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REVISTA THOT_1989_N.51

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Revista sobre esoterismo, filosofismo e espiritualidade. N°51, ano: 1989.Título: À beira do novo.

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    Associaco,S

    ;CENTRO ,DE ESTUDOS FILOSOFICOS

    A Associao PALAS ATHENA do Brasil, entidadedeclarada de Utilidade Pblica Federal (decreto 92.343), desenvolve

    ampla atividade cultural tendo como fundamentao precpuaa vivncia profunda dos valores filosficos

    que norteiam as atividades humanas.Entende que viver filosoficamente a mais pura experincia de

    "dar", de entregar o que de melhor temospara construir aquilo que mais sonhamos.

    Portanto amigo leitor, venha nos conhecer, venha participar filosoficamente.

    SEDE CENTRALRua Lencio de Carvalho, 99 - Paraso - S.Paulo-SP - CEP 04003 - Tel.:(011)288.7356

    GRFlCA E EDITORA PALAS ATHENARua Jos Bento, 384 - Cambuci - S.Paulo-SP - CEP 01523 - Tel.:(011)279.6288-270.6979

    CENTRO PEDAGGICO CASA DOS PANDAV ASBairro do Souza - Municfpio de Monteiro Lobato-SP - CEP 12250-- -----CENTRO DE ESTUDOS PALAS ATHENA - BauruRua Rio Branco, 16-22 - Bauru-SP - CEP 17040

    Inscrita no CPC - Cadastro Nacional de Pessoas Jurfdicas de Natureza Cultural do Ministrio da Cultura,sob o n 35.000278/86-67 podendo receber patrocfnio e doao institufdos pela Lei 7.505 de 02 de julho de 1986.

  • THOT; divindade egrpcia, talvez o mais misterioso e menos compreendido dos deuses do antigo Kem. ~ o sfrnbolo daSabedoria e da Autoridade. ~ o escriba silencioso que, com sua cabea de Ibis, a pena e a tabuleta, registra os pensa-mentos, palavras e atos dos homens, que mais tarde sero pesados na balana da justja, Plato diz que THOT foi ocriador dos nmeros, da geometria, da astronomia e das letras. A cruz (tau, no Egito), que leva em uma das mos, osnboto da vida eterna; na outra conduz o basto, emblema da Sabedoria Divina.

    o

    CAPA:Tentao, Queda e Expulso, de Les Trs RichesHeures du Duc de Berry,in O Poder do Mito, deJoseph Campbell, a ser editado proximamente pelaPalas Athena.

    THOT N~ 51/1989

    EDITORESAssociao PALAS ATHENA do BrasilLia DiskinBasilio Pawlowicz'Primo Augusto Gerbelli

    REDAOLia DiskinNeusa Santos Martins

    REVISOTherezinha Siqueira Campos, George Barcat, IsabelCristina M. de Azevedo.

    EQUIPETHOTNilton Almeida Silva, Maria Luci Buli Migliori, MariaLa Schwarcz, Julieta Penteado, Odete Lara, VerOni-ca Rapp de Eston

    PRODUOAparecido Ten6rio da Silva, Basilio Pawlowicz, EmilloMoufarrige, Joo Fernandes Filho, Srgio Marques.

    FOTOGRAFIAElaine Rodrigues

    DISTRIBUIOAlberto Jos Z. Lopes, George Barcat

    FOTOLITO CAPAPolychrom

    SECRETARIAAlberto Jos Z. Lopes, Ieda de Paula, Marcus Vinfciusdos Santos, Marilene Ribeiro Sardinha.

    COLABORADORESCarlos Maria Martrnez Bouquet (Argentina)Henryk Skolimowski (E.U.A.)PierreWeilRoberto Ziemer (E.U.A.)Walter Gardini (Argentina)

    PROGRAMAO VISUAL GRFICA (PVG)Manoel lncio Camilo Carreira

    COMPOSIO E IMPRESSOGrfica PAlAS ATHENARua Jos Bento, 384 (CambucQ- CEP 01523So Paulo - SP Fones: (011)279.6288 - 270.6979

    NDICE

    EDITORIAL 2

    VALORES TRADICIONAIS E VALORES DA ECOLOGIAHenryk Skolimowski 3

    O UNIVERSO MGICO DOS CIGANOSRosangela Carvalho 8

    BEIRA DO NOVOCarlos Maria Martnez Bouquet 15

    RESSONNCIA MORFOGENTICARupert Sheldrake 20

    O LIVRO DO CALMO PENSARFrancesco Ferrari 24O NOVO HUMANISMO DE MIRCEA ELIADEWalter Gardini 26

    ... E AT OS ANTEPASSADOSPaul Jordan-Smith 30

    A RESISTNCIA AO TRANSPESSOAL E AABORDAGEM HOLSTICA DO REALPierre Weil 35

    O CONTEDO MSTICO DO GITANJALIR. Raphael 40

    No publicamos matrias redacionais pagas. Permitida a reproduo, citando a origem. Os nmeros atrasadosso vendidos ao preo do ltimo nmero publicado. Assinatura anual (4 nmeros): NCz$ 20,00 (preo sujeito aalterao sem aviso prvio), cheque em nome da Associao PALAS ATHENA do Brasil, Rua LeOncio de Carva-lho, 99 (Paralso), CEP 04003, So Paulo, SP. Telelone: 288.7356. A responsabilidade pelos artigos assinadoscabe aos autores. MatrIcula n 2046. Registro no DDCP do Departamento de Polcia Federal sob n 1586P 290/73.

  • EDITORIAL- Voc no me entende. No adianta ...- Mas voc disse, no disse?- Eu posso ter dito, mas no era isso que eu queria dizer.

    Voc no compreende. Deixa pra l Voc sempre me interpreta mal.

    Quantas vezes ouvimos ou dissemos isso? Muitas. Mais do que gostaramos, maisdo que o necessrio.

    H coisas que, por estarem ao nosso dispor e fazerem parte do cotidiano, acredita-mos conhecer ou ter a habilidade de utilizar. O dilogo talvez seja uma delas. Entretanto, sefizermos uma retrospectiva e olharmos o panorama histrico dessa arte - porque de fato o -concluiremos que o dilogo, como uma atividade irrestrita de todos para com todos, algo no-vo, de apario recente.

    Com um mdico, um padre, um poltico, um advogado ou um professor no se man-tinha dilogo - apenas se escutava. Isso no faz muito tempo. Uma esposa conversava comseu marido um repertrio limitado de assuntos, a maioria deles ligados aos afazeres domsti-cos, sade das crianas, s novas dos familiares - quem estava doente, quando nasceria ofilho da prima, se a me viria ou no para o almoo do domingo ...

    Uma suposta hierarquia de papis regulava qualquer tipo de conversa, e mais aindaas possibilidades reais de dilogo.

    Grande parte dos mal-entendidos ou dos relacionamentos difceis entre pais e filhos,casais, partidos polticos, etc., atribuda falta de dilogo, ao pouco conhecimento que tmdo outro as partes envolvidas. E ar pra o diagnstico, cuja prescrio que conversem mais,que se aproximem em busca de pontos comuns, sem cogitar sequer que necessrio aprendera dialogar, o que no igual a falar ou escutar, pois exige e supera a ambos em qualidade e in-tensidade.

    Para haver dilogo preciso que os participantes se predisponham, se automotiveme abracem uns aos outros no nvel da questo que abordam. Se permanecerem engaioladosnos critrios particulares, no deixando espao para o fluir de idias que se vo entretecendono curso de uma conversa, idias que s vezes so sugeridas por um gesto, por uma inflexode voz e, at, pelo silncio, o dia-Iogos (entre idias) no se estabelece. E conste que essa es-terilidade no ocorre apenas se um dos envolvidos, embriagado pelas prprias idias, passa amonologar ocupando todo o espao da relao estabelecida. No. O outro, embriagado tam-bm, mas com as idias que no expressa, coopera deixando que lhe usurpem a oportunidadepara, mais tarde, reclamar contra a injustia da qual foi cmplice.

    Dialogar, como dissemos, uma arte, e uma arte nova na qual podemos nos exerci-tar, e at nos tornar mestres. A interdependncia, to evidente em nossos dias, reclama o di-logo, a correta motivao para expor os nossos sentimentos, critrios, dvidas e, igualmente,para que nos abramos a fim de receber o que outros tm a oferecer, a dizer. Ao fim das contas,se pelo fruto que se conhece a rvore, pelo que escutamos e falamos que podemos conhe-cer a profundidade das razes dos sentimentos que se pem em jogo numa relao humana.

    Por isso no basta apenas falar, no basta apenas escutar, tempo de dilogo.

    Lia Diskin

    2 mOT, N2 51, 1989

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    HENRYK SKOLIMOWSKI

    o mundo est sofrendo; nem a cincia nema tecnologia conseguem trazer-lhe alvio. O mundo so-fre porque os valores antigos desapareceram sem queos novos emergissem. O mundo sofre porque os valo-res so parte de nosso alimento psquico - e privar aspessoas de valores corretos faz-Ias morrer mngua,faz-Ias sofrer. O mundo sofre porque nossas psiquesesto desorganizadas em virtude dessa desordenaodos valores.

    N6s, ocidentais, herdamos os valores dequatro diferentes tradies, os quais nos so inculca-dos desde a mais tenra infncia. N6s os recebemosatravs dos sutis canais de nossa cultura, que nos mol-da continuamente; n6s os bebemos com o leite materno.

    Quais so essas quatro tradies que, comseus valores, moldaram a psique ocidental e que, por-tanto, moldam a cada um de n6s individualmente (eno apenas a n6s, j que a influncia do Ocidente ul-trapassa as suas fronteiras)? So:

    1 - os valores gregos ou homricos;2 - os valores judaico-cristos;3 - os valores renascentistas;4 - os valores econmicos e tecno16gicos da

    sociedade moderna.

    Essas tradies convivem em harmonia, svezes. Noutras, chocam-se mutuamente. Quando issoacontece - no mbito de nosso pr6prio ser - comea-mos a entrar em conflitos internos, despedaamo-nos.Ficamos sem saber para onde ir nem como agir de ma-neira adequada. Essas quatro tradies esto contidasem n6s, camada sobre camada, e mal nos damos contada fora com que seus valores nos influenciam. Se issogera exigncias valorativas conflitantes, estas no soto importantes quanto o a identificao da origemdesses conflitos internos.

    THOT, N2 51, 1989

    Os valores gregos

    A Iltada de Homero era a Bblia do povogrego antigo. A Iltada e a Odissia formaram a mente,os valores e a sensibilidade dos jovens gregos em seupercurso rumo maturidade. Quando a Grcia foi con-quistada por Roma, o ethos e os valores gregos no fo-ram esmagados nem varridos; foram, ao contrrio,"enxertados" na estrutura da Roma Imperial, a qual,por sua vez, disseminou-os por toda a extenso do Im-prio. Diz-se que os gregos, vencidos pelas armas,conquistaram os romanos espiritual e culturalmente.

    Herdamos os valores gregos, bem comoo ethos greco-romano, que se infiltrou em todo o mun-do ocidental. Tendo o logos grego se tomado a estru-tura subjacente mente ocidental, somos descendentesda mentalidade e dos valores da Grcia. Estes sobrevi-vem em n6s; basta evocar a presena contnua e a res-sonncia da arte e da literatura grega.

    Entre os principais valores dessa culturatemos:

    a honra,a coragem,o auto-sacriffcio.

    Exaltados por Homero, podemos denomin-los de valores homricos. Destacamos, entre eles:

    a aret, ou excelncia,a versatilidade, ou universalidade,a totalidade, representada por uma vi-da harmoniosa.

    A perenidade insupervel de sua cultura foiatingida pelos gregos atravs da incansvel luta quetravaram pela excelncia, pela aret - em qualquer dosmbitos do esforo humano. A aret mais ampla eprofunda do que o nosso conceito de excelncia, que

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  • se restringe. com freqncia. excelncia tcnica,vista em termos de eficincia industrial.

    Em seu livro Zen e a Arte da Manutenodas Motocicletas. Robert Pirsig popularizou o conceitode aret e nos fez perceber suas mltiplas dimenses.Pirsig traduziu aret como "qualidade". palavra quedificilmente pode ser definida. A abordagem taosta mais adequada neste ponto. O Tao que pode ser defi-nido no o verdadeiro Tao. O verdadeiro Tao oque no pode ser definido.

    Outra caracterstica da mentalidade gregano perodo clssico foi a busca pela totalidade. pelaversatilidade e pela recusa da especializao. A totali-dade foi um dos valores da cultura grega e. nesse sen-tido, a mentalidade grega pode ser considerada protea-na", Tal cultura abarcou uma diversidade de aspectosnos quais as coisas particulares tinham significaocomo partes de um todo maior. "Um sentido da totali-dade das coisas talvez a caracterstica mais tpica damentalidade grega... A mente moderna divide. espe-cializa. pensa atravs de categorias; a mente gregaprope o oposto. ao buscar a viso mais ampla e ver ascoisas como um todo orgnico". (H. P. F. Kitto, TheGreeks, editado pela Penguin, p. 169.)

    Outro valor muito importante do mundogrego era a harmonia. que impregnava toda a vida e opensamento da Grcia, bem como sua busca de exce-lncia. Devemos lembrar-nos que esses trs valores:aret; totalidade e harmonia. no so distintos e sepa-rados. mas aspectos um do outro. EmbOra os admire-mos. n6s os perdemos. em grande parte. na nossa so-ciedade altamente especializada.

    Apesar de termos nos distanciado do ethosgrego. ele ainda sobrevive - em nossos ossos. nos re-cessos ocultos da nossa mente, to profundamente in-fluenciada por esse ethos e esses valores.

    Valores cristos

    Com o colapso do Imprio Romano doOcidente no sculo V d.C.. os valores cristos come-aram a modelar a psique ocidental. Tm sua origem.principalmente, nos Dez Mandamentos, que so umesplndido declogo moral. Contudo, por excesso defamiliaridade com eles, no percebemos que os Man-damentos se constituem, na maior parte, de proibies.Lembra continuamente: "No deves, no deves. nodeves ... ". O resduo [mal dessas proibies um tantoopressivo para nossas mentes, principalmente se com-pararmos o ethos dos Dez Mandamentos com o dosgregos, expresso em termos positivos e plenos de vida.

    O ethos e os valores cristos no se expres-sam sempre em ridas proibies. Lembremo-nos daspalavras de Jesus: "Vim para trazer-vos vida abun-dante". No entanto, a tnica dos valores cristos cen-traliza-se mais nas proibies que no bondoso amorpregado por Jesus. No h dvida de que a mensagemamorosa bem perceptvel. mas no se torna uma for-a radiante que impregna tudo o mais.

    Quando a Igreja se transformou em umapoderosa instituio, os valores enfatizados foram:

    submisso,piedade,auto-imolao.

    Esses valores passaram de gerao em ge-rao, com seu sentido de impermanncia da existnciahumana, da quase inutilidade do viver terreno. Essaatitude contrasta com o ideal de vida grego e hindu;neste a existncia terrena sagrada e divina, no po-dendo ser tratada com menosprezo.

    Devemos ter em mente que os valores nosdizem implicitamente como a vida, guiando-nos ru-mo a certas metas. a certos fins ltimos. Comparando avalorao homrica com a crist, percebemos de ime-diato que ambos os sistemas valorativos procuramconduzir realizao do ser humano, sendo essa reali-zao. porm. concebida de maneira diferente em cadaum deles. Tambm devemos estar cientes de que essessistemas esto armazenados dentro de ns, e que rea-gimos a partir deles nas diferentes situaes de nossavida.

    Valores renascentistas

    claro que a hist6ria no termina a. Com acrise da Igreja cat6lica nos sculos XIV e XV. a Re-nascena entra em cena articulando seus pr6prios valo-res. entre os quais so os mais importantes:

    o humanismo: "O homem a medidade todas as coisas";

    o autodomnio;a capacidade de realizao;a versatilidade.

    Os valores renascentistas significaram, emparte, um retomo aos valores gregos de versatilidade,totalidade e auto-realizao do indivduo por meio deseu pr6prio esforo. Mas tambm abriram caminho pa-ra a valorao tecnol6gica do sculo XX. Quanto maisse enfatizava, no indivduo, a capacidade de realiza-o, mais o individualismo emergia como valor pre-dominante. Enquanto diminuam. com o tempo, os va-lores religiosos e espirituais, o homem como fenmenoespiritual ia empalidecendo. A idia de que "o homem a medida de todas as coisas" tornava-se o alvo dohomem faustiano: vivendo apenas uma vez, est deci-dido a 'viver s expensas do que quer ou de quem querque seja. luz dessa progressiva secularizao dacultura e dos valores ocidentais dos sculos XVIn eXIx, que devemos entender a gradual mudana dosvalores intrnsecos (religiosos e espirituais). Transfor-mando-se em valores instrumentais, acabaram por pre-dominar, no sculo XX.

    Valores tecnolgicos

    Quais so. basicamente. os valores econ-micos e tecnol6gicos?

    eficincia;poder sobre as coisas e, eventual-mente, sobre as pessoas;controle e manipulao.

    4 mOT, N2 51,1989

  • Hoje eles afetam profundamente nosso pen-samento e atuao. No nos esqueamos de que osvalores refletem com nitidez as formas dominantes decomportamento numa sociedade. Como modificadorese controladores de nossa atuao, fazem com que nosenquadremos dentro dos padres aceitveis. Por essarazo, os jovens ocidentais de mentalidade racional,educados dentro dos rigores da racionalidade cientfica- que refora a funcionalidade, a eficincia, o poder ea manipulao - so o reposit6rio dessa viso valorati-va. Ensinam-lhes que ser agressivo, duro, competitivo,eficiente e racional o que tem validade.

    A cultura tecnol6gica lhes inculca esses no-vos valores, embora os antigos no tenham desapare-cido: ainda esto a, at mesmo nos jovens, que rece-bem, no perodo de formao, os resduos das antigasculturas. Porm, muitas vezes, d-se um conflito valo-rativo dentro deles: a que devem obedecer: ao deus daeficincia e do poder, ao deus do amor, da misericr-dia e da submisso, ou ao deus do auto-sacrifcio e dahonra? Na verdade, podemos afirmar irrestritamenteque os nossos mais profundos valores so de fato osnossos deuses, na medida em que nos guiam (e, decerta maneira, nos manipulam) a partir de um profundoespao interior.

    Os valores puramente instrumentaisno so suficientes

    bvio que os valores puramente instru-mentais da cultura tecnol6gica no nos do o devidosuporte enquanto seres humanos, e nem, mais espe-cialmente, como seres espirituais. Podemos dizer, semexagero, que a psique ocidental mergulhou no caos ena confuso porque os atuais valores ocidentais tam-bm esto imersos no caos e na confuso. Isso se re-flete em nossas psiques individuais. Compreender essefato pode auxiliar o indivduo a entender seus conflitosinternos - o que, porm, no suficiente. Precisare-mos ir alm do niilismo, do relativismo e do caos dosvalores atuais, a fim de trilhar novamente a direocerta, estabelecer significados para nossas vidas"e nu-trir nossas psiques sedentas, que esto procura dosvalores corretos.

    Perguntamo-nos: ser que a racional idade um erro, j que ela parece ser parte dos valores ins-trumentais, quase sempre destrutivos? Nossa menteresponde que no. Fomos treinados para considerar a"racionalidade como uma de nossas divindades e, por-tanto, quando a julgamos atravs dela pr6pria, ela noconsegue considerar-se errada.

    Perguntamo-nos uma vez mais: deveramosretomar os antigos valores religiosos? Alguns, em de-sespero, acham que sim e terminam por ingressar emalgum culto fundamentalista, que lhes traz segurana eorientao custa de sua liberdade e autodetermina-o. No quer dizer que um retomo aos valores reli-giosos implique, de maneira necessria, na perda da li-berdade e autodeterminao, mas isso invariavelmenteacontece no contexto da maioria dos cultos funda-mentalistas.

    TROT, N2 51,1989

    No podemos, hoje, simplesmente retomarao passado e retomar os velhos valores cristos comose o mundo tivesse permanecido im6vel. Sabemostambm que a racionalidade apenas no suficiente,pois ela pode criar monstros semelhantes queles quefabricaram o gs que exterminou os judeus e o napalm.que queimou os vietnarnitas. Estas so conquistas dacincia. e da racionalidade da qual no podemos nosorgulhar.

    Cincia e religio

    H um outro fenmeno que tambm nodevemos esquecer. importante compreender que oprocesso de secularizao da cultura ocidental produ-ziu, em sua inadvertncia, o relativismo, o cinismo e oniilismo. A cincia tem sido acusada de suprimir a re-ligio e os valores religiosos. At certo ponto isso verdade, mas apenas at certo ponto.

    Nem sempre a cincia foi adversria da re-ligio. Certamente no o era nos sculos XVI e XVII,poca em que andava a passos largos. O prprio Co-pmico, alicerce dos novos conhecimentos cientficos,pensava estar demonstrando, com a sua cincia, a con-c6rdia do mundo e de sua divindade, sendo ambos amanifestao de um Deus harmonioso e infinito. Eleescreve: "Nada mais repugnante para a ordem datotalidade e para as formas do mundo do que algo forade seu lugar". Queria dizer, com isso, que Deus nopoderia ter criado um mundo incoerente e desarmni-00. Os mesmos sentimentos foram expressos por Ke-pler e por Isaac Newton; estes reafirmaram que, esta-belecendo um conjunto de leis que explicassem tanto ocomportamento dos corpos celestes quanto dos terres-tres, unificando-os numa mesma referncia, estavamapenas comprovando a harmonia do universo de Deus.

    Contudo, a partir do sculo XVllI mudaramtodos os valores culturais. Quando o Iluminismo fran-cs principiou a dominar a cena europia, comeam apreponderar o secularismo e o anticlericalismo, osquais, na verdade, so uma forma disfarada de ates-mo. Aos poucos, a razo, a liberdade e o progresso soerigidos como os novos deuses. A cincia , cada vezmais, usada como instrumento de justificao do se-cularismo e agente do progresso material. Os valoresreligiosos, ainda aceitos na superfcie, so questiona-dos num nvel mais profundo.

    No sculo XIX o secularismo toma-seagressivo e o atesmo emerge como a doutrina domi-nante. O que se ocultava sob os princpios do Ilumi-nismo francs vinha u luz nas doutrinas de Feuerbach,Marx e outros materialistas do sculo XX, que tomama cincia e o progresso como apoio para o atesmo.Tambm no sculo XIX ergue-se uma nova voz, a deFriedrich Nietzsche, que anuncia a morte de Deus eprofetiza que com o passar do tempo seremos devora-dos pelo niilismo. esse contexto que leva ao eclipsetotal dos valores intrnsecos e ascenso dos valoresinstrumentais. Estes ltimos aparecem, de maneirabranda de incio, nas cioutrinas do utilitarismo, preco-

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  • nizadas por John Stuart Mill e Jeremias Bentham para,em seguida, aparecerem mais agressivamente nas dou-trinas niilistas bem exemplificadas pelo personagemBazarov, no romance de Turguniev, Pais e Filhos.

    Em suma, ao tentarem se libertar da tiraniados valores religiosos petrificados, os sculos xvrn eXIX passaram da conta e acabaram por jogar fora obeb Junto com a gua do banho. Ao rejeitar todos osvalores religiosos e, na verdade, todos os valores in-trnsecos, estavam preparando o cenrio para uma po-ca de vcuo valorativo e para o reinado do niilismo edos valores instrumentais.

    o surgimento da tica ecolgica

    Esta breve reconstruo da odissia dosvalores ocidentais ajuda-nos a compreender onde es-tamos e como chegamos aqui. No nos ajuda ainda aver quais so os valores que poderemos vivenciar emnossa atualidade, nem mostra como poderemos auxiliaros jovens que buscam como combater o relativismo, ocinismo e o niilismo, em cujo bojo residem as drogas,o lcol e a indiferena ante a vida. Se nada vale a pe-na, por- que, ento, no sair por af quebrando tudo,mesmo que a vida seja arruinada nesse processo? Ousodizer que Os jovens tm todo o direito de estar confu-sos, pois lhes inculcamos diversos sistemas valorativos,muitas vezes incompatveis entre si. O modo de lidarcom essa confuso no neg-Ia, mas -reconhec-la,analisando, ento, seus elementos e estruturas subja-centes. Depois, conscientizarmo-nos, tomando-nossensveis ao fato de como o ethos instrumental e o ho-mem tustico que temos dentro de n6s colidem como ethos cristo e a imagem do brando Jesus que tam-bm guardamos interiormente.

    Que podemos dizer aos jovens e a n6smesmos sobre os novos valores que podem sustentar-nos, racional e espiritualmente, no mundo atual?

    L Que estamos num beco sem sada, devido a umdesenvolvimento unilateral. O progresso da huma-nidade significa uma evoluo completa, que inte-gre o progresso espiritual e no se restrinja apenasao material.

    li. Que nesta poca a preservao da integridade doplaneta um dos maiores imperativos para a nossasobrevivncia. Assim, exercermos nossa sanidadeno campo da preservao ecol6gica emerge comoum dos mais importantes entre os novos valores.Isso nos direciona para uma nova tica ecol6gica.

    ill. Que possunos, em nossa rica herana de valores,outros modelos alm do homem fustico, o qualvive apenas uma vez, e portanto desregradamente,vivendo, em ltima anlise, de maneira estpida.

    IV. Que se olharmos de modo penetrante o atual esta-do de coisas, perceberemos que a busca pelo sig-nificado da vida, pela preservao e sanidade nocampo da ecologia, so faces da mesma moeda.Ou seja, em nossos dias a espiritualidade e a eco-logia comeam a fundir-se. Assim, somos levados

    ,-

    articulao de uma tica ecol6gica, cujos princi-pais valores so:

    reverncia pela vida,responsabilidade,frugalidade,diversidade,compaixo,justia para todos.

    Devemos comear pelo fundamental, isto ,por uma atitude de reverncia pela vida, por todas assuas formas; este o alicerce da nova tica emergente.

    Reverncia pela vida implica responsa-bilidade. No possvel compreender verdadeira-mente a vida sem responsabilizar-se por ela. Assim,reverncia e responsabilidade definem-se mutuamente.

    6 THOT, N2 51, 1989

  • Se quisermos, de fato, ser responsveis pelaexistncia como um todo, no poderemos permitir-nosum estilo de vida que afete os outros de maneira pre-judicial (mesmo que esses outros estejam num pontodistante do planeta). Ser causa de empobrecimento pa-ra a vida alheia, por nosso consumo excessivo ou porposses suprfluas, no correto. Portanto, a frugali-dade (entendida como o fazer mais com menos, comopr-condio necessria para a beleza interior, ou me-lhor, uma frugalidade entendida como altrusmo) estimplcita na noo de responsabilidade.

    Por outro lado, a responsabilidade pela vidacomo um todo nos obriga a defender a diversidade,que no apenas o tempero da existncia, mas tambma pr-condio para que ela seja saudvel e vibrante., alm disso, uma condio essencial para que nossasvidas individuais sejam ricas e significativas.

    De nossa busca pela responsabilidade, fru-galidade e diversidade, decorre naturalmente o impe-rativo da compaixo - o desejo e a capacidade de en-tender outras formas de vida por meio da empatia.Empatia parte da reverncia pela vida. Aos cincovalores que analisamos segue-se outro: justia paratodos. Pois, a menos que consigamos buscar e estabe-lecer a justia (pelo menos, em princpio), os outrosvalores postulados e desejados estaro em perigo.

    Como vemos, todos esses valores esto re-lacionados e definem-se mutuamente. Juntos, formamo que chamo de tica ecolgica. O imperativo moral eglobal dessa tica : agir e comportar-se de modo aelevar os aspectos significativos da existncia.

    No sculo XIX percebemos que no poda-mos viver com Deus (o Deus das religies tradicio-nais). No sculo XX, percebemos que no consegui-.mos viver sem Ele, isto , que no podemos viver ape-nas com a tecnologia e a racionalidade. Ao procurarnovas formas de dar significado s nossas vidas esta-mos procurando um novo veculo atravs do qual pos-samos atender ao nosso anseio pelo divino. A procurado significado da existncia uma busca no escuropela realidade ltima, suprema e mais nobre. Os valo-res intrnsecos so as pontes que nos ligam com a di-vindade. Cobrir de verde as religies de nosso temposignifica um novo nvel de compreenso, ou seja, queDeus pode ter uma dimenso ecolgica. Os valores daecologia representam uma tentativa de reconstruiro significado de Deus na era ecolgica.

    Os valores ticos da ecologia espelham umanova forma de espiritualidade e de responsabilidade.Podem levar os jovens a atuar na preservao ambien-tal como parte de sua prpria salvao e, tambm, aconceber a espiritualidade (profundamente relevanteem nossas vidas) como algo independente das religiesinstitucionalizadas. Pensar a respeito da Terra vivente,de Gaia, qual estamos to ligados e pela qual temosresponsabilidade - que corresponde responsa~ili~depor nossas prprias vidas - pode ser algo muitssimoinspirador para os jovens. .

    Acredito que caberia bem neste contexto fi-nalizarmos com um poema:

    mOT, N!?51, 1989

    A teia divina

    Telogos admirveis,Em livros de hoje e de ontem,Tm to fina sapincia,To divina percepo!Sobre a Pessoa constroemUm pensar monumental,Com fala preciosa dizemO que a substnciaE a transubstanciao.E da alma incompreensfvelSabem eles o porqu.Mas h carncia, h falta=Qual ela, e de qu?Onde pem a dor de agora,Deste momento real?

    Bebs-focas trucidados;No Amazonas, vidas rarasE em ns, afetos e amoresSo mortos at a extino.As almas so chacinadas. uma s calamidade,Ecolgica e letal.

    Acende, So Francisco,Inspira nossa visoPor que a nova teologiaA ecologia declare.Ensina-nos, So Francisco,A falar com passarinhos, .A aprender que o corvo escuroMerece o nome de irmo .No queremos novos deuses,Mas Aquele que aqui est,Que a Vida, divina, mostra,Na teia divina exposto,Sempre Um - sacra Unidade!Que merece reza e afago.A ecologia O declara,Reunindo, ao sol e ao cu,Todos os seres e vidas,Todos, sem faltar nenhum.

    Henryk Skolimowski profes-sor de Filosofia da Universidadede Michigan

    NOTA

    1. De Proteu, divindade martima que tinha o poder de assu-mir inmeras formas.

    Traduo: Nilton AlmeidaSilvaVerso do poemaA teia divina: Neusa Santos Martins

    7

  • o UNIVERSO MGICO DOS

    ROSANGELA CARVALHO

    Poucos conhecem a magia dos ciganos. O estudo a respeito desse povo,a gitanologia, s foi aceito como um ramo da etnologia

    j no sculo xx. muito diffcil chegar a uma verdadeira histriado povo cigano, uma vez que eles jamais tiveram

    leis escritas ou unidade poHtica. Vamos tentar mostrar aquium pouco de sua cultura milenar, com sua arte e encanto,

    procurando sempre respeitar seus segredos.

    o mistrio da origem

    At hoje no se conseguiu uma verdade de-finitiva sobre a sua origem e o motivo de sua dispersopelo mundo. Normalmente a definio que se tem ade que eles provm da ndia e tm mil anos de histria.Recentemente, o padre Renato Rosso, um italiano quelidera a Pastoral dos Nmades do Brasil e que viajacom os ciganos h cerca de 24 anos, formulou umanova teoria que remonta "pr-histria" deste povo.

    Segundo ele, 2000 anos antes de Cristo,aparecem no sul da Rssia os nmades arianos que vona direo da ndia, do mar Mediterrneo e rumam pa-ra o sul. Em 1750 a.c. um grupo de nmades, os ara-meus, viaja pela Sria, Palestina e Egito. Em 1700 a.c.aparece um lder carismtico de nome Abraham, quefoi considerado como o patriarca dos ciganos, o pai dopovo Rom. Logo, enquanto os arianos descem os ara-meus sobem, acontecendo um cruzamento muitoimportante.

    No ano 500 a.C.; quando se faz a redaoda Bblia, fala-se de nmades que vivem em barracas,trabalham com metais e so msicos talentosos. des-sa mesma poca a lenda de um rei da regio persa que,pensando que seu povo estava acabado, triste, pedeque venham da ndia pessoas para alegrar sua gente,chegando de l 12000 saltimbancos.

    Talvez essa lenda seja a explicao parauma realidade que existia: o nomadismo de um povoque, devido ao rgido sistema de castas hindu, foiobrigado a partir e que, por coincidncia, tinha exata-mente as mesmas caractersticas dos que chegaram Prsia. possvel que a esteja uma das origens dopovo que hoje conhecemos por cigano. Digo uma dasorigens, porque uma possvel ligao com o mundorabe, a se julgar por exemplo pelo tipo de barracas deseus acampamentos, est muito presente tambm nopovo cigano, chamado de Rom.

    Podemos ento concluir que este povo temduas rafzes: uma na ndia e outra no mundo rabe;neste, o maior representante Abraham, pai dos Romse tambm dos judeus. Acrescenta-se a essas, a opiniode Voltaire de que eles eram nada menos do que "osdegenerados descendentes dos sacerdotes da deusasis, misturados com seus adoradores",

    Ao Brasil, chegaram em 1574. O primeirodeles foi Joo Torres, que veio de Portugal na condi-o de degredado, assim como muitos outros que o su-cederam. Existem vestgios de que os ciganos partici-param das Bandeiras que desbravaram o Brasil central.

    Depois da chegada da famlia real portu-guesa eles foram contratados para distrair a corte, comsuas danas tpicas, sua msica e seu colorido, nasfestas do Pao Imperial na Praa 15, no Rio de Janeiro.

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  • De onde vm e quem so, eles no revelam.Mas o certo que ganharam o rumo da liberdade.

    A obstinada cultura cigana

    impossvel entender a cultura cigana semconhecer e respeitar as suas principais caractersticas,que so: o nomadismo, a oralidade, a valorizao dosegredo e a liberdade.

    Para a professora de Literatura Cristina daCosta Pereira, autora do livro Povo Cigano, eles tmcomo estratgia de defesa o ocultar-se. Desde que sedispersaram, vindos da ndia, chegando Europa - aCreta - em 1322, transpondo a Revoluo Industrialat os dias de hoje, esse povo tem resistido aos regi-mes tirnicos de todos os tempos e lugares.

    Existe um provrbio cigano que retrata bemesse relacionamento com os regimes com os quaisconviveram: uA lei dos reis tem destrufdo a lei dosciganos".

    Nmades por natureza, em vrios momentosda hist6ria, ao longo dos tempos, os ciganos foramproibidos de exercer o nomadismo. Por fora dessaproibio muitas tribos tomaram-se sedentrias. Mas,mesmo para o cigano sedentrio, o impulso de andar algo que brota do ntimo, e incontrolvel.

    um povo que no quer limite geogrfico,no quer terra, quer apenas liberdade. Viajam por pra-zer, comem quando tm fome e dormem quando tmsono. A ptria do cigano aonde ele chega; o que lheconfere unidade o seu sentido de famlia, de comuni-dade. Sua ptria est dentro dele mesmo.

    O povo cigano tem a conscincia de que preciso passar.

    A tua raa de aventuraquis ter a terra, o cu, o mar.Na minha, h uma deltcia obscuraem no querer, em no ganhar ...A tua raa quer partir,guerrear, sofrer, vencer, voltar.A minha, no quer ir nem vir.A minha raa quer passar.

    Ceclia Meireles

    Dispersos pelo mundo, em tribos nmades,seminmades e sedentrias, o povo cigano vem conse-guindo manter sua unidade. Para tal, utiliza-se do se-gredo como uma das armas para defender a sua cultu-ra. Eles levam ao p da letra o provrbio: "Para contarum segredo, sussurrar a um surdo".

    Ciganos no mentem, inventam verdades.No permitem o controle sobre suas vidas; sempre vi-veram junto a outras culturas, absorvendo, aparente-mente, algumas de suas caractersticas, mas guardandosempre a sua essncia cigana. Para eles, contar um se-gredo trair os seus antepassados, o que violaria umde seus valores mais preciosos.

    No adiantam estudos para descobrir osmistrios desse povo; a convivncia com ele faz comque se perceba ou no a sua filosofia, Cigano, se nasce.

    TIfOT, N!?51, 1989

    A terra minha ptria.O cu meu teto.A liberdade minha religio.

    (dito cigano)

    Quem no captar a essncia cigana, jamaisvai compreender como um povo que ressalta tanto a li-berdade pode ter como tradio o culto virgindade,em algumas tribos o casamento previamente tratado euma forte rejeio ao homossexualismo e ao adultrio.

    Para eles, obedecer a esses preceitos nosignifica nenhuma priso, pois fazem parte da vivnciacultural que sustenta a sua tradio, a qual considerama coisa mais importante. a tradio que os une e quetambm lhes confere a condio de povo livre.

    Outro ponto fundamental para a resistnciadesta cultura a oralidade. O povo cigano grafo efaz questo de no levar ao conhecimento dos gadjes(homens, povo no-cigano) a sua lngua, o romani.Existem variaes no vocabulrio dos grupos, mas ci-gano vai sempre se entender com cigano, venha ele deque parte do mundo vier. Eles costumam dizer que s6em romani se fala a verdade.

    Seus costumes so passados atravs dehist6rias contadas pelos mais velhos aos mais novos.Isso explica o respeito que o cigano tem pelo velho.Este aquele que tudo ouviu, tudo sabe e tudo ensina.

    O dinheiro na vida do ciganoDizer que o cigano no d importncia ou

    no gosta de dinheiro e que eles so pobres miser-veis, seria mentira. Eles do importncia ao dinheiro,adoram comer e beber bem, vestir roupas de seda eusar j6ias de ouro. O que no suportam patro, horamarcada, serem escravos do dinheiro. Quando tm,gastam com o que lhes agrada. Vivem o momento pre-sente; o sustento do dia seguinte ... Deus dar.

    "O homem faz o dinheiro, mas o dinheirono faz o homem."

    O cigano no dado acumulao de ri-quezas, porm existem muitos deles espalhados pelomundo, e pelo Brasil tambm, que so ricos. Existemfazendeiros ciganos em Gois, alm de muitos indus-triais em Campinas. Os sedentrios atuam no mercadode autom6veis e no imobilirio, ou como advogados,motoristas de txi, msicos, atores, jornalistas, artistasde circo e artesos.

    Os nmades vivem dos seus ofcios, sotambm 6timos vendedores e, segundo depoimentos,quando se vem em necessidade, furtam. Quanto a is-so, uma vez um cigano disse que "no se envergonha-vam, pois s6 roubavam aos gadjes e para sobreviver. Eos gadjes que roubam uns aos outros?" difcil afir-mar que esse cigano esteja errado. melhor dizermosque so outros os seus valores.

    A cigana leu o meu destino,Eu sonhei:Bola de cristal, jogo de bzios, cartomante,Eu sempre perguntei:O que ser do amanh?

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  • Como vai ser o meu destino?J desfolhei o mal-me-quer,Primeiro amor de um menino ...

    Joo Srgio (O Amanh- samba-enredo da Unio da Ilha)

    Em geral a mulher tem um papel importantena economia da famlia, com o exerccio do poder di-vinat6rio. Entre as ciganas, 80% so "buena-dichei-ras", quiromantes ou cartomantes; algumas lem asorte na borra do caf, numa taa de champanhe, nabola de cristal, pelo jogo de dados ou de moedas. Hvrias maneiras de fazer uma leitura ou de prever odestino, e o povo cigano tem muito respeito por essaspercepes, principalmente pelas cartas. Ler a sorte mais que uma questo de sobrevivncia, uma questode f.

    o comum entre os ciganos no gostar depoltica: afinal, no gostam de leis. Para eles, o poder o poder de viver, ter sua famlia e ganhar o dinheironecessrio para o sustento, ter liberdade. Sobre osgadjes que tm o poder nas mos, costumam dizer que bom que se lembrem do provrbio:

    "Rato com rosa na cabea sempre rato".O povo cigano dispensa qualquer tipo de

    patemalismo, pois nunca precisa da proteo dos gad-jes para sobreviver. Lembram que vrias famlias no-bres do mundo se acabaram, mas que os ciganos soencontrados em todos os meridianos.

    Na fase de elaborao da nova Constituioos ciganos enviaram um pedido para que fosse respei-tado o nornadismo, sua caracterstica primordial. Por-que apesar de j constar da Carta o direito de ir e vir etambm de estar, em algumas cidades os ciganos soimpedidos at de arrendar um terreno para montar seusacampamentos. Essa solicitao foi apenas uma expo-sio de motivos para lembrar que seria convenienteque os gadjes, que gostam tanto de leis, cumprissemtambm esse preceito legal.

    O universo mgico

    Os ciganos so detentores de uma sabedoriamgica, a qual no admitem partilhar com os gadjes.Somente eles sabem como atravessar o umbral para es-se mundo livre. Profundamente mfstico, o universomgico fundamental para este povo.

    A magia to importante que comea pelaescolha do nome. O mdico Oswaldo Macedo, ciganoda famlia Taro-Kal, me contou o seguinte:

    Cada um de n6s geralmente tem trs nomes:o nome civil, do lugar onde nasceu ou onde se estmais ou menos radicado; o nome pelo qual se conhe-cido na raa; e o mais belo dos nomes, que n6s rece-bemos mas no sabemos qual . Quando um ciganonasce, a me diz ao seu ouvido um nome para que osmaus fados, os azares da vida, os maus espritos, no opersigam. Segundo a supersti~o cigana, quandoacontecer de sermos chamados por esses demnios, onome usado por eles ser o nome dado pela me, mas,como o cigano no sabe qual , no responder ao

    chamado. O nome que a me nos d no dito a nin-gum, nem mesmo ao nosso pai.

    Os ciganos costumam resolver seus proble-mas pela magia. Desde pequenos, exercitam sua intui-o de vrias maneiras. Cultivam o poder latente nosolhos. Para um cigano, o "olho-no-olho" a melhorforma de conhecer algum. Existe entre eles um exer-ccio que consiste no seguinte: 1) contrao e movi-mentao dos olhos - o objetivo emitir energia na di-reo desejada, atravs do terceiro olho; 2) o empregode tcnicas de respirao, como na ioga; 3) controle dapercepo mental, para adivinhar o que a outra pessoaest pensando; 4) relaxamento completo do corpo. Apartir de um alvo fixado, nada deve ou pode desviarsua ateno. Seu domnio dos olhos deve ser total.

    Outro elemento mgico precioso para os ci-ganos o fogo. Eles se orgulham de cultu-lo e domi-n-lo, Uma prova da habilidade deste povo est nasmuitas fogueiras que no perodo da Inquisio queima-ram pessoas por suas atividades em "feitiarias", semque nenhuma delas tivesse consumido o corpo de umcigano. At hoje no foi encontrado nenhum processodessa poca que os envolvesse. O fogo tambm estpresente em quase todos os rituais e nos grandes mo-mentos da vida da raa.

    Os passes magnticos tambm so alta-mente valorizados entre eles. A cura com as mos ali-via tenses e enxaquecas, entre outros males. A tcni-ca d a cada dedo das mos um equivalente planetrioanlogo. Assim, o sol representado pelo polegar; alua crescente, pelo indicador; a lua cheia, pelo mdio;a minguante pelo anular, e o planeta Vnus pelo dedomnimo. Os passes magnticos s6 funcionam se aplica-dos por algum do sexo oposto, sem envolvimentosexual.

    Outra fascinao no mundo Rom a manei-ra como usam as cartas para solucionar seus problemase saber que caminho seguir. A origem das cartas entreos ciganos vem do tar que, embora de origem mile-nar, permanece at hoje envolto em mistrio.

    O tar tradicional composto de 78 lmi-nas, com 22 arcanos maiores e 56 arcanos menores.No princpio essas cartas no indicavam o destino mas,para que ficassem preservados os seus mistrios, ossacerdotes do Egito distriburam as cartas s ciganaspelas ruas. Com as muitas peregrinaes sofridas emsua caminhada pelo mundo, os ciganos comearam aprever o seu futuro atravs das cartas. Foi assim quesurgiu o tar cigano; houve um grande desenvolvi-mento da cartomancia, que se tornou uma das tradiesdeste povo.

    Conforme nos informou a cigana Esmeral-da, que uma conceituada cartomante, existe em cadatribo um ritual de preparao da mulher dotada de me-diunidade para as cartas ou para a quiromancia.

    Vale lembrar ainda que algumas ciganasusam o baralho comum ou o tar espanhol para suasinterpretaes. Alm do "obi (que uma semente) m-gico", o qual jogado em cima de uma toalha brancaou vermelha.

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  • Alm da cartomancia, algumas ciganas sotambm xams. o caso de Niffer Cortez, cigana,bailarina, pertencente ao grupo Kal. Tanto os espri-tos bons como os maus so dirigidos pelas xamanistas,que tambm so consideradas exorcistas.

    No comum aos homens ciganos a adivi-nhao atravs das cartas. Eles evitam, inclusive, jogarbaralho como diverso, pois acreditam que isso podetrazer m sorte.

    O animal tambm est ligado ao conheci-mento mtico da raa. Cavalos, papagaios, ces, lobos,galos, corujas, ursos e at unicrnios so constantes navida deste povo: so usados como sfrnbolos ambiva-lentes, a depender das culturas com as quais vo en-trando em contato.

    O co o amigo fiel que protege a carava-na, sendo at mesmo tema de um dito cigano: "Chu-quel sos pirela cocal terela'", ou seja, "Co que cami-nha no morre de fome". J o galo o protetor da vi-da. Segundo Esmeralda, ele desempenha um impor-tante papel no mundo cigano. Cada vez que o galocanta de madrugada, est afastando os mulos, os fan-tasmas. So comuns os amuletos feitos com patas defrango, com as quais se fazem terrveis armas em for-ma de garra. S que as tcnicas de sua fabricao noso ensinadas a nenhum gadje.

    As pombas, sfrnbolo da paz no cristianismo,so abominadas pelos ciganos, para quem representamo sangue, o crime e a loucura. Os gatos so totalmenteausentes dos acampamentos, por serem animais muitodomsticos, que se apegam mais aos lugares do que spessoas.

    Vale destacar que os ciganos usam o animaltambm como meio de transporte, sem afastar a possi-bilidade de optarem por outros meios de locomoo. Onico que no utilizaram at agora foi o carro de boi,por ser muito lento.

    Muitos so os elementos envolvidos na ma-gia deste povo. O detentor de todos eles o "Kaku",o feiticeiro da tribo. Ele, sim, tudo conhece, todos osmistrios e todas as curas. Uma das doutrinas cons-tantes na tradio dos Kakus : "A colra desmascaraaquele que vtima dela. Desconfia sempre das pes-soas que te despertam a ira, pois tiram proveito dela."

    o cigano e a sociedade gadje

    "Os ciganos so loucos a ponto dequererem juntas a liberdade e a felicidade."

    Guimares Rosa

    Apesar de estarmos acostumados ao furtopor parte de vrias etnias que no a dos ciganos, mui-tos caracterizam a estes como ladres. A edio portu-guesa da Mercury Enciclopdia define-os assim:"Cigano - s.m. 1. Indivduo de uma raa errante eabjeta; trapaceiro; astuto. 2. Fig. Vendedor ambulante.de quinquilharias."

    THOT, NQ51,1989

    Definio semelhante encontrada no NovoDicionrio da Ltngua Portuguesa, de Aurlio Buarquede Holanda:"Cigano - s.m. 1. Indivduo de um povo nmade. 2.Fig. Indivduo bomio, .erradio, de vida incerta. 3. F-ig.Indivduo trapaceiro, trampolineiro, velhaco."

    E assim , na maioria dos dicionrios. Essepreconceito intransigente precisa acabar. Afinal, comoexplicar s crianas ciganas que no bem assim, quesua raa no nojenta? Que cigano no ladro, nosentido em que os gadjes conhecem a palavra? Os ci-ganos so espertos - e ai deles se no fossem! J te-riam visto sua raa extinguir-se com o passar dos tem-pos, e com o aval dos que os definem como ladres.

    A sociedade ocidental, principalmente acontempornea, pouco sabe a respeito desta cultura.Mesmo assim, o pouco que conhece deturpado poruma srie de preconceitos.

    muito comum vermos os trajes ciganosusados como fantasias de carnaval, pessoas fazerem osinal da cruz quando um cigano passa, metendo medos crianas dizendo que "o cigano vai pegar", e coisasdo gnero. At mesmo a histria contribui para o au-mento do preconceito, ocultando tragdias como a doextermnio de cerca de 600 000 ciganos nos campos deconcentrao de Auschwitz e Birkenau, ordenado porHitler. oportuno lembrar que no processo de Nurem-berg nenhum dos ciganos sobreviventes foi chamado adepor.

    Por esses e outros motivos que muitos ci-ganos ocultam a sua raa. So os chamados "criptoci-ganos". Entre eles contam-se muitos artistas, esportis-tas, escritores (como Castro Alves, apelidado de "opoeta lagartixa"), governadores, secretrios de Estadoe at um presidente da repblica. Sim, segundo atestaa tradio oral, um presidente muito simptico e dado dana e msica, adorando valsas e serenatas, expli-cava aos mais ltimos o seu pendor artstico como umadecorrncia de sua ascendncia cigana. No seria meroacaso a construo da capital num planalto vazio.

    Quando um cigano usa o furto para sua so-brevivncia, recorre seduo e esperteza, nunca sarmas. Volto a frisar que o cigano no rouba seus pa-res nem os locais sagrados - fato que no ocorre entreos gadjes. Os pequenos furtos ou "ustilar paste-sas'", como os chamam, so como um pagamento querecebem pela liberdade e pelo exerccio de sua cigani-dade, que os gadjes vm lhes roubando h sculos. apenas mais uma arte cigana posta em prtica.

    O professor tico Vilas-Boas da Mota, queleciona literatura oral e faz parte do Centro de EstudosCiganos de Paris, conta que eles costumam se defen-der, quando se metem em alguma confuso por furto,com a seguinte histria: "Quando Jesus estava sendocrucificado diz-se que o homem cigano que estava fa-zendo os cravos teria roubado um, para que Ele nosofresse tanto. A partir da, assim como Cristo, na horada morte, perdoou o bom ladro, disse tambm que osciganos poderiam defender-se roubando e que Ele osperdoaria sempre." Outra variante dessa histria diz

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  • ter sido a cigana que estava com o filho no colo, aolado do marido que fazia os cravos, quem roubou umdeles e escondeu nos seios, obtendo assim o perdo deJesus para os furtos.

    Concordo com o prof. tico quando dizque at algum tempo atrs Cristo aparecia na cruz comquatro cravos, passando depois a ser visto com trs.Portanto, se a lenda no justifica os furtos atribudosaos ciganos, pelo menos corrige a iconografia crist.

    Famlia e religiosidade cigana

    Um aspecto muito importante na resistnciadesse povo a famlia. Todos os seus membros tmum papel bem delimitado. Isso vital para sua sobre-vivncia; ningum descartado.

    O homem o chefe da tribo, a mulher quem preserva as tradies, as crianas so como umtesouro, pois so elas que faro com que o grupo con-tinue existindo. Os velhos so os guardies; geral-mente so eles os Kakus, feiticeiros das tribos.

    Os pequenos ncleos familiares so unidosna grande famlia, que o cigano chama de kumpania.Nela o chefe geral ser o Rom e a mulher mais velha aRomi, ou seja, a matriarca.

    Quanto educao dos filhos, o povo ci-gano procura criar, como no poderia deixar de ser,um clima de liberdade. Suas crianas no convivemcom muitas proibies. Em geral no apanham, cres-cendo com total confiana e respeito por seus pais.Tanto que nos grupos que ainda tratam o casamentodos filhos, estes no protestam, pois entendem que ospais sempre querem o melhor para eles.

    Os mais velhos so muito respeitados; antesde qualquer atitude a ser tomada sempre se ouve o se-guinte: "Vamos escutar o velho, ver se ele est deacordo". sempre assim, fala-se do velho do mesmojeito que se fala de Deus.

    Conversei com o cigano Orlando, um jovemKal; disse-me que entre eles h uma vida muito livre.No gostam de trabalhar para patro e costumamaprender desde pequenos, com a famlia, os seus of-cios. Outro ponto importante, segundo Orlando, obom relacionamento com os jovens gadjes.

    Para quem pensa que a vida nos acampa-mentos uma desordem, um aviso: a moral entre osciganos muito severa. A famlia tem que ser cem porcento preservada. A partir dos nove anos as meninasso separadas dos meninos nas barracas, para evitarqualquer risco de promiscuidade.

    comum ouvir dizer que esse povo grita ebriga muito, mas essas brigas so sempre pela unio.Como todos querem ficar juntos e quando algum des-respeita um preceito cigano ameaado de expulsodo grupo, acontece o problema: ningum quer se sepa-rar. sempre uma briga de amor; so diferentes dosgadjes, que quando se aborrecem com a famlia voembora e pronto! O cigano sabe que se ele no lutarpela unio do grupo, acaba com sua etnia.

    raro encontrar um cigano ateu. Aqui noBrasil a maioria se identifica com a religio cat6lica. A

    religiosidade para eles uma coisa muito natural. Amentalidade cigana mais parecida com a dos msticosdo que com a dos te6logos, devido ao seu dia-a-dia, aocontato com a natureza.

    Existe entre eles, segundo o padre RenatoRosso, uma lista de "dez mandamentos" para umcomportamento moral, que tem grande importnciatanto para as virtudes religiosas como para a convi-vncia familiar.

    So consideradas transgresses:

    1) No ajudar outro cigano.2) Violar o direito de outro membro da raa.3) Faltar com o respeito aos mais velhos.4) Faltar com a palavra dada entre eles.5) Abandonar os filhos,6) Separao conjugal por traio.7) Maternidade antes do matrimnio.8) Falta de pudor no vestir e no comportamento.9) Furtar em local sagrado.10) Ofender a memria dos mortos.

    Os momentos em que a religio tem maiorimportncia para um cigano so os que esto relacio-nados com a vida: o nascimento, o casamento e amorte.

    H uma grande preparao mstica das futu-ras mes. Nada deve perturb-Ia. Ela no pode verpessoas com deficincias ffsicas ou ouvir hist6rias ma-cabras. O parto deve acontecer da forma mais naturalpossvel.

    Os ciganos no fazem controle da natalida-de, ao contrrio: a prole numerosa muito valorizada ..

    Ao nascer a criana, os rituais mgicos co-meam. A primeira coisa que se faz , numa bacia decobre, banhar o beb com vinho e alguma pea de ou-ro, para que tenha muita sorte e dinheiro. Em seguida,a matriarca da tribo prepara os melhores pratos para asfadas do destino que, segundo a crena, viro ver o re-cm-nascido e precisam ser bem recebidas.

    As crianas ciganas, principalmente entreos sedentrios, costumam ser batizadas na igreja paraque haja maior aceitao por parte dos gadjes. Mas obatismo realmente sagrado o cigano; a propsito,entre compadres nunca pode haver traio. O prof, ti-co Vilas-Boas da Mota conta que uma vez, em Goi-nia, assistiu ao batismo de uma criana na Igreja Cat6-lica Brasileira, e que quando voltaram para casa a melavou a cabea do filho dizendo algumas palavras emromani. No conseguindo entender o que a cigana di-zia, ele pediu-lhe uma explicao do que estava fazen-do e no obteve resposta. Para o prof. tico a conclu-so de que ela estava fazendo o batismo cigano oudesfazendo o outro.

    O casamento tambm um momento noqual a religiosidade se exprime. Varia de grupo paragrupo, mas sempre um ato ritualstico, que recebe abno de Deus atravs dos pais ou dos mais velhos.

    Hoje o cigano est entre dois mundos: o deseu povo e o do gadje, que tem l suas tentaes. Porexemplo: ele realiza o casamento na igreja e outro em

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  • sua casa, com o juramento do sal e do po, ou com aquebra do vaso, ou ainda, em alguns grupos, com opacto de sangue. O povo cigano jura sua fidelidade di-zendo: "Quando os cacos deste pote outra vez forma-rem um pote, n6s vamos nos separar", ou como meconfidenciou a cigana Esmeralda: "Canavuri tiolundi omorr estirom'", ou seja: "Quando o po, osal e o vinho perderem o sabor, o nosso amor tambmter se acabado". Em outro juramento o homem dizpara a mulher: "Tu sers meu alimento at que eu res-titua terra os teus restos mortais".

    tradio entre os ciganos a moa se casarvirgem e por isso elas se casam muito jovens, na faixade treze a dezesseis anos, com rapazes que costumamter entre dezesseis e dezenove. No se admite a poli-gamia, mas se o casamento no der certo permitidoque encontrem outros companheiros.

    No geral os ciganos procuram se casar comciganos, de preferncia do mesmo grupo. Mas hoje jacontecem casamentos com gadjes, que a partir de en-to precisam adotar os cdigos da tribo. De acordocom alguns depoimentos, mais fcil dar certo o ca-samento de um cigano com uma gadji (mulher no ci-gana), do que um gadjo (homem no cigano) com umacigana, porque a mulher se adapta mais facilmente aomodo de vida da raa.

    O casamento tem que ser aceito pelos pais;h vrios interesses em jogo, inclusive o dote, que um costume cigano. Quando no h aceitao porparte da famlia da moa, permitido ao noivo se-qestr-Ia, mantendo-se ento negociaes que acabampor chegar a bom termo. Esse rapto serve como provada esperteza do rapaz e de que ele vai poder defendera moa em qualquer circunstncia.

    Os grupos que mais mantm a tradio soos Kalderash e os Matchuaia. J os Kal6s so os quemais se casam com no ciganos.

    Cigano alegre e festeiro por natureza.Como no poderia deixar de ser, casamento motivode festa, mas no para uma noite s6, como entre osgadjes, e sim para trs ou quatro, com muito champa-nhe, vinho, comidas tpicas, msica, dana e colorido.

    A culinria cigana tem como especialidadeso pimento recheado com arroz, o repolho, a vitelatemperada assada, o gustara (po feito com queijo), oschs de frutas, a lingia, a pprica e o sarma (pratoromeno introduzido na poca da dominao turca). En-fim, os ciganos extraem o que h de melhor da cozinhados povos com os quais convivem.

    Outra tradio de grande relevncia oculto aos mortos. O respeito aos antepassados fun-damental na cultura deste povo que acredita que osmulos os protegem. Em alguns grupos ciganos, mataralgum, a no ser por razes justas, grande pecado.Em outros, j existe um sentido de justia mais desen-volvido, acreditando-se na imortalidade da alma, noperdo e na justia de Deus.

    Os rituais tm muita importncia nesta cul-tura. Segundo uma experincia vivida pelo padre Re-nato Rosso ainda na Itlia, o rito to essencial que,

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    se no houver algum especfico para uma situao,eles o criam. Conta o padre que antes de um casa-mento aconteceu um acidente com os noivos, que vie-ram a falecer. O padre, que estava na sacristia se pre-parando para a missa a ser realizada antes do sepulta-mento, foi abordado pelos familiares dos noivos pe-dindo que ele celebrasse o casamento de ambos. Res-pondeu que no poderia fazer isso, pois afinal eles jestavam mortos e no havia nenhum culto para o caso.O acidente com os ciganos teve grande repercusso edespertou o interesse de toda a imprensa local. Parasurpresa de padre Renato, na hora da missa, que estavasendo rezada em romani, alguns ciganos juntaram oscaixes, aproximando-os muito um do outro, e troca-ram as flores que os cobriam. Para eles isso simbolizouum matrimnio; foi um ato ritualstico que criaram na-quele momento, para aquela circunstncia. Para a im-prensa, que no entendia a lngua romani, acrescendo-se o fato de estarem com o padre Renato dois outrossacerdotes de origem eslava, a interpretao do casoresultou na seguinte manchete: "Trs padres iugosla-vos casam dois ciganos falecidos".

    Se eufosse cigano,para que me serviriam as vidraas?Se eu fosse cigano,como seria a minha geografia?Se eu fosse cigano,como a noiteviajaria pelo meu sono?Se eu fosse cigano,de que me serviriao quadro dependurado na parede,se eu teria a paisagem inteirinhaa caminhar pela retina?Se eufosse cigano,para que um endereo de rua,se eu teria o universo como meu roteiro certo?Se eu fosse cigano,para que me serviriam o livro e o mapase eu me aconselharia com a vida, mestramuito mais antiga?Se eu fosse cigano,no saberia nada dos gajes.Passageiros do mesmo barco,mal nos conhecemosnessa longa viagemde reticncias ...

    tico Vilas-Boas da MotaEste povo no se prende a nenhuma reli-

    grao, apesar de ser bastante influenciado pela crenado pas onde vive. No Brasil, normal entrar-se numacasa ou tenda cigana e ver-se uma imagem de SantaBrbara, do Preto Velho e, principalmente, de N. S!!Aparecida, que negra como Sara Kali, protetora dosciganos.

    Perguntei cigana Niffer Cortez sobre ascrenas de seu povo e ela me disse: - N6s somos de-votos de Sara Kali, de Santa Macarena e do CristoCatchorro (sendo "catchorro" uma maneira carinhosade chamar o Cristo, uma vez que ele sofreu como um

  • co). Deus se apresenta para n6s sob a forma de ener-gia, n6s acreditamos no Deus Sol, no Deus Terra, noDeus gua e no Deus Ar. Essa energia vem dos ele-mentais. Deus para n6s tudo.

    O brasileiro muito ligado ao misticismo eisso faz com que o ldico e o mgico cigano encon-trem portas abertas na crena das pessoas. muitocomum em centros de umbanda a incorporao de en-tidades ciganas. Sobre esse assunto Niffer Cortez tema seguinte opinio:

    - Eu fico arrepiada, acho muito bonito.Acredito que existam ciganas espirituais, pois quandose manifestam elas mostram os nossos sinais caracte-rsticos: o gosto pelo champanhe, a rosa vermelha, amo na cintura com a imponncia cigana, e trazemmoedas e j6ias douradas. Eu fico muito emocionada.

    Alguns ciganos no acreditam nessas enti-dades, acham que so invenes dos gadjes. Outrosacreditam mas com restries, como o caso de Esme-ralda:

    - Eu acredito que se possa incorporar umaentidade cigana, sim, mas no uma pomba-gira ciganaou um exu cigano. Isso no existe. Essa coisa de dizerque recebeu uma cigana e que ela est pedindo cacha-a, levantando a saia e dizendo que tem dez homens pura inveno. Nenhuma cigana age assim, o nossosentido de moral muito forte.

    Por cima o cu, por baixo a terra,no meio os ciganos.

    (dito cigano)

    A orao muito importante para o cigano.O padre Renato Rosso, que tem sempre uma hist6riapara ilustrar sua vida com esse povo, nos deu o seutestemunho:

    - Num acampamento num local de florestadensa, perguntei a um cigano que estava cortando omato se havia cobras ali. Ele me respondeu que sim econtinuou seu trabalho. Perguntei ento se eram vene-nosas. Mais uma vez a resposta foi sim. Comeando aficar apreensivo, quis saber se as serpentes chegavamat as barracas e ele, calmamente, sem me dar maiorateno, disse que sim. Muito preocupado, indaguei sealgum cigano da tribo j havia sido picado por cobras.Nesse momento deixou o que estava fazendo e disse:"No, nunca, porque n6s rezamos". Acredito queDeus aceita muito bem a teologia dos ciganos.

    A religio no motivo de desarmonia paraesse povo, que costuma aceitar todas as religies.Acendem velas, beijam os santos, usam talisms e,principalmente, a sua magia. Acreditam em Deus e tmcomo templo a estrada.

    O valor da organizao para o cigano

    Segundo os jornais, na Europa, em 1975, ocigano Henry Steimberger, mais conhecido como Toti,anunciou-se como chefe das trs principais tribos da-quele continente. Toti se diz descendente direto daprincesa egpcia Nefertiti. Quanto legitimidade desua liderana europia, fica no ar um questionamento.

    No Brasil, o povo cigano no tem rei, governo ou che-fe, e no v com bons olhos a submisso a qualquer ti-po de autoridade.

    A prof" Cristina da Costa Pereira, durante aelaborao de seu livro, teve a idia de criar o Centrode Estudos Ciganos do Brasil, com o objetivo de pre-servar essa cultura. O Centro j foi estruturado e oprimeiro da Amrica Latina. Sua inteno afirmar acultura cigana, mostrando sua arte, seus ofcios, suascrenas, sua filosofia de vida e, principalmente, unirtodos os ciganos para a defesa permanente de sua et-nia. A entidade congrega ciganos e no ciganos quetenham afinidades com suas tradies. Atualmente oCentro de Estudos Ciganos do Brasil tem como presi-dente Mio Vassicth, que defende a maior difuso dessacultura para que as sociedades possam entender e res-peitar seus hbitos. Porm nem todos os procedimentosculturais podero chegar aos gadjes.

    Um pouco do mistrio desse povo nmadefoi desvendado ou, pelo menos, houve um conheci-mento maior por parte dos gadjes, com a Primeira Se-mana de Cultura Cigana da Amrica Latina, queaconteceu em abril de 1987, na Casa de Rui Barbosa,no Rio de Janeiro.

    Concluso

    A verdade que, milenarmente perseguidospela hostilidade que sua filosofia de vida desperta, estepovo encontrou, na teimosia de ser cigano, a fora desua resistncia. Nada impediu que se mantivessem co-mo grupo tnico-cultural.

    O que os gadjes no conseguem entender que h sculos cobram do cigano o preo da diferenapor no agentarem ser, eles pr6prios, infinitamenteiguais. Cigano sabe criar onde tudo mesmice. Valm e v aqum. Suas vidas so feitas de pequenosatos que s6 eles sabem ser importantes. O que os gad-jes no perdoam que, apesar de tudo e acima de tu-do, os ciganos esto muito mais pr6ximos da felicidadee da perfeio.

    Certos comportamentos bermticos esto"chegando hoje ao mundo gadje. A abertura sobre osmistrios desta raa uma decorrncia da "deformaocultural" do cigano que adquiriu cultura ocidental.Mas o certo que ainda existe muita coisa que osgadjes no sabem e que, provavelmente, s6 sabero nodia em que o mundo falar uma s6 Ingua - que no se-r o esperanto, com certeza.

    Rosangela Carvalho jornalista,e realiza os programas EspaoAberto e Meu Brasil Brasileiropara a Rdio MEC.

    o que h para ler: Povo cigano, de Cristina da CostaPereira; Tradies ocultas dos ciganos e A medicinasecreta dos ciganos, de Pierre Derlon; Ciganos: umacultura milenar, de Renato Rosso.

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  • CARLOS MARIA MARTINEZ BOUQUET

    H alguns dias, a 17 defevereiro, em casa de Lia, em SoPaulo, um amigo comum, Lincoln,fez-me uma pergunta a respeito doconceito de "sombra" de Carl Jung.

    . Seguiu-se uma outra pergunta rela-cionada com a primeira: "Se nos setepontos do Loyong 1 se estabelecemdeterminadas normas ticas, como possvel entender a conduta deChgyam Trungpa e a sua afirma-o de que no devemos rejeitar coi-sa alguma em ns mesmos, que nodevemos rejeitar a 'sombra'?".

    A primeira questo eraclaramente psicolgica, sobre psica-

    nlise. Apesar de minha formaoser freudiana, o que conheo sobteas idias de Jung foi o suficientepara responder ao que Lincolnperguntava.

    A segunda questo iamais longe, introduzindo temas datica e do budismo. Na ocasio notive uma percepo clara disso, esta-va mais concentrado em entenderbem a pergunta, a fim de dar a res-posta mais autntica que tivessecondies de oferecer como psica-nalista, sobre um tema de minharea, a um no profissional. Alm domais, procurei fazer com que a res-

    Acredito ver duas questes diferentes nasegunda pergunta de Lincoln, coisa que disse a ele:uma, vinculada ao fato de que conhecer a si mesmo, e,especificamente, conhecer os prprios impulsos rejei-tados - o nosso lado "obscuro", a sombra - no impli-ca ceder a esses impulsos. O que no disse durante aconversa, que isso constitui o ABC da psicanlise.Uma coisa ampliar o espectro da nossa conscincia;outra; muito diferente, decidir fazer aquilo que per-cebemos que est em ns. Por exemplo: tomar cons-

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    posta fosse personalizada, voltadapara quem formulara a questo, ten-tando, assim, penetrar naquilo queestava latente dentro dela.

    Enquanto respondia, sur-prendeu-me o fato de que Lia se en-tusiasmasse com a colocao; fiqueiainda mais surpreso quando me pe-diu que reproduzisse por escrito omeu pensamento sobre o assunto.

    Uma semana mais tarde,novamente em So Paulo e outra vezem casa de Lia, ela reiterou o pedi-do. Para atender a ambos, hoje, dezou onze dias aps o primeiro encon-tro, estou escrevendo este artigo.

    cincia de que temos sentimentos hostis para com onosso vizinho (o que pode ser parte da sombra) bemdiferente de hostiliz-lo.

    A outra questo contida na segunda per-gunta de Lincoln, ou a outra linha de pensamento emmim suscitada pela sua pergunta, referia-se existn-cia de duas posturas diversas, ambas desejveis, e dasrelaes entre elas: a) manter um bom contato com arealidade, com a nossa viso objetiva do mundo; b)preservar os ideais.

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  • Para explicar o meu pensamento sobre essasegunda face do tema, utilizei uma metfora: disse-lheque importante distinguir o lugar onde firmamos osps do outro lugar para o qual se dirige o nosso olhar.

    "O lugar onde firmamos os ps" comosomos e onde estamos. "O lugar para o qual se dirigeo nosso olhar" representa os ideais, aquilo a que aspi-ramos ser, que aspiramos realizar ou criar.

    Falei da importncia de conhecer a realida-de na qual a gente est. Para isso necessrio - comomostra a psicanlise - dar espao, em nossa conscin-cia, tambm aos aspectos constitutivos de ns mesmosque se mantiveram inconscientes: a "sombra" de Jung.Conhecer-se, incluindo os aspectos que consideramosindesejveis, no o mesmo que dar a esses aspectos odireito de se manifestarem de forma direta e imediata.Conhecimento no licena; e, como tem comprovadoa psicanlise, pode significar o contrrio - uma regu-lao mais adequada.

    Portanto, aconselhvel ter os ps firmadosna realidade e o olhar voltado para os ideais.

    Acrescentei, ainda, que a distncia entre osnossos ps e o nosso olhar dolorosa. Porm umador benfica, produtiva, que contribui para o desen-volvimento pessoal e se aplaca com o nosso cresci-mento, contrastando com outras dores que so ms eque tm de ser evitadas - as improdutivas, as maso-quistas ... No sadio seguir nenhum dos dois cami-nhos que se tomam para evit-Ia, isto : desligar-se dosps e "voar" para fora da realidade, num "delrio",numa fantasia que nega a situao presente; ou desli-gar-se do olhar orientador, perdendo a viso dosideais, numa atitude defensiva que pode ser chamadade "cca".

    A perda voluntria do contato com os pssobre a terra provoca o vo do delrio. Quanto ao ci-nismo, cai-se nele pela perda voluntria da conexoque mantnhamos com os ideais. E faz sentido dizerque, em ambos os casos, o processo voluntrio mes-mo quando o mecanismo de produo da desconexo inconsciente.

    Transitei, logo, por reas de uma disciplinaque no domino - o budismo - e talvez as minhas afir-maes contenham erros. Disse, na ocasio, que no sedeve confundir tcnicas Vajrayanas com a simples ilu-so de ser o que no se . Um tipo de tcnica do bu-dismo Vajrayana tem por finalidade localizarmo-nosmentalmente no ponto de chegada (como se localizariaum gancho no extremo de uma corda) para, em segui-da, encurtar-se a corda, atraindo-se para l o restantede n6s.

    Algo muito diferente so os mecanismosescapistas, de negao, de onipotncia, para aferrar-seao ilus6rio.

    Durante aquela reunio no foram necess-rios maiores esclarecimentos a respeito das tcnicas aque estava me referindo, pois as quatro pessoas envol-vidas na conversa sabiam do que se tratava. Porm,neste artigo, que talvez seja lido por outros, devo daralgumas explicaes complementares.

    Chenrezi(emtibetano)ou Avalokiteshvara(emsnscrito)

    O budismo uma religio curiosa: no seocupa de Deus, mas de oferecer uma cura para a dor.Est distante daquilo que, no Ocidente, entendemospor religio. Em virtude de algumas das suas caracte-rsticas poderamos quase classific-lo entre as disci-plinas psicoteraputicas ocidentais, das quais divergeprincipalmente por fundamentar -se em outras basesculturais e metafsicas.

    As pujas do budismo tibetano so prticasde meditao que se assemelham muito a certas prti-cas do psicodrama.

    Para compreender em que consistem as pu-jas, convm saber primeiro o que uma "divindade demeditao". J que o termo "divindade" poderia levar confuso, necessrio dizer que no se trata dos de-vas do hindusmo, nem dos deuses do budismo tibeta-no, nem do Deus das religies monotestas, mas de al-go prximo aos arqutipos portadores de virtudes, queso representados em pinturas e esculturas sob o as-pecto de figuras humanas e que, na meditao, soutilizados da seguinte maneira:

    Na primeira parte da prtica devemos vi-sualizar a divindade frente a n6s, com todos os seusdetalhes, cores e atributos, os quais simbolizam deter-minadas virtudes pr6prias dessa divindade. Por exem-plo, na divindade Chenrezi (em tibetano) ou Avaloki-teshvara (em snscrito), essas virtudes so: amor,compaixo, alegria e equanimidade, simbolizadas porseus quatro braos e pelos objetos e detalhes queportam.

    Num segundo momento da prtica realiza-se o que em psicodrama chamaramos de mudana depapis: estabelecendo-nos mentalmente na divindade,identifIcando-nos imaginariamente com ela, ns a per-cebemos desde o nosso interior. Atravs desse proces-so procura-se ir incorporando essas virtudes, dimi-nuindo assim a dor, que se considera ligada a senti-mentos negativos: dio, obscuridade mental, avidez,em primeira instncia.

    As pujas utilizam a tcnica de visualizao- muito desenvolvida no budismo tibetano. Por essarazo, podemos dizer que nelas se trabalha, de prefe-rncia, no espao interno, mental. No psicodrama, por

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  • outro lado, a localizao do trabalho mais externa:muda-se fisicamente de lugar no espao, existem ou-tras pessoas com as quais se estabelece dilogo,apoiando-se nelas as dramatizaes. (Nas pujas o di-logo interno, com a divindade, ou a partir dela.)

    Trata-se, porm, em ambos os casos, deuma sondagem e de uma ocupao de espaos estrutu-rados, com o objetivo de produzir efeitos teraputicos,de aprendizagem ou de treinamento de reas no de-senvolvidas ou bloqueadas, no integradas pessoaem sua totalidade.

    Sobre as Raizes do Novo

    Partindo do exposto, proponho-me agora acontinuar a reflexo e ampliar o seu campo, referindo-me ao que entendo como as razes que, conduzindosua seiva, tornaro possvel o estabelecimento de umanova cultura que seja vivel. O que se segue procura,pois, delinear o perfil de uma aproximao ao budis-mo, psicoterapia e tica, dentro de um contextomais amplo, como correntes convergentes que se diri-gem para uma cultura, repito, nova e vivel.

    Como primeiro mbito, temos as diferentestradies religiosas do Oriente e do Ocidente, e agrande tradio ocidental que podemos chamar de"cientfica" porque culnnou na cincia e na tecnolo-gia. Estas constituem a base primria. A partir delas,pelo que sei, uma srie no muito extensa de correntesde pensamento cumprem, na atualidade, o papel pio-neiro da abertura de trilhas em direo a uma novacultura. Todas estas correntes transgridem limites exte-riores ou demarcaes internas, gerando integraes eampliando mbitos, pr-existentes. Os movimentosholstico e transpessoal - muito semelhantes nas suasafirmaes - constituem, talvez, os expoentes maisclaros dessas correntes de pensamento.

    A nfase colocada na espiritualidade e napsicologia, e a contribuio de um impulso novo parao estabelecimento de pontes entre as culturas doOriente e do Ocidente, entre a sabedoria e a cincia,deram origem psicologia transpessoal.

    A nfase - muito pr6xima da primeira - da-da mais totalidade do homem de que psicologia, e integrao, atravs da abolio de barreiras e limites,seguindo os princpios de no-opor e de no-misturar,produziu o holismo.

    Em conseqncia, a tentativa de transcen-der os limites do conhecimento disciplinar em direoa territ6rios "mais longnquos" ou "laterais", e talvez ainvestigao ousada nas reas transdisciplinares, estgestando as cincias novas.

    Como quarta raiz, torna-se necessrio umadisciplina das condutas que, indo alm dos moralismoshipcritas, das "bondades" convencionais, da "boaconduta" do bom cidado e dos herosmos delirantes,escapistas e/ou fascistas, realize uma discriminaoprecisa entre o que e o que no aceitvel dentro daconduta humana.

    O que no aceitvel: temos de reconhecer

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    que h pessoas e condutas para as que no haver lu-gar na cultura que se aproxima. necessrio, com umcorte definido, separar o interior e o exterior da novacultura e efetuar tambm um corte equivalente no inte-rior dos indivduos que faro parte dela; preciso queesse corte aniquile sem "compaixo" as condutas quetornariam invivel a espcie humana. Contudo, ao fa-z-lo, preciso no cair nos erros (ou na estupidez) jconhecidos - fascismo, puritanismo, hippismo ... nemem outros da mesma natureza.

    S possvel, s e vivel, uma (nova) cul-tura que tenha como um de seus pilares uma Transti-ca, de uma preciso que no houve anteriormente.Seus fundamentos tero de firmar-se numa conscinciae numa inteligncia de caractersticas especiais; umaconscincia muito aberta e uma inteligncia aguda co-mo a prpria tica, mas de horizontes amplos. A estu-pidez imoralidade aos olhos dessa tica.

    Ser, talvez, o reino do nvel "mental" dopensamento hindusta, da preciso, da claridade, dadiscriminao, da habilidade perfeita e da criatividade.Num tal estado, as emoes sero cavalos enrgicos,guiados pela inteligncia das mentes - poderosas - dosindivduos.

    Um discernimento bsico ter que abando-nar o no aceitvel, isto , as condutas que arriscamfazer com que se torne invivel a cultura. Condutasneur6ticas e psic6ticas, doenas que devem e podemser tratadas, ou outras condutas que requerem ao pe-daggica - uma educao do que adequado e bom,ou seja, uma higiene cultural - podero ter lugar nanova cultura. Entretanto, pretender aplicar a psicotera-pia ao que no aceitvel cair na onipotncia, nailuso de que as nossas energias so enormemente su-periores ao que de fato so; estaramos, aqui, sendomovidos pela inteno de negar a nossa impotncia.Pretender isso perigoso para a cultura e a humanidade.

    As pessoas malvolas existem: basta lem-brar ditadores, torturadores, e outras pessoas que exer-cem a fora e o poder - e tambm aqueles que entor-pecem a fora e o poder. necessrio evitar que cau-sem dano. Devem ser afastados da cultura.

    No perodo de transio em que vivemostem de cumprir-se uma tarefa de assepsia estrita, talvezat dolorosa e exaustiva. Nesse labor preciso evitar:

    a) Que se aproveite a campanha de "limpe-za" para pr em ao a prpria malignidade. Porexemplo: o puritanismo, os repressores polticos dosgovernos militares e ditatoriais em geral, ou os rebel-des supostamente motivados por sentimentos de solida-riedade, mas movidos, na verdade, por ressentimentos.

    b) O contgio. Exemplo: uma santa indig-nao que, na luta por estabelecer a justia e a ordem,vai dando lugar aos nossos piores impulsos destru-tivos.

    c) O pacto, tcito ou inconsciente, entre osmalignos que alardeiam serem adversrios irreconci-liveis. Exemplo: os fundamentalistas de "direita" doexrcito e os fundamentalistas da guerrilha "esquer-dista" .

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  • d) Errar, ao determinar quem o irmigo.Sempre me perguntei como se faz nas guerras - cujo en-redo no foi bem preparado - para disparar uma armacom a certeza de no matar um companheiro. Respondipara mim mesmo que, simplesmente, toda guerra estcheia desses erros porque no possvel uma precisomaior e, tambm, porque os que usam as armas nocostumam ser - n.a sua grande maioria - pessoas sufi-cientemente reflexivas (lembremos que a impulsivida-de chega a ser considerada uma virtude blica). Almdo mais, por razes de natureza diretamente emocio-nal, muito do que pe em ao o mau guerreiro, oguerreiro pr-disciplinar, um impulso suicida, impul-so que se alastra ao assassinato dos pr6prios compa-nheiros.

    Insisto: viso clara, luz, preciso, discerni-mento, so o essencial e o bsico.

    Ainda que a dor seja imensa e o trabalho,penoso e difcil, exigindo uma ateno muito cuidado-sa, imprescindvel extirpar o inaceitvel da sociedadee do interior de ns mesmos, os indivduos.

    Acredito que seja conveniente, aos prop6-sitos deste escrito, diferenciar "piedade" de "compai-xo". Alm disso, utilizarei, de modo arbitrrio, otermo "impiedade" para designar uma virtude discri-minativa, e "compaixo" para outra virtude - esta,abrangente. Ambas tm, como uma das suas razes,o dio transformado e sublimado graas presena doamor; porm, a impiedade pr6pria do guerreiro (doverdadeiro guerreiro, do guerreiro perfeito), ao passoque a compaixo pr6pria do santo. A impiedade ci-rrgica, tem o dio menos dirigido e transformado; ,geralmente, produtora da dor. A compaixo balsmi-ca; aqui o 6dio j no mais reconhecvel, exceto noatrativo que a dor constitui para ela.

    As virtudes do guerreiro, apesar de difceis,so mais exeqveis que as do santo; para alcanar asltimas talvez pudesse ser um auxlio passar pelas doguerreiro.

    As armas da sociedade s6 deveriam estarnas mos de guerreiros autnticos. E a meta daqueleque escolhe a carreira das armas deve ser tomar-se umguerreiro verdadeiro, isto , o perfeito guerreiro disci-plinar. Ou seja:

    guerreiropr-disciplinar T guerreirodisciplinar guerreirodisciplinar-t

    perfeiodisciplinao,abertura ao nveldas disciplinas(ao "mental")

    A compaixo parece, portanto, ter limites:se uma lei tica exclui da cultura e, eventualmente,manda aniquilar os "malignos" (termo de uso do guer-reiro, com o qual qualifica o inimigo), ou quilo queno aceitvel, a compaixo estaria limitada pela"impiedade". Porm, seria mais correto dizer que, nonosso nvel de desenvolvimento, podemos aspirar a serguerreiros - o que algo bom. e factvel -, ao passo

    que a santidade escaparia s nossas possibilidades - aomenos, imediatas.

    Aplicando a mesma estrutura que Ken Wil-ber focaliza na sua obra Pre-Trans Fallacy ; temos umaseqncia aproximadamente do mesmo tipo daquela re-ferente ao guerreiro:

    "impiedade" -1 pureza 1- compaixot(A "impiedade" no muito diferente da ascese)

    As tentativas de compaixo, sem se ter al-canado previamente a pureza - e, mais ainda, a auto-compaixo - costumam deixar aparecer as impurezasno mbito do manifestado. Estas impurezas podemprejudicar o produto (neste caso, o ato de compaixo),tal como as perturbaes "emocionais" no resolvidasde uma instituio podem perturbar os produtos por elaelaborados ou os servios que realiza.

    De modo que, para estabelecer a compaixosobre bases srias e seguras, preciso ter alcanado,antes, certo grau de pureza, para o qual necessrio,por sua vez, ter discriminado o que bom e o que no, e ter-se libertado do segundo.

    A "impiedade" resulta, ento, numa formaespecial - muitas vezes numa antecipao - da com-paixo.

    A "impiedade" no imprescindvel ape-nas porque d lugar pureza e ao desenvolvimento es-piritual; imprescindvel tambm - em situaes crti-cas ou limites como a presente - sobrevivncia doser humano.

    Tomando o exercicro da medicina comomodelo de comparao, podemos dizer que a assepsiae a extirpao so duas condutas virtuosas - quando aprescrio correta; so virtudes "cirrgicas", vincu-ladas pureza.

    O ascetismo, ou seja, a "impiedade", umavirtude fundamental no budismo Hinayana; a compai-xo, no budismo Mahayana. O Hinayana e a sua pure-za so primrios e tambm mais bsicos do que o Ma-hayana e a compaixo; podem ser, igualmente, um es-tgio que precede estes ltimos.

    Siddharta Gautama, o Buda hist6rico, reco-nheceu como insuficiente o ascetismo (e a pureza).Contudo, isso no significa que os tenha consideradoprejudiciais. Tampouco podemos negar que parecemser indicados para alguns indivduos e/ou situaessociais, ou para momentos culturais crticos. Buda re-feriu-se a trs qualidades de seres humanos, conformesuas motivaes:

    aqueles cuja motivao a prpria salvao;aqueles cuja motivao a salvao de todos;aqueles cuja motivao os impulsiona a usartudo para a salvao de todos.

    O budismo tibetano afirma serem adequa-dos, para cada uma destas motivaes, respectivamen-te: o budismo Hinayana, o Mahayana e o Vajrayana.

    Ainda que parea absurdo, pensando de

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  • maneira simples e objetiva, h milhares de pessoas quese preparam, durante anos, em todos os pases, paraexecutar com a maior eficcia a tarefa de destruir ou-tras pessoas.

    Deixando de lado tais raciocnios, a rotinada morte e a atrao sensual pelo sanguinrio no tmcabimento numa cultura que se proponha como vivel.A estupidez.' e o primitivismo no so conciliveiscom uma civilizao planetria, apesar de haverem si-do proclamados como "heroismo" e "glria" na velhacivilizao das aldeias. Apesar de, na atualidade, aindase pretender confundir os ingnuos rotulando isso de"realismo", "pragmatismo ", ou de "segurana" dasnaes e das diferentes faces.

    Os motivos mais diversos levaram e conti-nuam levando os aspirantes carreira militar de todo omundo a abraar sua dura funo. No duvido que al-guns dos motivos sejam muito nobres; alguns podemser at mesmo idnticos ou ter o mesmo valor moralque os que conduzem outros jovens a seguir as profis-ses que escolheram. Entretanto, me parece inquestio-nvel que passar grande parte de suas vidas aprenden-do a melhor maneira de matar outros seres humanos,s em casos excepcionais pode ter o mesmo valor mo-ral que, por exemplo, o esforo para aprender a curaras doenas alheias. Todo o jovem com vocao militardeveria lanar-se no verdadeiramente excepcional.

    Para uma conduta voltada para o bem, preciso ter sade mental. Isso no tem sido suficiente-mente frisado. E preciso que o seja. 'Por um lado,porque h enfermidades que impedem uma coerenteatitude carinhosa para com os semelhantes: as psico-patias, a parania, manifestaes sadomasoquistas eoutros quadros neurticos e psicticos, por exemplo.Por outro, porque os conflitos neurticos costumamgerar confuso e desorientao. o possvel separartotalmente a necessidade de um equilibrio mental - abase O (zero) onde os sintomas neurticos foram redu-zidos ao mnimo - da base O (zero) da pureza enquantotica. impossvel ser um indivduo medianamentetico sem ser psiquicamente equilibrado.

    Assim, nos defrontamos com uma vertentetica da psicoterapia que , para muitos, inesperada.

    Os monges - sobretudo quando so mes-tres, pois seus atos so tomados como modelo por seusdiscpulos - tm de manter uma conduta pura, mesmono Vajrayana. Os mahasidas, isto , seres que atingi-ram a iluminao total, tm, s vezes, uma conduta quedesafia as leis da moral usual. Essa conduta, porm,no obstante as aparncias, concorre para o bem de to-dos. Os mahasidas so os nicos que podem transcen-der essa pureza. Mesmo neste caso, isso deve ser vistocomo algo surpreendente: a pr6pria surpresa firma aateno na regra de pureza que o discpulo no deveviolar; espera-se isso sim, que ele - com reverncia -surpreenda-se com a violao.

    A maioria dos seriados da televiso ocupa-se, de maneira pobre e repetitiva, do tema do-bem e domal. Trata-se de um mecanismo defensivo que evita e"liberta" a sociedade de abordar a questo com cuida-

    TROT, N2 51, 1989

    do. O cinema, a literatura, etc., tambm tratam - deforma substancial ou no -, com maior freqncia, po-rm, do tema. Contudo, no h uma disciplina atuali-zada e vigente que aborde o assunto. Proponho paraessa disciplina inexistente o nome de "Transtica ",por analogia com "transpessoal"; "transdisciplinar " ...Tratar-se-ia de uma tica cujo objetivo seria o deaproximar-se das necessidades da cultura emergente.

    S uma cultura fundada nas virtudes vi-vel no presentev- nunca uma que outorgue prioridade,de modo quase excludente, economia.

    espantoso e devastador o espao deixadopela cultura em decomposio que nos rodeia, para ocomrcio das drogas e das armas.

    As hierarquias existem, sim, e o seu acata-mento ocuparia um papel de importncia na nova cul-tura. At agora foram amplamente subvertidas; por is-so, a idia de voltar a prestar ateno especial a elastoma-se alvo de pensamentos pouco reflexivos, nosquais se confundem as falsas hierarquias que pretende-ram impor-se como verdadeiras. Exemplos de subver-so das hierarquias (e do uso indevido dos termos): a)Chamou-se "Nova Ordem" a uma das mais severassubverses da ordem, o fascismo. b) Chamou-se de"Processo de Reorganizao Nacional" culminaode atividades desorganizadoras da estrutura nacional.

    As hierarquias existem; porm, so difceisde reconhecer, em particular nos degraus. inferiores eno nvel pr-disciplinar. Reconhec-Ias pode doer, masquando isso feito, propicia paz e ordem verdadeira.

    Na atualidade, grande parte da aquisio deconhecimentos, da difuso de informaes e da tomadade decises realiza-se por vias pr-disciplinares. Po-rm, temos de reconhecer que s6 as disciplinas - es-truturas presentes no nvel "mental" - e aqueles co-nhecimentos que as transcendem oferecem certa ga-rantia de seriedade e costumam ser confiveis.

    29 de maro de 1989 - Buenos AliesCarlos Mara Martnez Bouquet mdico,psiquiatra e professor da Universidade daCidade de Buenos Alies.

    NOTAS

    1. Antigo texto tibetano chamado Os Sete Pontos de Treinamento daMente, transmitido por Atisha, monge budista.

    2. Lama tibetano (1940-1987), mestre de meditao, um dos primeirosa se instalar no Ocidente devido invaso chinesa no Tibete. Autorde numerosos livros sobre budismo e temas afins.

    3. Talvez os leitores se surpreendam ante a repetio da palavra "estu-pidez" neste artigo. Essa surpresa, porm, apenas um reflexo dosentimento similar que provocou em mim o fato de ser testemunha evtima de atos (e no meras palavras) de uma estupidez esmagadora:vou dar to-s dois exemplos, ambos made in Argentina. 12) A de-ciso de um brio de massacrar compatriotas e estrangeiros numaao utpica, delirante, mal organizada e mal provida nas Malvinas(e conste que ao afirmar isto no reconheo aos ingleses nenhum di-reito a manter seu domfnio colonial sobre um extremo do nosso ter-ritrio). 22) A deciso de um governador cordovs (da provncia ar-gentina de C6rdoba) de declarar subversiva a teoria dos conjuntos,suponho que acreditando ter esta uma secreta e malfica relao comos agrupamentos de indivduos que no desejavam submeter-se aomandato da ditadura.

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  • RUPERT SHELDRAKE

    o primeiro li-vro de Rupert Sheldrake,

    Uma nova cincia da vida(A New Science of Life, Ed. Paladino

    Inglaterra), criou enorme controvrsia desde suapublicao em 1981. Nele abordada a questo

    de como as formas da natureza se repetem, sugerindo queas formas assumidas pelas estruturas vivas em seu desen-

    volvimento so determinadas por uma espcie de campofsico, por enquanto ainda no levado em conta pela cincia.Outras teorias similares,que consideram as formas vivas comoorganismos antes que como mquinas, ganharam evidncianeste sculo, em desafio predominante base mecanicista dacincia. Contudo, at agora sua influncia no mundo cient-fico tem sido superficial, pela ausncia de hipteses compro-vveis. As hipteses elaboradas por Sheldrake em seu mo-delo podem ser testadas experimentalmente, e desde 1981o mundo vem demonstrando grande interesse por suacomprovao, Esto em curso projetos de fomento

    a essas pesquisas, os quais so citados no fimdeste artigo, extrado de uma palestra de

    Sheldrake realizada em 1987 naIgreja de St. James,

    em Londres.

    20 THOT, N2 51, 1989

  • Mecanicismo e holismo

    A viso mecanicista tem sido, de certa for-ma, bem-sucedida na biologia e na medicina, mas mal-sucedida em outras reas. Creio que h boas razes pa-ra acreditar que essa no seja uma viso adequada davida, mesmo no que tange biologia como cincianatural. Desde o incio dos experimentos biolgicos,h toda uma tradio de bilogos que no aceitam aviso mecanicista, a qual tenta explicar os organismosvivos como a mera soma de suas partes.

    A proposta da tradio no mecanicista que o todo mais do que a soma das partes, havendoaspectos das coisas vivas que no podem ser explica-dos simplesmente em termos das partes que as com-pem e da interao destas. Essa reao tem sido re-forada pelas abordagens organicistas ou holsticas.Uma das concepes desses enfoques a idia doscampos morfogenticos, ou campos modeladores deformas. Morfo quer dizer "forma", e genesis significa"vir a ser". Assim, os campos morfogenticos so"rnodeladores de formas". Esta idia foi enunciada pa-ra tentar elucidar o ainda inexplicado crescimento edesenvolvimento orgnico, a evoluo da planta a par-tir da semente ou de um organismo desde a faseembrionria.

    Como o organismo se desenvolve e tomasua forma? Como que o mais vem do menos? Essasquestes so fundamentais. Estamos to certos de queas plantas nascem das sementes e de que os embriesse desenvolvem de forma perfeitamente ordenada, queesquecemos que esses processos no so, na realidade,compreendidos. Podemos, sim, descrever o que acon-tece em termos de transformaes qumicas, mas issono explica a forma do organismo. Explicar por que assim e por que constitui um problema faria com queeu me alongasse demais. Portanto, espero que aceit