enfatiza que “as varas criminais”, em conformidade com a proibição de que seja aplicada a Lei n° 9.099/95, o que deixa claro que não é permitida a transferência da competência, ainda que seja de forma transitoria, para os Juizados Especiais, até mesmo porque os procedimentos dos Juizados e da Lei Maria da Penha são incompatíveis entre si.

Registre-se ainda que as causas que tratem de violência domés-tica e familiar contra a mulher devem ter preferência em relação às demais, ainda que as outras causas tratem de réu preso.

Como a competência originária dos delitos cometidos com vio-lência doméstica e familiar contra a mulher é das varas criminais e não dos Juizados Especiais, não há que se falar em sede de recurso na competência das Turmas Recursais, uma vez que somente é cabível quando a decisão emanar do juizado, em conformidade com o dispos-to na Lei nº 9.099/95.

Por fim, outra implicação no Codigo de Processo Penal está pre-vista no artigo 42 da Lei n° 11.340/2006 que acrescentou uma hipote-se de cabimento de prisão preventiva àquelas previstas no artigo 313 do referido Codigo.

177

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

A prisão preventiva é uma modalidade de prisão cautelar, ou seja, aplicada no curso do inquérito policial ou do processo penal com o intuito de assegurar a paz social, regular a instrução do processo e a efetividade do mesmo em caso de uma futura condenação.

A decretação dessa medida exige a presença de dois elementos que são o fumus boni juris (quando há elementos de prova que de-monstrem a ocorrência de um fato e indícios de sua autoria) e o pe-riculum in mora (quando demonstrando que se o agente permanecer em liberdade colocará em risco a ordem pública, a ordem econômica e a instrução penal ou aplicação da lei penal).

Além desses requisitos, existem pressupostos que vinculam a decretação da prisão preventiva. Tais pressupostos estão elencados no artigo 313 do Codigo de Processo Penal. O artigo 33 da Lei n° 11.340/2006 acrescentou mais um pressuposto a decretação da prisão preventiva.

O dispositivo processual (artigo 33, Lei n° 11.340/2006) estabele-ceu que a prisão preventiva pode ser decretada em desfavor do agres-sor a fim de que se garanta a execução das medidas protetivas de urgência. Entretanto, deve-se observar que certos delitos como a lesão leve e a ameaça são incompatíveis com tal tipo de medida, haja vista a pena mínima desses delitos, pois ao ser decretada a prisão preventiva em tais casos há o risco de que a pena in concreto a ser aplicada apos o julgamento e condenação do agressor ser inferior ao tempo em que ele encontrou-se preso cautelarmente, vejamos:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO

DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. LESÃO

CORPORAL. AMEAÇA. LEI MARIA DA PENHA. PRISÃO

PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. MODUS

OPERANDI. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.

I - A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado

pela Primeira Turma do col. Pretorio Excelso, firmou orienta-

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

178 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

ção no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus em

substituição ao recurso adequado, situação que implica o não-

-conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais

em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar cons-

trangimento ilegal, seja possível a concessão da ordem de ofício.

II - A segregação cautelar deve ser considerada exceção, já que

tal medida constritiva so se justifica caso demonstrada sua

real indispensabilidade para assegurar a ordem pública, a

instrução criminal ou a aplicação da lei penal, ex vi do artigo

312 do Codigo de Processo Penal.

III - Nos termos do art. 313, inciso III, do Codigo de Processo

Penal, é admitida a decretação de prisão preventiva “se o

crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher,

criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência,

para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.

IV - No caso, o decreto prisional encontra-se devidamente

fundamentado em dados extraídos dos autos, que evidenciam

que a liberdade do ora paciente acarretaria risco à ordem

pública, notadamente se considerada sua periculosidade

concreta evidenciada pelo modus operandi da conduta,

em tese, praticada, consistente em ameaças e em agressões

físicas recorrentes contra a companheira com a qual convive.

Ressalta-se, ainda, o fato desta estar grávida (precedentes).

Habeas Corpus não conhecido. (STJ. HC 365583 / SP. Relator(a)

Ministro FELIX FISCHER. Órgão Julgador: QUINTA TURMA.

Data do Julgamento: 06/10/2016).

Outro ponto a se destacar é que a prisão preventiva se aplica quando tratar de descumprimento de medida cautelar de caráter cí-vel, cabendo ao Juiz aplicar tanto a tutela específica, presente no arti-go 22, § 4º, da Lei n° 11.340/2006, a imposição de multa ou remoção de pessoas por exemplo, quanto a segregação cautelar.

179

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Luis Flávio Gomes e Alice Bianchini (2006) afirmam que a fina-lidade especial da prisão preventiva na Lei Maria da Penha é de que seja garantida a efetividade das medidas protetivas de urgências de-terminadas pelo Juízo competente, alegando tríplice fundamentação: fática (impõe-se descrever com precisão os fatos ensejadores da medi-da), legal (finalidade de assegurar a execução das medidas protetivas de urgência) e constitucional (demonstração da necessidade concreta da prisão, visto que se trata de uma medida de ultima ratio).

A decretação ou revogação da prisão preventiva, por outro lado, sempre é regida pela regra rebus sic stantibus, isto é, o juiz poderá re-vogá-la se no curso do processo se verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem (artigo 20, parágrafo único, da Lei n° 11.340/2006).

A Lei Maria da Penha abre então uma exceção no artigo 313, do Codigo de Processo Penal, em conformidade com o princípio de que a lei especial prevalece sobre a lei geral.

Em razão da nova lei em todos os seus pontos ser mais severa para o agressor, ela não retroage para as infrações cometidas anteriormente à sua vigência, em face do princípio da irretroatividade da lei penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – repercutiu em muito na esfera criminal quando incluiu em seu texto vários artigos que trouxeram inovações e alterações de caráter penal e processual penal com fim de coibir os delitos praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher e punir com mais rigor os autores de tais crimes.

Ao contrário do que muitos defendem, essa lei especial não é mais uma proteção discriminatoria à categoria feminina, devido a aplicação de procedimentos distintos a depender do sexo da vítima, mas sim, é uma política afirmativa estatal necessária de ser aplicada

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

180 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

em uma sociedade que durante muitos anos fechou seus olhos para todos os tipos de violência que eram praticadas contra a mulher, sen-do esta sempre subjugada e tida como o sexo frágil.

Tendo em vista essa herança cultural, a nova lei foi um avanço para a sociedade, chegando a representar um marco considerável na historia da proteção legal conferida às mulheres, ao deixar claro o repúdio a esses tipos de delitos. Até mesmo porque os desiguais (ho-mem e mulher) devem ter tratamento desigual na medida das suas desigualdades, a fim de que seja promovida a igualdade entre os se-xos garantida constitucionalmente.

Dentre os artigos processuais da Lei Maria da Penha é imprescin-dível enfatizar o artigo 41, no qual está disposto que não serão mais aplicados os procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis e Crimi-nais – Lei n° 9.099/95 – haja vista todos os crimes que forem pratica-dos com violência doméstica e familiar contra a mulher não serem mais considerados crimes de menor potencial ofensivo, não impor-tando a pena.

Essa medida merece elogios, pois o que se percebia antes da vi-gência da Lei Maria da Penha era uma banalização das transações penais, realizadas nos Juizados Especiais Criminais, consistentes em sua maioria na doação de cestas básicas pelos agressores criando o jargão popular de que “para bater precisa apenas pagar”.

Outro ponto que se destaca é quanto à necessidade de represen-tação da ofendida nos crimes de lesões corporais leves em virtude do que dispõe a Lei n° 11.340/2006 e o artigo 88, da Lei n° 9.099/95. Ocorre que, com o advento da Lei Maria da Penha, tal delito quando cometido com violência doméstica e familiar contra a mulher não mais depende da vontade das vítimas para o seu processamento, pois o legislador concluiu que no lar é evidente a pressão de ordem psico-logica que sofre a ofendida para que não represente criminalmente o seu agressor, que consequentemente ficava impune e livre para con-tinuar as suas agressões.

181

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

No que tange à esfera penal, a Lei Maria da Penha veda de forma expressa qualquer aplicação de pena substitutiva prevista no artigo 43 do Codigo Penal, com o intuito de que o agressor cumpra a pena pessoalmente, sendo esta privativa de liberdade ou restritiva de direi-tos, além de ter modificado o máximo e o mínimo da pena in abstrato do § 9º, do artigo 129 do Codigo Penal, bem como ter acrescentado o § 11 a este artigo.

Na esfera processual penal, a Lei n° 11.340/2006 trata expressa-mente da “renúncia” à representação, que somente pode ser feita pela ofendida em audiência específica para tanto, e até antes do recebimen-to da denúncia pelo Juiz, e traz ao artigo 313, do Codigo de Processo Penal, mais um pressuposto para a decretação da prisão preventiva.

Em virtude da nova lei em todos os seus pontos ser mais severa para o réu do que o procedimento comum ela não retroage para as infrações cometidas anteriormente à sua vigência.

Com efeito, a ação estatal não deve ser apenas de elaborar uma lei que traz procedimentos mais rígidos para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher e ao mesmo tem-po deixá-la a mercê das circunstâncias acreditando que irá por si so resolver os problemas arraigados desde os primordios da sociedade. O Estado deve também garantir assistência às vítimas de violência doméstica e familiar, não so por meio de ações educativas e políticas públicas, mas também de forma concreta na assistência imediata a fim de preservar a sua integridade física e psicologica.

Se há um ponto em que não existe divergência é quanto à ne-cessidade de eliminar a violência doméstica contra a mulher. Talvez algumas normas da Lei Maria da Penha não sejam politicamente ade-quadas ou até mesmo não tenham uma justificação jurídica, mas cer-tamente foi uma resposta para todas as “Marias da Penha” que sofrem constantemente com agressões no lugar onde deveriam encontrar a paz e por aqueles que deveriam ao menos respeitá-las como seres humanos.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

182 Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

REFERÊNCIAS

BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”. Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 27 out. 2007.

BRASIL. LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Brasília: Presidência da República / Casa Civil, 7 de agosto de 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A violência doméstica como violação dos direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.as-p?id=7753>. Acesso em: 19 jun. 2007.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Lei da violência contra a mulher: inaplicabilidade da lei dos juizados criminais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1192, 6 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=9009>. Acesso em: 19 jun. 2007.

MIRABETE, Julio Fabrini; FABRINI, Renato N. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas Jurídico, 2007.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais. Jus Navigan-di, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8917>. Acesso em: 19 jun. 2007.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência con-tra a mulher. Curitiba: Juruá, 2007.

VADE MECUM ACADÊMICO DE DIREITO. Anne Joyce Angher organiza-ção. 4. ed. São Paulo: Rideel, 2017. (Coleção de leis Rideel)

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

Artur Pereira dos Reis Barbosa

Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá de Sergipe. Técnico do Ministério Público de Sergipe

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

RESUMOEste trabalho apresenta inicialmente, as fraudes em licitações mais comuns ocorri-das no exercício da função pública, com foco na aplicação prática de tais condutas. Apos, exemplos de meios de detecção de fraudes são abordados, demonstrando ati-tudes que, ao serem tomadas, podem minimizar as chances de ocorrência de fraudes durante o procedimento licitatorio. Por fim, sugere-se mecanismos de combate pre-ventivo a condutas ilícitas utilizados no exterior, analisando a aplicabilidade destes no ordenamento jurídico brasileiro.Palavras chave: Licitações. Fraude. Detecção. Combate. Mecanismos.

ABSTRACTThis work presents, initially, the most common frauds in bidding, committed by people in the exercise of the public function, focusing on the practical application of such conducts. Afterwards, it adresses examples of mean of fraud detection, demons-trating attitudes that, when taken, can minimize the chances of fraud occurring during the bidding process. Finally, we suggest mechanisms for preventive combat against illicit practices used abroad, analyzing their applicability in the Brazilian legal system.Keywords: Bids. Fraud. Detection. Combat. Mechanisms.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

184 Artur Pereira dos Reis Barbosa

INTRODUÇÃO

Sem sombra de dúvidas, a corrupção é um dos principais males que assolam a sociedade brasileira. Seus efeitos perpassam a simples dilapidação do patrimônio público, visto que diversas verbas, origi-nalmente designadas para suprir diversas necessidades das camadas mais humildes da população, não são efetivamente aplicadas, geran-do um enorme “abismo” entre o patrimônio arrecadado em impostos e o que é efetivamente aplicado em favor da sociedade.

Com isso em mente, é fácil identificar que as fraudes ocorridas antes, durante e apos a realização de um certame licitatorio geram incalculáveis prejuízos, diretos e indiretos, para os administrados que seriam atingidos pelo objeto a ser adquirido, ou pela obra a ser realizada.

Este artigo tem o escopo de justamente trazer a população, estu-dantes, servidores e Membros do Ministério Público e demais orgãos fiscalizatorios a se inteirarem mais sobre a forma como algumas des-sas fraudes ocorrem através das licitações, bem como os mecanismos mais comuns de combate as mesmas. Foca-se no combate “preventi-vo” e não “repressivo”, justamente pelo fato de que o trato incrimina-dor legal da matéria a ser debatida neste trabalho já é repetidamente discutido, onde o foco é condenar uma prática que já foi realizada.

É indubitável que é de extrema relevância elevar os debates acer-ca dos dispositivos legais que incriminam a prática de determinadas condutas dentro do procedimento licitatorio, porém, em pé de igual-dade está a importância de se discutir cada vez mais os dispositivos legais que permitem impedir previamente tais ilícitos, pois o patri-mônio possivelmente desviado seria preservado, já que a recuperação deste é, por diversas vezes, dificultosa.

185

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

1 FRAUDES MAIS COMUNS PRATICADAS NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA

Baseando-se na classificação realizada por Carvalho (2014)1, exis-tem diversas possibilidades de fraudes a serem realizadas por servi-dores públicos, concursados ou não, no exercício de suas funções, visando auferir vantagens ilícitas para si ou para terceiros.

1.1 Serviços técnicos especializados

Uma das hipoteses que autoriza a inexigibilidade de licitação2 é a contratação de serviços técnicos especializados3. O art. 13 da Lei nº 8.666/93 especifica quais são os tipos de serviços que se encaixam nessa qualificação:

Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos

profissionais especializados os trabalhos relativos a:

I - estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou

executivos;

II - pareceres, perícias e avaliações em geral;

III - assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras;

IV - fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou

serviços;

1 CARVALHO, José Carlos Oliveira. Por dentro das fraudes em licitações. Disponpivel em: <http://www.oliveiracarvalho.com/downloads/Fraudes%20@20Obra%20%20Por%20Dentro%20das%20Fraudes.pdf. Acesso em dia: 15/10/2016

2 Art. 25 da Lei nº 8.666/93 – “é inexigível a licitação quando houver inviabilidade de com-petição, em especial: [...] II - II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notoria especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação; ”.

3 “A contratação de serviços, nos casos do inc. II do art. 25, visa a obter não apenas uma utili-dade material. É evidente que interessa à Administração a produção de um certo resultado, mas a contratação também é norteada pela concepção de que esse resultado somente poderá ser alcançado se for possível contar com uma capacidade intelectiva extraordinária. O que a Administração busca, então, é o desempenho pessoal de ser humano dotado de capacidade especial de aplicar o conhecimento teorico para a solução de problemas do mundo real.”. JUSTEN FILHO, Marçal, Pedro. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrati-vos. São Paulo: Dialética, 2012.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

186 Artur Pereira dos Reis Barbosa

V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

VI - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;

VII - restauração de obras de arte e bens de valor historico.

Percebe-se que a intenção do legislador era permitir a contratação de profissionais muito capacitados para prestar serviços de elevada qualidade à administração pública. No entanto, também pelo fato de a lei não ter definido um conceito claro a notoria especialização, di-versos são os casos em que gestores simulam situações onde não há efetivamente a prestação de serviços técnicos especializados, e mes-mo assim utilizam a justificativa da inexigibilidade para não realizar devidamente o procedimento licitatorio.

Exemplo claro de como é prejudicial existir essa “brecha” na le-gislação foi o descoberto na Operação Galileia, iniciada pela Polícia Federal em dezembro de 2005. A operação apurou um esquema de fraude a licitações na Companhia Docas do Pará que, à época, já teria provocado um prejuízo de mais de R$ 7 milhões aos cofres da com-panhia. Os esquemas de fraude ocorriam principalmente mediante processos irregulares de dispensa e inexigibilidade de licitação.4

1.2 Liberação de Recursos

Carvalho (2014) também salienta que a ocorrência de fraude tam-bém é possível apos a realização do trâmite licitatorio, isto é, da ad-judicação5 do objeto ao seu vencedor e da entrega da mercadoria ou prestação de serviço pelo fornecedor à administração pública, ainda é possível o cometimento de ilícitos quanto ao objeto da licitação.

4 Disponível em: http://diariodoamapa.com.br/2016/09/21tcu-continua- investigacao-sobre- fraudes-em-licitacoes-da-companhia-docas-do-para/

5 “Ato pelo qual a Administração, pela mesma autoridade competente para homologar, atribui ao vencedor o objeto da licitação. É o ato final do procedimento. ” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo. Editora Atlas. 27ª edição. 2013.

187

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

Um exemplo disso é quando a respectiva Administração Públi-ca não respeita a ordem cronologica do pagamento de fornecedores vencedores da licitação. Assim, não é incomum os c/asos em que for-necedores “amigos” recebam seus créditos na frente de outros que já tinha o direito, tendo muitas vezes que esperar meses, ou até anos para serem ressarcidos pelos serviços prestados.

Ademais, o prejuízo causado por esse tipo de atitude não é apenas o aborrecimento do licitante que não recebeu sua verba, mas também o grave dano gerado ao desenvolvimento do mercado. Por terem que recorrer ao Judiciário, por diversas vezes, para con-seguirem receber suas verbas, bons fornecedores, que poderiam prestar serviços ou realizar obras com mais qualidade para a popu-lação, acabam ficando desinteressados em participar dos procedi-mentos licitatorios, uma vez que, além do risco de inadimplência ser bastante elevado, a demora para conseguir seus créditos no Judiciário impede a concretização dos seus respectivos planeja-mentos, justificando, dessa forma, os preços oferecidos ao setor público serem mais elevados, visto que o empresários necessitam embutir o risco do negocio.

Prática também comum nesse contexto, segundo Carvalho (2014), é a cobrança de “bola”: o tesoureiro ou agente político so libera os recursos devidos se o credor repassar para eles parte desses valores, variando entre 5 e 20%.

1.3 Pagamento sem Liquidação Contábil

Segundo o Portal Transparência6, website do Governo Federal, a despesa pública divide-se em três estágios, conforme previsto na Lei nº 4.320/64: o empenho, a liquidação e o pagamento.

6 Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br/despesasdiarias/saiba-mais.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

188 Artur Pereira dos Reis Barbosa

O empenho ocorre logo apos a realização do certame e da ad-judicação do objeto ao seu vencedor, quando se cria para o Estado a obrigação do pagamento pelos bens ou serviços realizados, sendo formalizado pela Nota de Empenho.

Já a liquidação, conforme previsto no art. 63 da Lei nº 4.320/647, é a verificação do direito adquirido pelo credor, tendo por base os títu-los e documentos comprovatorios do respectivo crédito, e tem como objetivos: apurar a origem e o objeto do que se deve pagar; fixar a importância exata a pagar; e a quem deve ser paga a importância, para extinguir a obrigação.

Por fim, o pagamento consiste na efetiva entrega do numerário ao credor, so podendo ser feito apos a regular liquidação da despesa.

Dentro desse contexto, por diversas vezes o gestor público deter-mina a realização do pagamento sem antes ter submetido a despesa à devida liquidação, fazendo com que gastos sejam feitos sem que o fornecedor tenha adimplido o objeto contratual, caracterizando ver-dadeira lesão ao patrimônio público, pois o Estado paga por algo que não recebeu.

1.4 Rodízio de empresas

O rodízio de empresas ocorre quando um determinado grupo de empresários compactuam entre si quem será o “vencedor da vez”, estabelecendo previamente os preços que serão apresentados em suas propostas

Oliveira de Carvalho (2014) exemplifica:

[...] na modalidade de licitação denominada “convite” (que

envolve valores até R$ 80.000,00 – salvo nos casos de obras

ou serviços de engenharia, quando o valor do teto passa para

7 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4320.htm

189

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

R$ 150.000,00), o número mínimo de empresas que serão

chamadas é de, pelo menos, três. Dessa forma, o responsável

pelo certame (ou mesmo o ordenador de despesas) solicita a

uma empresa “amiga” a elaboração das propostas (dela e de

mais duas), ajustando o valor e definindo quem será o vencedor.

Posteriormente, para não chamar a atenção, o que poderia

acontecer caso a mesma empresa vencesse sempre, uma das

empresas então perdedoras (por ter apresentado uma proposta

mais cara) passa a ser a vencedora.

Quanto à possibilidade de outras empresas, não participantes do conluio prévio, também se candidatarem a disputar o objeto da lici-tação, o autor cita que “o padrão é que ocorram ameaças físicas por parte dos demais licitantes; desabilitação do participante por motivos sem ‘inventados’; boicote por parte da administração, dificultando a execução do contrato ou atrasando o pagamento; cancelamento do certame. “

Outro exemplo prático ocorreu em Câmaras e Prefeituras muni-cipais de 20 cidades da região de Ribeirão Preto e em 11 da região de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, conforme foi noticia-do 16 de junho de 20158:

[...] Quando determinada empresa não podia participar, a líder

do esquema indicava outras oito empresas de sua influência

para vencer as licitações. O rodízio de empresas dificultava a

ação dos orgãos de controle. Para vencer as licitações, Marlene e

outros empresários pagavam propinas a funcionários públicos.

De acordo com o promotor Marcel Zanin Lombardi, havia

ajustes prévios das empresas para que a empresa indicada pela

vereadora vencesse a licitação. “Era um esquema extremamente

8 Disponível em: https://noticias.terra.com.br/brasil/policia/politicos-sao-presos-por-fraudes--em-licitacoes-em-sp,3e9cbb4d8ddd0022fbe44d929b56e3b6z2xcRCRD.html

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

190 Artur Pereira dos Reis Barbosa

elaborado, audacioso, bem organizado, que auferia lucros

significativos e que em alguns locais há indícios de que eram

revertidos em parte para funcionários públicos”, disse o

promotor à imprensa.

1.5 Multas aplicadas pelos tribunais de contas

As sanções pecuniárias derivadas de práticas ilícitas dentro do processo de licitação também não possuem a devida efetividade men-talizada pelo legislador. Ao conferir aos Tribunais de Contas o poder/dever de multar os licitantes que violarem os preceitos legais licitato-rios, buscou-se, além atingir o patrimônio daquele que lesa, ressarcir o respectivo erário pelos danos causados.

Caso os infratores não paguem as multas, poderão ser elas inscri-tas em dívida ativa no Município, Estado ou até da União, de acordo com o âmbito da licitação realizada.

Porém, Oliveira de Andrade (2014) salienta que dificilmente es-sas multas são recolhidas. Tendo a ciência o orgão incumbido no pa-pel de cobrá-las é o proprio ente de origem, via Procuradoria local, o tráfico de influência é grande e elas acabam sendo postergadas por meio de um processo de cobrança lento. Mais preocupante ainda, como salienta o autor, é quando a comunicação oriunda do Tribunal de Contas é feita durante o governo de alguém da “situação”, sendo muito improvável que se aconteça a movimentação devida no sentido de recolher as multas.

Ademais, também salienta o autor:

[...] mesmo nos casos em que a multa é comunicada durante o

governo da oposição, há uma espécie de acordo de cavalheiros:

a cobrança não é estimulada, uma vez que “o mundo é redondo”

e, no futuro, os atuais gestores poderão estar na mesma situação.

191

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

1.6 Contratação de entidades “sem fins lucrativos”: organizações não governamentais (ongs) e fundações

Paulo e Alexandrino (2012) definem o termo “dispensa de licita-ção” para abranger todas as hipoteses em que, embora exista viabili-dade jurídica de competição – diferentemente dos casos de inexigibi-lidade, como citado anteriormente –, a lei autoriza a celebração direta do contrato ou mesmo determina a não realização do procedimento licitatorio.

Continuam os autores:

[...] nos casos em que a lei autoriza a não realização da licitação,

dizemos que ela é dispensável. Nessas situações, a competição

é possível, mas a lei autoriza a administração, segundo critérios

proprios de oportunidade e conveniência – ou seja, mediante

ato administrativo discricionária -, a dispensar a realização da

licitação.

Outra hipotese há em que a propria lei, diretamente, dispensa

a realização da licitação, caracterizando a denominada

licitação dispensada. Nesses casos, não cabe à administração,

discricionariamente, decidir sobre a realização ou não da

licitação. Não haverá procedimento licitatorio porque a propria

lei impõe a sua dispensa, embora fosse juridicamente possível

a competição.

Uma das hipoteses de licitação dispensável é a constante no art. 24, XIII da Lei de Licitações e Contratos, possibilitando o gestor pú-blico de dispensar a licitação quando da contratação de instituições nacionais, incumbidas regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino, ou do desenvolvimento institucional, científico ou tecno-logico, desde que a contratada possua inquestionável reputação éti-co-profissional.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

192 Artur Pereira dos Reis Barbosa

Carvalho (2014) afirma que essa possibilidade de dispensa signi-fica um “câncer” dentro da administração pública: “o que deveria ser um mecanismo de valorização das instituições sérias e competentes traduziu-se em um dos principais mecanismos de lavagem de dinhei-ro. A contratação é feita de forma direta, sem licitação, sem concor-rência, e normalmente por valores superfaturados”.

O resultado prático é que, atualmente, é muito comum nos de-pararmos com agentes públicos que possuem ONGs de “fachada” em seu proprio nome, utilizando a mesma para realizar com “amigos”, dentro da respectiva Administração Pública, serviços fantasmas, em troca de quantias exorbitantes.

Com frequência os noticiários divulgam inúmeras fraudes envol-vendo ONGs como, por exemplo, o emblemático caso do Ministério dos Esportes, em 20119. De forma também didática, a reportagem do website www.g1.globo.com discorre sobre o ocorrido:

[...] Como ocorre uma fraude envolvendo uma ONG? Se a

União, um município ou um estado quer, por exemplo, oferecer

um serviço como o de aulas de artes marciais, tem hoje duas

alternativas: pode abrir uma licitação para escolher uma

empresa -- um processo demorado e cheio de exigências legais

-- ou contratar uma ONG para prestar o serviço por meio de um

convênio, como os do programa Segundo Tempo. A entidade

e a administração, então, assinam um contrato, e o dinheiro

público é recebido pela ONG, que deverá providenciar que o

combinado seja posto em prática. Segundo a Controladoria

Geral da União, entre 2004 e 2010, ONGs receberam R$ 23,3

bilhões dos cofres públicos federais.

No caso do Ministério do Esporte, a suposta fraude começava

na escolha da ONG, segundo reportagem da revista “Veja”.

9 Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/10/entenda-como-ocorrem-frau-des-nos-convenios-entre-ongs-e-governos.html

193

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

Seriam entidades “amigas”. Isso porque, hoje, não existe norma

com exigências específicas para que determinada ONG seja

escolhida, ou seja, elas podem ser contratadas pelo ministério

sem justificativa. No ministério, essas entidades seriam

“escolhidas” mediante um pagamento: mais ou menos 20% do

valor do contrato, uma espécie de pedágio, conforme a “Veja”.

Quem cuidaria disso seria o PC do B, que também indicaria

quem seriam os fornecedores. A ONG então “comprava”

um tipo de material, bolas de futebol, por exemplo, desses

fornecedores. O comprovante eram notas fiscais frias. E as bolas

de futebol existiriam apenas no papel. O dinheiro que não foi

gasto em bolas, então, voltaria justamente para quem autorizou

a liberação da verba, o orgão público, ou seja, o ministro [...]

Indubitável é, portanto, com base nesses exemplos, a gravidade de se ter em nosso ordenamento jurídico dispositivos legais que per-mitam, mesmo que indiretamente, a ocorrência dos mais diversos tipos de fraude em licitações, gerando prejuízos incalculáveis ao pa-trimônio público.

2 A DETECÇÃO DE FRAUDES EM LICITAÇÕES

De acordo com a Souza e Brasil (2015)10 na Apostila de Detecção e Prevenção de Fraudes em Licitação da Controladoria Geral da União, as fraudes são usualmente difíceis de serem detectadas, “uma vez que costumam se resultado de pactos informais e escusos, não deixando um ‘recibo’, atestando que os licitantes combinaram preços ou mes-mo lotearam o objeto da licitação entre si.

10 BRASIL, Franklin & SOUZA, Kleberson. Fraudes em Licitação: técnicas detecção e preven-ção. Controladoria Geral da União. 2014.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

194 Artur Pereira dos Reis Barbosa

No entanto, na mesma Apostila, sugere-se a obediência a uma se-quência de atos que aprimora as chances de se identificar, na análise do procedimento licitatorio como um todo, a ocorrência de fraudes:

[...] pode-se adotar a seguinte sequência de passos:

1) analisar as cláusulas de habilitação do edital para identificar

critérios restritivos à competitividade;

2) avaliar a especificação do objeto para identificar descrição

imprecisa, insuficiente, incompreensível, defeituosa ou

restritiva que pode direcionar o certame e identificar o autor

do projeto;

3) verificar o nível de publicidade do certame para identificar

se houve restrição à divulgação, acesso ao edital ou redução do

prazo útil no certame;

4) avaliar o julgamento para identificar incoerências, restrição

de direitos, interpretações equivocadas, afastamento indevido

de licitante ou aceitação irregular de outros, bem como o

formalismo exagerado;

5) analisar os documentos das licitantes para identificar indícios

de falsidade, elaboração em conluio, combinação de propostas.

Em que pesem servirem de “instrumento de trabalho” para auditores ou outros profissionais responsáveis pela detecção de fraudes, percebe--se que a didática utilizada é acessível para qualquer cidadão que tenha acesso aos autos do processo licitatorio, como advogados, professores, ou pessoas diretamente interessadas no objeto da licitação.

Ademais, analisar detidamente todos os atos realizados na li-citação e identificar com mais facilidade as possíveis “manobras” possivelmente realizadas, auxilia demasiadamente quando da fun-damentação para impugnação administrativa ou judicial do certame licitatorio fraudado, principalmente pelo fato de ser por vezes dificul-toso angariar provas suficientes para conseguir sua efetiva anulação.

195

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

Diante disso, e com nos ensinamentos de Souza e Brasil (2015), serão apresentados a seguir os principais meios de investigação utili-zados para identificar a ocorrência de fraudes nas licitações.

2.1 Exame documental

Souza e Brasil (2015) definem o exame documental como a aná-lise de processos, atos formalizados e documentos avulsos acerca do objeto ou entidade auditada em busca de dados ou informações que possam servir de subsídio ao planejamento da auditoria no combate às fraudes em licitações.

Indicam, ainda, essencial a procura por indícios em todos os do-cumentos apresentados, sem exceção. Como exemplos de constata-ções que possam evidenciar a ocorrência de fraudes estão: as propos-tas de empresas diferentes que apresentam caligrafia ou tipo de letra semelhantes, ou utilizam formulários ou papel timbrado similares; as propostas de empresas diferentes contêm um número significativo de estimativas semelhantes de custo de certos produtos; os envelopes de empresas diferentes que possuem carimbos postais ou marcas de registro postal semelhantes, entre outras.

Procurar por indícios e padrões na fase de apresentação de pro-postas, bem como no estabelecimento de preços também é extrema-mente útil para descobrir a verdadeira intenção dos licitantes ao in-formarem seus requisitos e propostas no certame licitatorio.

2.2 Inspeção física

Souza e Brasil (2015) também indicam como método de investi-gação de fraudes em licitações a inspeção física. Segundo os autores:

[...] Essa técnica consiste na constatação in loco da existência física

de um objeto, bem como de seus atributos. Em uma auditoria,

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

196 Artur Pereira dos Reis Barbosa

muitas vezes é necessário confirmar se um bem, cuja compra está

documentada, existe de fato ou se empresas que participaram

do processo licitatorio e receberam recursos públicos existem

ou são de “fachada”. A inspeção física é uma técnica adequada

à verificação de entes com existência física, tais como bens,

estoques, obras, instalações de empresas, funcionários.

O acordão do Tribunal de Contas da União de nº 645/2003, da Primeira Câmara, exemplifica bem a utilização prática, em sede de procedimento de impugnação, das inspeções físicas. Cita a decisão: “d) nas escolhas visitadas, as obras encontravam-se paralisadas ou não haviam sido executadas; (...) f) os equipamentos que teriam sido adquiridos não foram identificados, uma vez que o mobiliário exis-tente nas salas de aula visitadas não correspondiam aos elencados no Plano de Trabalho aprovado”.

2.3 Confirmação externa ou circularização

Outro método bastante efetivo de investigação de fraudes é a con-firmação externa ou circularização, que consiste na verificação junto a fontes externas ao auditado, da veracidade das informações obtidas internamente, buscando conseguir confirmações em fonte diversa da origem dos dados.

Destarte, busca-se obter informações externas para verificar se os dados apresentados pelos licitantes são realmente verdadeiros.

O acordão TCU nº 470/2007 exemplifica:

[...] foi realizada também circularização de algumas notas

fiscais junto aos fornecedores que as emitiram, com o objetivo

de verificar se os dados da via da nota fiscal que fica arquivada

no estabelecimento coincidiam com as da 1ª via constante da

prestação de contas.

197

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

2.4 Indagação oral (entrevista) ou escrita Baseia-se no uso de entrevistas e questionários junto ao pessoal

da unidade/entidade auditada/fiscalizada, para obtenção de dados e informações, devendo ser sempre utilizada como suporte ou em con-junto com outras técnicas, visto que as respostas obtidas não consti-tuem, isoladamente, evidências concretas para fins de comprovação da ocorrência de fraudes. As indagações devem possuir, sempre que pos-sível, a identificação de quem a responde, bem com a sua assinatura.

Já a indagação escrita consiste na formulação e apresentação de questões, geralmente por intermédio de um ofício com o objetivo de obter a manifestação do respondente por escrito.

3 SUGESTÕES DE COMBATE PREVENTIVO ÀS FRAUDES EM LICITAÇÕES

Dada a alta ocorrência de fraude em licitações sem solução, e com a quantidade de verba pública desviada não recuperada, é fácil aferir a falta de efetividade do nosso regramento jurídico no combate a esse tipo de ilícito.

São diversos os motivos que contribuem, entre eles estão a mo-rosidade do julgamento de impugnações pelo Judiciário, as pequenas penas atribuídas aos crimes específicos contra licitações, bem como a falta do investimento necessário no controle interno dos orgãos pú-blicos, principalmente nos níveis estaduais e municipais.

O vereador da cidade de Maringá, Homero Marchese, propõe em seu website11 boas estratégias para diminuir as fraudes em licitações. Segundo ele, a planejamento seria a primeira medida a ser tomada para evitar grande parte desses ilícitos, visto que o Poder Público, para rea-lizar determinadas contratações, não se organiza a tempo e acaba rea-

11 Disponível em: http://homeromarchese.com.br/2014/06/26/estrategias - para - diminuir - as -fraudes-em-licitacoes/

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

198 Artur Pereira dos Reis Barbosa

lização a licitação “de qualquer jeito”, além do fato de que existe uma enorme quantidade de procedimentos licitatorios a serem realizados.

A segunda estratégia seria difundir conhecimento para a popula-ção, informando recorrentemente como ocorrem as licitações e seus principais tipos de fraude. Dessa forma, a distância entre o cidadão e a burocracia da Administração Pública diminuiria ainda mais, ele-vando o debate acerca da criação legislativa de novos dispositivos legais dispondo sobre licitações.

Como já citado, o fortalecimento do controle também é funda-mental para que se evitem desvirtuamentos no processo de licitação, visto que uma maior fiscalização impediria a ocorrência efetiva de desvios de verba pública, justificados muitas vezes através de proce-dimentos aparentemente legais.

Por fim, a solidificação das sanções a serem aplicadas aos trans-gressores das normas licitatorias é imprescindível. O senso de impu-nidade no Brasil é alarmante, gerando a percepção aos infratores de que o crime, apesar dos seus riscos, vale a pena. Punir mais severa-mente as fraudes em licitações, além de impedir que o agente frau-dador continue praticando ilícitos, evitará aos que cogitam fraudar a licitação de agirem efetivamente nesse sentido.

3.1 “The false claims act” Em uma análise dentro do direito comparado, podemos citar di-

versos exemplos de leis que foram bem-sucedidas no combate a frau-des no âmbito do Poder Público. Entre elas está a “False Claims Act”12, medida legal dos Estados Unidos que fornece uma porcentagem do valor da multa aplicada aos infratores para o cidadão que oferecer de-núncias concretas de esquemas de fraudes, quando destas denúncias advierem condenações.

12 Disponível em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text/31/3729

199

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

Nascimento (2012)13 a explica de forma bastante didática:

[...] The False Claims Amendments Act of 1986 basically

says that any person who knowingly submits or causes the

submission of a false claim, record, or statement which results

in the payment of money from the United States government,

is liable for (1) a civil penalty of at least $ 5,000 and not more

than $ 10,000, (2) three times the amount of damages which the

government sustains, and (3) the costs of the action.

Analisando detidamente o dispositivo legal sobredito, percebe-se que a lei não apenas almeja retribuir financeiramente o cidadão que auxiliou nas investigações contra fraudes na Administração Pública, mas também na criação de uma cultura de combate à corrupção, ins-tigando os cidadãos a delatar qualquer forma de fraude que tomarem conhecimento.

A medida gerou, inclusive, o surgimento de diversos escritorios de advocacia especializados na procura de fraudes no âmbito público, engajando os proprios administrados para o embate contra a corrupção.

Segundo Nascimento (2012), estima-se que, entre 1 de outubro de 1987 – data de início de vigência da lei – até 30 de setembro de 2011, US$ 21 bilhões foram recuperados através do sistema implan-tado pela “false claims act”.

Destarte, caso tais meios de combate a fraudes fossem cada vez mais propagados entre os cidadãos, as chances de haver reinvindica-ções populares no sentido de serem levadas ao Legislativo projetos de lei com esse objetivo, seriam, indubitavelmente, enormes, inician-do-se, através dessas atitudes, uma transformação gradativa no trato com a coisa pública pelos nossos governantes.

13 NASCIMENTO, José Leonardo Ribeiro. The contribution of the public participation to avoid the misuse of public funds: a comparison of Brazil and the United States cases. The George Washington University. 2012.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

200 Artur Pereira dos Reis Barbosa

CONCLUSÃO

Como se depreende da leitura acima, o objetivo desse artigo cien-tífico não foi exaurir as diversas formas de ocorrência de fraude em licitação, tampouco os mecanismos de combate preventivo as mes-mas. O foco é trazer alguns pontos importantes em cada um desses campos, para que o leitor tenha a ideia de como são realizadas as tratativas administrativos no que tange tais aspectos.

Um outro possível desfecho do estudo deste artigo é a percep-ção de que o proprio sistema licitatorio possui falhas que tão ensejo à ocorrência de tais fraudes. Predominantemente, este pensamen-to é correto. Tal argumento não irá afastar a certeza de que a má-fé humana é o início de qualquer subversão, porém, uma reforma no procedimento licitatorio, desburocratizando-o, tornando-o mais cla-ro, coerente, e possibilitando ainda mais a realização de um controle preventivo efetivo seus atos é sempre, a curto e médio prazo, a esco-lha mais correta a ser tomada como prioridade.

REFERÊNCIAS

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo. Editora Atlas. 27ª edição. 2013

VIEIRA, Evelise, Pedroso Teixeira Prado. Os poderes públicos no com-bate às fraudes à licitação. Fraude à licitação e seu combate efeti-vo. 2012. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_cidadania/Licitacao/Doutrina_Licitacao/fraude%20%C%A0%20licita%C3%A7%C3%a3o%20e%20seu%20combate%20efetivo%20%20palestra%20escrita%20(1).doc. Acesso em dia: 16/10/2016.

CARVALHO, José Carlos Oliveira de. Por dentro das fraudes. Dis-ponível em: <http://www.oliveiraecarvalho.com/downloads/Frau-des%20-%20Obra%20-%20Por%20Dentro%20das%20Fraudes.pdf. Acesso em dia: 15/10/2016

JUSTEN FILHO, Marçal, Pedro. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2012.

201

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

BRASIL, Franklin & SOUZA, Kleberson. Fraudes em Licitação: técni-cas detecção e prevenção. Controladoria Geral da União. 2014.

NASCIMENTO, José Leonardo Ribeiro. The contribution of the pub-lic participation to avoid the misuse of public funds: a comparison of Brazil and the United States cases. The George Washington Uni-versity. 2012.

MARCHESE, Homero. Estratégias para diminuir as fraudes em li-citações. Disponível em: http://homeromarchese.com.br/2014/06/26/estrategias-para-diminuir-as-fraudes-em-licitacoes/. Acesso em dia: 12/10/2016.

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

203

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

As contribuições deverão ser enviadas à Comissão Editorial, por email ([email protected]), com a indicação, no assunto, do periodico para o qual deverá ser submetido. No corpo do e-mail informar dados para contato.

Somente material inédito será analisado pela Comissão Editorial que, eventualmente, poderá devolver o trabalho ao autor com suges-tões de adequações.

A publicação em nossa Revista implica na aceitação das condi-ções da cessão de direitos autorais de colaboração autoral inédita e termo de responsabilidade, assim como, colaboração financeira do autor para a publicação.

Será analisado artigos, pareceres, resenhas que obdeçam as se-guintes normas:

1. Formatação exigida para os artigos, resenhas e afins:(a) Tamanho do arquivo: mínimo de 10 e máximo de 20 páginas,

incluindo notas de rodapé e bibliografia;(b) Alinhamento: justificado;(c) Fonte: Times New Roman, normal, tamanho 12 - título, corpo

de texto, citações;(d) Espaçamento entre linhas: 1,5;(e) Destaques em itálico;(f) Citações: entre aspas e sem recuo;(g) Nome, mini currículo atualizado e endereço eletrônico do autor;

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

204

(h) Título e resumo do artigo em português e em inglês de, no máximo, 10 linhas.

(i) Um autor por trabalho.2. Formatação exigida para os comentários jurisprudenciais e le-

gislativos:(a) Tamanho do arquivo: mínimo de 8 e máximo de 15 páginas,

incluindo notas de rodapé e bibliografia;(b) Alinhamento: justificado;(c) Fonte: Times New Roman, normal, tamanho 12 - título, corpo

de texto, citações e sumário; tamanho;(d) Um autor por artigo.

O editor

205

olhar diverso | n. 6 | set-dez./2017

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES

C r i a ç ã o

Revi

sta

mul

titem

as |

DIR

EITO

| n.

06

set

.-dez

./201

7

DIREITOS FUNDAMENTAISRoberta Conceição Almeida Nascimento

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVILLuiz Urquiza da Nóbrega Neto

A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO À IMAGEMAdriana N. Santos

APLICAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO DA GUARDA COMPARTILHADA NO ORDENAMENTO PÁTRIOFelipe Leandro Poderoso Bispo da Mota

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SUA ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL NA DEFESA DO MEIO AMBIENTEBárbara Ferreira dos Reis

A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DO HEARSAY TESTIMONY À LUZ DO DIREITO PROCESSUAL PENAL BRASILEIROGeraldo Melo de Oliveira Junior

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: UMA NOVA PERSPECTIVA FRENTE ÀS PRISÕES ARBITRÁRIASCarlos Issac dos Santos

TRANSAÇÃO PENAL: UMA ABORDAGEM CONSTITUCIONAL FACE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAISJoão Francisco Gagno Campagnaro

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI Nº 11.340/2006Fernanda Ramos Araujo Sobral de Andrade

MEIOS PREVENTIVOS DE COMBATE À FRAUDE EM LICITAÇÕES Artur Pereira dos Reis Barbosa

ISSN. 2447-0171

Revista multitemas | n. 06 . setembro - dezembro/2017

DIREITO