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1 Revista política e de ideias Quo Vadis, para onde vais Europa? dsiê 7 € Entrevista a BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS por FERNANDO ROSAS E SOFIA ROQUE Agendas da crítica crítica por FRANCISCO LOUçã Crato, o Radical por CECíLIA HONóRIO + ler, ver e ouvir ALDA SOUSA, MARIANA MORTáGUA MARISA MATIAS, JOSé CASIMIRO JOSé MANUEL PUREZA, LUíS FAZENDA II série

Revista Vírus #4

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Editorial de Fernando Rosas. Dossiê Quo Vadis, para onde vais Europa?

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Revista políticae de ideias

Quo Vadis, para onde vais Europa?

dossiê

7 €

Entrevista a Boaventura de SouSa SantoSpor Fernando roSaS e SoFia roque

Agendas da crítica crítica por FranciSco Louçã

Crato, o Radical por cecíLia honório

+ ler, ver e ouvir

aLda SouSa, Mariana MortáguaMariSa MatiaS, JoSé caSiMiroJoSé ManueL Pureza, LuíS Fazenda

II série

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Pontos de venda da Vírus: LISBOA - Sede Nacional do Bloco de Esquerda: Rua da Palma, 268Livraria Almedina Atrium Saldanha: Praça Duque de Saldanha, 1 | COIMBRA - Almedina Estádio Cidade de Coimbra: Rua D. Manuel I, n.° 26 e 28 | PORtO - Almedina Porto: Rua de Ceuta, 79

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Projeto Editorial1

A Vírus é uma revista com edição semestral iniciada em Junho de 2012. tem tido, e continua-rá a ter, uma edição online consultável agora no site: www.revistavirus.net

2A nova série da Vírus, agora em edição impressa, define-se como um espaço de debate de

ideias e de intervenção direcionado para o entendimento crítico da realidade e para a cons-trução de alternativas democráticas e socialistas à violência predatória do capitalismo e à

deriva autoritária dos seus governos e do seu Estado. Esse é o seu objetivo.

3Com esse fim, a Vírus fomentará o concurso e o debate de todas as opiniões que, à esquerda, queiram contribuir para uma consistente corrente contra-hegemónica e para a superação da

(des)ordem atual.Esse é o seu campo.

4A Vírus afirma-se como espaço de reflexão, discussão, formação e divulgação de apoio às ativistas e aos ativistas nos terrenos da política, dos movimentos sociais, da intervenção

cultural, científica e cívica ou de uma cidadania informada e com opinião. Simultaneamente, recebe do seu pulsar, das práticas sociais mais diversas, o influxo

inspirador para o seu trabalho.Esse é o seu compromisso.

5A Vírus pretende fazer eco e participar ativamente nos grandes debates do

internacionalismo, dar conta dos seus passos e desafios, uma vez que não há soluções puramente nacionais ou autárquicas para a ação emancipatória.

Esse é o seu âmbito.

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DiretorFERNANDO ROSAS

Edição GráficaRITA GORGULHO

Conselho de redaçãoADRIANO cAmpOS

ANA báRbARA pEDROSAANDREA pENIcHE

bRUNO GÓIScARLOS cARUJO

FAbIAN FIGUEIREDOHUGO DIAS

JOSÉ SOEIROLUÍS TRINDADE

mARIANA SANTOSmIGUEL cARDINA

NUNO SERRASOFIA ROQUE

Colaboraram nesta ediçãoALDA SOUSA

cEcÍLIA HONÓRIOFAbRIcE ScHURmANS

FRANcIScO LOUçãmARIANA mORTáGUA

mARISA mATIASHELENA ROmãO

JOSÉ bORGES REISJOSÉ cASImIRO

JOSÉ mANUEL pUREzAJÚLIA GARRAIO

LUÍS FAzENDA

REGISTO ERc - N.º 125486 ISSN: 2182-6781

pROpRIETáRIO/EDITOR: bLOcO DE ESQUERDA

RUA DA pALmA, 268 1100-394 LISbOA TIRAGEm: 500 Ex.

ImpRESSãO:A TRIUNFADORA, ARTES GRAFÍcAS

LDA., RUA D. SANcHO I, 36-A ALmADA

REVISTA pOLÍTIcA EDE IDEIAS

revista semestral

Quo Vadis, para onde vais Europa?

Editorial PÁG. 05FERnAndo RosAs

Dossiê: Quo Vadis, para onde vais Europa? PÁG. 06O europeísmo de esquerda como contrastepor José MAnuEl PuREzA Reds again, recomposição por luís FAzEndA União Europeia: como se chegou aqui? por MARisA MAtiAsAfinal a culpa é da Alemanha? por MARiAnA MoRtÁGuAMovimentos sociais e esquerda política: conflito, coabitação e convergência por AldA sousACrise: respostas dos sindicatos portugueses no plano nacional e europeu por José CAsiMiRo

Entrevista a Boaventura de Sousa Santos PÁG. 50A matéria-prima da Europa é o Estado Social por FERnAndo RosAs E soFiA RoquE

Pensar o Socialismo Hoje PÁG. 66Agendas da crítica críticapor FRAnCisCo louçã

Ler, Ver, Ouvir PÁG. 72Dentro de casa. Anatomia do desejo de Ficçãopor FAbRiCE shuRMAnsBonitos, Ricos e Ocos por JúliA GARRAioDo patromónio por recuperar por hElEnA RoMãoUma lição de amor por soFiA RoquERomance caleidoscópico: contos contrapostos, interpostos por AnA bÁRbARA PEdRosAAlcora. A estratégia do colonialismo terminal por FERnAndo RosAsPrisma, perspetiva, expectativa: um olhar sobre a esquerda radical por José boRGEs REis

Vária PÁG. 90Crato, o radical por CECíliA honóRioNão acredite em tudo o que pensa, ou pense melhor naquilo em que acredita por FERnAndo RosAsMarxismo no “segundo segundo debate”das Relações Internacionais por bRuno Góis

Acontece PÁG. 116Agenda organizada por FAbiAn FiGuEiREdo

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editorialFERnAndo RosAs

A Vírus coloca na edição do seu nº 4: Para onde vais Europa? Pergunta tanto mais pertinente, quanto a União Europeia se debate com a mais grave crise política e financeira desde as suas origens nos idos dos anos cinquenta.

Quo Vadis, para onde vais Europa? É uma canónica questão que a Vírus coloca na edição do seu nº 4: Para onde vais Europa? Pergunta tanto mais pertinente, quanto a União Europeia se debate com a mais grave crise política e financeira desde as suas origens nos idos dos anos cinquenta. Uma crise que ameaça a sua coesão e continuidade, latente desde a criação do euro e drasticamente agravada pela Grande Depressão de 2008. Com tal pano de fundo e as eleições para o parlamento europeu em 2014, pareceu-nos que era importante dedicar o Dossier da Vírus, e a sua Entrevista, ao debate so-bre este assunto, colocado na perspectiva do que possa ser uma resposta da esquerda socialista às novas e graves interrogações que a situação inculca.

Nesse sentido, interrogamos o que possa ser hoje o europeísmo de es-querda (J.M. Pureza); analisa-se o processo histórico de reconstituição do campo político da esquerda socialista e europeia e as suas actual configu-ração e temas de debate (Luis Fazenda); olha-se para o percurso e evolução da União Europeia até à sua cristalização no actual bloco neoliberal, neo-conservador e anti-social (Marisa Matias); discute-se a natureza da actual crise económica e financeira e o quadro e implicações de uma eventual saída do euro como alternativa (Mariana Mortágua); discute-se a problemática das relações políticas e ideológicas entre os novos movimentos sociais que despertaram na Europa e os partidos da esquerda socialista (Alda Sousa), finalmente, abordam-se as respostas dos sindicatos portugueses à crise ac-tual, tanto no plano nacional como europeu (José Casimiro).

Seguidamente, inserimos uma Entrevista com Boaventura de Sousa Santos, editada por Sofia Roque, onde este desenvolve uma aprofundada análise do percurso histórico da União Europeia das origens até à crise ac-tual, da evolução do papel de Portugal nas estruturas comunitárias desde a adesão à CEE à integração no euro e dos impasses actuais e desafios que se colocam às esquerdas europeias e nacionais face às políticas de austeridade e de “fascismo social”.

Na habitual rubrica Pensar o socialismo hoje, divulga-se o prefácio da autoria de Francisco Louçã à edição portuguesa do livro de Daniel Bensaid, Marx, O Intempestivo, sob o titulo “Agendas da critica critica”, uma introdu-ção à importância da obra daquele pensador marxista recentemente falecido.

Ler, Ver, Ouvir, presenteia-nos com duas recensões críticas de filmes, (Dentro de Casa de François Ozon e O Gang de Hollywood de Sofia de Co-polla) de autoria, respectivamente, de Fabrice Shurmans e Julia Garraio. Na música, o comentário de Helena Romão à redescoberta da obra musical de António Fragoso e à recente edição em CD de três das suas peças de música de câmara. No tocante aos livros, recensões críticas de Sofia Roque (romance de Romain Gary/ Émile Ajar, Uma vida à sua frente), de Ana Bár-bara Pedrosa (romance de João Ricardo Pedro, O teu rosto será o último), de Fernando Rosas (investigação histórica, Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo) e de José Borges Reis sobre o livro de André Freire e de Luke March, A Esquerda Radical em Portugal e na Europa, Marxismo, Mainstream ou Marginalidade?).

Na secção Vária, colaborações de Cecília Honório sobre a política educa-tiva do ministro Crato, Fernando Rosas e a critica ao senso comum conser-vador e Bruno Gois sobre o marxismo no debate das Relações Internacio-nais. Finalmente Acontece, agenda política e cultural do próximo semestre preparada e organizada por Fabian Figueiredo. A todos os que colaboraram nas várias secções neste nº 4 da Vírus, o nosso reconhecimento. Acho que o produto final é merecedor da vossa leitura e discussão.

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Escrevi em 2004, com o Miguel Portas, o seguinte: «Quando da Europa se poderia esperar um impulso ao Estado de bem-estar, foi à Europa que se foi buscar legitimação para a miniaturização do Estado social na segurança social, no ensino ou na saúde; quando da Europa seria razoável esperar um reforço das garantias sociais e o respaldo a uma relação pactuada entre capital e trabalho, foi à Europa que se foi buscar a flexiliberalização das relações laborais e sociais; quando da Europa se admitiria um influxo de cosmopolitismo nos códigos civilizacionais, foi a ela que o conservadorismo nacional foi buscar argumentário para tentar travar a transformação do quotidiano em matéria de hábitos e horizontes».Quase dez anos depois, quando a Comissão Europeia se mostra mais fundamentalista que o próprio FMI na imposição das políticas

de austeridade aos países membros sob intervenção estrangeira, só vejo razões para lembrar o que então escrevemos e agravar a inquietação que nos fez procurar um europeísmo crítico de esquerda. Como então, digo agora que um europeísmo de esquerda só pode ser um combate contra o “europeísmo convicto” do bloco central que governa a Europa. Em nome da Europa e dos seus povos. Neste texto exploro algumas das causas de ser assim e alguns dos caminhos principais dessa busca.

1. A Europa esqueceu-se do que é a pazO discurso, repetido até à exaustão, que enaltece a União Europeia como suporte de uma condição de paz na Europa com uma duração inédita assume como certas duas hipóteses que se dispensa de comprovar. A primeira é a de

O europeísmo de esquerdacomo contrasteJosé MAnuEl PuREzA

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que há paz porque há integração económica. É uma velha tese, cara aos triunfadores da expansão dos mercados, de acordo com a qual os parceiros de negócio não fazem guerra entre si. A segunda é a de que há paz porque há integração política. É uma tese não menos velha, repetida pelos que alcançam posição preponderante nas instituições políticas, para a qual a co-responsabilização política dissuade a vertigem da guerra.Este discurso e as suas duas hipóteses vivem das aparências. Iludem os impactos desestru-turadores profundos que ambas as integrações têm sobre a democracia e sobre a estrutura so-

cial. A integração dos mercados na Europa tem sido não apenas seletiva e desigual – a integra-ção dos mercados de mercadorias, de serviços e de capitais não tem qualquer correspondência na integração do mercado de trabalho – como tem sido responsável pela fragilização dos te-cidos produtivos locais das periferias internas da União Europeia (mais do que isso, vive dela e quere-a deliberadamente) e pelo esvaziamen-to acelerado das estruturas e políticas de efe-tivação dos direitos sociais. Por outro lado, na voragem desta integração fica patente o fim da ilusória coabitação entre democracia e libera-lismo. A força da integração dos mercados é também a sua força política, feita de fraqueza das instituições democráticas e da regulação por elas produzida. O striptease do Estado para gáudio dos voyeurs investidores-especuladores ocorre em simultâneo com o contínuo ganho de robustez da regulação amiga do mercado des-regulado. Algo a que a engenharia institucional federal se limita a ampliar a escala: o federa-lismo realmente existente, muito mais do que um desenho institucional compensador daqui-

lo em que os Estados se revelam frágeis, é um exercício de composição de um poder forte para impor soluções fortes a favor da desregulação contra a resistência regulatória deliberadamen-te fraca dos Estados. O discurso que associa a paz na Europa à in-tegração económica e à integração política é, pois, um discurso de dissimulação, feito por quem está a ganhar com esta integração econó-mica e com esta integração política para legiti-mar o seu domínio. É, além disso, um discurso historicamente ignorante. O que garantiu a longa paz na Europa não foi a União Europeia mas sim o modelo social de complemento do

salário direto por serviços públicos e direitos sociais. A paz entre a França e a Alemanha foi muito mais fruto do horizonte de ascensão so-cial que este modelo suscitou nos seus povos do que das reuniões de todos os dias em Bruxelas. Por outras palavras, foi a paz positiva que foi garante da paz negativa na Europa nas últimas cinco décadas. Algo que se fica a dever a uma relação de forças favorável a essa configuração do contrato social e a que o contexto ideológico e social da guerra fria está longe de ser indi-ferente. A Europa da paz foi a Europa assente num contrato social amplo à escala de cada Es-tado e numa preocupação com a coesão social e a justiça territorial à escala do conjunto da União.

2. O bloco central europeu esvaziou a democracia na EuropaA substancial alteração da relação de forças em que se havia forjado aquele conteúdo do contrato social em escala europeia, alteração em que foi absolutamente decisiva a capitulação dos partidos social-democratas e a sua cooptação

O striptease do Estado para gáudio dos voyeurs investidores-especuladores ocorre em simultâneo com o contínuo ganho de robustez da regulação amiga do mercado desregulado.

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pelo campo da hegemonia neoliberal, trouxe-nos aonde estamos. O “europeísmo convicto” da aliança entre a social-democracia e o liberalismo deixou aos povos da Europa o mais envenenado dos legados: pelo menos desde Maastricht, o custo do trabalho tornou-se na única variável realmente mobilizável pelos Estados nacionais para o ajustamento das economias nacionais, desprovidos que estão quer do controlo cambial quer da emissão de moeda, ao mesmo tempo que são submetidos a um asfixiante colete de forças que é a imposição do dogma do equilíbrio orçamental combinada com um rotundo “não” a quaisquer instrumentos europeus de compensação das fragilidades diferenciadas das economias nacionais (como um orçamento comunitário digno desse nome e apto a alimentar políticas de emprego ou de resposta a crises ou um regime de contração de dívida com assumido suporte europeu). A resposta ardilosa, dada nesta década à crise funda do capitalismo financeirizado radicalizou enormemente as consequências dessa mudança social e ideológica. No bojo dessa resposta, a dí-vida de uns tornou-se o instrumento de poder de outros. O Pacto Orçamental e a consagração de uma “regra de ouro” de um teto de 0.5% para os défices estruturais, a expressão mais recente – e mais grave – da aliança estratégica entre os partidos social-democratas e a direita europeia,

veio selar essa estratégia de dissolução rápida do modelo social e da democracia inclusiva em escala europeia. Pelas mãos desse grande bloco central europeu, a intensificação da integração financeira seletiva passou a assumir como re-ferência primeira a ilegalização do endivida-mento absolutamente imprescindível para o crescimento dos Estados economicamente mais débeis, adensando o estado de negação em que a direção política da União Europeia tem vivi-do relativamente aos motivos da crise e à sua resolução. O euro é hoje o símbolo maior da tomada da de-mocracia como refém dos mercados. Uma união monetária exige tanto práticas de coordenação e de harmonização económica como instru-mentos comuns de resposta a pressões exter-nas ou a desequilíbrios internos. A escolha do “europeísmo convicto” do bloco central foi ab-dicar irresponsavelmente destes e dar àqueles uma lógica punitiva. O resultado é um euro que serve de chantagem sobre os povos, encostados à escolha entre cumprir os ditames do empo-brecimento do trabalho e do encurtamento das economias e serem atirados para fora da união. Ou seja, entre empobrecerem dentro do clube ou empobrecerem fora dele. A arquitetura regulatória e institucional da go-vernação económica europeia construída pelo bloco central europeu nesta década anuncia o

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fim da universalidade dos serviços públicos e dos direitos sociais e impõe a sua substituição pela asiatização das relações sociais e por uma lógica de subalternização da política democrá-tica às mãos do primado da livre circulação dos capitais como dogma primeiro da política euro-peia contemporânea. Na verdade, a constitucio-nalização do Estado mínimo diz tudo sobre os conteúdos políticos do “europeísmo convicto” do bloco central europeu e como eles diminu-íram o espaço da democracia. Na Europa do Pacto Orçamental e do défice zero, aprovada em conjunto e com o turbo ligado pelo “arco da governação” europeia, o campo das escolhas passou a ser entre diminuir mais ou muito mais os serviços públicos de saúde ou de educação, entre cortar mais ou muito mais os salários e reformas, entre privatizar mais ou muito mais bens comuns.

Que o “europeísmo convicto” do grande blo-co central europeu se materialize num reforço da disciplina punitiva das economias nacionais mais débeis e na centralidade por ela atribuída à perda de densidade quer da justiça social quer da democracia na Europa tem que ser uma bali-za de primeira importância para a ação política de uma esquerda consequente. Ou seja, há de ser essencialmente por referência a essa for-ma não democrática, antissocial e blindada de construir a Europa que um europeísmo crítico de esquerda se há de definir. Porque esta Euro-pa que usa a dívida para afundar os países e não quer ajudar os países a livrar-se da dívida é uma Europa que não serve para nada.

3. A Europa é uma finta vossaEsta mudança é agravada pelo renascimento de uma até agora não revelada polarização moral e política entre “virtuosos” do Norte

e “preguiçosos” do Sul e pela aceitação institucional de um esquema de governação por diretório com uma gradual perda de centralidade das próprias instituições comunitárias de decisão. Nessa visão das coisas assente na dicotomia entre virtuosos do Norte e preguiçosos e irresponsáveis do Sul só há uma saída: intervenções disciplinadoras dos primeiros sobre os segundos, em que o castigo do prevaricador indolente o purificará e trará ao redil dos puros. Essa cura chama-se austeridade e a doença chama-se Estado social, cujo primeiro sintoma é o endividamento. Para o neoliberalismo europeu o problema é a presença de “Estados falhados” num clube reservado a “boas governações”. A Europa virou clube med.Nessa linguagem virtuosa dos “europeístas convictos” que têm governado a Europa

vai transportada uma nova forma de dizer a relação de poder entre centro e periferia. A dívida das periferias “desgovernadas” e o crédito dos centros “responsáveis” são o dispositivo essencial dessa relação de poder. Nela, é às periferias que cabe a responsabilidade de demonstrar que, custe o que custar, estão dispostas a tudo fazer para não serem arrastadas para a condição de Estados falhados. Daí a sobre-exacerbação da virtude própria, daí o excesso de terapêutica voluntariamente assumido. A humilhação do servo faz-se levando-o a macaquear o seu senhor, enquanto este lhe estende a migalha.Esta Europa que humilha os seus não vai a votos. Fosse e seria ela a humilhada. Mas é em nome dela que se cumprem os programas implícitos que os partidos do bloco central não apresentam mas cumprem. Uma Europa que, à sombra das troikas, amarra os partidos

Esta Europa que usa a dívida para afundar os países e não quer ajudar os países a livrar-se da dívida é uma Europa que não serve para nada.

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“com hipóteses de governar” ao cumprimento de um mesmo programa por ela fixado para proteção dos capitais que circulam e dos bancos que especulam, mandando às malvas os compromissos estabelecidos por esses partidos com os eleitorados nacionais, é uma Europa que despreza a democracia. E, mais que tudo, é um pretexto para a aplicação de políticas locais de agressão social.

4. O europeísmo de esquerda é teimoso. Ainda bem.A mãe de todas as prioridades para um europeísmo crítico e de esquerda há de ser o resgate da democracia. Ora, a democracia resgata-se onde há povo e cidadania e não inventado um povo e uma cidadania a martelo. Não há povo europeu. E da cidadania europeia só se pode dizer o mesmo que Gandhi disse da civilização ocidental: «seria uma excelente ideia». A democracia resgata-se onde ela foi esvaziada, onde as escolhas têm atores que podem ser por elas responsabilizados. A hegemonia liberal na governação europeia torna mais prioritário que nunca o combate pelas democracias nacionais. Sem nostalgias soberanistas mas com uma agenda de ambição democrática. A combinação cada vez mais clara e intensa entre neoliberalismo e autoritarismo na condução da política europeia mostra como está armadilhada a alternativa entre intergovernamentalidade e federalismo. A estratégia de quem tem mandado na Europa no quadro da presente ofensiva neoliberal tem sido a de combinar engenhosamente intergovernamentalidade onde deveria haver mais Europa e federalismo onde devia haver mais democracia. A nacionalização da crise e dos seus prejuízos e danos empurra mais facilmente os governos nacionais das periferias para o papel de simples feitores de um programa de rutura social e de punição do trabalho, na falta de uma Europa de coesão social através dos direitos sociais e dos serviços públicos. Mas

a alternativa a esta intergovernamentalidade perversa não é o federalismo centralista. Aceitá-lo, como o faz, encantado, o “europeísmo convicto” do bloco central europeu, é ignorar a política concreta e a relação de forças que a disputa. O federalismo europeu não é um projeto abstrato, é um programa concreto que está a ser implementado agora, ao sabor das vantagens dos investidores bolsistas que querem ver os riscos que eles próprios criaram nas periferias punidos e os juros negativos de Berlim ou Helsínquia salvaguardados. Há evidentemente políticas europeias para lá dos espaços nacionais que são imprescindíveis para travar esta deriva desreguladora e castigadora da vida das pessoas: a mutualização das dívidas materializada na emissão de títulos de dívida europeia, o dimensionamento do orçamento comunitário que permita políticas de resposta a crises ou a transformação do mandato do Banco Central Europeu orientando-o para o financiamento de uma economia europeia apontada ao crescimento e ao emprego. Para isso é essencial a construção de uma convergência das periferias como resposta ao cordão sanitário imposto pelo centro em torno de cada economia nacional alvo de ataque especulativo (“nós não somos a Grécia”). Há pois Europa a construir, urgentemente. Mas o federalismo anunciado pelo “europeísmo convicto” do bloco central europeu está nos antípodas dessa construção. Porque põe autoritarismo onde é a democracia que precisa de ser acrescentada. E porque diminui a justiça na economia onde ela precisa de ser aumentada.O europeísmo de esquerda bate-se pelo resgate da democracia porque ela é o garante do resgate de um contrato social em que o salário e os direitos sejam prioridades efetivas. No salário e nos direitos é ainda a democracia que se joga porque provadamente a exclusão social exclui da política. A austeridade e o empobrecimento estão a roubar povo às democracias na Europa e a impor-lhe soluções esdrúxulas em que a ilegitimidade democrática vem disfarçada

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de conveniência tecnocrática. Uma Europa democrática implica por isso não só uma rutura com as políticas da austeridade como um compromisso político claro com a criação de condições – na política fiscal, na política de coesão territorial, na política industrial ou no lugar estruturante a conferir ao investimento público reprodutivo – para que a defesa do salário e da universalidade de serviços públicos qualificados seja o foco do contrato europeu. E implica mais: implica a coragem e a lucidez de assumir com clareza o controlo público sobre o sistema financeiro – quando necessário e quando conveniente através de nacionalizações – para que os povos possam ter uma resposta estratégica agressiva contra a crise e reganhem o controlo que lhes assiste sobre os instrumentos de política económica.Voltemos, enfim, à questão da paz. Quando Hollande, Milliband ou Cohn-Bendit se mostram mais favoráveis à intervenção militar na Síria que o próprio Obama, fica feita a prova de que o “europeísmo convicto” é habitado pelo

vírus da nostalgia colonial. Esta Europa que olha o mundo com os olhos da mission civilizatrice que alimentou os impérios europeus no mundo – e que tem hoje na camuflagem humanitária dos negócios o aggiornamento da sua legitimação – é o avesso do que se exige a um europeísmo de esquerda. A autodeterminação (lembram-se?) é o núcleo da visão do mundo sufragada por um europeísmo de esquerda. Afinal de contas, é mesmo isso que defendemos para a Europa e para os seus povos.O que a esquerda precisa, nas freguesias, no país e na Europa, é de vozes fortes contra a aus-teridade, em defesa do Estado social, dos bens e serviços públicos, contra o “europeísmo convic-to” que se preocupa mais com a elite financeira do que com as vítimas da austeridade. Diante desta indignidade tão radical, um europeísmo de esquerda só pode unir e radicalizar as lutas contra os resgates, as troikas, a austeridade, a dívida, o desemprego, a precariedade, a mer-cantilização dos serviços públicos. Para resga-tar a vida das pessoas.

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No final do século passado iniciou-se uma alte-ração de qualidade nas esquerdas políticas, de-signadamente na Europa ocidental, embora com alguns afloramentos na América latina. Esse processo de recomposição, também dito de re-agrupamento, teve como antecedentes alguns factos maiores da história contemporânea. Des-de logo, a anterior implosão da União Soviética e a queda dos regimes do leste europeu que se reclamavam do socialismo. Outro facto do maior alcance foi a afirmação do neoliberalismo como ideologia triunfante e imposto como pensamen-to único durante largo tempo pela generalidade dos aparelhos ideológicos, apresentado como sucessor do fracasso da teoria socialista. Sem su-bestimar ainda o impacto de outro facto: o ataque às torres gémeas de Nova Iorque em 2001, com

todas as consequências da resposta dos EUA, realinhando os seus satélites, na guerra contra o “terrorismo”, redefinindo o poder imperialista no pós-guerra fria. todas estas mudanças sacu-diram as sociedades no mundo e exprimiram-se com força, tendo como acelerador subterrâneo o processo da globalização económica do mercado, trazendo a informática como ferramenta da cir-culação veloz dos capitais.É típico que as voltas da história produzam al-terações significativas na estrutura e arrumação das classes sociais, e por tabela nas suas repre-sentações políticas. Acentuando muito uma tendência que já se vinha desenvolvendo, as so-ciedades europeias viram o trabalho industrial afetado com maciças deslocalizações de fábricas para outras partes do globo, com a expansão do

Reds again, recomposiçãoluís FAzEndA

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precariado, com a explosão da “economia de ser-viços”. Enquanto a burguesia se “mundializa” o opera-riado tradicional fragmenta-se em novos modos de trabalho e desfideliza habituais comandos sin-dicais e partidários, ao mesmo tempo que perde direitos económicos e sociais. A burguesia da Europa ocidental entra em ajuste de contas com o Estado social, diminuindo drasticamente a fa-tura que era chamada a pagar.Num processo perverso os trabalhadores e de-sempregados são mais explorados mas ficam também mais “soltos” das suas identificações políticas comuns ou eleitorais. Este tipo de afini-dade política tanto funcionava com os social-de-mocratas como com os comunistas. O desprestí-gio do socialismo derrotado e fautor de crimes trágicos, a propaganda do negócio individual e da concorrência, o pânico da guerra, tudo isso

contribuiu fortemente para abanar as bases tra-dicionais desses partidos.Nessa viragem de século, os partidos social-democratas e socialistas eram largamente maio-ritários nos governos da União Europeia, apa-rentando até terem beneficiado do desastre dos comunistas, estes em clara queda de atração. A esmagadora maioria desses partidos liderantes apoiou as teses da terceira via, sustentando uma proposta de gestão do capitalismo entre o neo-liberalismo e o socialismo. A ideia deve-se, pelo menos na sistematização, a Giddens mas o rosto dessa variante foi o premier britânico tony Blair. Guterres foi no alfobre luso o porta-estandarte dessa cultura. Adaptar pela metade o neolibera-lismo era a essência dessa cultura de capitulação.Como se viu, os partidos social-democratas e so-cialistas não saíram da dinâmica neoliberal das privatizações, dos cortes na despesa social, do

desmantelamento do Estado-providência. to-dos seguiram, com entusiasmo ou relutância, a estratégia da NAtO, apendicular aos EUA. O re-sultado dessa deriva liberal completa foi o gene-ralizado castigo eleitoral desses governos e, com pequenas intermitências num ou noutro país, a maré conservadora no poder estabeleceu-se por toda a UE.O abandono da social-democracia, dita então já incompatível com a globalização e com a con-corrência fiscal dos mercados, foi premiado com uma travessia no deserto que os anteriores go-vernos PS e PSOE de Portugal e Espanha não apagaram, nem tão pouco o atual governo fran-cês do PSF, ele agora submetido à ideologia da austeridade depois do crisma liberal. O executi-vo dinamarquês, da área PS, também não aquece os deserdados da terceira via. Os PS estão em refluxo no quadro europeu, desfocados na iden-

tidade, castigados pelos eleitorados mais con-servadores como maus gestores e castigados à esquerda como maus socialistas.Os partidos comunistas receberam o opróbrio da tragédia soviética, a desmoralização de uma derrota sistémica de modelo. Nos países em que os comunistas tinham pequenos partidos, em geral fundiram-se com outros agrupamentos de tipo social-democrata ou perderam posição par-lamentares. Em países com forte tradição comu-nista, o processo de resistência foi diferente. Em Itália o grosso do PCI foi formar um partido social-liberal com acolhimento pelos PS euro-peus, abrindo-se uma cisão com a criação da Ri-fondazione sintonizada com a bandeira comunis-ta. Em França o PCF manteve-se inalterado na forma mas com graves dissensões e apagamento, que a passagem pelo governo Jospin só acen-tuou. Em Espanha o PCE submergiu na frente

Os partidos social-democratas e socialistas não saíram da dinâmica neoliberal das privatizações, dos cortes na despesa social, do desmantelamento do Estado-providência.

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Izquierda Unida em autêntico glaciar eleitoral. Deve dizer-se que estes três partidos tinham tido episódios de demarcação face à URSS desde os anos 1960 e eram tratados desdenhosamen-te como “eurocomunistas”, embora neles não se manifestasse nenhuma fórmula comum. O PDS alemão, e em maior escala o PC português e o PC grego, embora assinalando erros passados, decidiram manter a nostalgia soviética. Uns e outros só em anos recentes começaram a recu-perar influência popular, exceção feita aos italia-nos, que depois de terem mais cedo que os outros comunistas do sul europeu adquirido populari-dade renovada com Bertinotti, cometeram suicí-dio ao integrar o segundo governo Prodi e hoje nem sequer têm assento no parlamento.Nesse período, os partidos mais radicais também sofreram metamorfoses. Dependiam de varia-

das inspirações, cubanas, albanesas, vietnamitas. Provinham de abordagens guevaristas, marxis-tas-leninistas, maoístas, trotsquistas, autoges-tionárias. Eram vagamente descendentes dos vários espelhos do Maio de 68.No caso português adquiriram tonalidades mui-to particulares devido à revolução de 1974, onde tiveram um papel real na queda da ditadura fas-cista e na radicalização da crise político-revolu-cionária que se lhe seguiu. todas essas forma-ções tinham em comum a condenação absoluta da URSS, embora com argumentários diferen-tes, o que aliás constituía a base doutrinal do socialismo que cada uma perfilhava. Quase to-dos estes grupos desapareceram, à exceção das secções da 4ª internacional trotsquista muito na órbita da LCR francesa ou de outras correntes trotsquistas. Ficaram em atividade muito poucos

partidos m-l. A generalidade dessas fileiras polí-ticas diluiu-se na social-democracia ou na ecolo-gia. O desabamento soviético caiu brutalmente sobre estes partidos também, por paradoxal que pareça. Convém observar que também nesta transição de século os Verdes, vedetas dos anos 1980, per-deram a cara de pacifistas e esquerdistas não-alinhados e, embora não todos, os partidos ver-des criaram um perfil de ambientalistas liberais capazes de governar com não importa quem, levando o governismo ao expoente máximo. O capitalismo verde é a bandeira destes neocapi-talistas.É neste caldo de variação de elementos geopolí-ticos, económicos, sociais e ideológicos que aqui se fez referência, a um traço muito grosso, que convém abordar a chamada recomposição da

esquerda que se questiona neste espaço. Desde o ano 2000 que se sucederam vários encontros de partidos das “esquerdas anticapitalistas”, sob iniciativa do Bloco de Esquerda, reunindo par-tidos mais radicais. Na reunião de Sevilha de julho de 2001, este grupo tem um considerável alargamento com a presença da Refundação Co-munista italiana, que passará a ser o pivô do pro-cesso de reagrupamento. Em novembro de 2002, em Florença, os comunistas italianos propõem a formação de um partido de esquerda europeu, assumindo-se como sujeito político socialista, fe-minista e ecologista e ator no quadro da União Europeia. Essa fase culmina com o congresso de fundação do Partido da Esquerda Europeia, em maio de 2004, em Roma. Aí se juntaram vários partidos com expressão parlamentar, do oeste e centro, e pequenas formações de leste, com exce-

No caso português (os partidos mais radicais) adquiriram tonalida-des muito particulares devido à revolução de 1974, onde tiveram um papel real na queda da ditadura fascista e na radicalização da crise político-revolucionária que se lhe seguiu.

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ção dos comunistas checos, uma força conside-rável. Excluíram-se deste movimento os comu-nistas portugueses e gregos, embora estando o Bloco de Esquerda e o Synaspismos (hoje prin-cipal corrente do Syriza) grego. No caso parti-cular de Espanha, com a adesão de três partidos de um mesmo conjunto: PCE, Izquierda Unida e Alternativa da Catalunha. Estes desenvolvimentos tiveram sequência nos anos seguintes com a entrada do AKEL de Chi-pre, do PDS alemão, depois o Die Linke com a fusão com a WASG de Oskar Lafontaine, gru-po que tinha cindido dos social-democratas. Ou com a posterior adesão do Parti de Gauche fran-cês, em aliança com os comunistas na Front de Gauche. Em todas as plataformas criadas vemos a participação da Aliança Verde-Vermelha da Di-namarca. Um processo mais institucional, como o do Partido da Esquerda Europeia, não confli-tuou com a existência da Esquerda Verde Nórdi-ca, organização que junta a esquerda escandina-va, demarcada dos vários partidos trabalhistas, ou fóruns mais informais como os que têm sido animados pelo SP da Holanda. A pretensão não é historiar esta convergência heterogénea de for-mações políticas mas tão só dar a imagem da sua amplitude e da paleta de cores envolvida.Está clara a ilação de que na generalidade se abriu um diálogo político sem precedentes no pós-guerra à esquerda da social-democracia, fosse porque desaparecessem os antigos alinha-mentos internacionais, fosse porque a União Europeia arranjasse um “capitalismo comum” a todos, fosse pelo refluxo do movimento dos tra-balhadores que aconselhava a juntar forças para resistir, fos-se pelo desejo genuíno de criar uma “nova esquerda”.Alguns aspetos marcam esta evolução, vistos aqui como al-terações graduais, não simultâ-neas entre partidos, mais inci-sivas ou mais lentas.A questão da forma de partido não é de somenos e muito me-

nos matéria organizativa. É uma questão política e ideológica de primeira grandeza. O abandono do chamado “centralismo democrático” consuma o derradeiro corte com a versão estalinista dos partidos comunistas. Deixando de lado agora a intenção original de Lenine acerca de um parti-do revolucionário sob a ditadura da burguesia, o centralismo democrático, assim dito, tinha sido o instrumento de organização dos partidos no poder e dos próprios estados socialistas, impe-dindo o pluralismo político, a democracia e as li-berdades individuais. A rejeição do monolitismo foi expressa nos estatutos do partido europeu. A ideia de que a esquerda anticapitalista deve ter partidos plurais sem com isso cair no oportunis-mo tornou-se na nova âncora. O direito de ten-dência é hoje norma e prática na generalidade dos partidos com expressão popular. Mais uma vez, comunistas portugueses e gregos não se-guiram este caminho.A rutura com o modelo antidemocrático do pas-sado soviético foi crescente, mais lento naqueles partidos mais a leste. Apesar de uma fase confu-sa, todos os partidos mantiveram, apesar dessa autocrítica, o objetivo de transformação socia-lista.A aceitação de que possam existir vários par-tidos no mesmo país agregados ao partido da esquerda europeia, pode parecer uma questão menor. Do ponto de vista formal assim é. Mas na ótica política é bem relevante da convivência não sectária.Foi no domínio das questões europeias, relativas à UE, que se registaram dificuldades significati-

vas. Em 2004 estava em mar-cha o processo de imposição do tratado Constitucional Euro-peu, que veio a ser chumbado nos referendos francês e ho-landês, e mais tarde reciclado no tratado de Lisboa. Vários partidos tinham ilusões nessa reestruturação federalista. O debate ganhou outra dimen-são: se a atual UE é reformável

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com a sua estrutura e bases de funcionamento. Ficou claro que a oposição na UE era, como fi-cou mais tarde célebre a expressão, de combate ao hardware e não apenas ao software. A uni-ficação da esquerda antitratados demorou cerca de um ano, embora tenha tido dissensões que se arrastaram no tempo, em particular no partido alemão e nos seus eurodeputados. Esta posição comum foi absolutamente decisiva na formula-ção estratégica de toda a linha de esquerda alter-nativa da european left. Ninguém ignora que a oposição à UE tem graus diferentes de naciona-lismo, especialmente forte nos partidos nórdicos.Outra questão complexa tem sido a de política de alianças. Não tanto ao nível europeu, onde no grupo parlamentar europeu, Grupo Unitário das Esquerdas/Esquerda Verde Nórdica, se faz a junção, embora mais técnica que política, dos vários partidos de esquerda e, para além disso, se fazem ensaios de proximidades a outros setores. A nível nacional, aí sim, vários partidos tiveram muitos problemas na definição das relações com os partidos social-democratas. Em alguns casos, isso levou a fortes comoções internas e reorga-nizações. Ao longo dos últimos anos, sem ignorar a re-

alidade de cada quadro concreto em cada país, e bem diferentes entre si, a tendência mais mar-cante foi a de afastamento dos respetivos PS. Assim aconteceu com a Izquierda Unida, o PCF e a Front de Gauche, o Die Linke e o Syriza. A Refundação Comunista, que em 2004 era mui-to mais antagonista dos social-democratas do que qualquer dos partidos citados, que acalen-tavam então a expetativa de virem a estar em companhia governamental com os social-demo-cratas, passou por arte de cambalhota a aliado do Partido Democrático italiano e depois, como já se fez referência, fez hara-kiri. Sob vários títu-los, a generalidade dos partidos abandonou pro-postas de poder aos PS adotando aquilo que tem sido a “literatura” da “revolução cidadã”. Chamo-lhe assim porque não há ainda uma estruturação teórica desse rumo sem uma completa definição da mudança de regime político proposto e os-cilando entre uma constituinte em França e a emergência nacional grega. Curiosamente, o Bloco de Esquerda, que era crí-tico dos partidos que dantes faziam propostas de aliança aos socialistas, recentemente propôs um “governo de esquerda”, sob várias condições, ao PS e outros partidos. Próxima desta posição,

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embora numa situação singular, está a Aliança Verde-Vermelha da Dinamarca, que mantém com o governo de trabalhistas e socialistas po-pulares um acordo de incidência parlamentar, de turbulenta aplicação, diga-se. É claro que nenhu-ma disposição foi adotada por qualquer partido quanto a situações pós-eleitorais, o que deixa um espaço de reserva sobre eventuais coligações de poder. Questão, aliás, sempre assinalada pelo NPA (ex-LCR) de França, que fazia depender a integração em qualquer frente de esquerda da garantia quase eterna que nunca os participan-tes fariam qualquer acordo governativo com o PS, posição que os levou ao isolamento e autoex-clusão das esquerdas europeias. Convém aqui in-dividualizar o caso do Syriza que, como se sabe, desafiou o PASOK a pertencer a um governo an-titroika sob a liderança do próprio Syriza, caso único no espaço europeu de uma relação de for-

ças mais favorável a um partido mais à esquerda. A autonomia dos movimentos sociais, defendi-da pela generalidade dos partidos, é matéria que reacende correntemente debates porquanto as relações entre sindicatos, ONG, escolas popula-res, movimentos ambientalistas, por um lado, e partidos, por outro, são um longo aprendizado, tentando evitar quer a ingerência partidária nos movimentos quer a cruzada do apartidarismo vi-sando afastar os partidos de esquerda das lutas sociais. Muitos dos problemas concretos da ação política provém destas realidades e ocupam mui-to do quotidiano das organizações militantes.O fator programático que mais credibilizou a aproximação entre partidos de esquerda de vários países foi a crescente formulação da ne-cessidade de nacionalizar setores estratégicos da finança, indústria e serviços como medidas

essenciais de uma política de esquerda que der-rote a burguesia conservadora. Outra marca bem distintiva da recomposição tem sido o apoio ao feminismo e aos direitos sexuais, situação im-possível sob a ortodoxia soviética.Esta evolução de convergências não ilude pro-blemas estratégicos de difícil resolução, tanto a nível nacional como internacional, para os quais estamos longe de ter saídas comuns. Refiro-me, por exemplo, à obtenção da unidade das classes trabalhadoras, puzzle político e sindical extre-mamente complicado. Mas podíamos referir a tendência para uma certa continentalização do movimento anticapitalista em detrimento de alianças mais vastas, ou a atitude face aos países ditos socialistas e com a odiosa China à cabeça, entre outros problemas. Contudo, não se pode omitir que estas questões trazem várias disso-nâncias entre partidos europeus.

Pouco a pouco, num processo de mais de vinte anos, o mapa da esquerda europeia mudou com-pletamente. Os partidos socialistas, afetos ao Partido Socialista Europeu, concluíram a sua vi-ragem liberal em claro abandono da sua matriz social-democrata. Afirmam-se como centristas e estão casados com a ortodoxia do modelo priva-tizador, abençoado pela União Europeia. No sen-tido histórico e convencional do termo abriram vaga na esquerda. Com raras, embora importan-tes exceções, não pontuam partidos estalinis-tas. também esvaziou uma vasta e segmentada extrema-esquerda. todavia, ganhou caminho a “outra esquerda” num impulso de classe, de-mocrático e plural. No Partido da Esquerda Europeia, e noutras plataformas próximas, es-tão representados milhões de europeus. Uma representação exigente não só porque obriga a

O fator programático que mais credibilizou a aproximação entre partidos de esquerda de vários países foi a crescente formulação da necessidade de na-cionalizar setores estratégicos da finança, indústria e serviços como medidas essenciais de uma política de esquerda que derrote a burguesia conservadora.

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partilhar a luta de classes mas também porque a confiança eleitoral é muito mais de ordem polí-tica e muito menos por referência de identidade ideológica. todos os partidos tiveram recuos e recuperações em eleições exatamente porque disputam constantemente a sintonia social das suas propostas. Ao que desdenhosamente al-guns chamam eleitores voláteis, deveriam per-ceber a exigência da confiança muitíssimo su-perior ao passado onde os amanhãs cantavam. Daí, o grande apuramento da propaganda e da intervenção parlamentar num diálogo mais di-reto com os cidadãos trabalhadores, bem dife-rente da visão comunicativa do “órgão central”, dito o andaime do partido. Sem deturpar ou negligenciar a relação de forças em cada país e as suas particularidades históricas, podemos confirmar que os momentos de maior conforto popular dos partidos da esquerda europeia são aqueles em que se distanciam simultaneamen-te da ortodoxia do sovietismo sobrevivente, que nada tem a ver com o marxismo atual, e do presente envenenado das proximidades dos partidos social-liberais. Basta ver os gráficos eleitorais e as correspondentes posições políti-

cas. Enfrentamos um desafio carregado de in-cógnitas que tem muito que ver com o período da globalização imperialista que nos submete. Por um lado, o imperialismo ainda mantém as forças populares em resistência generalizada, com processos de recomposição das esquerdas unitárias geralmente lentos e desiguais. Por ou-tro lado, esse refluxo não favorece a existência de atores significativos nas áreas abandonadas pelos PS que pudessem abrir maiorias sociais e políticas com os partidos de esquerda. A direita sugou, através das privatizações e do negócio, parte do setor que se albergava nos social-democratas. Falta a esquerda puxar para o seu lado aqueles que não embarcaram na viagem burguesa. Mesmo na Alemanha, com a figura de Lafontaine, ex-candidato a chanceler pelo SPD, a capacidade de ampliação a essas áreas foi limitada e esse é o desafio que permanece, es-vaziar o centro para dar uma chance à esquerda.Globalmente, a recomposição da esquerda pós Muro de Berlim, superou, e esse é o seu ativo, quer a dogmatização fóssil quer a decomposição sem princípios. Vermelhos outra vez, a começar de novo.

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Em nome da pazA União Europeia (EU) nasceu sob o signo de um contrato: numa mão, o mercado comum; na outra, os Estados providência. Assim surgiu o chamado modelo social europeu. Os primeiros passos foram dados através de um processo de integração económica iniciado no pós-guerra com o plano Marshall e, em 1951, a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Em consequência da II Guerra Mun-dial, a Europa estava de rastos, um território feito tábua rasa. A criação da CECA assentou num pacto aparentemente simples: construir a paz a partir da economia. Hoje sabemos bem que não foi a integração económica o garante da paz e não podemos, obviamente, omitir que por detrás do processo permanecia ainda uma intenção clara de manutenção da ordem no es-

paço europeu, procurando criar condições que impedissem a emergência de revoluções. Seja como for, não foram os tratados de paz o cami-nho escolhido, mas antes a definição de tratados económicos que puseram em comum os bens a partir dos quais se fazia a guerra, neste caso, o carvão e o aço. A generalidade dos intervenien-tes, incluindo a social-democracia, parecia con-cordar que era necessário intervir nos assuntos. E, afinal, de que é que a Europa precisava? Pre-cisava do planeamento das cidades, de escolas, de fábricas, de lares e escolas, fábricas e lojas”, diz Judt em “Pós-Guerra”. Esse planeamento não dispensou a nacionalização dos bancos e dos seguros, dos transportes, dos serviços pú-blicos e das indústrias militares, assim como a mobilização de financiamentos públicos. Sabia-se na altura que a economia seria impulsionada

União Europeia: como se chegou aqui?MARisA MAtiAs

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pelo consumo interno, pela habitação e pelos serviços, o que parece ter sido desaprendido.Em 1957, com a assinatura do tratado de Roma, cria-se formalmente a Comunidade Económica Europeia (CEE), assente num modelo que, grosso modo, funcionou até ao início da década de 1990, quando entrou em vigor o tratado de Maastricht. Durante trinta anos, o desarmamento alfandegário, a livre-concorrência e a integração económica transfronteiriça foram compatíveis com o pleno emprego, a segurança social, a saúde e a educação. A construção europeia nunca primou pelo exercício democrático pleno, mas, apesar de “os de cima” irem beneficiando sempre mais do que “os de baixo”, a verdade é que a maioria foi ganhando. Em certo sentido, é este processo inicial de construção europeia que dá o pano de fundo para alguns combates que, a partir de finais da década de 1960, conjugaram as questões “materiais” com as questões “pós-materiais” e acionaram modalidades de crítica à sociedade de consumo.

As fundações de uma nova eraA partir de Maastricht a construção da União assume novos contornos, alimentada pelo ful-gor neoliberal iniciado por thatcher e Reagan. A UE passou a ser um projecto fundamental-mente assente na construção de um Mercado Único, e isso acabou por limitar o seu alcan-

ce na vida dos cidadãos. A queda do Muro de Berlim e as implicações daí decorrentes tive-ram também um papel significativo na mudan-ça de rumo. O que era uma promessa forte de democracia e o anúncio de um mundo menos perigoso não aconteceu. Os Estados Unidos não tardaram em ocupar o lugar deixado vago pela ex-URSS e a Guerra Fria não deu lugar a um mundo multipolar e mais democrático, mas antes ao império. Pela conquista de mercados, a UE preferiu o alargamento à integração. O alargamento aos países de Leste ditou uma vi-ragem atlantista da Europa. A ex-Jugoslávia desagregou-se, em consequência da nova rela-ção de forças, e a Europa voltou a ter guerra, neste caso uma que não só não quis evitar como promoveu. Aqueles que tinham sido o motor da edificação do mercado comum – as grandes empresas multinacionais e o sistema financei-ro – globalizaram-se. Em consequência, o mer-cado comum passou a ser um entre outros. As multinacionais deslocalizaram-se, o trabalho precarizou-se, o Capital rasgou o contrato que fizera com o trabalho. A UE iniciava, assim, um caminho que seria marcado por acordos mínimos e pela reemergência dos interesses nacionais. Mais tarde, o Euro, antes anunciado como o último sucesso da construção europeia, passou à categoria de colete de forças e o Pacto de Estabilidade assumiu-se como o instrumen-to por excelência da guerra contra a despesa

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social. Dos Estados providência pouco foi res-tando. Na verdade, um a um, todos os factores que estiveram na origem do projecto de cons-trução europeu já tinham sido postos em causa quando o milénio virou. Nessa altura, era já por demais evidente que o crescimento europeu das últimas décadas tinha sido alavancado pelo cré-dito e não pelo rendimento.No actual contexto, é impossível ainda não re-conhecer a actualidade de algumas das escolhas do pós-guerra, sobretudo se tivermos em conta que a capacidade de “pôr em comum” tem vindo paulatinamente a desaparecer. A forma como o projecto europeu foi sendo “arrastado” para uma concepção assente na direita conservadora não é alheia às concessões da social-democracia ao neoliberalismo ao longo dos anos. Mais a Sul, foi mesmo a social-democracia a executar as políticas decididas pelos conservadores do Norte, fechando, paradoxalmente, as condições de resistência às políticas de recessão e de aus-teridade.Parece mais do que evidente que a recessão de hoje tem raízes fortes nas escolhas feitas na dé-

cada de 1990. A crise que teve início em 2008 só veio reforçar as condições para um novo ‘capítulo’ no processo de construção europeia. Por todas as razões, a crise poderia ter sido a oportunidade para construir um novo Contra-to Social, mas não é isso que está a acontecer. A crise foi antes usada como a oportunidade para reposicionar a União no sistema de com-petitividade global, tendo juntado nessa tarefa as duas forças políticas dominantes – a ideolo-gia neoliberal, com peso mais recente, com a social-democracia e a democracia cristã, com raízes mais consolidadas. O verdadeiro ataque

ao Estado Social saiu reforçado da crise. O edi-fício europeu foi tomado de assalto e percebeu-se que não se encontrava preparado, inundado que estava de contradições e de fragilidades. A partir daí desencadeou-se um conjunto de po-líticas que, apesar de não fazerem sentido aos olhos da generalidade do povo, tocam no cerne da racionalidade da burguesia europeia. A in-tenção é simples: restaurar os lucros do sistema financeiro.

A ascensão da “Europa alemã”Se o contexto de crise tornou evidente que entrámos num novo capítulo da construção europeia, há, contudo, um traço que é comum desde a fundação: sempre existiu uma tensão não dissimulada entre os que vêem a constru-ção europeia como estrada para uma nova co-munidade supranacional – os “Estados Unidos da Europa” - e aqueles que entendem a “Euro-pa” como uma união de nações dirigidas pelos respectivos governos. As próprias instituições europeias, consagradas nos tratados, reflectem esta ambiguidade. No papel, a UE soma com-

petências comunitárias – na política monetária, no ambiente ou na investigação – com políticas comuns – na agricultura, no comércio ou nos transportes – e ainda com políticas decididas em sede de cooperação intergovernamental e de soberania nacional. No início deste século, com o tratado de Nice, os inter-governamen-tais pareciam ter vencido, ao consagrarem uma ordem jurídica que concentrava o essencial do poder de decisão num “directório” de governos que dispunham da maioria dos votos. Mas a Conferencia Inter-Governamental que tomou esta decisão convocou também uma Convenção

A crise foi antes usada como a oportunidade para reposicionar a União no sistema de competitividade global, tendo juntado nessa tarefa as duas forças políticas dominantes

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que viria a propor um tratado Constitucional europeu onde se reforçavam igualmente po-deres de natureza mais “fede-ral”. O tratado Constitucio-nal foi, na verdade, a primeira grande derrota da eurocracia no ‘choque’ entre as institui-ções e o ‘governo’ UE com a democracia. O chumbo do tratado em referendos nacio-nais (França, Irlanda e Holan-da) não era sequer uma opção e confirmou-se. A partir daí houve uma alteração de fundo no comportamento de quem comanda os destinos da União. Deixou-se de confiar no povo. A política passou a estar ainda mais arredada do escrutínio popular e multipli-caram-se as entidades, organismos, corpos, etc., que funcionam por ‘vias travessas’. Já sabemos que os tratados são sempre a pas-sagem ao papel de uma relação de forças con-traditórias, mas são também os tratados que determinam ‘quem está a ganhar’ em cada mo-mento. O tratado de Lisboa é, como não podia deixar de ser, um poço de contradições, mas é lá que estão as regras do orçamento (que é o ins-trumento que melhor define os limites da Euro-pa que temos), os estatutos de independência e de autonomia do BCE (a cadeira mais poderosa da União), o princípio da “concorrência livre e não falseada” (o primeiro, diga-se de passagem, a ser abandonado com a crise), uma Europa que se subordina militarmente à NAtO. Dito tudo isto, confirmou-se o que já sabíamos: o novo sistema de poder imposto pelo tratado de Lis-boa dependeria menos do próprio tratado do que das relações de força entre governos. Em consequência, o “pós-crise” é marcado pela con-firmação de uma “Europa alemã”. A Alemanha, o motor tradicional da Europa, que passou a encabeçar o Directório, era já, em resultado da crise, uma Alemanha isolacionista. O resulta-

do foi que as medidas comuns passaram a ser acertadas Es-tado a Estado.Sabemos que crise ‘decretou’ um debate sobre o neolibe-ralismo exactamente no mo-mento em que parecia ter-se chegado à realização do sonho neoliberal. Parece contraditó-rio, mas só parcialmente. Com efeito, a crise mostrou que as políticas de austeridade não eram inevitáveis (quando foi preciso, o dinheiro apareceu), que a ideia de que o mercado é sempre o melhor remédio para os males do mercado ruiu, que os sistemas de regulação e de supervisão ditos independen-

tes não garantiam a transparência e não im-pediam a formação de ‘bolhas’. Há ainda uma questão que fica sempre por responder: por que razão devem ser os mercados financeiros trata-dos de maneira diferente dos restantes? Nessa questão também outro fundamento do neoli-beralismo saiu abalado. Refiro-me à ideologia do “Estado mínimo”. No rescaldo imediato da crise, o que assistimos foi a uma intervenção máxima para salvar o sector financeiro. Os Es-tados isoladamente ou no contexto da União assumiram-se como a bóia de salvação ao seu serviço. No conjunto, decretar o fim da ideologia é pre-maturo e errado. Os seus fundamentos foram postos em causa, mas continua a ser neoliberal o motor de pensamento dos vários “programas de ajustamento” que têm vindo a ser postos em prática, chamem-se eles “planos de resga-te”, “pacto de estabilidade e crescimento” ou “reformas estruturais”. trata-se, em suma, de uma evolução que é percebida como neoliberal e que representa para a maioria um pacto com a austeridade. A injustiça social passou a ser parte integrante das políticas europeias e estas, mesmo que sejam apresentadas como a única

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via possível, têm mostrado que são totalmen-te desadequadas para retirar a Europa da crise. Aos poucos, ideologia da direita alemã foi assim ganhando terreno, acabando por constituir-se como a grande base ideológica da União. Mais do que neoliberal ela é ordo-liberal – libera-lismo com ordem – e é conservadora. É esta a base que é posta em prática nos regulamentos e nas directivas que condicionam as nossas vidas quotidianamente. A finalidade é simples: ins-taurar um quadro institucional e jurídico que permita ao mercado funcionar ao mesmo tem-po que se atacam os orçamentos nacionais e os salários e as pensões. A crise tornou evidentes as lacunas do modelo institucional e elas acaba-riam por ser cobertas por uma “lei não escrita”: o mais forte manda. Hoje não é Bruxelas que instrui, é Berlim que comanda.

Pagadores de dívidasO que tem estado no centro da política europeia nos últimos anos poderia ser facilmente resu-mido num título que li há algum tempo no Le Monde Diplomatique: “Pobres, o vosso dinheiro interessa-lhes”. A economia da especulação pa-rasitou a economia da produção e as elevadas taxas de acumulação e de lucro ao longo das últimas décadas revelaram-se uma imensa frac-tura exposta entre o casino e a economia real. A financiarização da economia transformou-se numa demência, mas nada disto teria aconteci-

do se não fosse a cumplicidade dos governan-tes e a conivência subserviente das instituições europeias, que se converteram numa espécie de bombeiros pirómanos. A verdade é que nenhu-ma das medidas adoptadas até agora impede o surgimento de novas crises.Entre as últimas “inovações” europeias encon-tra-se o famoso “six pack” relativo à coordena-ção económica. Em teoria, destina-se a fixar o ritmo de redução dos défices e da dívida públi-ca. Na prática, ignora os problemas estruturais europeus – a divergência entre economias in-tegradas e economias periféricas e o endivida-mento externo no contexto do Euro –, assim como os problemas imediatos – a austeridade e a recessão. O défice e a dívida pública são refor-çados como o alfa e o ómega de um modelo de coordenação económica assente numa lógica de intrusão punitiva sobre as opções económicas e orçamentais dos Estados Membros. Nunca se explica, contudo, por que razão nos inquéritos e nos discursos oficiais o desemprego aparece como a principal preocupação e a inovação e formação como a principal receita para a com-petitividade, mas nenhum desses indicadores aparece ao lado do défice e da dívida como me-didas do desequilíbrio que justificam resgates e intervenções urgentes?O objectivo principal do “six pack” é “disciplinar” o Sul, porque este é o pecador. Por causa desta narrativa, a Europa entrou em estado de

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negação desde 2010. Durante mais de um ano a crise grega era da estrita responsabilidade dos gregos e o mesmo se pode dizer em relação às restantes. Foi desta lógica que nasceram as troikas e os “programas de resgate”, planos financeiros que garantem o reembolso dos credores, afundando os países que se encontram na recessão e no desemprego, impedindo hoje qualquer solução solidária no espaço europeu. Sem horizonte de crescimento, os governos podem reduzir o défice cortando e cortando na despesa, mas não conseguirão diminuir a dívida, que só pode crescer. Não há Europa que resista a uma era de divergência estrutural entre centro e periferias, onde a competitividade de uns se financia nos excedentes comerciais garantidos por um Euro sobrevalorizado face ao dólar e a competitividade de outros só pode ser obtida pela compressão dos salários e o dumping fiscal e a destruição do Estado social. Mas o pacote disciplinador não era suficiente e, no final de 2011, a Alemanha exigiu mexer

nos tratados. Queria duas coisas: uma “regra de ouro” e um novo défice, o estrutural, fixado em 0,5%. O Reino Unido recusou e parte dos restantes decidiram fazer um novo tratado com as exigências de Berlim. trata-se de um tratado menos do que europeu e que incide sobre matérias da legislação europeia. Junta-se ao PEC, ao Pacto Europlus, aos tratados em vigor. Uma confusão. Um sistema institucional em replicativo de si próprio num território já de si difícil de gerir, onde a tensão entre UE e Zona Euro se torna cada vez mais evidente. Da mesma assentada, procurou-se ainda proibir constitucionalmente o socialismo e o keynesianismo e reduziu-se o controlo democrático ao osso. Com os planos todos postos em prática, aos Parlamentos nacionais

pouco mais restará do que colocar o carimbo nas decisões emanadas de Bruxelas.

Para além da Europa dos dogmasA União Europeia encontra-se, por culpa pró-pria, refém de dois dogmas oficiais: há a Europa dos que trabalham e a Europa dos que pregui-çam; a generalidade dos povos do sul viveu aci-ma das possibilidades. Escusado será dizer que estas são histórias mal contadas, mesmo quan-do contêm elementos de verdade. Da lei não escrita que dominou durante décadas – baixos salários e pensões compensados com recurso ao crédito barato e fácil de obter – passou-se a uma política explícita de empobrecimento. Os salários e as pensões são para cortar ainda mais e faz-se um garrote ao crédito às famílias e às empresas onde ele era mais necessário.Esta política que hoje domina a agenda euro-peia começou pela Grécia, com um resgate que nem alemães nem o BCE queriam. Desde en-tão, todas as previsões falharam. Uma moeda

disfuncional, hiper-valorizada face ao dólar, a deterioração da balança comercial europeia, a ausência de controlo democrático, a redução da esfera nacional de decisão a um simples palco de execução das ‘regras de Bruxelas’. A reces-são e o desemprego, os verdadeiros problemas, passaram a ser vistos como danos colaterais que não medem o fracasso. Mas já passaram mais de três anos da inauguração do modelo dos resgates e a Grécia não regressou aos mer-cados. Portugal não vai regressar aos merca-dos tão cedo, a não ser com um preço a pagar que se traduz em décadas de recuo. Mas, afinal, havia alternativa para o financiamento? Hoje sabe-se que sim. O que o BCE fez para Espa-nha e para Itália foi o que não quis fazer para Portugal. Não há dinheiro? Nenhuma imagem

Da lei não escrita que dominou durante décadas – baixos salários e pensões compensados com recurso ao crédito barato e fácil de obter – passou-se a uma política explícita de empobrecimento.

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é mais forte do que o fornecimento de liquidez ilimitada à banca contra os garrotes impostos aos países de “soberania limitada”. Para além da ‘disciplina’ e do ‘ajustamento’ por via dos sa-lários e das pensões, há ainda uma parte do re-ceituário que parece não mudar: tudo a depende das exportações. É possível? Portugal exporta para Espanha e para a UE. O mesmo se passa com os restantes. O mercado interno encontra-se asfixiado pela ausência de poder de compra e por um nível de desemprego que não pára de aumentar. Mas não se responde a uma pergunta evidente: quando todos fazem o mesmo, todos podem ganhar? A resposta, como não podia deixar de ser, é não. Como nem todos podem ganhar, há que ser melhor do que o parceiro. As armas dos alemães para a “competitividade” continuam a alicerçar-se numa moeda forte e na disciplina do Sul. A arma dos pobres do euro não é outra senão a “desvalorização interna”. Existem alternativas? Numa Europa solidária existiriam: aumento de salários na Alemanha fariam respirar os portugueses e não só. A reposição dos salários e das pensões, a par de uma política para o crédito como bem público, a retirada das dívidas soberanas do jogo da es-peculação, o reforço do orçamento comunitário, entre muitas outras medidas não só possíveis como viáveis.A Europa dos dogmas é a mesma da promessa rasgada. Para os mais fracos resta a divergência no desemprego, nos salários e, agora também, no nível de vida. É a Europa onde a regulação

financeira nunca chegou a sair do papel. Por-tugal não precisaria de ter sido resgatado se a Europa tivesse posto os especuladores em sentido; se a Europa tivesse tido a coragem de criar eurobonds; se tivesse desvalorizado o euro; se tivesse um Orçamento europeu que se visse e recusasse a competição fiscal; se aos resgates tivesse havido a alternativa da reestruturação das dívidas, de preferência com solidariedade europeia; se houvesse democracia a sério, que, já sabemos por experiência, a estratégia do “bom aluno” revelou-se suicidária; enfim, se co-locasse, não a austeridade, mas o emprego no centro da política.A esta Europa dos dogmas não lhe resta outro caminho senão o da refundação. Há que iden-tificar as alianças e as rupturas numa Europa que está em crise, que permita alterar as rela-ções de forças e reforce a democracia. A Europa cuja força propulsora foi mercado interno fez-se autoritária e impositiva para dentro e frágil para fora. Foi essa Europa que abriu caminho à oportunidade neoliberal: repor a Europa na competição global, implica empobrecê-la, ou não será competitiva. Se continuarmos debaixo do paradigma da competitividade – e uma vez que não se conseguem aumentar os salários na Ásia – o caminho continuará a ser este. É por isso que a mudança de paradigma é a questão central: passar do paradigma da competitivida-de ao paradigma da solidariedade e da coope-ração.

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Há uma parte da esquerda que nunca duvidou da matriz profundamente neoliberal do projeto europeu. A sua aceitação pela social democracia foi caracterizada por alguns como uma rendi-ção histórica, que abriu caminho à atual ofen-siva neoconservadora1. Hoje não restam dúvi-das sobre a natureza desta Europa, uma união económica e monetária integrada segundo os interesses do capital financeiro, com profundas falhas democráticas e sem verdadeiras preten-sões de solidariedade e convergência naquilo que é mais importante: salários e Estado social. Perante a crise financeira mundial, a União Mo-netária colapsou, fruto das suas contradições. A braços com a sua própria criação defeituosa, a Europa não tem “terceira via”, nem outra res-posta que não a austeridade e o empobrecimen-to. Na esquerda, a definição do rumo a seguir nunca pareceu tão labiríntica. A hegemonia do capital financeiro e o aparente processo de es-vaziamento dos espaços nacionais de decisão li-mitam a margem para propostas. À medida que

a situação social e económica se agrava, e com ela a angústia de não ter soluções fáceis e ime-diatas, a saída do euro apresenta-se como uma possibilidade a considerar. Quem o faz, apoia-se em dois argumentos fundamentais: i) a Euro-pa não é um terreno favorável a estratégias de esquerda; e, portanto ii) apenas a saída do euro e o retorno ao espaço nacional podem criar as condições para pôr em prática tais estratégias. Os contornos gerais desta posição são conheci-dos: sair do euro iria permitir ao país recuperar o poder sobre a política monetária e cambial. A desvalorização da moeda teria um efeito po-sitivo sobre a competitividade das exportações portuguesas e um resultado desastroso para as contas dos bancos. Para evitar o colapso do sis-tema, o governo teria de nacionalizar a banca, controlar os capitais financeiros e cancelar ou reestruturar a maior parte da dívida ao exte-rior. O processo seria doloroso mas rápido2. O objetivo deste artigo não é discutir os efeitos económicos de uma putativa saída do euro. O

1 - ROSAS, Fernando(2012). “Uma mudança de paradigma”, Vírus, n.º 1, pp. 10-16.

2 - O número necessário de anos ainda é motivo de discussão. Discordo de quem apresenta este período de ajustamento como um pequeno “momento” de um ou dois anos, ao fim dos quais estaríamos a crescer e em condições de recuperar o nível de vida dos trabalhadores.

Afinal a culpa é da Alemanha?MARiAnA MoRtÁGuA

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que se propõe é dar um passo atrás e questionar alguns dos pilares daquela que é, à esquerda, a análise mais comum sobre a UE, o euro e a crise. Espera-se que este exercício possa con-tribuir para a discussão sobre os rumos estraté-gicos de uma esquerda que procura alternativas concretas, mas que não abdica do seu projeto transformador. Combater a austeridade deve ser a prioridade absoluta, mas não é sinónimo, nem tão pouco esgota, o campo da luta antica-pitalista. À ideia do euro enquanto produto de uma es-tratégia de exploração da periferia europeia pelo seu centro, baseada nas teorias centro-pe-riferia do pós-guerra, é contraposta uma outra,

que coloca o processo de integração europeia como o resultado dos interesses (nem sempre coincidentes) das diferentes burguesias nacio-nais. Ao rejeitar as noções de dependência, esta interpretação tem a virtude de colocar no cen-tro do debate as estratégias nacionais de acu-mulação, as suas formas de organização interna e de articulação com o capitalismo global, e de valorizar o papel dos Estados nacionais, não enquanto sujeitos portadores de uma identi-dade autónoma relativamente ao capital4, mas como condensadores políticos das relações de dominação de classe. Por outro lado, a visão da crise enquanto o re-sultado de desequilíbrios comerciais causados unicamente pela ação das estratégias neomer-cantilistas dos Estado poderosos da Europa é criticada por se manter ancorada a uma (versão de) “análise real”5, que remete para segundo plano o caráter monetário das economias ca-

pitalistas. O que se propõe é uma inversão da causalidade implícita nesta interpretação, o que implica considerar os desequilíbrios de comér-cio como uma das consequências do processo de integração financeira e das suas consequên-cias e não como a sua causa.Recolocar o debate da crise do euro ao nível das realidades nacionais, sem nunca perder de vista o seu caráter externo, impõe ainda repensar os espaços de disputa de relação de forças e as es-tratégias de mudança. O euro, em si, é o produ-to de uma estratégia mais vasta de articulação europeia das relações de dominação nacionais. O seu fim, por si só, não garante qualquer alte-ração na relação de forças existente.

Por outro lado, é importante relembrar que uma estratégia assente na saída do euro com vista a uma desvalorização nominal e aumento das exportações, por si só, não significa qual-quer rompimento com o paradigma da “com-petitividade” e com o modo de produção e consumo capitalistas que criticamos. trata-se da reprodução do mesmo modelo a uma escala menor. Por último, é argumentado que uma proposta que “desiste da Europa” é também uma propos-ta que parte do pressuposto que o paradigma tINA6 não se aplica a nível nacional, mas é ab-solutamente válido a nível europeu. O paradig-ma não é rejeitado, apenas deslocado para um outro nível.

Uma questão de dominação centro-periferia?Há uma parte das análises heterodoxas que coloca a crise do euro sobretudo enquanto um

3 - Seja esta de submissão e dependência ou qualquer outra.4 - SCHUMPEtER, J. A. (1954). History of economic analysis . Nova Iorque: Oxford University Press.5 - there Is No Alternative (tINA) ou Não Há Alternativa.

Combater a austeridade deve ser a prioridade absoluta, mas não é sinónimo, nem tão pouco esgota, o campo da luta anticapitalista.

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problema de dominação e exploração centro-periferia, e que remete para segundo plano as formações sociais específicas (nacionais). As economias da periferia sofrem um processo de homogeneização analítica, na medida em que são encaradas como “vítimas comuns” das es-tratégias de expansão e acumulação por parte dos poderosos Estados do centro. O euro é apresentado enquanto mecanismo desta exploração, que permitiu às economias do centro melhorar a sua posição competitiva ex-terna à custa de taxas de inflação mais reduzi-das e, portanto, de menores salários nominais6. O consequente aumento da capacidade expor-tadora do centro afetou negativamente as ex-portações da periferia, degradando a sua capa-cidade produtiva. Os desequilíbrios comerciais surgem como uma consequência direta deste processo. Os excedentes a que deram origem foram depois reciclados sob a forma de crédito para as periferias, agravando a sua relação de dependência.Sem dúvida que esta interpretação tem vários elementos de verdade, mas apresenta também algumas inconsistências. A principal, como foi já mencionado, prende-se com a sua inspiração nas tradições marxistas de dependência e do capitalismo global do pós-guerra, baseadas na conceção de capital en-

quanto entidade autónoma, portadora de uma tendência constante para a auto-expansão para além das fronteiras geográficas politicamente determinadas. «O que está implícito [nestas teorias] (...) é uma relação dialética de não-correspondência entre o Estado e o capital in-dividual»7 que pode, de acordo com diferentes abordagens teóricas, assumir diferentes formas, sejam elas de instrumentalização, dominação ou colaboração. De acordo com Milios e Sotipoulos8, as dife-rentes interpretações da dialética de não-cor-respondência presentes nas várias abordagens teóricas ao imperialismo/globalização impli-cam logicamente a rejeição do conceito de ca-pital social, ou seja, a noção do funcionamento do sistema de produção capitalista enquanto um conjunto complexo de relações de causali-dade que resultam das formas de organização e regulação dos diferentes capitais individuais, determinados pelo processo de competição. É exatamente a competição o fator determinan-te no estabelecimento das dinâmicas do capital enquanto relação social em cada contexto es-pecífico. São elas que condicionam o funciona-mento e a ação do capital individual. Este processo de organização do capital en-quanto relação social não pode ter lugar sem uma forma de poder político capaz de organi-

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6 - A compressão dos salários reais também é reconhecida nestas abordagens. 7 - MILIOS, J. e SOtIROPOULOS, D. (2009). Rethinking Imperialism: a study of capitalist rule. Hampshire: Palgrave Macmillan. 8 - Idem.

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zar a burguesia enquanto clas-se dominante e de estruturar o sistema de produção. Logo, Estado e Capital não podem ser analisados enquanto enti-dades externas e independen-tes: «Desta forma, o Estado não é detentor do seu próprio poder, que exerce de forma autónoma ou sob a tutelagem externa da burguesia (capital social). O Estado expressa as dinâmicas cristalizadas do poder de classe e da luta de classes, tal como se desenvolvem dentro de uma formação social»—. O Estado representa o interesse comum de uma sociedade capitalista, de uma formação so-cial específica - fruto das correlações políticas e de classe à escala nacional - que ocupa um lugar particular na cadeia imperialista global. O lugar de cada formação capitalista na cadeia global, assim como o espaço para exercer o seu poder imperialista, são determinados pelos processos internos de (co)relação de forças entre classes que, por sua vez, são sobredeterminados pela conjuntura internacional. Sem dúvida que a estrutura da cadeia impe-rialista é o terreno de conflitos e contradições entre estratégias nacionais, e com certeza que estas refletem também relações desiguais de poder. Os diversos elos da cadeia partilham (e contribuem), no entanto, para um interesse comum, que se prende com a reprodução dos sistemas de produção e dominação capitalistas. O processo de internacionalização do capital, efetuado em grande medida pela exposição dos diferentes capitais sociais à “livre” competição externa, assume um papel central nesta estra-tégia. A conceção das relações de poder internacio-

nal enquanto resultado de um processo complexo de articu-lação entre os diversos elos da cadeia não implica, por si só, a negação da existência de su-perpotências ou de poderosas organizações internacionais9. O argumento central, e que de alguma forma confere es-pecificidade à teoria da cadeia imperialista global, é o de que, enquanto procuram defender

os interesses específicos do seu capital social, a ação destas superpotências é crucial para a re-produção da hegemonia da ordem capitalista: «O único império autêntico é a cadeia imperia-lista no seu conjunto»10.Se partirmos da perspetiva acima exposta, a união monetária europeia é a materialização do projeto de longo prazo do capitalismo europeu. O Euro não é o objetivo último ou único, apenas a consequência lógica da estratégia dos vários capitais sociais nacionais, baseada na organiza-ção do poder burguês por via da exposição à competição internacional. A unificação das diferentes moedas é o regime que melhor garante a eliminação dos riscos cambiais em contexto de liberalização financei-ra e, como tal, que melhor garante a estraté-gia de internacionalização. Em primeiro lugar porque limita o campo para políticas cambiais protecionistas, ficando (em contexto de com-petição) parte desde ajustamento a cargo da compressão dos salários e direitos laborais. Em segundo porque elimina o risco de alterações nas taxas de câmbio11. Importa no entanto destacar que, embora a perda do controlo estritamente nacional sobre políticas de ordem monetária e cambial seja inerente ao processo de unificação monetária,

9 - Aparentemente “descoladas” e desenraizadas dos poderes nacionais, mas que na realidade são o resultado da articulação dos diferentes capitais sociais na cadeia imperialista global.10 - Idem, p. 199.11 - E fá-lo de forma eficaz, uma vez que elimina qualquer possibilidade de especulação cambial, responsável pelo insucesso de várias regimes de câmbios fixos, como aquele que antecedeu o euro.

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as restantes restrições não o são. Limites orça-mentais e pressões liberalizadoras a nível na-cional, obsessão inflacionista e sadismo fiscal a nível europeu não são condições “naturais” as-sociadas ao processo de integração monetária. São fruto de um edifício institucional, social-mente determinado, desenhado para favorecer as estratégias de integração e estabilização fi-nanceira. São fruto da mesma filosofia que sus-tenta todas as reformas governamentais da era do neoliberalismo. Referimo-nos aqui ao processo de esvaziamen-to dos espaços democráticos de decisão econó-mica, que vão sendo sucessivamente substitu-ídos por conjuntos de regras e contratos cuja implementação deve ser garantida por técnicos, precisamente pelo seu perfil de “imparcialida-de” relativamente às exigências populares. A globalização e exposição à competição inter-nacional foram pontos-chave nesta estratégia: «A forma como a influência da soberania po-

pular foi restringida/limitada não aconteceu de forma indiscriminada. (...) De uma forma ou de outra, todas [as alterações às formas de gover-nação] estão relacionadas com tarefas que uma nação deve desempenhar se quiser sobreviver e prosperar numa economia globalizada. Uma nação que não é capaz de manter a disciplina nas suas polÍticas fiscais e monetárias perderá a confiança dos mercados financeiros globais (...)».12

É sobretudo a sua estruturação dentro da ló-gica da disciplina13, e não as suas características “naturais”, que permite ao euro cumprir o seu desígnio enquanto mecanismo de exploração das classes capitalistas europeias.

Diferentes estratégias de acumulação na origem dos desequilíbriosO processo de integração monetária e econó-mica europeia teve diferentes impactos em di-ferentes países. Mas em todos eles – incluindo na periferia - foi responsável pela criação de condições favoráveis à valorização e acumula-ção do capital. Em todos os países o processo de integração cumpriu o propósito de compressão da classe trabalhadora e eliminação dos capitais individuais não competitivos14, forjando formas específicas de constituição e organização do ca-pital social.Um olhar, ainda que superficial, sobre algumas variáveis macroeconómicas permite formular

duas pistas para debate. A primeira é que a ex-posição à competição internacional permitiu aos países da periferia, às suas classes capita-listas, aumentar a riqueza e a acumulação. A segunda é que este processo ocorreu de formas muito distintas em cada uma destas economias.No geral, a estratégia de exposição à compe-tição internacional permitiu aos países perifé-ricos ter aumentos relativamente mais signifi-cativos no seu PIB real, baseados em maiores

De uma forma ou de outra, todas [as alterações às formas de governação] estão relacionadas com tarefas que uma nação deve desempenhar se quiser sobreviver e prosperar numa economia globalizada.

12 - ROBERtS, A. (2010). The Logic of Discipline: global capitalismo and the architecture of government. Nova Iorque: Oxford University Press, p. 12. 13 - Idem14 - Para além da criação de condições favoráveis ao capital aos níveis fiscal e regulatóriode câmbios fixos, como aquele que antecedeu o euro.

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níveis de investimento e consumo. Boas perspe-tivas de crescimento e elevadas taxas de renta-bilidade do capital nestas economias, agora com menores níveis de risco, foram essenciais para a atração de capitais estrangeiros e para a cria-ção de saldos positivos da balança financeira15. A entrada de capitais, por seu turno, favoreceu novos aumentos das taxas de lucro. Por outro lado, a progressiva redução das ta-xas de juro, quando combinada com taxas de inflação relativamente mais elevadas, teve como resultado uma diminuição da taxa de juro real e um aumento do endividamento.A articulação destes dois fatores contribuiu para o sobreaquecimento das economias perifé-ricas e consequente aumento da procura inter-na (e das pressões inflacionistas). Este “aqueci-

mento” das economias nacionais resultou, antes de mais, num aumento das importações, mas também na desaceleração das exportações16.Esta análise, não sendo substancialmente ori-ginal na identificação de algumas das variáveis cruciais para compreender o fenómeno da crise europeia, distancia-se das restantes em vários pontos. Em primeiro lugar porque rejeita a existência de uma relação causal unívoca e unidirecional entre os desequilíbrios comerciais e financei-ros. Pelo contrário, sugere que, numa Europa altamente financeirizada e com total liberdade de circulação de capitais, os fatores monetários podem ter um papel autónomo e ser criadores de problemas “reais”. Em segundo porque no contexto de uma união

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15 - Um saldo positivo da balança financeira corresponde a uma entrada de capitais, ou seja, quer dizer que um país “importa” capital do exterior. 16 - Uma vez que maiores taxas de inflação (logo dos custos de produção) penalizam a “competitividade” dos setores exportadores.

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monetária, as restrições ao défice da balança corrente não se colocam da mesma forma e, em teoria, não poderiam conduzir a uma crise de balança de pagamentos típica17. Em terceiro porque vê o processo de integra-ção europeia como uma estratégia de longo prazo, de que o euro é uma peça chave mas não a única ou a principal.Em quarto porque expõe o caráter redutor das análises que resumem as razões da crise euro-peia aos défices comerciais na periferia, causa-dos pela perda de competitividade decorrente da introdução da moeda única. No caso da Ir-landa, é óbvio que esse nunca foi o problema. Mas mesmo nos casos – aparentemente seme-lhantes – da Grécia e de Portugal encontramos situações muito distintas, que merecem consi-deração.Não havendo espaço para o aprofundamento

desta reflexão, notar apenas que, enquanto na Grécia o “aquecimento” da economia se deu com a entrada no euro, em Portugal este parece ter acontecido no período anterior. Enquanto que na Grécia o aumento do endividamento privado se deu em paralelo com um boom de in-vestimento e consumo18, em Portugal o aumen-to brutal da dívida privada dá-se em período de relativa estagnação, sem que tivesse alimentado uma bolha imobiliária como em outros países. De destacar a taxa negativa de investimento,

que, por ser única na Europa, não será com certeza o efeito inevitável da entrada no euro, mas o resultado da sua interação com as formas específicas de organização do capital social em Portugal. De notar, por fim, que o fraco desempenho português em termos de investimento e cres-cimento a partir da entrada no euro não impli-ca a inexistência de acumulação e, sobretudo, de um processo de profunda restruturação das formas de organização económica, claramente em favor do capital nacional. Precarização das relações laborais, liberalização económica e fi-nanceira, privatizações, redução da carga fiscal e até mesmo o aumento da taxa estrutural de desemprego fazem parte do processo de enge-nharia social da era neoliberal, posto em prática com o processo de integração europeia. Para as classes trabalhadoras, o endividamento foi uma

das formas de mitigar as perdas decorrentes deste processo. A União Económica e Monetária europeia enfrenta agora o resultado das suas próprias contradições: o impacto dos fluxos financeiros no contexto de integração deu origem aos de-sequilíbrios que estão na origem da crise. Mas são também estes desequilíbrios, em parte con-sequência do endividamento privado, que ga-rantiram a sobrevivência do espaço monetário único até à data.

17 - Esta discussão é complexa e demasiado extensa para poder ser desenvolvida neste contexto, mas o argumento principal prende-se com o facto de Portugal conseguir importar em euros, a sua própria moeda, sem ter necessidade de recorrer a reservas de moeda estrangeira. 18 - Sendo verdade que parte deste investimento foi direcionado para o sector imobiliário, a Grécia apresenta percentagens elevadas de in-vestimento em atividades transacionáveis. 19 - Minsky, H. (1986). Stabilizing an unstable economy. New Haven; Londres: Yale University Press.20 - Apenas 6.4% do aumento das exportações alemãs entre 1999-2007 foi dirigido para a periferia da Europa.21 - tal como proposto por Stockhammer.

A União Económica e Monetária europeia enfrenta agora o resultado das suas próprias contradições: o impacto dos fluxos financeiros no contexto de integração deu origem aos desequilíbrios que estão na origem da crise.

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A aparente estabilidade do modelo simbiótico de funcionamento da UE e da UME deu origem uma realidade frágil19 que não se pode nem se deve resumir a desequilíbrios comerciais causa-dos pela estratégia alemã de beggar thy neighbour. Sendo verdade que este processo agravou e per-petuou diferentes condições competitivas, não o é que a Alemanha tenha aumentado as suas exportações à custa do aumento das importa-ções dos países periféricos20. É também por este motivo que, embora correta, a estratégia de aumentos salariais na Alemanha21 não bastaria para resolver todos os problemas do euro ou da Europa. O euro não é uma construção para promover unicamente os interesses de uma Alemanha imperialista, mas uma forma de organização do poder em benefício dos vários capitais sociais nacionais. É óbvio que este processo não está isento de contradições e relações de poder desi-guais dentro da cadeia imperialista, mas colocar o foco da crise no euro e na Alemanha pode con-duzir a uma desvalorização equivocada da na-tureza hegemónica capitalismo neoliberal, bem como das relações de classe nacionais. E ambos estes aspetos são cruciais na construção de es-tratégias alternativas à esquerda.

Europeísmo para a esquerdaA defesa de uma posição europeísta não ignora o papel do euro enquanto instrumento de or-

ganização e acumulação capitalista na Europa. Nem tão pouco se perde em ilusões sobre uma viragem repentina dos poderes europeus. Mas isso não deve ser equivalente a assumir que as instituições europeias são edifícios imutáveis, impermeáveis às alterações nas relações de for-ças ou que o espaço europeu, como o nacional, não é arena de disputa. É óbvio que para os partidos de esquerda na Europa esta disputa se trava sobretudo a nível nacional: ela depende de uma noção partilhada das injustiças, dos efeitos da austeridade, mas também de um espaço comum, estruturado por características culturais e institucionais, pelas relações de produção, etc. Mas o reconhecimen-to e delimitação deste espaço nacional de luta não impede uma estratégia europeísta, muito pelo contrário. Facilmente se compreende que esta não é in-compatível com a centralidade das variáveis que, à escala nacional, são capazes de criar con-vergências e frentes de resistência e alternativa: o desemprego, a troika, a austeridade e a dívida. Em contrapartida, não é compreensível que um governo de esquerda, capaz de alterar a relação de forças a nível nacional, desista de um con-fronto europeu. Que não restem dúvidas: fazê-lo com seriedade implica assumir a possibilidade de uma saída unilateral do euro. Mas passar a esta opção abdicando da disputa significa, em primeiro lugar, assumir que fora do espartilho

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do euro a cadeia imperialista global não se faz sentir e a lógica da disciplina não se aplica; em segundo, subestimar os efeitos de um default nos interesses capitalistas da zona euro, e de todo o poder negocial que isso oferece; e, por último, desconsiderar os efeitos deste confron-to nas relações políticas nacionais e à escala eu-ropeia, bem como a necessidade de uma forma - qualquer que seja - de estratégia supranacional. E aqui reside, parece-me, um ponto essencial que, em virtude da necessidade de responder de forma imediata à crise do sistema, tem sido erradamente remetido para segundo plano nos debates da esquerda. Uma estratégia assente na saída do euro com vista a uma desvalorização nominal e aumento das exportações, por si só, não significa qual-quer rompimento com o paradigma da “com-petitividade” e com o modo de produção e consumo capitalistas que criticamos. trata-se da reprodução do mesmo modelo a uma esca-la menor, mesmo se neste modelo incluirmos a nacionalização de parte do sistema bancário e empresas de maior relevância. Constitui sem dúvida uma possível (embora não certa) saída para alguns dos problemas que a economia atravessa, mas é uma saída que opera nas (e apela às) formas de organização capitalista. Por si só, a proposta de saída do euro, tal como outras propostas à esquerda, não procura nem traz consigo um verdadeiro projeto transfor-mador da sociedade, o que implica: (re)pensar o lucro e as formas não capitalistas de produção,

as relações de trabalho e de propriedade ou o significado de industrialização nas sociedades pós industriais; (re)criar formas de participa-ção, de descentralização do poder e democrati-zação do aparelho do Estado; mas também, no imediato, identificar necessidades e emergên-cias sociais e as formas alternativas de as suprir. Nada disto significa menosprezar as análises do sistema atual, abandonar o combate de re-sistência ou desistir da disputa pelo Estado, por serviços públicos universais e por respostas imediatas para a crise. Mas deve obrigar-nos, enquanto esquerda organizada, a não perder de vista dois objetivos. O primeiro prende-se com a relação com o movimento social e com a urgente necessida-de de refletir, sem tabus, sobre as relações com os sindicatos e o papel que desempenham nas sociedades de hoje ou a utilidade/viabilidade de redes de solidariedade alternativas, quer para dar resposta a necessidades sociais básicas como para ensaiar formas diferentes relações de consumo e produção. Estas não são, obvia-mente, premissas essenciais para sair da crise, mas servem um (e o segundo) propósito claro e urgente: a construção, através da reflexão e da experiencia concreta, de um “imaginário pós-capitalista”22 (Harvey, 2013). Mais que o desespero de quem não tem mais nada a perder, é este imaginário partilhado que nos permite combater a chantagem das inevitabilidades e garantir que há muita vida para além da troika.

22 - Harvey D. (2013). Entrevista: The importance of post-capitalist imagination. In Redpepper.org. (disponível aqui: http://www.redpepper.org.uk/david-harvey-interview-the-importance-of-postcapitalist-imagination/).

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No momento em que fecho este texto está em preparação, em Portugal, uma nova manifestação do Movimento Que Se Lixe a troika (QSLt) para 26 de outubro, enquanto em Madrid milhares de pessoas se manifestaram contra a dívida e contra a corrupção do Partido Popular (“adiós mafia, hola democracia”). Nas ilhas Baleares, os docentes fizeram duas semanas de greve total em defesa da escola pública e contra o decreto que quer diminuir o peso da língua catalã nos conteúdos curriculares. A 29 de setembro, a cidade de Palma de Maiorca encheu-se com a maior manifestação de sempre, 100 mil pessoas, onde se incluíam docentes, pais, alunos e população geral. Nos últimos anos, tem sido assim um pouco por toda a Europa. As ruas voltaram a encher-se, ensaiou-se uma primeira greve geral europeia a 14 de novembro de 2012, movimentos para a auditoria da dívida foram criados nos países do Sul, na Grécia nasceu uma rede de solidariedade. A austeridade atacou forte e os cidadãos responderam. Com efeito, a

austeridade e a política do empobrecimento têm sido o rastilho das movimentações populares mais recentes. Se os líderes europeus esperavam ver a passividade dos povos europeus face à gigantesca transferência que está a ser feita do trabalho para o capital, enganaram-se. No entanto, e paradoxalmente (ou não), nos últimos anos assistimos também a um afastamento crescente entre governantes e povos, ao reforço do descrédito na política e a uma enorme abstenção nos atos eleitorais que tiveram lugar um pouco por toda a Europa. As políticas emanadas da União Europeia têm uma razoável quota-parte de responsabilidade nesta descrença e é por isso que assistimos atualmente a uma viragem eurocética mesmo entre os povos que durante décadas apoiaram o projeto europeu. A esquerda social e a esquerda política Falar de movimentos sociais europeus e da sua relação com a esquerda seria assunto para vários livros. O principal objetivo do artigo é

Movimentos sociais e esquerda política: conflito, coabitação e convergênciaAldA sousA

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o de levantar algumas hipóteses estratégicas e não o de fazer uma descrição exaustiva dos vários movimentos. Nesta reflexão procuraremos dar protagonismo sobretudo aos movimentos que se exprimiram nos últimos anos contestando de forma explícita as políticas de austeridade da UE, em particular nos países do Sul, intervencionados pela troika, seja na luta pelo emprego, contra a precariedade, pelo direito a habitação (PAH), seja na luta por serviços públicos de qualidade (Mareas) e pelo bem comum, procurando refletir sobre a emergência e o papel destes movimentos em vários países europeus (Norte, Sul, Centro, Leste). Devo ainda referir que este artigo não terá Portugal como centro. Neste contexto, algumas perguntas podem ser identificadas:

1) Quem está nestes movimentos? São estes movimentos capazes de produzir proposta política? 2) No plano europeu, quando o projeto federalista parece querer avançar ao mesmo tempo que se assiste à crise de desagregação do euro e ao reforço do diretório, estamos perante uma alternativa capaz de contrapor mecanismos de solidariedade e de convocação real das pessoas e, ao mesmo tempo, criar um projeto alternativo em conjunto com forças antitroika?3) Face à crise do sistema, mas também à crise de representação política, serão estes movimentos capazes de gerar novas formas de participação e de democracia que questionem a própria esquerda, ou serão as suas formas de expressão e organização efémeras e de curta duração? Mais, estes movimentos são apenas formas de pressão sobre partidos ou sindicatos

ou poderão ser eles mesmos fatores ativos de recomposição?

Uma democracia sequestrada pelo neoliberalismo e pela austeridade Um dos fenómenos que temos vindo a assistir é ao aumento da distância entre os governantes e “os de baixo”, o que tem propiciado a absten-ção, a desistência e, do mesmo passo, alimenta-do a subida da extrema-direita, fenómeno que é transversal a muitos países europeus. A ilustração dessa distância entre os cidadãos europeus e as instituições (em que, muitas ve-zes, a Comissão, o Conselho e o Parlamento são amalgamados e metidos no mesmo saco) pode ser encontrada num vídeo com uma interven-ção de Nigel Farage, eurodeputado britânico eleito pelo UKIP (partido protofascista), que foi

difundido de forma viral nas redes sociais por «dizer as verdades aos governantes europeus». Com um pendor altamente populista, o vídeo de Farage agregou adeptos da direita à esquer-da. O crescimento do populismo, de mãos da-das com o discurso “antipolíticos”, é uma das traduções de um certo grau zero da política e, em concreto, do falhanço da política europeia e das instituições. É este mesmo populismo que alimenta e faz inchar o euroceticismo de direita e o recrudescimento dos nacionalismos.Numa União Europeia que nunca primou mui-to pelas práticas democráticas foi-se criando o hábito de fazer passar todas as decisões sem que se lembrasse sequer se seria necessário en-volver os cidadãos nesse processo. Foi por isso mesmo que só com o tratado Constitucional as lideranças europeias se confrontaram com a existência de um povo europeu, em resultado do “Não” ao tratado em referendos realizados

O crescimento do populismo, de mãos dadas com o discurso “anti-políticos”, é uma das traduções de um certo grau zero da política e, em concreto, do falhanço da política europeia e das instituições.

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1 - The Precariat, The New Dangerous Class (2011). Londres e Nova Iorque: Bloombsbury Academic.

em França, na Irlanda e na Holanda. Essa op-ção nem sequer existia na cabeça dos líderes europeus, mas nenhuma lição foi daí retirada. Pelo contrário, ao invés do reforço democráti-co, assistimos a um agravamento do fosso entre governantes e governados. A partir daí a lógica foi a de afastar cada vez mais e o mais possível o povo da esfera da tomada de decisão, para evi-tar mais “surpresas”. O “Não” de esquerda em França em 2005 foi mesmo considerado uma resposta antieuropeia, atribuída ao egoísmo nacional dos franceses. Os povos e a democracia passaram a ser empecilhos. Assim, com o tratado Orçamental já não se correu esse risco. E se foi a referendo

na Irlanda foi por obrigação constitucional e não por qualquer empenho democrático. Em Portugal, como é sabido, José Sócrates prometeu um referendo e não cumpriu. No entanto, trata-se de um passo que tem uma importância vital para o ataque à soberania e à democracia em cada país. Mas o tratado Orçamental serve ainda de contraexemplo numa Europa que se tem mobilizado. Enquanto em 2005 tinha havido fortes movimentos, sobretudo em França, que se mobilizaram e criaram coletivos de discussão contra o tratado Constitucional europeu, o tratado Orçamental só foi referendado na Irlanda (por duas vezes) e na República Checa e não despertou paixões nem foi contestado por movimentos sociais de forma consistente.

Como em qualquer regra, há a exceção, e a do tratado Orçamental foi a manifestação europeia que mobilizou mais de 100 mil pessoas em Paris, a 30 de setembro de 2012, juntando movimentos, partidos de esquerda e sindicatos vindos de toda a Europa.A crise da dívida, os resgates, a austeridade permanente, a recessão, que as instituições eu-ropeias não só não contrariaram mas da qual são agentes ativos, tiveram como consequência o aumento da desconfiança, ou mesmo a rejei-ção, da Europa. Ou seja, temos cada vez mais soberanistas ou eurocéticos, mesmo dentro da esquerda.

Quem está nestes movimentos? E o que é que eles representam no contexto atual? Um novo sujeito político/social?Retomando as questões inicialmente colocadas, procuramos avançar com algumas pistas para possíveis respostas às três primeiras. Para Guy Standing1, os Indignados e movimentos semelhantes representam em parte o ressentimento social de uma geração, filhos e netos do welfare state, que não se conformam com o facto de viverem pior do que as gerações precedentes. O precariado seria assim uma nova classe social marcada pelo ressentimento social. Contudo, na realidade a condição de precário não se resume aos filhos e netos do welfare state. Ela atravessa a sociedade, são filhos da classe média urbana

A crise da dívida, os resgates, a austeridade permanente, a recessão, que as instituições europeias não só não contrariaram mas da qual são agentes activos, tiveram como consequência o aumento da desconfiança, ou mesmo a rejeição, da Europa.

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proletarizada, bem como de imigrantes. A precarização das relações de trabalho estende-se como uma mancha de óleo a toda a sociedade, se bem que a forma de a viver possa ser diferente para um filho de imigrante ou para um licenciado cujos pais têm emprego estável. Sabemos bem que os vários movimentos de rua que emergiram, sobretudo nos países do sul da Europa, desde os Indignados, à Geração à Rasca, passando pelas Marés no Estado Espanhol ou pelas manifestações de massa na Grécia, não são caracterizados pela organicidade ou pela reivindicação política definida nos termos clássicos. Com efeito, estes correspondem a sujeitos políticos complexos, carregados de diversidade. E não podemos esquecer como as lutas contra a ilegitimidade da representação política, por uma democracia mais direta e assembleária fizeram parte também dos repertórios mobilizados. Se olharmos para as duas maiores manifestações ocorridas em Portugal desde o período revolucionário - a 15 de setembro de 2012 e a 2 de março de 2013 - encontramos ainda outros elementos que ajudam a caracterizar estas novas mobilizações populares: a luta contra a austeridade permitiu vencer a guerra de gerações, colocando lado a lado avós, filhos e netos. O 15 de Setembro em Portugal demonstrou ainda que era possível vencer a ideia dominante de guerra de gerações que o governo e a troika fomentavam, segundo os quais a ausência de direitos da geração jovem

resultava do “excesso de direitos” dos mais velhos, dos bem instalados.Numa análise um pouco grosseira, poderíamos dizer que na Europa do norte o foi o movimen-to Occupy a ter uma maior expressão, enquan-to no sul foram os movimentos que têm como centralidade a luta contra a austeridade, o de-semprego, a precariedade e o desmantelamento do Estado social que mais marcaram a agenda política.

Mas em que condições é que estes movimentos emergiram? A derrota da esquerda e dos movimentos so-ciais no início da década de 1980 só começou a redimir-se no final dos anos 90, início do século XXI. teremos guardadas na memória a Mar-cha de Seattle contra os mercados financeiros, os Fóruns Sociais Mundiais e o movimento alter-global. A intenção neoliberal de thatcher de “eliminar” a sociedade civil - fazendo corres-ponder a sociedade neoliberal emergente a um agrupamento de Estado, empresas e famílias - teve consequências reais e concretas. Na era do there is No Alternative (tINA), não deveria haver espaço a variações para lá do permitido pelo sistema dominante. Barroso aprendeu bem a lição e ainda hoje é a ideia repetida à exaustão da falta de alternativa que promove a tentativa de deslegitimação das formas de organização coletiva que vão para além da esfera formal de representação. Mas a verdade é que, num contexto de globa-lização, de predominância neoliberal, com o

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2- ANtENAS, Josep Maria e VIVAS, Esther Vivas (2012). Planeta indignado. Ocupando o futuro. Madrid: Sequitur.

acentuar da crise política, que se traduz numa crise de representação política e das institui-ções a par de uma crise dos partidos e dos sindi-catos, todas as condições estão reunidas para a emergência de movimentos da natureza destes que temos vindo a falar.No entanto, e se no final da década de 1990 as condições materiais existentes foram mais pro-pícias ao surgimento de movimentos de caráter internacionalista e global, mais recentemente, e em resultado da crise que vivemos, no contexto europeu assistimos a uma renacionalização da política e, em consequência, a uma renacionali-zação das próprias lutas. O Estado-nação pas-sou a ser o “limite” por excelência e as frontei-ras nacionais a definir as bordas do palco das batalhas. Foi, no entanto, a partir dessa rena-cionalização das lutas que voltaram a emergir as condições que permitem já hoje identificar traços de solidariedade extra fronteiras e o surgimento, ainda que incipiente, de formas de articulação coletiva à escala europeia. Percebe-se ainda nestas novas movimentações que as plataformas horizontais que se vão criando têm como pano de fundo uma cooperação horizon-tal que, para além da associação de países, ra-dica numa conceção própria de um processo de luta de classes.Sabemos que não há nenhum automatismo en-tre opressão e mal-estar social e surgimento de mobilizações sociais que coloquem a solida-riedade no centro. A crise de 2008 deu-se num momento em que o movimento sindical, os mo-vimentos sociais e a esquerda estavam na de-fensiva e com derrotas acumuladas. Na Europa, as respostas à crise e à austeridade, se bem que limitadas, tinham tido vários momentos altos traduzidos em importantes mobilizações, como a explosão social grega no final de 2008, o mo-vimento estudantil britânico contra as propinas em final de 2010, o movimento contra os cortes do governo Sarkozy tanto em 2007 como em

2010, a greve geral em Portugal em novembro de 2010 e as manifestações de precários, entre outros. Era impossível prever como e quando surgiriam novas formas de mobilização. As re-voluções no mundo árabe, primeiro na tunísia e em seguida no Egito, iniciaram a onda de indignação global que marcou o ano de 2011. Visto a esta distância, 2011 foi uma espécie de ano da indignação global.Creio que seria abusivo afirmar que as extra-ordinárias e gigantescas mobilizações da pri-mavera árabe tiverem um efeito de tsunami na Europa. Mas, como afirmou Badiou, «os levan-tamentos da tunísia e do Egito têm um signifi-cado universal. Criam possibilidades novas cujo valor é internacional» —. Apesar do impacto limitado na consciência dos trabalhadores eu-ropeus, houve uma mensagem clara, mais do que simbólica, de que sim, será possível, sobre-tudo nos círculos de ativistas mais politizados e que estiveram na origem do movimento dos Indignados. Como afirmam Antenas e Vivas2, «Sem uma Praça tahrir não teria havido uma Praça do Sol ou uma Praça da Catalunha». O movimento dos Indignados (iniciado no Estado Espanhol), o movimento Occupy Wall Street (sobretudo nos EUA) ou movimento das pra-ças (Grécia) não são apenas diferentes nomes para a mesma coisa. Na realidade exprimem fe-nómenos nacionais específicos, ancorados num contexto nacional-estatal que se cruzam com o contexto político e económico global. A atomi-zação da sociedade de indivíduos que tinha sido apanágio de Margaret thatcher deu de novo lugar aos coletivos.Neste novo ciclo de lutas sociais, os jovens têm tido um papel central: uma nova geração mili-tante cuja primeira experiência de ativismo fo-ram as acampadas e as praças. A precariedade, a perspetiva do desemprego ou da emigração são alguns dos traços comuns desta geração.

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3 - GAUtHIER, Élisabeth, VERGIAt, Marie-Christine e WEBER, Louis (2012). Changerd’Europe, Bellecombe-en-Bauges: Éditions du Croquant.4 - SAMARY, Catherine. Le premier Forum social des Balkans: d’autres Balkans sont possibles! Disponível em: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article26852

Se no movimento alter-mundial a crítica ao neoliberalismo se centrou sobretudo na circulação das mercadorias, no papel da finança, no desafio ecológico e no crescimento das desigualdades, mas o confronto entre trabalho e capital passou para segundo plano, na Europa atual, com uma média de 12% de desempregados, sobretudo jovens, na Zona Euro, é normal que o trabalho retome a centralidade.3 Acresce ainda que a articulação dos movimentos de precários com os sindicatos, nem sempre fáceis, se converteu também numa necessidade.Em Portugal, os movimentos sociais (em particular o QSLt) conseguiram, em conjunto com a esquerda, impor derrotas à política de austeridade, como se verificou no recuo da tSU provocado pelo 15 de Setembro, mostrando que há caminhos possíveis de convergência; de igual forma, os protestos contribuíram para

uma deterioração acelerada da popularidade do governo (sondagens e autárquicas) nos últimos dois anos.

A leste, nada de novo? Já muito foi falado do norte e do sul da Euro-pa, mas não podemos deixar de referir outros contextos. Com efeito, também a leste há algo de novo. Catherine Samary fez uma interessan-te análise dos movimentos sociais balcânicos, muito pouco conhecidos do “Ocidente”, entre eles os Indignados da Roménia e a sua resistên-cia à privatização da saúde, bem como greves e protestos contra as privatizações mafiosas ou

as lutas estudantis fortes na Croácia, em 2010 e 2011, contra a mercantilização da educação e da cultura.4 Mais recentemente pudemos ainda observar na Bulgária, Estado membro da UE, as imensas mobilizações contra as políticas de austeridade e da corrupção.Apesar do crescendo das mobilizações popu-lares, a verdade é que ainda não começamos a assistir a uma verdadeira alteração das relações de forças e a social-democracia e a democracia cristã, a par dos neoliberais, continuam a ser as forças dominantes na Europa. Os desenvolvi-mentos recentes tiveram ainda a consequência de juntá-las cada vez mais, tendo-se esbatido as diferenças que as marcaram ao longo da traje-tória do projeto de integração. A exceção tam-bém aqui é a Grécia, onde a social-democracia passou, neste momento, a força política residual e o panorama político atual é já marcado por

cisões e por uma alteração das relações de força. Obviamente que a este facto também não será alheia a quase proibição de eleições nos países das economias mais periféricas, seja por via da manutenção forçada de governos já com pouca legitimidade democrática, seja pelo apelo à des-politização da política, procurando converter as escolhas em opções técnicas ou a representa-ção popular em tecnocracias. Perante o fim da alternância política do centro, a elite europeia respondeu com o autoritarismo da tecnocracia. Se, como já foi referido, a generalidade dos movimentos emergentes não é acompanhada pela explicitação de proposta política, é digno

Os desenvolvimentos recentes tiveram ainda a consequência de juntá-las cada vez mais, tendo-se esbatido as diferenças que as marcaram ao longo da trajectória do projecto de integração.

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de registo o aumento do número de platafor-mas e de espaços criados com essa finalidade. O festival subversivo de Zagreb é um desses exemplos, procurando «despatologizar os Bal-cãs e desprovincializar a esquerda ocidental». O Alter Summit realizado em Atenas, entre 7 e 8 de junho deste ano, reuniu milhares de ati-vistas dos movimentos sociais e dos sindicatos. Pela primeira vez, muitos dos movimentos de rua encontraram-se e discutiram. A mensagem de solidariedade com o povo grego e os movi-mentos sociais foi forte e clara. A vitalidade e energia do Fórum Social Mundial, realizado em tunes no fim de março, deram um impulso ao Alter Summit. Mas a diferença é que este último não acabou apenas com uma declaração dos movimentos sociais mas sim com um ma-nifesto5. O Manifesto de Atenas foi preparado durante mais de seis meses por quase duzentas organizações (uma rede que inclui movimen-tos feministas, ambientalistas, alter-globais, precários, movimentos de solidariedade, Indig-nados/Occupy, bem como uma rede de intelec-tuais críticos e sindicatos). O manifesto teve a importância de ao mesmo tempo apresentar uma plataforma de ação imediata e comum para

sindicatos e movimentos sociais, com reivindi-cações urgentes e imediatas, mas também de procurar definir estratégias para ação e mu-dança da relação de forças. Em certo sentido, poderíamos arriscar a dizer que se tratou de um esboço de reivindicações transitórias/pro-grama de transição

O futuro da relação entre esquerda política e movimentos sociaisNão é minha pretensão tirar conclusões de uma realidade em transformação ou sobre o devir da relação entre movimentos sociais e esquer-da política na procura de alternativas amplas e credíveis capazes de vencer o capitalismo. Da-niel Bensaid afirmava que «só novas experiên-cias históricas poderão fazer avançar a elabora-ção estratégica»6.Saber valorizar estas novas militâncias cria-tivas, que reinventaram o protesto de rua e a disputa pelo pensamento hegemónico, contri-buir para a politização dos movimentos sociais sem a tentação de os dominar, aprender com as novas formas de participação, mais do que um desafio, é uma condição de vida para a esquerda anticapitalista.

5 - Disponível em : http://www.altersummit.eu/manifeste/article/the-manifesto).

6 - BENSAID, Daniel (2011). La politique comme art stratégique. Paris: Syllepse.

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Advento triunfante do neoliberalismo e entrada na CEEA avalanche de retrocesso potenciado pelo ad-vento triunfante do neoliberalismo no mundo a partir de 1979, com reflexos em Portugal a partir de meados da década de 1980, trouxe uma novidade: a capacidade de apresentar o velho como novo e de constituir uma ilusão mesmo para ativistas sociais.Com o neoliberalismo ficaram em causa o próprio Estado social e todos os direitos so-ciais e económicos. As privatizações e “menos Estado, melhor Estado” tornaram-se lemas emblemáticos com Cavaco Silva, a partir de 1985. Outros factos marcam ainda a evolução da situação em Portugal e contribuem para explicar um tão longo refluir dos movimentos sociais.

A entrada na CEE em 1 de janeiro de 1986 alterou a situação económica do país, nome-adamente com a entrada maciça de fundos que deram, no imediato, a falsa ideia de uma verda-deira modernização. Os anos que se seguiram foram de destruição da indústria, da agricul-tura e das pescas dando lugar ao betão e às au-toestradas como modelo de desenvolvimento.

Protocolo de Maastricht relativo à política social Em 1993, a Comissão Europeia, no contexto da aplicação do Protocolo de Maastricht rela-tivo à política social, foi confrontada com um conjunto de matérias relativas à representativ-idade das organizações sindicais e patronais europeias, a que são chamados para consulta dos chamados “parceiros sociais” ao nível co-munitário, a traduzir-se em relações contrat-

Crise: respostas dos sindicatos portugueses no plano nacional e europeu1

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1 - Baseado no texto apresentado pelo BE no 14.º Meeting of the Network trade Unionists and behind the European Left Party, Lisboa, 29 de junho de 2013 - Crise: Respostas dos Sindicatos Portugueses no plano nacional e europeu – com uma breve história do movimento sindical português e resposta dos sindicatos portugueses perante a crise portuguesa e europeia.

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uais e em acordos. A integração no “sindical-ismo europeu” protagonizado pela CES deu-se de uma forma lenta nas suas estruturas – as Federações Sindicais Europeias e os Conselhos de Empresas Europeus -, bem como as suas es-truturas setoriais.Em Portugal, o nível da negociação coletiva transfere-se para o nível macro e em maio de 1984 foi criado o conselho de concertação so-cial, órgão tripartido. A transferência para o nível macro da negociação teve como claro ob-jetivo esvaziar a negociação coletiva, o diálogo social e limitar a capacidade reivindicativa e de luta dos trabalhadores. A concertação social transformou-se num órgão político ao serviço das classes domi-nantes e do centrão político que nos tem gov-ernado, PS e PSD, que tem servido de tampão político ao órgão por excelência legislativo, a Assembleia da República. Ao nível da União Europeia a estratégia dos governos e do patronato estava já em alter-ação, face à ofensiva neoliberal contra o mundo do trabalho, transnacionalmente e ao nível dos Estados nacionais, ao nível organizacional das empresas para formas flexíveis de produção, com segmentação e/ou estratificação dos trab-alhadores, a individualização das relações labo-rais e um ataque às organizações coletivas dos trabalhadores. Ao nível europeu a estratégia estava a trans-

ferir-se do nível macro para o micro, ao nível da empresa, aprofundando a estratificação do trabalho e o ataque ao diálogo social e aos sin-dicatos. A CGtP-IN só adere à concertação social em 1987, que se “limita” a regular os aumentos sal-ariais, a política de rendimentos e preços, pas-sando pela legitimação das políticas de liberal-ização económica. A afirmação institucional da CGtP-IN confronta-se com uma UGt (que nasce da vontade e do entendimento político do PS, PSD e CDS) submissa aos caminhos de liberalização económica e laboral de sucessivos governos, dando portanto a sua assinatura aos sucessivos acordos de concertação social. Com uma feroz repressão governamental e pa-tronal e a debilidade e dificuldades dos sindica-tos, o governo cavaquista impôs a nível macro a redução e flexibilização do horário de trab-alho, de 40 horas semanais em 1995, podendo, por negociação coletiva, essa flexibilização em média ser fixada por um período diferente. Em 1991 o legislador reduziu o horário de trab-alho de 45 horas para 44 horas semanais, per-mitindo a flexibilização dos horários. Os sindi-catos da CGtP e alguns da UGt recusaram reduzir os horários com flexibilidade e tenta-ram acordar com o patronato a redução sem flexibilização, o que foi recusado.Em 1993/1994, segundo o ministério do trab-alho, apenas 31,4% dos trabalhadores do setor

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privado trabalhavam 40 horas semanais ou menos, situação que se manteve até 1995.

O capital global promove a subordinação global do trabalhoO final da década de 1970, princípios dos anos 1980, marca duas décadas de grande salto tecnológico, com a automação, a robótica e a microeletrónica que elevam como nunca a produtividade, operando cada vez mais a sub-stituição de trabalho vivo por trabalho morto.O capital global promove a subordinação glob-al do trabalho. Mas, ao contrário daqueles que se posicionam pelo “fim do trabalho” ou pelo o fim do trabalho assalariado e a emergência de um novo modelo de trabalho, «onde a empresa tende a organizar-se não em torno do trabalho assalariado, mas sim em torno do trabalha-dores autónomos. Vive-se assim numa época do pós-emprego, onde os assalariados passam a ser prestadores de serviços».O trabalho subordinado tem crescido e con-tinuará a crescer, o proletariado tem vindo a diversificar-se mas continua em crescimento,

bem como a sua brutal exploração, o cresci-mento da produção e da riqueza implica sem-pre mais trabalho. A passagem progressiva dos padrões produ-tivos tayloristas e fordistas às formas flexíveis de produção, os novos conceitos de gestão de empresa flexível ou da reengenharia vieram acentuar a tendência para a fragmentação da produção nas grandes empresas, com práticas de emagrecimento e de subcontratação, contri-buindo para o enfraquecimento e divisão dos coletivos dos trabalhadores.

Entre os fatores que provocam a crise do em-prego têm particular importância a global-ização da economia com a preponderância do capital financeiro, a difusão das tecnologias de informação e comunicação, a nova divisão in-ternacional de trabalho, a preponderância da política económica neoliberal, a reestrutura-ção das empresas na lógica da racionalização flexível, bem como o desequilíbrio de forças no mercado de trabalho e nas relações laborais.A política de acumulação do capital tem vindo a acentuar a tendência para a individualização das relações laborais, para a segmentação e/ou estratificação dos trabalhadores, para a pre-carização laboral e mesmo para a marginaliza-ção do trabalho e do social. Um novo objetivo tem vindo a ser colocado na sociedade, a “plena atividade” por oposição ao “pleno emprego”, com uma aproximação crescente ao modelo americano de hire and fire (contratar e despedir), que na versão europeia se traduz na flexigurança, em função dos picos de mercado, competitividade e lucro. Denota-se uma tendência para se desen-

volver uma (re)configuração de aparelhos de produção, fenómeno que se desenvolveu sob a forma da subcontratação de empresas, da ex-ternalização direta dos serviços internos, no-meadamente da gestão dos sistemas de infor-mação da empresa ou do recurso ao trabalho temporário.A opção pela redução do custo da mão-de-obra e o recurso à subcontratação de trabalhadores tende a excluir uma parte significativa de tra-balhadores dos benefícios da proteção social. Em consequência, e para o trabalhador, a sua

A política de acumulação do capital tem vindo a acentuar a tendência para a individualização das relações laborais, para a segmentação e/ou estratificação dos trabalhadores, para a precarização laboral e mesmo para a marginalização do trabalho e do social.

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atividade não assenta em ne-nhum investimento pessoal, mas sim numa acentuada des-valorização. A diminuição de trabalho, a sua fragmentação, o aumento do “exército industrial de reserva” - o contingente dos desempregados, precários e excluídos - é a contrapartida da financiarização das relações económicas, da flexibilidade dos mercados, é a exigência correspondente da globaliza-ção neoliberal.

Estratégia europeia 2020 Nessa prespetiva, a Comissão Europeia lança a Estratégia Europeia 2020 com o intuito de assegurar a saída da crise, mas não retira as consequências relativamente aos dois eixos fundamentais das políticas seguidas: o Pacto de Estabilidade e a Estratégia de Lisboa – de liberalizações de setores económicos, incluindo serviços, com a privatização dos serviços públicos e flexibili-dade laboral. Insiste numa contínua desvalori-zação do trabalho, multiplicou-se a precarie-dade do emprego, agravou-se o desemprego ao nível da UE (26 milhões) sendo os jovens os mais atingidos. Os beneficiários da referida Estratégia de Lisboa não foram nem os trabal-hadores nem os povos. A nova Estratégia Europeia 2020 constitui uma não resposta face aos planos que cada país europeu está a adotar para o cumprimento ou não do Pacto de Estabilidade e o agora trat-ado Orçamental, das políticas de flexigurança e dos códigos de trabalho, pondo em causa o contrato social do pós-guerra, juntando ainda

mais austeridade à austeri-dade e crise à crise.Sob o pretexto de que é ne-cessário combater a segmen-tação do “mercado” laboral em Portugal e em toda a União Europeia, no âmbito da Estratégia 2020 e da flex-igurança, defendem a criação de um novo tipo de contrato, o contrato único, sem termo (efetivo) muito mais frágil e precário.2 A dimensão coletiva do tra-balho está a ser colocada em causa, não só ao nível da leg-islação como das suas orga-nizações, sindicatos e Ct, que lentamente estão a ser esvazi-

adas do seu campo de intervenção, ficando sem papel, e tudo isto, alegadamente para bem da competitividade e do bom funcionamento do mercado. O “contrato único” de trabalho serve este objetivo.Na continuidade e agravamento dos critérios macroeconómicos de Maastricht, a entrada na moeda única significou baixos salários, desem-prego e precariedade, menos proteção social, atraso face ao nível médio de desenvolvimento da UE, perda de autonomia nacional nos câm-bios externos e na dívida pública. Vale a pena recordar que o tratado de Lisboa (e o seu an-tecessor tratado Constitucional) foi rejeitado por três dos cinco povos que sobre ele se pu-deram pronunciar. Nele se inscrevem todas as regras de contração orçamental que permitem a austeridade. Nele se consagra um Banco Central Europeu sem controlo democrático e obcecado com a estabilidade de preços, depen-dente apenas do capital financeiro e do diktat

2 - Christopher Pissarides, Prémio Nobel da Economia de 2010, na conferência O Futuro dos Mercados Europeus de Trabalho, realizada em Portugal, defendeu: «Há 30 anos, a ambição do trabalhador era conseguir um emprego seguro e bem pago no Estado, mas este deixou de ser produtivo. É já bem aceite que a globalização exige flexibilização e privatização dos serviços para obter maior produtividade. Sabemos que não há alternativa a esse modelo, mas a sua aceitação depende dos parceiros sociais e da evolução da mentalidade sobre a retirada de direitos a que os trabalhadores estão habituados», «O futuro está num modelo único de contrato de trabalho».

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alemão. Nele se confirma o diretório e a ar-quitetura de poder que submete os povos do sul. A moeda única é, na União Europeia, o el-emento catalisador de todo o plano neoliberal contra os povos.

A Europa vive uma encruzilhada histórica

Vivemos uma aguda crise, política, económica, financeira e social. A tudo recorre o capital especulador para parasitar as economias e o saque financeiro contra os povos, ao mesmo tempo que aumenta a exploração sobre o tra-balho. A desregulação financeira deu lugar à incerteza dos mercados e a crise rapidamente contaminou as economias reais. Segundo a OIt há 200 milhões de desempregados em 2012 e muitos milhões de trabalhadores estão na precariedade em todo o mundo.A crise colocou em evidência o facto de o império ter entrado em recomposição, assu-

mindo-se o G2 (EUA e a China) com maior preponderância no domínio mundial. A Chi-na tornou-se o centro de recomposição do capitalismo e, em conjunto com outros países asiáticos, provocou uma alteração no sistema produtivo mundial, pressionando os chamados “mercados de trabalho” da UE e dos EUA. A Europa vive uma encruzilhada histórica, des-mantela o Estado de bem-estar social, põe fim ao pleno emprego e reduz os custos do traba-lho para recompor e ampliar os lucros capita-listas, recuperar competitividade e enfrentar a concorrência asiática. Isto tem significado uma redução dos salários, práticas de dumping sala-rial, como é o caso da Alemanha, desemprego em massa (que na Grécia e Espanha é o ingrato destino de mais de 50% dos jovens), aumento da jornada de trabalho, privatizações, flexibili-

zação dos contratos, criação dos minijobs a ga-nharem menos de 400€, como na Alemanha ou em Portugal (310€), aumento de impostos para os pobres, cortes nos gastos governamentais, precarização dos serviços públicos. O ataque do capital em curso, na busca de no-vos mercados de acumulação, tem manifestado um especial apetite pelos monopólios naturais ou por setores que devem ser parte integrante do modelo social, como a saúde, a educação ou os sistemas públicos de segurança social. A CGtP e a UGt e até a CES têm visões e posicionamentos diferentes quanto à integra-ção e ao federalismo na construção europeia, o que no plano nacional se traduz em práticas sindicais diferenciais no plano da negociação e concertação social e no plano da reivindicação e da luta.Ao longo do século XX o movimento sindical baseou toda a sua ação e poder de organização

na estabilidade dos contratos de trabalho dos assalariados. O enfraquecimento do movimento sindical segue a par com a fragilização da negociação e contratação coletiva, a individualização das relações laborais e a difusão de relações contratuais incertas e temporárias. O medo, a intranquilidade e a insegurança quanto ao futuro predominam na parte mais fraca, o trabalhador, perante a ferocidade do capital global pela competitividade e o lucro e a extremada extração da mais-valia absoluta e relativa dos trabalhadores.

O nível de sindicalização dos portugueses apresenta padrões europeus Existem hoje em Portugal 4433,2 mil pessoas empregadas no 1.º trimestre de 2013, – 727

O enfraquecimento do movimento sindical segue a par com a fragilização da negociação e contratação coletiva, a individualização das relações laborais e a difusão de relações contratuais incertas e temporárias.

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mil na CGtP-IN (XI Congresso), 478 mil na UGt (XII Congresso) e 113 mil noutras organizações sindicais; e 368 Ct e 6 Comissões Coordenadoras de Ct.O nível de sindicalização Portugal apresenta padrões europeus: 21% dos trabalhadores por conta de outrem, que tem seguido a evolução dos movimentos sindicais. Uma percentagem apenas «ligeiramente inferior à alemã (22% a 23%) ou à inglesa (que se estima entre 25% e 30 por cento)». Mas, por incrível que pareça, estamos «muito acima da França, cuja taxa de sindicalização não ultrapassa 10%» «um pouquinho acima da espanhola (que anda nos 19% a 20 por cento)». Só mesmo longe da percentagem de sindicalizados italianos, que ronda os 35%. Desde a década de 90 do século passado que a taxa de filiados portugueses nos sindicatos entrou na norma europeia. A sucessiva desindustrialização do país, o blo-queio à contratação coletiva e a crescente pre-cariedade do emprego são as razões apontadas para a perda de sindicalizados. Portugal é o terceiro país com maior precariedade, a seguir à Polónia e a Espanha. Em nome da competitividade este governo de-

clarou guerra ao trabalho, com alterações ao código de trabalho que desequilibram profun-damente as relações de trabalho, enfraquecem os direitos, liberalizam e embaratecem os des-pedimentos (segundo a OCDE, Portugal foi, nos últimos 5 anos, o país que de longe mais facilitou o despedimento), tenta impor o banco de horas individual, incentiva e embaratece o pagamento do trabalho extraordinário e caminha para a liquidação da contratação co-letiva, dos Acordos de Empresa (AE) e dos sindicatos.3

A aposta é, claramente, na individualização das relações de trabalho. todas estas medidas, lamentavelmente, tiveram a concordância da UGt, em sede de concertação social.Aos sucessivos códigos do trabalho de Bagão Félix a Vieira da Silva, passando agora por Passos Coelho, une-os a visão agressiva da destruição dos direitos, do aumento da exploração e da diminuição dos custos do trabalho. A manifestação de 15 de setembro que juntou mais de 1 milhão de pessoas, “Que se lixe a troika queremos as nossas vidas!”, foi um BAStA às medidas da troika, anunciadas pelo

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3 - O Relatório Anual da Negociação Coletiva de 2012 realça que somente foram abrangidos 327 622 trabalhadores, o que representa apenas 26,5% do número do ano anterior e, por não terem sido emitidas portarias de extensão referentes a 2012, significa o agrilhoamento das dinâmicas coletivas, dos seus agentes sociais e laborais, por parte do governo e da troika, que é necessário quebrar pela luta.

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governo, que são um insulto, uma indignidade e uma declaração de guerra social ao trabalho, aos pensionistas e reformados. Ela mudou toda a perceção das pessoas sobre a crise e da patranha de que “vivíamos acima das nossas possibilidades” que era “inevitável” tomar estas medidas, de que não havia nem há alternativas, mas efetivamente elas existem. “É necessário que este governo vá prá rua!”, gritou-se nessa e em todas as manifestações que se seguiram, em particular na da CGtP de 29 de setembro, que encheu o terreiro do Paço, e que transbordou a esfera sindical e se transformou numa manifestação popular. A ampla participação na greve geral de 14 de novembro de 2012, convocada pela CGtP, marcou a situação política nacional, teve a adesão de muitos dos sindicatos e das federações mais representativas da UGt e de sindicatos independentes. Integrada na jornada europeia de ação e solidariedade, promovida pela Confederação Europeia de Sindicatos (CES), sindicatos de 15 países anunciaram greves e manifestações e outras iniciativas de protesto. Nesse dia, muitos trabalhadores de vários países europeus estiveram em luta e convergiram com a greve geral convocada em Portugal. A dimensão ibérica desta greve, com repercussões de solidariedade em França, Itália e Grécia, é um fator de enorme importância. A resposta do mundo do trabalho deve desenvolver-se à

altura da ofensiva, isto é, em escala europeia. A greve ibérica mostra que, não só é possível, como é mobilizadora a paralisação simultânea dos trabalhadores em diferentes países.

Esta greve foi um primeiro passo e pode abrir caminho a uma greve geral europeia contra a austeridade, que coloque na ordem do dia a unidade e a convergência dos trabalhadores e das trabalhadoras à escala europeia, contribuindo para uma alteração de forças na Europa.

Estamos perante um governo em fim de linha, pese a remodelação que sofreu, contestado em todo o lado por onde vai. Mesmo sem o “clique” que esteve na origem do 15 de setembro de 2012, a redução da tSU, correspondendo a uma brutal transferência do trabalho para o capital, o movimento social “Que se lixe a troika! O povo é quem mais ordena!”, no dia 2 de março de 2013, colocou nas ruas mais de 1,5 milhões de pessoas que exigiram DEMISSÃO e se expressaram de forma muito clara, troika e governo, rua!Internacionalizou-se a luta, e bem, “Povos unidos contra a troika: Manifestação Internacional no dia 1 de junho de 2012”, que reuniu ativistas de vários países europeus, dezenas de movimentos em Espanha, França, Itália, Grécia, Chipre, Irlanda, Inglaterra, Escócia, Alemanha, Eslovénia… numa mobilização internacional à escala europeia onde todos e todas foram convidados a

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A resposta do mundo do trabalho deve desenvolver-se à altura da ofensi-va, isto é, em escala europeia.

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a troika e contra a austeridade… a favor de que sejam os povos a decidirem as suas vidas. Sabemos que esta ofensiva aposta em vergar os povos, tornando-os escravos da dívida e da austeridade. Atravessa a Europa e também deve ser derrotada pela luta internacional. Embora tardiamente, este é também o caminho trilhado pela CES – Confederação Europeia de Sindicatos, que exige o fim da austeridade.Generalizar e unificar a lutas em Portugal, nos países do sul, mas também naqueles onde a austeridade começa a sentir-se, é o caminho para enfrentar a troika, para enfrentar cara a cara os especuladores e os ideólogos da austeridade, recusando ingerências e pressões sobre a nossa soberania e o próprio exercício da democracia política e social.A greve geral convocada em convergência pela CGtP e UGt, realizada no dia 27 de junho, foi a resposta forte e em unidade na ação aos ataques que o governo, apoiado pelo Presidente da República, pretende levar a cabo contra os trabalhadores do setor público, setor privado, os reformados e pensionistas, os desempregados, tODOS os que vivem dos rendimentos do trabalho.Preconizam-se cortes brutais de 5,6 mil milhões de euros nas funções sociais do Estado e um brutal despedimento de 100 mil funcionários públicos e do setor público, novos cortes nos salários e pensões, aumento da idade da reforma, privatização do vínculo público com a aplicação do código de trabalho do privado ao setor público, que, a serem concretizados, significará uma vitória das políticas do “consenso de Washington”, da diretiva europeia 2020, dos bancos e dos fundos especulativos.A luta contra o empobrecimento, pelo crescimento e emprego é uma luta dos povos europeus e dos portugueses contra as políticas da Sr.ª Merkel e de um governo económico que assumirá naturalmente o tratado de Lisboa.

Derrotar esta política e o memorando da troika é o centro da intervenção A visão sindical – da CGtP e UGt e até da Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) - sobre o caminho para o desastre a que nos querem levar não é de rumo único, de unidade e luta. Alguns progressos têm sido dados, nos últimos tempos, com o anúncio de greves e manifestações e outras iniciativas de protesto. É imperioso conjugar situações tão díspares a diversos níveis e com condições objetivas diferenciadas em cada um dos países; esta urgência tem de estar sempre presente no horizonte de cada uma das centrais sindicais nacionais, da CES, em aliança cidadã com os movimentos sociais. A complexidade da situação mundial e a crise económica e social em que vivemos assim o exige.

A resposta do mundo do trabalho deve desenvolver-se à altura da ofensiva, isto é, em escala nacional e europeia. O caminho da luta mais geral europeia contra a austeridade e pelo modelo social europeu tem que colocar na ordem do dia a unidade e a convergência dos trabalhadores e das trabalhadoras, contribuindo para uma alteração na relação de forças na Europa.

BibliografiaANtUNES, Ricardo (2013). Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. Coimbra: Almedina.ANtUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho (1995). Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez.CASIMIRO, José e ALVES, Francisco. “Concertação social: A quem serve?”, in Boletim “Participacção”.CASIMIRO, José. “Código de trabalho: mais despedimentos e horas de trabalho, menores remunerações”, in esquerda.net.CASIMIRO, José. “Defender a negociação coletiva, o emprego e os salários”, in esquerda.net.CASIMIRO, José. “O Contrato único”, in esquerda.net.COStA, Hermes Augusto (2011). “Do Enquadramento teórico do sindicalismo às respostas pragmáticas”, in O sindicalismo português e a nova questão social - crise ou renovação. Coimbra: Almedina.COStA, Hermes Augusto (2004). “A UGt e a CGtP perante a integração europeia: A confirmação de um sindicalismo dual”. Coimbra: Oficina do CES.EStANQUE, Elísio. “trabalho, sindicalismo e ação coletiva: Desafios no contexto de crise”.SANtOS, Carlos e CASIMIRO, José. “30 anos Depois do 25 de Abril - O big-bang dos movimentos sociais”.

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A matéria-prima da Europaé o Estado SocialEntREvistA A boAvEntuRA dE sousA sAntos PoR FERnAndo RosAs E soFiA RoquE

ENTREVisTABoaventura de Sousa Santos

Com as eleições europeias quase à porta, entre-vistámos Boaventura de Sousa Santos, que nos falou sobre esta Europa herdeira tanto das vi-tórias como das derrotas da social-democracia, esta Europa que vive hoje assolada pelo «fas-cismo social» imposto nos países semiperiféri-cos, como Portugal, e pelos planos do capital financeiro mundial que veem na desvaloriza-ção do Euro a estratégia para a construção de um grande mercado norte-atlântico. Questio-nado sobre qual deverá ser o contra-ataque da esquerda europeia, o sociólogo português defendeu a união das esquerdas e uma demo-cracia revolucionária que conjugue múltiplas formas de participação política, ampliando-se e conjugando-se as democracias representativa e participativa. Sobre a crise da dívida portugue-sa, Boaventura de Sousa Santos afirma que «é

agora que temos de renegociar a dívida» e que tal é mais importante do que o debate sobre a saída do Euro.

Do ponto de vista de um pensador de esquerda, o que é a Europa, qual é o seu conceito ou a sua ideia, independentemente da consagração institucional? A Europa existe?É uma boa pergunta, embora tenha muitas res-postas diferentes dependendo de quem a res-ponde. tenho a experiência recente da realiza-ção de uma oficina da universidade popular dos movimentos sociais, para a qual convidei movi-mentos portugueses, holandeses, franceses (Le Mouvement des Indigènes de la République, por exemplo, e de Portugal estiveram o SOS Racismo, o Que se Lixe a troika, etc.). Um dos objetivos foi que cada movimento social escre-

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vesse uma carta aos europeus e nesse documento respon-desse a esta pergunta, a partir da sua perspetiva, até porque naturalmente surgiu a neces-sidade de questionar quem são os europeus ou o que é a Eu-ropa. Agora que me colocam a pergunta a mim, respondo enquanto sociólogo e nascido neste continente, embora com um trânsito por muitos outros continentes, e respondo numa perspetiva que tem de ser muito mais ideológica do que histórica ou científica. Na ver-dade, o que identificamos hoje como Europa trata-se de uma criação do pós-guerra, algo que foi construído no trauma do pós-guerra. É, portanto, uma construção relativamente frágil. É uma Europa que assume a plena consciên-cia de que é preciso criar uma compatibilidade entre capitalismo e democracia, que é possível combinar altos níveis de produtividade com altos níveis de proteção social e que é possí-vel criar uma integração na base da coesão com a defesa das liberdades e uma aspiração de igualdade assente em relações de recipro-cidade e solidariedade institucional através de pactos negociados que podem ser revisitados e construídos. Ou seja, trata-se de uma Europa que ao mesmo tempo que sai da guerra pelas mãos dos EUA, e de alguma maneira já der-rotada no seu conjunto por duas vezes neste século, assume, no entanto, uma identidade e uma especificidade em relação aos EUA, na medida em que procurou criar, através desta engenharia institucional e de toda a energia política que se gerou com a destruição e de-vastação da guerra, um capitalismo que fos-se alternativo aos EUA – aquele capitalismo que Rudolf Hilferding designou no princípio do século como «capitalismo organizado» e que de alguma maneira passou a ter na Eu-

ropa uma consistência muito maior. Esta foi a alma da so-cial-democracia europeia, as-sente obviamente numa con-certação social muito ampla, com o reconhecimento das li-deranças sindicais, patronais, prestigiando-as e institucio-nalizando os conflitos, como disse Ralf Dahrendorf. Assim se garantiu ao mesmo tempo a permanência do capitalismo e a concertação social – uma concertação assente numa distinção muito grande entre aquilo que eram os conflitos inconciliáveis, os conflitos de classe, e aquilo que poderia ser compatível, ou seja, ga-

nhos e perdas, conflitos redistributivos que já não afetavam diretamente a existência das classes, mas apenas a sua correlação de forças, ao mesmo tempo uma negociação mais centra-da nos interesses de curto prazo do que nos interesses a longo prazo. tudo isto fez com que a luta sindical deixasse de ser uma luta an-ticapitalista, ganhando-se uma consciência so-cial-democrata e perdendo-se uma consciência socialista que deixou de estar na agenda destas novas formas de negociação.

Mas podemos dizer que essa Europa funcionou du-rante um certo tempo, sendo que funcionou do pon-to de vista de quem a idealizou…Sim, funcionou até aos anos 1970 e estava as-sente numa relação tensa, uma vez que esta democracia da tradição liberal foi construída com base num medo enorme de que as massas ou a maioria pudessem algum dia tomar o po-der e, portanto, foi necessária uma engenharia institucional que impedisse isso mesmo. Daí as limitações ao sufrágio ou a própria orgânica do sistema político, com câmaras duplas e meca-nismos que procuravam, de alguma maneira, impedir ou prevenir esse perigo.

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O que correu mal?Correu mal porque este modelo baseou-se na ideia de «soma positiva». Isto é, depois da ener-gia dada pelo Plano Marshall e as novas con-dições realizadas na Europa, foi possível com-binar tudo isto com crescimento económico e, sobretudo, pôr em guarda o capitalismo que, apesar das nacionalizações que existiram nessa altura, foi sujeito a uma tributação progressiva, algo que se tornou um dos pilares da social-democracia europeia desse tempo, tendo-se permitido até, como no caso da Alemanha, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas, através da codeterminação ou da cogestão. Por conseguinte, em retrospetiva, trata-se de um modelo que assentava na ideia dessa «soma positiva», ou seja, esperava-se que o capitalismo continuasse a crescer, ga-rantindo a sua acumulação, comprometen-do-se, em muitos casos, com o nazismo ou o fascismo e adquirindo assim uma legitimida-de nova, diferente dos termos originais mas, enfim, aceitável para o capital que vivia anos gloriosos.

A viRAGEM dos Anos 1970A partir dos anos 70 do século passado, come-çam a verificar-se mudanças, sobretudo com a primeira onda de choque do petróleo, em 1973, quando se viu que a base da economia europeia era relativamente frágil devido ao não controlo das matérias-primas e estando muito depen-dente, de uma forma muito estreita, em relação aos povos estrangeiros e aos tipos de negociação das concessões feitas pelos EUA. É nesse mo-mento que as coisas começam de facto a correr mal, porque o crescimento abranda e os Estados engendram uma tentativa de resposta. Uma ten-tativa, porque os compromissos políticos em que assenta a social-democracia têm uma grande estabilidade, que são os direitos sociais e econó-micos que não dependem de sinais do mercado, dos ciclos económicos. Pelo contrário, algumas das políticas do Estado são fundamentais preci-samente em contraciclo, quando este tem mais dificuldades e só com uma tributação forte é que isto podia ser feito. Mas é nessa altura que o ca-pitalismo começa a sentir problemas na sua pró-

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pria continuidade como acumulação e procura reagir. Em primeiro lugar, procura-se desvalo-rizar o trabalho, o que vai ser a luta com a in-flação que irá durar praticamente toda a década. Foi uma primeira tentativa na qual o status quo praticamente se manteve, embora os trabalha-dores tenham sentido uma certa desvalorização. É importante notar que a Europa, esta Europa, vive perfeitamente tranquila com o facto de este bem-estar ser conquistado à custa da exploração sem nome das colónias. Porque mesmo após as independências, a França e a Inglaterra, em par-ticular, procuraram manter laços neocoloniais baseados naquilo que designamos como troca desigual entre o centro e a periferia. Quando a inflação deixou de ser suficiente começou a luta contra a inflação, uma luta feita ao contrário através do aumento do desemprego. Nesse tem-po, as sociedades europeias viviam uma época de pleno emprego, um emprego com uma relativa qualidade, claro, e por isso o aumento do desem-prego levou a uma forte contestação sindical e à consequente resposta de luta contra os sindica-tos. Isto foi protagonizado por Margaret tha-tcher contra os sindicatos dos mineiros, que, de facto, colocou de joelhos, destruindo o sistema sindical inglês. E assim decorreu toda a década de 1980, levando o capitalismo a assumir uma maior arrogância, na medida em que percebeu que é possível destruir os sindicatos. Nessa altu-ra, também a esquerda, um pouco esquecida do essencial, começa a pensar que os sindicatos são entidades corporativas e de privilégios e que por isso traíram a classe operária. Veja-se o Maio de 68 e a sua contestação agressiva, muito mais do que a dos Indignados de hoje, contra essa traição dos sindicatos e também dos partidos socialistas e comunistas que tendo prometido o socialismo tinham, de facto, consolidado o capitalismo.

Esse contexto de rendição do socialismo ao que hoje chamamos neoliberalismo tornou-se uma componente importante neste processo de destruição da Europa do pós-guerra?Na realidade, este processo começou muito

cedo. Mas é curioso ver que tudo tem a sua própria inércia e a Esquerda adaptou-se a este sistema muito mais tarde, através da doutrina da terceira via, o que é praticamente a rendi-ção dos partidos socialistas ao neoliberalismo com a ideia de que pode haver um neolibera-lismo de face humana, mas lendo os textos do Giddens e considerando tudo o que se seguiu, e que veio, aliás, do partido socialista australia-no, obviamente reconhecemos que se trata de um neoliberalismo puro e duro. O que é preciso ver é o modo como a esquerda se comportou. Ela ficou fragilizada com o Maio de 68, embo-ra esta tenha sido uma luta agressiva com uma resposta também agressiva. Por isso, no fundo, o movimento estudantil não ganhou grande coisa, nem ao nível das universidades, nem ao nível do resto da sociedade. Foi um movimento mundial que passou a ter depois algum êxito mas em lutas que não estavam na agenda da social-democracia, como a luta contra a guerra no Vietname e a luta pelos direitos cívicos.

Essas lutas tiveram impacto na recomposição da esquerda europeia?Sim, claro. Estas lutas colocaram outras ques-tões na agenda da esquerda europeia. E nessa altura começámos também a teorizar sobre isso, nomeadamente, a corrente da esquerda à qual nós pertencemos, defendendo que esta não podia esquecer a questão da igualdade e ao mesmo tempo não podia deixar de reconhecer as diferenças, que eram raciais, sexuais e reli-giosas. tudo isso enriqueceu muito a agenda da esquerda mas fragilizou a luta de classes na sua origem, a partir de uma análise materialis-ta. Era evidente que havia problemas ao nível da recomposição do trabalho que estavam já em curso, tendo pleno desenvolvimento na década de 1980, algo já anunciado no grande estudo trilateral de Huntington, Crozier e Watanuki, tendo estes referido a sobrecarga da democra-cia que tinha assumido demasiados direitos aos cidadãos, sendo por isso necessário começar a cortar «as gorduras». A ideia de que «vivemos

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acima das nossas possibilidades» e para além do merecimento nasce aí. Em Portugal, tivemos uma outra trajetória porque entrámos neste processo só depois do 25 de Abril.

Em 1986, entrámos na CEE. Havia alternativa?Julgo que apenas havia alternativa no modo como entrámos na CEE. Olhando para a nos-sa trajetória histórica, em muitos séculos, pelo menos desde o século XV, nós estivemos ape-nas 11 anos confinados neste continente a este retângulo (entre 1975 e 1986). Anteriormente, tínhamos um império espalhado por três conti-nentes e 11 anos depois integramos um outro centro hegemónico. Se virmos bem, penso que não haveria grande alternativa para este país nesta altura, sobretudo porque era um país em que a intelligentsia e também a classe operária, que viviam o trauma de ter estado 45 anos fora das melhores conquistas da social-democracia europeia, que correspondem à democracia com significado, substantiva e não aquela democra-cia processual de que falava Schumpeter, como uma mera forma através da qual os eleitos se apropriam da vontade dos eleitores e fazem dela uma vontade própria. Portanto, tratava-se do contrário disso, isto é, de uma democra-cia que poderia entrar no imaginário popular. Ficámos fora disso, os sindicatos e a oposição política, embora tivesse havido a expectativa de que no pós-guerra a democracia voltaria a Portugal, tal como voltou a outros países. Mas não voltou a Portugal, nem a Espanha. Perdido o império, a razão de ser do regime salazarista,

perdeu-se também a razão para nós não estar-mos mais próximos da Europa.

A AdEsão à CEE Foi AlGo dE nAtuRAl, ERA A úniCA oPçãoRecorde-se que tínhamos sido acolhidos nas Nações Unidas em 1955, com quem tivemos um grande conflito por causa da questão colonial, o que nos obrigou a mil e uma manobras nos tribunais internacionais, sobretudo depois da anexação de Goa à União Indiana. Porém, ha-via uma grande ânsia de reconciliar o país com a democracia ocidental, digamos assim. Assim, no contexto de um país periférico dentro da Europa, e sabendo-se que vinha de uma pe-riferia de longa duração, penso que a adesão à CEE foi algo natural, no sentido em que era a única opção, até porque já na altura se vivia uma certa euforia da globalização (já tinha começado). Por conseguinte, havia essa ideia de que a soberania tem de ser manti-da em contextos de interdependência e não no isolamento, como no passado. Por outro lado, a própria crise do 25 de Abril em Portugal deu conta de que o bloco soviético não tinha futuro e tinha marcado nitidamente distâncias em re-lação a este lado da Europa, distâncias também presentes na ideia de que não era aqui que se iria fazer o comunismo, como Gorbatchev fez questão de dizer a Álvaro Cunhal. Contudo, sendo a entrada na CEE a melhor opção, essa integração foi muito criticada por mim no meu livro Pela Mão de Alice,1 em clara divergência com Mário Soares, nos anos 1990.

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1 - Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade - 9ª edição, revista e aumentada. Coimbra: Almedina, 2013.

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A questão da crítica à integração europeia leva-nos à questão dos fundos europeus. De facto, durante mais de duas décadas Portugal recebeu fundos europeus, mas tivemos, ao longo da nossa história, outras épocas conjunturais que marcaram a chegada de muito dinheiro de fora, não criado pela riqueza nacional, como foram os «fumos» da Índia, o ouro do Brasil. Podemos perguntar o que aconteceu ao ouro do Brasil e, agora, o que aconteceu aos fundos europeus. Como se explica isso, o facto de uma elite ter deixado estes fundos escorregarem como água num cesto?É uma boa questão mas eu tendo a ver estas questões menos pelo lado das elites políticas. Não porque sejam excelentes, muito pelo con-trário, temos todas as razões para as considerar medíocres, embora a perspetiva histórica seja aqui um pouco mais complexa. De qualquer modo, para mim, a razão tem a ver com o fac-to de, a partir do final do século XVI, termos perdido a hegemonia em relação à Holanda, de-pois da guerra dos 30 anos com a Espanha. A partir daí, tornamo-nos uma potência subordi-nada e semiperiférica, considerando a teoria do sistema mundial, ou seja, éramos uma potência intermédia e intermediária entre o centro e as periferias. Portanto, muito do trabalho, inclu-

sivamente o tráfico de trabalho escravo, não se compreende sem que se aborde esse carácter periférico. Portugal era, ao mesmo tempo, um centro de um império e uma colónia informal da Inglaterra, sobretudo a partir do século XVIII. Éramos, então, um centro colonial muito frágil exatamente devido a essa posição tão semiperi-férica. tanto era assim que, quando o Brasil se tornou independente em 1822, as elites portu-guesas ficaram preocupadas com a possibilida-de de o Brasil controlar Angola através de uma aliança com a Inglaterra, o que nos faria perder o nosso segundo Brasil, algo que seria desastroso aos olhos daquela época. Evidentemente, a po-sição de Portugal era de uma fragilidade total. Note-se que o Brasil consegue a independência perante as invasões napoleónicas. Portanto, a nossa situação de uma posição semiperiférica é de longa duração, constituída na Europa a partir dos séculos XIV e XV, com a centralidade das cidades italianas e as hanseáticas até ao Báltico. O resto são periferias que no contexto mundial, com as descobertas, se tornaram intermediárias. Ora, os barcos que chegavam ao tejo carrega-dos com o ouro do Brasil nem sequer descarre-gavam. Seguiam logo depois para Londres, para o pagamento da nossa dívida.

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Centro de Informação Europeia Jacques Delors, Lisboa

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A AdEsão dE PoRtuGAl à CEE Foi uMA ConCEssão E não uMA EntRAdA dE PlEno diREitoSobre os fundos europeus, penso que as contas não estão feitas, nem o relatório Ma-teus o considero concludente em relação a isso. Penso que a nossa condição semipe-riférica se manteve e tal verifica-se exatamente aí, no modo como entrámos na CEE. Ou seja, Portugal entrou como potência pe-riférica na Europa e, de um ponto de vista sociopsicoló-gico, vemos que esta entra-da é, na verdade, uma concessão, uma oferta e não uma entrada de pleno direito. Foi uma entrada marcada pela vergonha do passado co-lonial e, tomando Portugal uma posição anti-colonial, poderia ao mesmo tempo ter feito do colonialismo uma força, uma vez que éramos o país com mais laços históricos com mais países e continentes durante mais tempo. tínhamos a colónia que tinha sido colonizada, efetiva-mente, por mais tempo, desde 1510 até 1962, o caso de Goa. Era preciso fazer disso uma força e procurar negociações com direitos especiais. Por exemplo, o Brasil, para aceder à União Europeia, deveria ter uma relação privilegiada através de Portugal, tal como os franceses e os ingleses negociaram os seus direitos especiais com as suas ex-colónias. Nós, neste caso, fomos totalmente europeístas, recusando qualquer ideia de direitos especiais e, por isso, as nossas ex-colónias que quisessem esses direitos tive-ram de encontrar os seus próprios caminhos. Mais tarde, isto fez com que o Brasil, sobretu-do no tempo de Fernando Henrique Cardoso, dissesse ao ministro dos negócios estrangei-ros português que não precisavam de Portugal para negociar diretamente com Bruxelas, uma

vez que Portugal não cuidou de nos garantir alguma con-dição privilegiada de acesso à Europa. Portanto, esta nego-ciação teve também um carác-ter semiperiférico. Já a construção dos fundos estruturais europeus é mais interessante porque, de facto, procurava, na sua lógica, pôr fim a essa condição semipe-riférica. Os fundos constitu-íam uma espécie de medida compensatória, uma «bolsa-família» dentro da Europa, em troca do contributo para o desenvolvimento e de uma aproximação. Realmente, em 15 anos, Portugal aproximou-

se do rendimento médio europeu, subindo de 50% a 75% (até ao ano 2000, sendo que poste-riormente começou a divergência que nos levou à situação atual). O que correu mal? A condição semiperiférica que existia no tempo do ouro do Brasil permaneceu nesta questão dos fun-dos europeus. Está mal contada a história do dinheiro que voltou à origem. Esse dinheiro que entrou aqui e foi gasto aqui, eventualmen-te mal gasto, entrou através de investimentos com base em importações, concessões e empre-sas estrangeiras, sobretudo alemãs e francesas.

Houve, então, a reprodução de uma situação de dependência?É evidente que sim. Na verdade, nós oferecí-amos a mão-de-obra, capitais cativos para um grande desenvolvimento mas não tínhamos a maquinaria, por exemplo. A expansão da nos-sa indústria metalo-mecânica e de outras in-dústrias de perfil altamente tecnológico estava muito dependente do exterior, o que fez tam-bém aumentar as importações. Há um grande trabalho que foi feito por Cavaco Silva, uma das personagens mais sinistras no meio de tudo isto, que, de facto, assumiu o carácter semipe-

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riférico do país e da sociedade portuguesa, não para o eliminar mas para o manter, defendendo que não podíamos discutir as condições da ade-são e que tudo o que fazemos diferente é um erro.

CAvACo silvA AssuMiu o CARÁCtER sEMiPERiFéRiCo do PAís não PARA o EliMinAR MAs PARA o MAntERSe a nossa agricultura camponesa era muito forte ao contrário da agricultura francesa, que passou por uma grande reforma agrária, ao contrário do que aconteceu em Portugal, po-deríamos ter pedido uma proteção especial e teríamos hoje a melhor agricultura ecológica, orgânica e biológica da Europa e um nicho de mercado muito importante. Mas não, não se fez isso. O mesmo se passou em relação à nossa pesca, cheia de virtualidades, que foi abatida, destruindo-se toda uma classe, uma cultura, uma identidade de um país para quem o mar teve um papel tão fundamental. Foi esta obediência cega aos ditames da Europa que consolidaram ideologicamente esta nossa con-dição de semiperiferia. É isso que se verifica hoje nas nossas elites, não sendo capazes de pensar com autonomia em relação aos dita-mes europeus que vêm do centro. Do mesmo centro que sempre nos olhou a partir de uma hierarquia, a partir do sistema mundial, em termos de classe, mas também uma hierarquia com laivos do colonialismo interno europeu, como o que existiu em relação à Irlanda, ou a nós, já desde o século XVII, XVIII e XIX. Bem sabemos que este sul da Europa foi e é estigmatizado tal como nós estigmatizámos os indígenas e os povos nativos de África. No meu entender, é com esta complexidade que nós temos hoje de lidar.

O segundo passo foi o Euro. Qual o balanço sobre a nossa adesão ao sistema monetário europeu?Hoje falamos como se não tivéssemos tido es-colha. Como disse, em relação à entrada na CEE, julgo que não haveria alternativa, a

não ser no modo como entrámos. Mas quan-to ao Euro, a situação é mais complexa, até porque na altura houve vozes que eram pró-adesão mas entendiam que deveríamos man-ter a nossa moeda, atendendo à estrutura da nossa economia, tal como outros países o fizeram. Neste caso, julgo que foi um erro gra-ve que foi cometido. Agora é fácil afirmar isto. Devo dizer que, na altura, tal passou um pou-co despercebido, mesmo para os economistas. Houve um ou dois que falaram e falaram com voz muito alta, por exemplo, o João Ferreira do Amaral, que assumiu uma posição dissidente em relação à adesão ao Euro. Mas entre aqueles que eram adeptos da adesão, não houve vozes muito significativas. Não se detetou a escrita pequena dos tratados, as subtilezas. Devería-mos ter sabido melhor porque se chegou àquele Euro e não a outro, o que se estava a pagar pela unificação da Alemanha e quais as condições impostas pelos alemães e as consequências da liberalização dos mercados internacionais nos países do Sul, que vieram a ser muito afetados. É evidente que é nessa altura que começa a es-tagnação, embora tal não se considerasse pois ainda estávamos numa fase não de euforia mas de crença de que isto era mais um desafio que poderia resolver os problemas que já se veri-ficavam. A verdade é que não se resolveram nenhuns problemas, antes foram agravados e ampliados na sociedade portuguesa.

Há um grande debate sobre a saída ou não do Euro. O que deve a esquerda defender nesta matéria?Eu tenho estado com muita atenção a esta questão e tenho lido bastante a documentação que vem da CIA, porque considero-a muito importante. A CIA tem um departamento na-cional de inteligência, o National Intelligence Department, que publica, de quatro em quatro anos, um documento que é entregue ao Presi-dente dos EUA e muito lido pelas elites polí-ticas. O último chama-se Global trends 2030. Este relatório diz muitas das coisas que temos

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vindo a observar e que nos podem ajudar a ver como irá ser o comportamento dos Estados no futuro. O relatório é muito complexo e entre várias coisas, está a referência ao norte global – a Europa, os EUA e o Canadá - que representa hoje 56% do mercado global mas que em 2030 será 25%. Além disso, também é dito que a Eu-ropa estará em crise até 2023 e é incerto se no final manterá a sua coesão.

GlobAl tREnds 2030. o RElAtóRio PRosPEtivo dA CiAO importante nestes relatórios é que estes contêm o que chamamos em sociologia o self-fulfilling prophecy, isto é, quem escreve estes re-latórios tem poder para fazer, realizar e autor-realizar as suas profecias, mesmo que à partida não sejam verdadeiras, porque as pessoas irão agir com base nessas premissas. Por outro lado, o relatório diz que são os atuais países emer-gentes, os BRICS, que irão ter um papel central na economia, cada vez mais, e também outros países como a Colômbia e o México. Assim, o relatório afirma que, efetivamente, o norte global está sitiado por uma série de condições que levam o norte a encolher e o sul global a expandir-se na economia glo-bal. Portanto, dizem que terá de haver medidas e os EUA e a sua supremacia militar são absolutamente incontestados. Um outro perigo referido, considerado um dos grandes perigos, é o da informação, uma vez que as grandes em-presas da internet, a Google, o Facebook, etc., detêm mais informações do que qualquer Estado, inclusivamente os EUA. O relatório diz, então, claramente, que é preciso con-trolar essas empresas e con-trolar essa informação. Por conseguinte, o caso «Snow-den» é apenas a revelação do

que eles dizem no relatório. Nós só não sabía-mos como o estavam a fazer. O relatório aponta ainda para a possibilidade, ainda que com menos força, de uma integração entre os EUA e a União Europeia, algo que tem vindo a ser falado ultimamente, ou seja, que é preciso criar um grande mercado comum. Mas este mercado comum europeu e norte-america-no, um grande mercado norte-atlântico, é pen-sado nos termos dos EUA. Isso é muito claro para eles. Esta ideia vem dos anos 80 do século passado, quando vieram dizer que o capitalismo europeu não é exportável, apenas o capitalis-mo liberal norte-americano. Portanto, temos de compreender o que se passa agora na Europa à luz deste relatório Global trends 2030 e o modo como eles o encaram. Em primeiro lugar, a luta contra o Estado social é fundamental, pois este é o grande obstáculo à plena integra-ção do capitalismo europeu nos termos de um capitalismo norte-atlântico.

sE nA AMéRiCA lAtinA dEstRoEM A AMAzóniA, nA EuRoPA dEstRoEM o EstAdo soCiAlSão obviamente também as questões da liqui-dez, o capital financeiro descontrolado que tem

dinheiro a rodos e não sabe onde o pôr… mas aqui não há matérias-primas – a matéria-prima da Europa é o Estado social. Se na América Latina exploram e destroem a Ama-zónia, aqui na Europa des-troem o Estado Social com a mesma lógica de necessi-dade de acumulação, embora isto signifique a descaracteri-zação total do chamado capi-talismo europeu. Ora bem, que moeda para essa integração? É claro que não pode ser um euro que rivalize com o dólar. te-nho já afirmado isto, esta crise do euro foi em parte induzida

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pelo dólar porque o dólar é uma moeda for-te num país fraco economicamente. É algo que nunca se viu. Há apenas um controlo das finanças mas trata-se de um controlo muito frá-gil, sobretudo porque é um controlo construído à custa de uma dependência enorme da China, o seu grande credor, e deste facto inaudito que é as pessoas acreditarem no valor de uma moeda que não vale nada, tão pouco preciosa que é impressa todos os dias. Como é possível? Tudo acontece com base numa grande ficção da organização segundo um sistema hegemónico que tem de continuar a ter um centro que domine o ca-pital financeiro, combinando esse poder com um grande poderio militar, uma componente absolutamente importante e com grande di-mensão económica, essencial para a hegemo-nia dos EUA. O músculo está lá para quando for preciso e justifica a racionalidade de uma despesa brutal. Se virmos as bases norte-ame-ricanas existentes e as que estão a ser construí-das em África e no Médio-Oriente, percebemos que se trata da polícia de segurança privada das concessões petrolíferas e dos recursos naturais, estando, portanto, ao serviço da manutenção da hegemonia dos EUA. Nestas condições, o Euro nunca poderia ser uma moeda que servisse de alternativa aos chi-

neses, por exemplo, ou para denominar as suas reservas em euros e não em dólares, como sa-bemos que Saddam Hussein o tentou fazer nos anos 1990, algo que teve o destino que teve. Por-tanto, como em relação à China o mesmo não se poderia fazer, resolveu-se desacreditar o euro. Penso que nesta crise do euro, atacando-se o elo mais fraco, nada aconteceu por acaso. Não foi por acaso que foi escolhida Grécia e aí foi feito todo o trabalho de vigarice reali-zado pela Goldman Sachs, que é hoje, como sabemos, uma das 4 ou 5 entidades que estão por detrás daquilo que chamamos «os mer-cados». Estes mercados não são nada invisíveis, nada abstratos, são antes o resultado de decisões de meia dúzia de indivíduos com um poder fi-nanceiro extraordinário no mundo. Portanto, a questão é mais sobre como vai ser o euro como bloco. Eles já não veem que esta moeda venha ser uma moeda alternativa ao dólar, ou seja, uma integração levará a que as duas moedas se man-tenham na mesma lógica. Teremos, então, uma certa descaracterização do euro enquanto uma moeda que tem possibilidade de assegu-rar uma certa coesão. Neste momento, o que ela assegura é a rigidificação das periferias, isto é, com o euro está-se hoje a subverter todo o projeto europeu.

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Não é por acaso que isto surge quando a gera-ção forjada no trauma da guerra deixa de estar em cena e entra uma geração que já não viveu a guerra e foi simultaneamente evangélica e co-munista, como é o caso de Angela Merkel, para a qual tudo o que se passou antes já não tem grande validade. Neste momento, estamos um pouco armadilhados. Eu já mudei de opinião ao longo dos últimos tempos. Perante esta situa-ção, a minha posição é basicamente a seguin-te: por um lado, podemos negociar uma outra posição dentro da União Europeia e, portanto, avançarmos para uma solução mais federalis-ta. Numa federação, os Estados têm autono-mia e temos hoje casos exemplificativos, como por exemplo o Brasil. Ainda há pouco tempo, quando discutíamos com o governador de Rio Grande do Sul, percebemos que ele tem uma política industrial dentro do seu estado, em-

bora tenha uma dívida perante a União e um contexto macroeconómico dado por esta, mas tem a sua especificidade. Pode até manipular o IVA de acordo com o que entende necessário para criar uma política industrial e de incen-tivos e pode até optar pela renúncia tributária. É isto que hoje não é possível em Portugal, mesmo não havendo federalismo. Por isso, o federalismo tem de ser político. Não pode ser apenas a lógica económica que é imposta pelos países economicamente mais fortes que é o que temos hoje. Não somos geridos numa estrutura política, mas sim numa estrutura de tipo Fundo Monetário Internacional ou de banco, isto é, tem mais peso no voto quem tem mais poder econó-mico. É exatamente assim que estamos hoje.

é AltuRA dE, CoM uM GovERno CREdívEl E lEGitiMAdo, REnEGoCiAR A dívidAQuando foi criada a União Europeia e decidi-mos participar nesse projeto, a ideia era total-mente a oposta – cada país um voto e a ideia as-sente na rotação das presidências, ou seja, uma lógica oposta à do FMI ou do Banco Mundial em que parte do poder resulta do poder de voto que corresponde ao PIB dos países. Verificamos hoje uma grande perversão em relação ao pro-jeto inicial. O grande problema que temos ago-ra é o de saber se podemos manter-nos nesta Europa e neste euro. Há quem diga que a saída do euro é a saída da Europa, há quem diga que uma saída do euro não é necessariamente uma saída da União Europeia, até porque já existe hoje uma União Europeia do euro e outra sem euro. Estes são então os dilemas em que nos

encontramos. Neste momento, tenho vindo a defender que, por outro lado, deveríamos levar até ao limite as virtualidades do euro. O que é que isso significaria neste momen-to? Significaria que nós, sem grande drama, mas como um governo credível e legitima-do internamente, estaríamos na altura para fazer uma renegociação da dívida. Podemos inventar federalismo, falar sobre muitas ques-tões, sair ou não do euro, mas Portugal, dentro ou fora do euro estará absolutamente esmagado se esta dívida continuar sobre nós. Para dar um exemplo, recorro novamente ao governador do Rio Grande do Sul que nos expôs, numa recen-te reunião com banqueiros no Santander totta, os problemas do seu estado derivados de uma

A dimensão política da crise tem por base a ideia da teoria liberal dos dois mercados: o mercado político, o dos valores que não se compram nem se vendem, isto é, as convicções políticas, e o mercado económico, o dos valores que se compram e vendem

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dívida pública de 17% do PIB, algo que me fez dar uma gargalhada, pois a dívida portuguesa já vai em 127% do PIB. Concluindo, é agora que temos de renegociar a dívida e isso é muito mais importante do que estar ou não dentro do euro, porque se formos capazes de renegociar a dívida, isso é o que vai permitir-nos viabilida-de económica dentro do euro. Se não renego-ciarmos a dívida… devo dizer que não seremos nós a decidir quem fica dentro ou não do euro, mas sim as forças económicas predominantes. Estarmos aqui em Portugal a decidir se vamos sair ou não é completamente irrelevante. Como também é irrelevante, neste momento, unir as esquerdas, como fizemos há pouco tempo na Aula Magna, embora seja a nossa opção e a sa-ída que defendemos. Contudo, no dia seguinte os líderes do PS e do CDS vão a Bilderberg co-zinhar a próxima coligação. O que quero dizer é que há poderes não democráticos que dominam a democracia europeia.

Há também uma dimensão eminentemente política da crise que atravessamos. A Grande Depressão de 1929 foi acompanhada pela grande crise do sistema liberal do ocidente, que acabou nos fascismos e na guerra. Atualmente, vivemos o que alguns autores consideram a Grande Depressão de 2008 e também a situação de hoje é acompanhada por uma espécie de segunda crise histórica dos sistemas liberais, com a chamada crise da democracia. Bem sabemos que os sociólogos não são magos nem videntes, mas fazem prospetiva. Nesse sentido, como encarar esta nova crise do sistema político liberal, a crise da legitimidade representativa, esta aparente ineficácia dos Estados democráticos para gerir os problemas e representar as pessoas, este esvaziamento do próprio poder da democracia? A dimensão política da crise tem por base a ideia da teoria liberal dos dois mercados: o mer-cado político, o dos valores que não se compram nem se vendem, isto é, as convicções políticas, e o mercado económico, o dos valores que se compram e vendem. Com o tempo, assistimos à

fusão dos dois mercados, sob a égide do mercado económico. Neste momento, em política tudo se compra e tudo se vende e a corrupção é endémi-ca. Esta corrupção tem uma dimensão ilegal mas tem também uma dimensão legal e corresponde ao facto de os mercados serem hoje os sinaliza-dores de toda a política e não os cidadãos. A de-mocracia foi, então, desta forma esvaziada. Esta democracia liberal não pode existir se os dois mercados não estiverem separados e para isso é necessária uma regulação do capital financeiro, pois sem isso nada se conseguirá fazer. Esta democracia representativa e liberal foi derrotada historicamente pelo capitalismo, mas penso que a derrota é reversível. Mas como o vamos fazer? Nas ruas, aqueles com quem esta-mos, os Indignados de Portugal, Espanha, Gré-cia, etc., o que pedem é democracia. Ou seja, a democracia entrou no imaginário dos jovens. Não podemos deixar de ter isto em mente, é fundamental. No final do século XIX, início do século XX, quando os jovens também se revol-tavam em Chicago, em Londres, em Madrid, em Paris, em Moscovo, lançavam bombas, alguns, outros não (os anarquistas estiveram sempre divididos entre uma visão mais pacifista e ou-tra mais belicista). Contudo, a nenhum ocorria pedir democracia, pois a democracia era obvia-mente uma coisa das elites, em que ninguém participava, pertencia às oligarquias que esta-vam no poder. Ora, durante este último século houve de facto conquistas, algumas delas muito dolorosas, houve guerras, lutas sindicais, lutas de movimentos sociais que permitiram uma maior inclusão no contrato social. tal permitiu que os trabalhadores que não faziam parte da democracia, as mulheres, etc., fossem lentamen-te entrando no contrato social. Portanto, a de-mocracia faz hoje parte do imaginário popular. Assim, temos por um lado uma crise da demo-cracia representativa e, por outro, temos o ima-ginário da democracia presente de modo muito forte nas lutas sociais extrainstitucionais. Hoje, a democracia vive pela extrainstitucionalidade, pois na institucionalidade é um cadáver adia-

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do. Isto acontece porque é apenas exercida nas ruas, nas praças, únicos espaços não coloniza-dos pelo capitalismo financeiro internacional e é por isso que tantos se dirigem para as praças, quando não vão apenas para a sua consciência, vivendo internamente os dramas com alguma passividade e muito sofrimento.

CoMbinAR dEMoCRACiA REPREsEntAtivA CoM novAs FoRMAs dE dEMoCRACiA PARtiCiPAtivAPor conseguinte, perante estas duas situações, qual a solução? Eu acho que a solução é a que te-nho vindo a defender com muita convicção, e cada vez tenho mais convicção nela: é a de que nós precisamos para já, não sei se de transição ou definitivo, de um novo modelo de combina-ção das formas de democracia representativa com as de democracia participativa. Isto é, nós temos de fazer uma profunda reforma do

Estado, que passa por um maior controlo dos cidadãos, controlo sobre os partidos, sobre o sistema político e sobre as instituições, atra-vés de conselhos, referendos e plebiscitos, da revogação de mandatos e de muitas outras formas, como os orçamentos participativos – formas que façam aquele controlo que vai para além da democracia representativa. Porém, não podemos prescindir desta, considerando o ima-ginário em prática neste momento e porque não está na agenda um processo revolucionário (uma das vítimas de todas as transformações). Por agora, falamos então de uma revolução demo-crática ou democracia revolucionária. Este é que deve ser o nosso grande lema, no meu entender. É isso que podemos de alguma maneira colher das experiências na América Latina, na Índia – a Europa tem de aprender com o Sul2 e só não aprende mais por causa da arrogância colonial. No Brasil temos partidos que nasceram dos mo-vimentos sociais, como é o caso do Pt, ou o Pa-

2 - Coordeno, neste momento, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, um projeto de investigação denominado ALICE — Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo - que assenta na aposta de que a transformação social, política e institucional pode beneficiar amplamente das inovações que têm lugar em países e regiões do Sul global. trata-se de uma aposta exigente que pressupõe a disponibilidade para o conhecimento recíproco, a compreensão intercultural, a busca de convergências políticas e ideológicas, respeitando a identidade e celebrando a diversidade.

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chakuti, no Equador, ou o MAS, na Bolívia, ou até o Partido Socialista Unificado, na Venezue-la, que são, portanto, imanências do movimento social. Porém, são governos que chegaram ao poder legitimamente por eleições democráticas, livres e enquadradas no marco da democracia representativa liberal. Mas, uma vez no poder, procuraram fazer aquilo que é possível fazer, não criando, ao contrário do que temos debatido, o socialismo do século XXI (sendo que este nunca esteve efetivamente numa agenda política), mu-dando, no entanto, os termos do conflito redis-tributivo, por exemplo. A sua sustentabilidade é problemática, mas no Brasil, por exemplo, há 40 milhões de pessoas que entraram dentro do contrato social. Não são novas classes médias, mas trabalhadores que antes não comiam e ago-ra comem e por isso também podem consumir bens, entupindo as cidades e assim tivemos ago-ra estas mobilizações. O que foi que fizeram? Fizeram e têm feito experiências de democracia representativa muito articuladas com formas de democracia representativa que continuam a estar vigentes. Algumas destas experiências são extra-ordinárias, tenho-as estudado procurando saber como está a ser feita a democracia participativa hoje, muito para além do que estudei nos anos 1990. trata-se de saber como é que é possível estabelecer um gabinete digital, colocando 500 mil pessoas em todo o país [Brasil] a partici-par num debate sobre a refor-ma constitucional, realizando na prática uma consulta po-pular sobre se deverá ser feita através de uma constituinte originária ou um plebiscito a pedido do congresso. São, por-tanto, novas formas de parti-cipação que são as grandes alternativas que estão por aí e é nessa articulação entre uma democracia representativa e uma democracia participativa

que vai ser possível, digamos, encontrar uma forma civilizada e digna de vencer esta crise, sem recurso à guerra, ou àquela guerra, que como diz o subcomandante Marcos, já estamos na quarta guerra mundial na qual os ricos se apropriam dos pobres através daquilo a que te-nho chamado fascismo social.

A atual crise, a grande depressão económica e financeira e a crise política que a acompanha, têm na retaguarda o aspecto de um novo autoritarismo que acompanha a crise das democracias. Estamos numa época de confrontos aparentemente decisivos. Na Europa, a esquerda está em medida de não perder esta batalha?Francamente, não sei. Acho que as novas formas de autoritarismo são difíceis de formular e por isso difíceis de com-bater. todos nós fomos construídos entre dois inimigos da democracia: por um lado, o capi-talismo selvagem, contra o qual a democracia contrapunha os direitos sociais e económicos, e, por outro lado, o fascismo, contra o qual a democracia responde com os direitos cívicos e políticos. Portanto, para alguns, aqueles mais à direita, o adversário seria mesmo o próprio

socialismo, pois este socialis-mo seria revolucionário e an-tidemocrático. A democracia era, então, vista neste con-junto de contradições. En-tretanto, o socialismo desa-parece como tensão, porque a esquerda assume depois esse socialismo como demo-crático, aliás, hoje, na Amé-rica Latina, quando se fala de socialismo do século XXI, é sempre no sentido de um so-cialismo sem aquela vertente autoritária que houve efeti-vamente no socialismo real. Por conseguinte, os dois ini-migos sitiaram a democracia e de modo muito forte.

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o FAsCisMo CoMo sistEMA soCiAlO fascismo, em vez de ser hoje um siste-ma político, é um sistema social. Quando um jovem depende, enfim, da benevolência do seu patrão para poder ou não trabalhar, quando alguém para comer depende ou não de uma instituição de caridade, temos um fascismo instalado nas relações sociais. Diz respeito a este facto de os mais ricos ou mais afortunados terem um direito de veto sobre as expectativas de vida dos mais pobres ou dos mais excluídos. Portanto, o fascismo existe hoje como sistema social e, por isso, como tenho vindo a defender, vive-mos hoje em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas. Isto é muito difícil de ser visto pela esquerda eu-ropeia, pois esta foi criada na luta antifascista e o antifascismo é político, não é social. A es-querda europeia ainda não viu bem a gravida-de da situação, porque se o visse saberia que este fascismo social é tão corrosivo quanto o fascismo político.

Portanto, nós deveríamos fazer o que as gera-ções que nos antecederam fizeram no momento do fascismo político, que foi unirem-se naquilo que era o essencial: restituir a democracia. De-pois poderemos debater se vamos ou não para o socialismo, mas unamo-nos agora. Contudo, esta consciência não está aí e enquanto ela não estiver aí não se responde, isto é, nada é feito enquanto o medo de um capitalismo fascista não estiver encrustado, porque estou conven-cido que vivemos já sob um capitalismo fas-cista, tendo-se suspendido a democracia sem criar nenhum estado de exceção, esvaziando-a

completamente. Vivemos num estado de sus-pensão permanente que foi pensado para as crises – primeiro foi pensado para lutar con-tra os comunistas, depois contra os terroris-tas e agora luta contra mim e contra nós, o cidadão comum que sempre pagou impostos e procurou sempre ter uma vida de trabalho digno. Ora, como à esquerda não se está a ver isso, nós estamos num impasse. Penso que só irão reconhecer isto perante uma crise mui-to mais profunda, quando todas as formas da democracia forem aniquiladas, e, nessa altura, provavelmente, haverá uma união que chega tarde demais. tanto pode ser uma extrema-direita a captar isto como poderá ser a esquer-da, não tenhamos dúvidas. Mas porque é que a esquerda não vê isto? Porque a esquerda tem nome e tem endereço. As esquerdas europeias estão hoje divididas e vemos essa fratura aqui em Portugal, quando temos de um lado uma esquerda social-democrata que aspira a uma social-democracia que deixou de existir e está em desgaste.

Para resgatar esta social-democracia seria ne-cessário um certo suicídio porque não é pos-sível pagar toda a dívida até ao último tostão, como diz o líder do PS, António José Seguro, e aguentar um mínimo de social-democracia. Das duas uma, ou o PS já desistiu de qual-quer ideia de defesa dos direitos sociais e políticos, metido completamente com o neoliberalismo, ou então não está e assim se torna incompreensível a sua atitude; ou, por outro lado, temos uma outra esquerda, que está também dividida entre si, que certamen-te tem o acordo sobre a necessidade de uma

(...) o fascismo existe hoje como sistema social e, por isso, como tenho vindo a defender, vivemos hoje em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas.

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renegociação ou reestruturação da dívida que não seja feita nos termos dos credores, mas nos dos nossos interesses. Como já disse, esta é altura ideal para se fazer isso, antes das elei-ções alemãs e num momento em que já se sabe que as receitas não estão a funcionar. É tão ób-vio que até parece um golpe de asa: alguém que diga que isto está tão errado e não funciona e assim pergunte porque não se pode renegociar? Bom, nós temos esse programa alternativo, não temos é uma esquerda alternativa para o condu-zir. Portanto, estamos perante uma grande in-cógnita. Nós vemos emergências por aí, vemos, por exemplo, os Indignados e a ideia dos novos partidos e ao mesmo tempo agitações por um novo partido não de esquerda mas tecnocrata, que resulta da grande instabilidade em que vi-vemos e que se assume para além da esquerda e da direita, como é o caso italiano do Movimen-to 5 Stelle e de Beppe Grillo – um bom exemplo disso. tivemos recentemente num debate com eles, em Espanha, e foi interessante ver como é que eles se conseguem definir politicamen-te sem optar entre esquerda ou direita, tendo apenas pontos fundamentais – somos a favor do aborto, quem estiver de acordo está connosco, somos a favor de um sistema nacional de saúde

e por aí adiante com outros pontos. Para nós, isto é uma nova leitura da dicotomia entre es-querda e direita, mas para eles não é e em al-guns casos têm pontos na sua agenda que clara-mente classificaríamos como sendo de direita. Mas é possível construir uma política pro-gressista na Europa para além da dicotomia esquerda/direita? Eu penso que não. Se não é possível, então a esquerda não tem outra hipótese senão entender-se para enfrentar tudo isto. Mas tal, como já disse, é a grande incógnita que vivemos neste momento. Penso que, nas condições portuguesas, o mais urgen-te é mesmo uma transformação interna do PS que permitisse um entendimento com o Bloco de Esquerda que está a passar por uma trans-formação interna no sentido de criar uma al-ternativa de esquerda. Se tal acontecesse com alguma credibilidade, tenho a certeza de que o PCP viria atrás, pois não poderia assumir a res-ponsabilidade de ficar de fora de uma alternati-va deste âmbito. Porém, claro, há problemas e dificuldades na criação desta alternativa. Mas, sobre isso, como costumo dizer, os sociólogos são bons a prever o passado e não a prever o futuro.

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Boaventura de SouSa SantoS é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (UC) e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Uni-versidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director do Centro de Estudos Sociais da UC; Coor-denador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Dirige actualmente o projecto de investigação ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo, um projeto financiado pelo Conselho Europeu de In-vestigação (ERC). Tem trabalhos publicados sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos em espanhol, inglês, italiano, francês e alemão.

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O livro de Daniel Bensaïd que a leitora ou o lei-tor tem entre mãos2 foi publicado em 1995, há portanto quase vinte anos. E, no entanto, desde esse momento, que já vai longe, não surgiu a lume qualquer outro estudo da obra de Marx que se lhe compare, nem na capacidade de ana-lisar a construção da coerência do marxismo, nem na ambição de a confrontar com outros pensamentos e contribuições contemporâneas ou “aventuras críticas” posteriores. Poderia ser essa uma recomendação frágil, porventura mais dependente da escassez do marxismo do final de século do que dos méritos próprios da obra,

se não se desse que este estudo é marcante pela combinação única de um conhecimento argu-to da obra de Marx com uma visão atenta das principais correntes de pensamento moderno na sociologia, na economia e na filosofia das ci-ências. Não existe, nos debates teóricos do mar-xismo e da marxologia dos nossos dias, outro livro que tenha a dimensão, a profundidade e a relevância de Marx, O Intempestivo.Neste livro encontramos uma imensa galeria de personagens e de polémicas, como os que tiveram por alma gente da ordem de Bourdieu, Labriola, Spinoza, Leibniz, Descartes, Korsch,

Agendas da crítica crítica1

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PENsAR o soCiALisMo HoJE Francisco Louçã

1 - Prefácio à edição portuguesa do livro de Daniel Bensaïd, Marx intempestivo.2 - Marx, O Intempestivo – Grandezas e Misérias de uma Aventura Crítica (Séculos XIX-XX).

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Kolakowsky, Gramsci, Derrida, Godelier, Els-ter, Brenner, Olin Wright, Lefèbvre, Hegel, Stephen Jay Gould, Balibar, Schumpeter, Sa-cristán, Adorno, Heidegger, Marcuse, Péguy, Nietzsche, Benjamin, Bloch, Freud, Comte, Blanqui, Lukács, Rawls ou Poulantzas, para no-mear alguns dos convocados. Com eles, e por vezes contra eles, Bensaïd analisa três grandes temas críticos: a razão histórica (a teoria mar-xista não é uma filosofia do sentido da histó-ria), a sociologia estrutural das classes (a teoria marxista não é uma categorização empírica da estrutura económica) e, finalmente, a ciência moderna (a teoria marxista não é um positivis-mo), para delimitar os campos em que o mar-xismo se desenvolveu e se reconhece.Nestas notas de prefácio concentrar-me-ei nos dois últimos temas, em particular porque são os que neste livro representam uma nova abor-dagem no percurso e nos interesses teóricos de Bensaïd. Assim, começarei por uma apreciação das grandes fases da sua obra, depois seguirei brevemente os seus principais objetivos polémi-cos e, finalmente, apresentarei algum dos temas em que este “Marx intempestivo” abriu caminho.

Uma mudança de ângulo de visãoO primeiro livro publicado por Daniel Bensaïd, este em conjunto com Henri Weber, foi Maio de 68, Ensaio Geral, uma reflexão a quente sobre os acontecimentos e confrontos desse mesmo ano e uma proposta de estratégia revolucioná-ria para uma França e uma Europa que eram abaladas profundamente pela surpresa de uma sociedade farta do situacionismo gaulista e do capitalismo da sociedade de consumo. Os seis livros seguintes foram todos dedicados ao pen-samento político: os problemas do movimento

estudantil, a revolução portuguesa de 1974, a estratégia política na luta pelo poder, um deba-te com Michel Rocard, uma análise da teoria le-ninista e dos conceitos de partido e, vinte anos depois, uma evocação do Maio de 68, escrita com Alain Krivine, seu camarada de armas das lutas do Maio.A partir de então, este percurso começou a trilhar um novo caminho. Eu, A Revolução, de 1989 – o bicentenário da revolução francesa de 1789 –, recuperava muita dessa reflexão política mas afirmava um estilo literário novo e surpreendente, divertidamente messiânico e autorreflexivo, em nome de uma revolução que, pelos tempos fora, falava de si própria para contrastar-se com a solenidade de uma repúbli-ca coquete que a comemorava para a esquecer. Joana Cansada de Guerra, de 1991, investia o mesmo estilo num tema dos mais controversos ou alheados da tradição ou do interesse da es-querda revolucionária, a história da paixão de Joana d’Arc, para lhe chamar o que foi. Os livros desses anos noventa dedicaram-se então a um novo ângulo de visão, as ruturas no tempo. Dirão os leitores: pois não era dis-

so mesmo que tratava o tema anterior, sobre estratégia revolucionária? Não é a estratégia a procura de uma rutura no tempo, esse pro-vocar de “saltos”, como Lenine rascunhava nas margens do seu exemplar da Lógica de Hegel? Sim, é isso mesmo. Mas é muito mais. É ainda a procura de todas as dimensões em que o pensa-mento e a experiência confrontam a linearidade do tempo e desafiam a sua permanência. Porque o tempo perturbado, como vamos ver, é mais do que o tempo da política que o perturba: é um processo histórico de criação de contingências

Não existe, nos debates teóricos do marxismo e da marxologia dos nossos dias, outro livro que tenha a dimensão, a profundidade e a relevância de Marx, O Intempestivo.

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e de resposta a necessidades, como tantos intu-íram também fora do marxismo, em particular a partir de Darwin.Bensaïd começou esse trabalho de reflexão so-bre o tempo a partir de Walter Benjamim com a Sentinela Messiânica (1990) e um texto mais abrangente, A Discordância dos Tempos (1995) – o mesmo ano de grande produção em que é também publicado Marx, O Intempestivo. O au-tor não parava e multiplicava o seu talento e o seu esforço na escrita, ao mesmo tempo que ocupava um papel destacado na direção do seu partido e da IVª Internacional. A partir de 1995, os seus livros traçaram este novo caminho: estudos e variações sobre Marx e os marxismos, uma dedicação sem par a ler, conhecer, divulgar e debater um marxismo vivo, liberto de dogmas e de maldições, ao mes-mo tempo que mantinha a mesma veia polé-mica. Para o estudo de Marx, Bensaïd acres-centou novos contributos: O Sorriso do Espectro (2000), Marx ou os Hieróglifos da Modernidade (2001) e Elogio da Política Profana (2008). Para o debate, terçou armas com os defensores das intervenções militares “humanitárias” (Quem é o Juiz?, 1999, Contos e Lendas da Guerra Ética, 1999) e com os reformismos vários (Elogio da Resistência, 1998, A Esquerda Deles e a Nossa, 1998, Os Irredutíveis, 2001) e fez até um esboço de reflexão geracional autobiográfica (A Lenta

Impaciência, 2004). Voltou sempre ao debate es-tratégico (Os Trotsquismos, 2002, O Novo Inter-nacionalismo, 2003).

A polémica é a vidaBem sei que a crítica da “crítica crítica” era em Marx uma metáfora para debates acesos contra os teóricos que se excluíam da prática política empenhada no socialismo e na luta de classes e que, por isso, os leitores mais atentos podem sorrir perante o título deste prefácio. Mas per-mitam-me a liberdade de emancipar o termo da sua origem e de o fazer retornar ao efeito semântico pretendido, o do reforço da crítica.Foi essa crítica, esse espírito polémico, esse le-gado político aprendido nos meios em que se formou – Bensaïd foi um dos criadores e diri-gentes do Movimento 22 de Março, com Cohn-Bendit, e depois da JCR e da LCR – que cultivou ao longo dos tempos. Polémica para demarcar campos, polémica para estabelecer ideias, polé-mica para agrupar e aproximar, mas também polémica para explorar caminhos. A polémica foi a sua vida.Neste seu Marx, Bensaïd desenvolve uma des-sas polémicas, a que mobilizou contra Louis Althusser e o estruturalismo. Embora o nome apareça pouco neste livro e a referência fique perdida no passado, Althusser fora um dos al-vos mais importantes da crítica anterior de

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Ilustração revista The Labor Age, February 1927, p. 1 "Cingir o trabalho dos operários da Ford a 5 movimentos diários."

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Bensaïd: autor de referência do PCF e depois das correntes maoístas do seu tempo, Althusser construíra uma versão radical do velho estru-turalismo francês para interpretar Marx e, em particular, para reclamar uma certa cientifici-dade do Marx de uma época de maturidade que romperia com a fase de juventude, irremedia-velmente romântica (seria o caso dos Manuscri-tos Económico-filosóficos, de 1844). Deste modo, o conceito de alienação era varrido deste mar-xismo estruturalista, que apresentava o edifício teórico como uma arquitetura autoritária de conceitos e de pilares definidores, um modelo de aprendizagem e de interpretação que logo foi replicado em diversos campos do saber, da sociologia à economia. Esse empreendimento reduzia o marxismo a uma mecânica imponen-te e, se criava escola, empobrecia a capacidade de entendimento dos processos históricos, em particular das grandes ruturas, do tempo novo.Bensaïd, com Ernest Mandel e outros, dedicou-se a destruir este edifício apático do estrutura-lismo e a demonstrar que não havia essa “rutura epistemológica” em Marx. A publicação tardia dos Grundrisse de Marx, um livro que ficou des-conhecido até 1939 (as edições francesa e in-glesa são só de 1968 e de 1973, respetivamen-

te), demonstrou como Althusser simplificava a trajetória histórica do marxismo e ignorava as conexões profundas entre os vários momen-tos da escrita de Marx. Althusser tentou ainda um recurso último argumentando que a análi-se romântica dos Grundrisse contrastava com o cientificidade de O Capital, e que essa era a prova provada da “rutura epistemológica”. No entanto, como Mandel demonstrou no seu es-tudo sobre O Capital, o fetichismo da merca-doria é claramente demonstrado em todos os estudos publicados por Marx até ao fim da sua vida. O Marx da maturidade era promotor de uma política emancipatória quente, que conti-nuava a sua tradição de juventude e rejeitava o mecanicismo estruturalista de um marxismo frio.O fetichismo da mercadoria e os processo de alienação que gera eram e continuaram a ser elementos decisivos para a compreensão tanto da produção mercantil generalizada quanto do efeito de hegemonia que cria em torno de si, e Marx nunca se separou dessa filosofia contra a alienação. Não há marxismo nem proposta re-volucionária que não se defina e combata esse processo social de fetichização. Em Marx, O Intempestivo, essa polémica reapa-

3 - Nota: as remissões para as páginas de Marx, O Intempestivo são relativas à edição original da obra.

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rece sob a forma da crítica (crítica) ao “marxis-mo analítico”, a corrente de economistas e soci-ólogos norte-americanos (Roemer, Elster, Olin Wright) que, depois de Althusser, aplicaram ao campo da análise empírica das economias e das classes os conceitos estruturalistas (pp. 143, 1963). Este marxismo analítico propôs-se retomar o individualismo metodológico da eco-nomia burguesa ortodoxa. Fê-lo associando a sua teoria da justiça a um pensamento técnico sobre a distribuição equitativa, retomando as-sim a velha pergunta inquieta das doutrinas do equilíbrio: a relação salarial é uma relação jus-ta, isto é, é entre equivalentes? Ou, do mesmo

modo, o lucro é a retribuição justa do capital? E, sendo assim, como é que a distribuição pode ser mais justa do que esta justiça imanente ao capitalismo?O marxismo analítico procurou responder a es-tas questões colocando-se no terreno da teoria dos jogos, em que o individualismo é protoco-lar – temos agentes em jogo e seguindo regras bem definidas –, mesmo que se possam também simular situações de cooperação ou de estraté-gia. Mas são sempre indivíduos e estão em jogo como indivíduos. Preso nesta escolha, o mar-xismo analítico procurou dinamizar as pesadas estruturas de tipologias de classes, a arquite-tura do estruturalismo, jogando ou fazendo os seus agentes jogarem nesta sociedade de jogo, como se fossem fantasmas num teatro de som-bras.Ora, como sublinha Bensaïd contra Eric Olin Wright, o mais criativo e interessante destes marxistas analíticos, o que interessa ao mar-xismo marxista, são os processos sociais e não tanto as estruturas que descrevem a sua estáti-

ca. O equilíbrio, que é o colapso do tempo, não tem portanto qualquer sentido para uma crítica emancipatória, para os “saltos” que são impos-tos ao tempo. Por isso mesmo, nas Teorias sobre a Mais -Valia ou no capítulo inédito de O Capital, Marx criticava (surpreendentemente?) a Ricar-do a sua fixação em três classes sociais (traba-lhadores produtivos, capitalistas e proprietários fundiários), sem se aperceber do crescimento de classes intermédias e frações de classe, que exa-minou atentamente nos seus estudos históricos sobre a luta de classes em França. Esta perce-ção do processo – as classes são classes em luta de classes –, que é admitido, por exemplo, por

Poulantzas, é a base para uma teoria social que não se prenda a uma tipologia empírica descri-tiva. A sociologia marxista é histórica porque quer perceber o que quer transformar.

Dois campos de análise: necessidade e possibilidadeComo Marx o fizera, Bensaïd utiliza o impacto da obra de Darwin para se interrogar sobre o sentido da necessidade e da contingência, que não se excluem (pp. 73 e 297), antes indicam como os campos das possibilidades são pertur-bantemente móveis. A compreensão do aconte-cimento na história depende sempre desta ge-ografia da contingência e da necessidade. Mais ainda, a definição dos campos das possibilida-des, a questão essencial da estratégia, depende precisamente desta geografia, como argumenta Bensaïd. Um mapa indica os caminhos.Para apresentar as suas razões, Bensaïd re-corre a um dos seus autores favoritos, Spinoza. Este, como Leibniz, intuiu que a necessidade é diversa da fatalidade e que, na ciência como

Esta perceção do processo – as classes são classes em luta de classes –, que é admitido, por exemplo, por Poulantzas, é a base para uma teoria social que não se prenda a uma tipologia empírica descritiva.

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na vida social, a causa não é uma correlação, a consequência não segue sempre a sequência, a causa é antes uma produção: o mundo não é uma máquina, é, para o colocar nos termos destes precursores, uma força e um desejo. No mesmo sentido, como lembra Bensaïd, Hegel, na sua Lógica, tinha resistido à aplicação dos princípios mecânicos da causalidade aos mun-dos físico-orgânico e espiritual, seguindo ainda os seus próprios termos. Assim, contra Newton e a noção de um tempo reversível ou de uma causalidade implacavelmente mecânica, repe-tível, e portanto uniformemente experimental, diversas heterodoxias - religiosas (Spinoza), científicas (Leibniz) ou filosóficas (Hegel) - afir-maram uma causalidade de processos seletivos, não lineares, de leis imanentes e tendenciais, de grandes perturbações e transformações (pp. 24, 251, 299-300) – os saltos no tempo.Ora, esta é precisamente a escolha de Marx. Algumas das melhores páginas deste livro são aliás a introdução aos enigmas de O Capital, um livro difícil de ler porque se representa em di-versos patamares. A sua chave, escreve Bensaïd, é precisamente a questão do tempo e da causa: o primeiro volume de O Capital é o do tempo linear e mecânico da produção, o segundo é o do tempo químico das permutações cíclicas, ou seja, da circulação, e o terceiro é o das relações sociais no tempo orgânico da reprodução, ou seja, da vida real na sociedade como um todo (p. 244). E só assim chegamos aos segredos do

capital e do seu processo de reprodução alar-gada, o que não aparece na forma abstrata da mercadoria por onde começa Marx. A crítica que critica, de que este livro é um exemplo fulgurante, explora estes dois campos, o da necessidade e o da contingência. Estivesse limitado ao da necessidade e seria um discur-so catastrofista ou impotente, se houvesse es-colha entre estas duas faces da mesma moeda: a simples necessidade promete e exige sempre mais do que cumpre. Ora, o socialismo é uma necessidade e por isso é uma possibilidade, mas a possibilidade é uma rutura. A contingência, por seu turno, é distinta do acaso, como pro-vou Darwin, ou como se provou provando o que Darwin ainda não podia saber: a seleção dos acontecimentos ocorre e depende do campo das possibilidades, mas começa fora dele. O que acontece e é contingente alarga esse campo, mas é por ele selecionado, tal como as mutações genéticas ocasionais são selecionadas na ecolo-gia e determinam assim a evolução das espécies. temos então um processo evolutivo sem des-tino marcado, sem agenda imposta, que pode escapar ao seu passado; temos uma causalidade aberta, perturbada por grandes acontecimen-tos que inovam e destroem.Fazer na vida social e na luta de classes o que Darwin tinha feito na biologia, esse sonho de Marx aplica-se exatamente ao pensamento crí-tico que é crítico. Marx, O Intempestivo é esse convite.PE

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O filme de François Ozon consegue ser ao mesmo tempo um thriller, um filme sobre a escola, assim como uma reflexão sobre os modos de funcionamento da ficção. Quase todas as sequências podem ser lidas a diversos níveis, obrigando deste modo o espectador a circular entre os significados.

Neste caso, a sinopse está longe de dar conta da riqueza em questão: Germain, professor de francês, julga descobrir no seu aluno Claude o talento que lhe faltou como escritor. A partir de uma composição sobre a vida da família de um colega, Rafa Artole, o primeiro incentiva o segundo a enveredar pela via da literatura. Contudo, para despertar o interesse do seu lei-tor, Claude envolve-se cada vez mais na vida da casa Artole, para deleite de Germain e da sua esposa Jeanne, diretora de uma galeria de arte contemporânea. Diversos elementos con-tribuem para este exercício de estilo audacioso,

dos mais visíveis aos mais complexos. Entre outros, destaca-se a citação direta de obras lite-rárias ou cinematográficas que orientam a per-ceção das personagens ou da situação principal por parte do espectador. Veja-se, por exemplo, a sequência onde Germain e Jeanne conversam sobre as intenções de Claude quando se pre-param para ver Match Point, de Woody Allen. Este tipo de citação não surge gratuitamente ou para agradar a um recetor capaz de as re-conhecer e de as entender. Pelo contrário, de maneira mais subtil, Ozon aponta para a inu-tilidade do conhecimento do comportamento humano através de representações ficcionais, pois o casal não estabelece, por exemplo, ne-nhuma relação entre Chris, a personagem prin-cipal do filme de Allen, ela própria desejosa de se intrometer na casa de uma família a qual-quer custo, e a de um Claude que persegue um projeto semelhante. Aliás, não será por acaso que, a certa altura, Jeanne apontará para a inu-

Dentro de casa.Anatomia do desejo de FicçãoFAbRiCE shuRMAns

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Dentro de Casa, François Ozon, 2012

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tilidade funcional da arte numa conversa com Germain. Pelo contrário, Claude, que eviden-cia um desconhecimento quase total tanto da literatura como da arte em geral, dispõe de um compreensão intuitiva do ser humano, do que o move, do que deseja. Outra evidência da conce-ção da arte como uma atividade inútil: Germain venera a obra de Flaubert, especialmente Ma-dame Bovary, romance no qual vê o paradigma da obra perfeita. Este texto descreve o efeito de uma certa literatura romântica, popular, no destino de uma mulher provinciana de classe média. Ora, a personagem de Esther Artole, a mãe do colega de Claude, surge como uma espécie de Emma Bovary contemporânea, pelo menos nas descrições de Claude. Neste ponto, Ozon consegue, com os recursos do cinema, evidenciar o quão afastado do modelo se en-contra Claude: as suas descrições da vida ín-tima dos Artole não se aproximam da arte de Flaubert, mas antes dos romances lidos pela personagem epónima. Ozon realça a vacui-dade da escrita de Claude pelo recurso a uma música off de mau gosto assumido (um solo de saxofone) sempre que o aprendiz descreve a cena sublimada do adolescente sedutor da mulher madura.

Literatura de má qualidade que descreve as fantasias de um adolescente diabólico, mas que, contudo, consegue envolver o casal Germain/Jeanne a ponto de levar o primeiro à ilegalidade para conseguir a continuação da narração. Ali-ás, aos poucos, Germain abandona o seu papel

de professor para assumir o de demiurgo: à nar-rativa de Claude falta mais conflitualidade dirá numa aula privada sobre narratologia, o que le-vará o aparente discípulo a suscitar novas situ-ações antagónicas na casa dos Artole. Naquele momento, percebe-se que Germain e Jeanne se apoderaram das personagens que se desenvol-vem na casa descrita por Claude. O tour de force da realização reside aqui: o espectador também deseja saber o que acontecerá às personagens, deseja saber se a mãe de Rafa Artole cederá às tentativas de sedução de um Claude (naquele momento a sua personagem não está longe da de Rodolphe, o sedutor de Emma no romance de Flaubert). Em suma, a narrativa, como uma espécie de armadilha, apanha igualmente o ou-tro recetor da série em curso – Claude acaba, de facto, cada episódio da história dos Artole por um intrigante à suivre –, isto é, o próprio espectador. Percebe-se assim que a questão central do filme tem a ver com o que significa narrar: o que é uma ficção, ou seja, neste con-texto, o que é um filme? Como funciona, como suscita a vontade e o desejo, nos seus vários significados? É reveladora a conversa entre Germain e Claude sobre o estilo da narrativa do último: Germain tenta perceber se se trata

de realismo, de paródia ou ainda de estilização, ao que Claude responde que não sabe, que so-mente conta uma história. Porém, o que faz de Dentro de casa um filme exigente é a coadunação entre este conteúdo e a forma como Ozon o mostra. A montagem,

O tour de force da realização reside aqui: o espectador também deseja saber o que acontecerá às personagens, deseja saber se a mãe de Rafa Artole cederá às tentativas de sedução de um Claude (naquele momento a sua personagem não está longe da de Rodolphe, o sedutor de Emma no romance de Flaubert)

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por exemplo, induz alguns dos efeitos e sig-nificados mais fortes do filme. Assim, no fim de uma aula privada, Claude está prestes a ler o exemplar de Madame Bovary emprestado por Germain; a sequência seguinte abre sem transição para o mesmo Germain folheteando o catálogo de um artista contemporâneo que altera a função de objetos banais oriundos do quotidiano, ou seja, a montagem estabelece aqui não só uma audaciosa equivalência entre o romance e o catálogo, bem como suscita jun-to do recetor um momento de revelação. Pois, se Germain entende o propósito de Flaubert em Madame Bovary, não consegue apreender o trabalho do artista plástico com os objetos. Poder-se-á ainda aproximar Dentro de casa de um thriller à la Hitchcock; contudo, não será pelo género praticado mas antes pela maneira de o filmar. O realizador inglês também con-seguia transfigurar uma situação banal, bem

como os códigos do filme de suspense, pelo recurso a efeitos audaciosos de montagem. A figura da manipulação, central em ambas as cinematografias, torna-se num princípio estruturante, produtor de um forte efeito de surpresa junto do recetor, no caso do reali-zador francês: também apreciamos Dentro de casa pela simples razão de conseguir enganar-nos. Se Claude decidiu descrever o que se pas-sa dentro da casa Artole era com o intuito de ganhar acesso a uma outra casa... Numa mise-en-abyme fascinante, o conselho narratológico principal de Germain – suscitar no leitor o desejo de ficção – torna-se o princípio motor do filme de Ozon: levar o espectador a desejar intrometer-se na casa dos Artole para o sur-preender com a reviravolta final. Como num filme de Hitchcock, desfrutamos assim a per-feição da manipulação, bem como o prazer da ficção.

Cartaz do filme

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Entre outubro de 2008 e agosto de 2009, uma vaga de furtos em casas de celebridades numa área privilegiada de Los Angeles resultou no roubo de cerca de três milhões de dólares em dinheiro e objetos. Os lesados eram nomes fa-mosos, como Paris Hilton, Megan Fox, Orlando Bloom e Lindsay Lohan; os assaltantes adoles-centes da mesma zona. O êxito do grupo residia em parte na capacidade de os seus membros se confundirem com os lesados: compraram gran-des quantidades de roupas com cartões de crédito roubados e andaram em carros de topo de gama furtados sem levantarem qualquer suspeita pre-cisamente por já terem acesso, através do dinhei-ro dos pais, a esse tipo de objetos. Sem qualquer conhecimento de sistemas de segurança nem de manuseamento de armas e recorrendo apenas à internet para seguir o paradeiro das potenciais vítimas, os jovens surpreendem pela imaturida-de e imprecaução: deixavam impressões digitais, colocavam fotos no facebook com os objetos rou-bados, gabavam-se junto dos seus pares das suas “proezas”. Contado ninguém acreditaria. Por isso, a Vanity Fair lhes dedicou uma reportagem com o título sugestivo The Suspects wore Lou-boutins, texto que impressionou Sofia Cappola, a ponto de a cineasta o usar como inspiração para o seu último filme, The Bling Ring (2013).

Uma certa ficção norte-americana (Sopranos, Dexter, Breaking Bad) já foi acusada de glorificar o crime branco. The Bling Ring não segue o es-quema destas séries que têm como protagonistas homens brancos envolvidos em ações criminosas violentas. Os adolescentes não usavam violência - aproveitavam-se da distração das suas vítimas que deixavam portas ou janelas mal fechadas - e a líder do grupo tinha até traços asiáticos.

Porém, não deixamos de estar perante crimes perpetrados por membros de grupos sociais associados ao privilégio. Coppola faz o filme girar em torno dos cinco adolescentes ricos, quase ignorando os dois jovens adultos envolvidos no caso, oriundos de um meio social bem diferente (eram empregados em lugares da noite e tinham algumas ligações ao mundo do crime).

A Coppola interessaram aqueles que, sem um móbil económico, exibiam um claro mimetismo com as vítimas. Para os entender, traça um re-trato desolador de adolescentes solitários a viver num mundo praticamente vedado aos adultos, que preenchem o vazio da sua existência com o culto do corpo e da moda e a encenação da felici-dade no facebook. Através de Mark, o jovem que sofre por não ser dos “mais bonitos”, Coppola

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O Gang de Hollywood, Sofia Copolla, 2013

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diz-nos que a tirania dos modelos de beleza não afeta apenas as raparigas. A canção que acompa-nha os créditos finais - Super rich kids, de Frank Ocean - sintetiza esse quadro dos que cresceram no privilégio:

The maids come around too muchParents ain’t around enoughToo many joy rides in daddy’s JaguarToo many white lies and white linesSuper rich kids with nothing but loose endsSuper rich kids with nothing but fake friends

Desde As Virgens Suicidas que a dor de crescer marca presença na obra da cineasta. também Maria Antonieta foi filmada como jovem ro-deada de ornamentos e prazeres mundanos, alheada dos perigos do mundo “lá fora”. A grande diferença em relação à obra anterior é que as jovens à deriva de The Bling Ring pro-vocam riso no espectador. Nunca as vemos es-tudar, a escola aparece como espaço por onde passeiam com roupas de marca e maquilhadas como para um desfile de moda, enquanto com-binam saídas à noite. No facebook encenam uma versão das suas vidas não muito distinta da que as revistas cor-de-rosa lhes dá das cele-bridades que imitam: um quotidiano de festas e divertimento captado em fotos com poses de falsa espontaneidade. O móbil dos roubos re-side precisamente neste desejo de se sentirem na pele dos seus ídolos. Não será mero acaso que, entre os lesados, Coppola tenha dado mais espaço fílmico a Paris Hilton e a Lindsay Lohan, ídolos adolescentes que mais facilmente pode-mos ver como antimodelos. A primeira, paradig-ma de uma certa sociedade do espetáculo em que se é famoso por se aparecer nos tabloides, leva ao extremo o culto da própria imagem (veja-se a decoração da sua casa). A segunda, estrela da moda, da música e do cinema desde a infância, tornou-se presença habitual nos tabloides pe-las suas saídas na noite de Los Angeles e pelos problemas recorrentes com o álcool, a droga e a justiça. O mimetismo entre assaltantes e vítimas

culmina no final quando a revelação da identida-de dos assaltantes projeta os adolescentes para a fama. Os paralelos entre o julgamento de Lohan e o das jovens são óbvios. Ao falar à imprensa, Nicky surge como uma caricatura das estrelas que descrevem um mau passo como uma gran-de lição. Desde criança incentivada pela mãe a ser uma famosa, não só irá partilhar com Lohan o espaço prisional, quando esta última cumpria pena por condução sob efeito de estupefacientes, como verá os assaltos abrirem-lhe as portas da televisão.A câmara de Coppola não deixa, porém, de ser extremamente compassiva com os jovens. Em parte, porque os filma como eles gostavam de se ver a si próprios. É certo que as sequências com imagens de câmaras de vigilância criam distân-cia em relação às personagens, mas o que predo-minam são planos aproximados e câmaras lentas ao som da música predileta dos jovens, acentu-ando beleza e glamour. E é aqui que o filme não deixa de causar algum desconforto. Estaremos perante a denúncia de um modelo de sociali-zação na adolescência ou, pelo contrário, não acabará o filme por participar dessa glamo-rização da imagem, do corpo e do consumo? No site do filme, entre os habituais links com in-formação sobre a realizadora, os atores, a banda sonora, a opinião da crítica, encontramos publi-cidade às marcas que vemos no filme. E voltando ainda às escolhas de Sofia na questão da classe: Mark explica o mediatismo do grupo com a ob-sessão americana por figuras tipo Bonnie and Clyde. Mas serão estes jovens uma versão con-temporânea da famosa dupla de bandidos? Se os assaltos tivessem sido perpetrados por adoles-centes oriundos de classes desfavorecidas cono-tadas com o crime, a quem aquele tipo de luxos estivesse praticamente vedado, teria havido um tal interesse no caso por parte dos média? teria o cinema para o grande público mostrado uma tal empatia para com eles? E, sobretudo, teriam tido penas leves e, como Alexis Neiers (que ins-pirou a personagem de Nicky), teriam consegui-do tornar-se figuras mediáticas graças ao crime?

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Portugal é dos poucos países onde ainda é possível descobrir tesouros musicais. Longe de ser uma boa nova, este facto é, na verdade, demonstrativo do parco investimento feito na investigação musicológica.

Com efeito, depois de uma Primeira Repúbli-ca, em que Lisboa fervilhava de vida cultural, a ditadura veio adiar qualquer vislumbre de desenvolvimento científico regular nesta área. Por razões políticas, apenas o folclorismo era incentivado - desde que obediente aos critérios da propaganda. A título de exemplo, o curso su-perior de Ciências Musicais, proposto em 1919 pela comissão de reforma do ensino artístico (da qual faziam parte António Arroio e Luís de Freitas Branco, entre outros), veio a abrir apenas cerca de setenta anos mais tarde. Só as-sim se entende que até há dez anos o nome de António Fragoso fosse muito pouco conhecido, mesmo entre músicos e melómanos. A desco-

berta de obras até então ignoradas, o seu es-tudo e consequente divulgação são o resultado direto do desenvolvimento dos departamentos científicos especializados e do financiamento da investigação feito na década de 1990 por Ma-riano Gago.Fragoso é frequentemente comparado a Ama-deo de Souza Cardoso, pela semelhança do seu destino, mas também pelo talento demonstrado na obra que deixou. Nasceu em 1897 na aldeia da Pocariça, perto de Cantanhede, e estudou na Academia dos Amadores de Música e no Con-servatório. Facilmente imaginamos o jovem es-tudante de piano e composição na Lisboa que ouvia as primeiras obras impressionistas (atra-vés de Luís de Freitas Branco), onde em cada associação, grémio ou sala de concertos tocava um agrupamento de música de câmara e diver-sas orquestras enchiam salas e concorriam en-tre si pela atenção do público.O seu concerto de estreia na Academia dos

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António Fragoso, Complete Chamber Music for Violin, Carlos Damas, Jian Hong, e Jill Lawson, Brilliant Classics, 2011

Do património por recuperarhElEnA RoMão

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Amadores de Música ficou tristemente na his-tória por ter sido o seu único concerto mono-gráfico em vida.No verão de 1918, António Fragoso acabou o curso e partiu de férias para a sua terra, onde viria a falecer pouco depois, vítima da epidemia de febre pneumónica.Neste CD ouvimos três obras de música de câmara, ou seja, para pequenos grupos de ins-trumentos, compostas entre os 19 e os 21 anos. Fragoso era então aluno de Luís de Freitas Branco e Marcos Garin, que lhe apresentaram a música impressionista francesa de composi-tores como Ravel e Debussy. Essa influência é muito clara nas técnicas utilizadas, que se tra-duzem na sonoridade e no desenvolvimento das frases, bem como na estrutura das obras. A música faz-se menos de melodias muito memo-rizáveis (das que ficamos a cantarolar) e mais de uma sucessão de atmosferas.

A inexperiência do compositor nota-se no pou-co aproveitamento que faz do violoncelo no Trio. Fica quase sempre no registo menos au-dível e entra pouco em diálogo com o violino e o piano.A interpretação desta música baseia-se, sobre-tudo, na interação entre os músicos e na quali-dade do timbre conjunto. A música parece-nos pairar num tempo fluído, o que requer uma grande precisão da parte dos músicos para que o som do grupo seja coeso, como no caso deste trio formado por Carlos Damas (violino), Jian Hong (violoncelo) e Jill Lawson (piano).Deixo uma nota final sobre o booklet que acom-panha o CD: uma vez que se trata de música portuguesa, gravada em Lisboa por músicos aqui residentes, é pena que as biografias e o texto de Ivan Moody - conciso e claro, com al-guns detalhes sobre cada uma das três peças - apareçam apenas em versão inglesa.

António Fragoso

Os temas são os amores traídos ou perdidos, os bairros típicos e pobres, a imigração forçada, as saudades, a morte e a resignação.

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Uma lição de amorsoFiA RoquE

Romain Gary (Émile Ajar)Uma vida à sua frente Sextante, 2010

Em Uma vida à sua frente, Émile Ajar, ou me-lhor, Romain Gary, dá-nos a conhecer o pe-queno Momo (abreviatura de Mohammed) e permite-nos acompanhar uma pequena parte da sua vida, porventura, os momentos mais difíceis e marcantes por que passou. Contu-do, o possível esperava-o para o insuflar de esperança e ficamos também marcados. Pelo encanto especial de uma ingenuidade cheia de verdade e experiência de vida como a de Momo, pela vida dura de Madame Rosa cuja sorte a salvou de um mal maior para viver sempre males menores, pela impressionante lição de amor que, apesar de aquecer o cora-ção, não nos livra de uma certa suspeita sobre os sentidos da vida.

O enredo deste livro é então a história de Mohammed, um rapaz árabe de 14 anos, órfão, que vive no bairro de Belleville, em Paris, com Madame Rosa, uma judia, prostituta reformada e sobrevivente de Auschwitz que cuida agora dos filhos de jovens trabalhadoras do sexo, tal como Momo.

Os dois travam uma luta comum pela sua so-brevivência e quando o corpo e a mente de Madame Rosa começam a falhar, torna-se claro que Momo é única pessoa que ela deixa no mundo, nunca a abandonando e adminis-

trando também as ajudas preciosas dos vizi-nhos e as suas amizades tão genuínas como aparentemente impossíveis num bairro muito pobre mas não desabrigado de relações huma-nas. Apesar da sua infância perdida - «Nunca fui bebé, tinha sempre outras preocupações na cabeça» -, Momo acompanhará sempre Madame Rosa que se recusará a ser hospitali-zada. Ficou sempre com ela, enfrentando com ela os seus medos finais e a preparação para a sua última e mais difícil viagem. O seu amor por ela era generoso e incondicional: «Eu te-ria prometido qualquer coisa à Madame Rosa para fazê-la feliz, porque mesmo quando se é muito velho a felicidade ainda pode ser útil (…)».O difícil mas muito bem concretizado traba-lho de tradução, realizado por Joana Cabral, leva-nos a habitar não só aquele bairro e a vida de Momo, como também o seu pensamento expresso numa linguagem incorreta, intri-cada mas muito verdadeira e honesta. O seu modo de falar reflete as suas experiências e o seu coração, utilizando palavras simples para transmitir realidades que são como agulhas, por vezes - «Quando ela chegou ao cimo, já não tinha medo e eu também não, porque é contagioso. Dormimos lado a lado o sono dos justos. Pensei muito nisso e acho que o Senhor Hamil engana-se quando diz isso. Acho que

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são os injustos que dormem melhor, porque se estão a borrifar, enquanto os justos não pre-gam olho e preocupam-se com tudo». Sobre o direito à eutanásia, por exemplo, Momo afir-ma com confiança mas sem conhecer a juste-za das suas palavras: «A Madame Rosa tem o direito sagrado dos povos de dispor de ela própria, como toda a gente. E se ela se quer fazer abortar, está no seu direito». Como di-zia o Senhor Hamil, o pequeno Momo era uma criança muito sensível e isso tornava-o um pouco diferente dos outros.Momo era árabe mas essa condição era-lhe presente sobretudo através deste Senhor Ha-mil, um árabe vendedor de tapetes que lhe ensinou a ler o Corão e tinha sempre consigo Os Miseráveis de Victor Hugo. «Durante mui-to tempo, eu não sabia que era árabe, porque ninguém me insultava. Só fiquei a saber na escola. Mas nunca andava à pancada, dói sem-pre quando batemos em alguém», conta-nos Momo.

Outros personagens pontuam a história e a vida dos dois protagonistas que, a pouco e pouco, por causa do relato da sua bondade para com a Madame Rosa, tornam-se também nos-sos amigos. É o caso do Doutor Katz, o médico que os seguiu até ao fim, o Senhor N´Da Amé-dée, «o maior proxeneta e chulo entre todos os negros de Paris», o mais bem vestido também, que ia ver a Madame Rosa para que lhe es-crevesse cartas à família, o Senhor Waloum-ba, cuspidor de fogo e varredor de ruas, que vivia com mais oito pessoas da sua tribo dos Camarões (todos juntos ajudavam a transpor-tar a pobre judia que vivia num sexto andar), e, claro, a generosa Madame Lola - «Se toda a

gente fosse como ela, o mundo seria completa-mente diferente e aconteceriam muito menos desgraças. tinha sido campeão de boxe no Se-negal antes de se tornar travestita e ganhava dinheiro suficiente para educar uma família, se não tivesse a natureza contra ela».Conhecemos a história do pequeno Momo através deste grande gesto literário de Ro-main Gary que também nos ensina a perceber os sinais de esperança que normalmente estão escondidos nas pequenas coisas e na possibi-lidade de sermos surpreendidos pela sorte. Foi isso que acabou por acontecer com Momo quando conheceu Nadine, uma jovem de classe média que também não desistiu dele - «Bem, não vão acreditar em mim se vos disser que lá estava ela, à minha espera, naquela sala, não sou o género de gajo por quem se espera. Mas lá estava e quase senti o sabor de gelado de baunilha que ela me tinha oferecido».Afirmando no final que «é preciso amar», Momo sacode-nos a alma com emoção e sen-

timento, deixando também a promessa de que se esforçará por gostar de nós, quando nós já estamos rendidos: «Acho que o Senhor Hamil tinha razão quando ainda regulava da cabeça e que não se pode viver sem alguém para amar, mas não vos prometo nada, logo veremos».Publicado em 1975, o livro teve um êxito ime-diato, vendendo milhões de exemplares em todo o mundo. Foi traduzido em mais de vinte línguas e adaptado para o cinema num filme com Simone Signoret. Nesse mesmo ano, Ro-main Gary, com o pseudónimo Émile Ajar, re-cebeu o segundo Prémio Goncourt, sendo que até agora foi o único escritor a ser reconhecido duas vezes com este prestigiado prémio.

Afirmando no final que «é preciso amar», Momo sacode-nos a alma com emoção e sentimento, deixando também a promessa de que se esforçará por gostar de nós, quando nós já estamos rendidos

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Romance caleidoscópico: contos contrapostos, interpostosAnA bÁRbARA PEdRosA

João Ricardo PedroO teu rosto será o último Leya, 2012

Permiti que a curiosidade me vencesse o preconceito e avancei para a leitura de O teu rosto será o último.

Não esperava um portento, não esperava sangue, suor, saliva. Não me agradava a ideia de que um escritor pudesse ser um homem que, ao ver-se desempregado, se empregasse a escrever um romance para matar o tempo.

As 208 páginas deste romance, contudo, e felizmente, nunca se demitiram de disparar sobre a má-vontade com que peguei no livro. Foram 208 tiros, 208 vergonhas minhas, mais de duas centenas de lições de humildade, que a literatura é assim, igual à vida.Reza a lenda que João Ricardo Pedro, ao ver-se sem obrigações laborais em 2009, se ocupou a escrever o romance que, dois anos mais tarde, seria agraciado com o Prémio Leya. O intento a que se dispôs resultou num dos mais caleidoscópicos romances que já li: enquanto o lemos e depois de termo-lo lido, ante a magnitude da boa retórica, entre os inúmeros imensos intensos sussurros que o livro deixa ecoar, sobressaem a tontura e as inúmeras vozes que se sobrepõem e nos arrastam de novo para dentro do livro, intenso, sinuoso, açucarado.Labiríntica, a narrativa começa no dia 25

de Abril e 1974, com um homem que sai de casa, armado, durante a madrugada. Só no final se saberá o que faria, mas talvez, para a construção da narrativa, não importe muito o que era. talvez importem mais os detalhes da vida de Augusto Mendes, médico que o tratara décadas antes. Ou da vida do seu filho António. Ou até do neto Duarte, que achava que o Índio viria a ser um grande artista. Ou talvez do próprio Índio, que manchara o sofá com substância que teria de passar por iogurte.O romance, do ponto de partida pouco clarividente, entrecruza narrativas de três gerações, de forma constante, inconstante, cheia de vertigens. Entrecruza-as sem que as explique totalmente, deixando-nos na boca o agridoce sabor da ignorância, das narrativas mutiladas, engrenadas, apressadas. Elas são construídas sobre longos anos de ditadura, de guerra colonial, de medos, de graças.Sob a estrutura de vários contos contrapostos, interpostos, desenrola-se o fio condutor que perturba, enturva, rejuvenesce, espanca, amacia, entre gente que viveu a ditadura e gente que lhe herdou as memórias e os traumas. No meio da narrativa inesperada, a revolução da palavra: lirismo na violência, violência no lirismo. Pausas, continuações, tiros. Literatura, portanto.

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Alcora. A estratégia do colonialismo terminal FERnAndo RosAs

Carlos Matos Gomes e Aniceto AfonsoAlcora. O Acordo Secreto do ColonialismoDivina Comédia, 2013

Em primeiro lugar, os autores: Aniceto Afon-so e Carlos de Matos Gomes, dois Capitães de Abril que enveredaram pelos caminhos da arquivística (o primeiro) e da investigação his-tórica, chegam a este livro com uma obra ante-rior de grande relevância em qualquer desses domínios. Aniceto Afonso, como diretor do Arquivo His-tórico Militar e responsável pelo Arquivo da Defesa Nacional, levou a cabo a ingente tarefa da democratização do acesso e da moderniza-ção técnica e organizativa dos arquivos milita-res, transformando-os, numa mudança de enor-me alcance para a historiografia e a arquivística portuguesa, em acervos documentais acessíveis e funcionais, regendo-se pelas leis aplicáveis aos arquivos em geral, com isso constituindo-os numa das mais importantes fontes para a História do país em geral e para a sua História contemporânea em particular. Ambos, frequentemente trabalhando em equi-pa, investigando a história dos principais envol-vimentos bélicos do país nos séculos XIX e XX, nos proporcionaram, até agora, entre vários outros contributos de autoria individual, duas

obras de referência: a primeira história global da guerra colonial (inicialmente publicada em fascículos no Diário de Notícias e depois reuni-da em livro, em variadas versões e edições1) e, sobre a participação portuguesa na I Grande Guerra2. Carlos de Matos Gomes dedicou-se também frequentemente a temáticas da guerra colonial, à ficção, ao argumento para o cinema ou à consultadoria para trabalhos televisivos. .

Um plano de hegemonia branca para a África australO livro que agora se dá à estampa - Alcora. O Acordo Secreto do Colonialismo - vem na esteira dos estudos dos autores sobre o colonialismo e a guerra, agora para o colocar no contexto da África austral do período do conflito militar nas colónias. Precisamente para revelar, com larga evidência documental, a existência, sob a designação relativamente inócua de “exercício Alcora”, de um acordo estratégico formalizado em outubro de 1970 ao mais alto nível entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia (hoje Zim-babué), envolvendo os domínios político, eco-nómico e militar, com o fito de preservar o po-

1 - AFONSO, Aniceto e GOMES, Carlos de Matos (coord.) (2010). Os anos da Guerra Colonial, 16 volumes. Porto: Quid Novi ; (2000) Guerra Colonial. Lisboa: Editorial Notícias.2 - AFONSO, Aniceto e GOMES, Carlos de Matos (coord.) (2010). Portugal e a Grande Guerra. 1914-1918. Porto: Quid Novi.

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der nas mãos do regime colonial português (ou de “independências brancas” suas sucedâneas) e dos regimes racistas dos outros dois países, desde logo assegurando a derrota militar das guerrilhas de libertação nacional. A novidade não está, naturalmente, na re-velação de uma cooperação militar luso-sul-africana que vinha praticamente desde o início da guerra colonial, mas informal e local, entre estruturas militares e policiais dos dois países. Na realidade, o acordo político-militar Alcora culmina um processo de cooperação iniciado ao mais alto nível, em abril de 1967, com a visi-ta do ministro da defesa sul-africano Pier W. Botha a Lisboa, onde se avistou com Salazar, com Franco Nogueira (negócios estrangeiros), Gomes de Araújo (defesa) e Silva Cunha (ul-tramar). Daqui sairá o início formal do apoio militar da África do Sul à guerra colonial em Angola (leste e sudoeste) e Moçambique (tete) sob o impulso e inspiração doutrinal do célebre general A. P. Fraser, teórico da contrassubver-são, recém empossado como chefe das Forças de Combate Conjuntas da África do Sul. Ele, Bo-tha (na defesa) e John Vorster como primeiro-ministro, serão o triângulo sobre que assentará

a nova estratégia de hegemonia sul-africana e branca para a África austral, da qual a aliança Alcora - para onde a África do Sul traz a Rodé-sia do Sul e envolve Portugal - seria uma peça fundamental. O que é facto é que em julho de 1967 são aprovados os grandes projetos hidro-elétricos do Cunene e de Cabora Bassa (de que a África do Sul é a principal beneficiária) e nesse ano as forças militares rodesianas realizam as primeiras operações diretas na zona de tete, em Moçambique. No ano seguinte, em 1968, ainda com Salazar no poder, ao abrigo de um convé-

nio que marca formalmente, em julho de 1968, o início da cooperação militar entre Portugal e a África do Sul, os sul-africanos instalam as primeiras unidades aéreas e terrestres no Cuito Canavale (Cuando-Cubango) e em Gago Cou-tinho (Moxico) no leste de Angola (são ainda criados os centros conjuntos de apoio aéreo, com aeronaves, pilotos, pessoal de transmissões e manutenção sul-africanos, para apoiar as ope-rações da tropa colonial portuguesa), enquanto em Moçambique tropas portuguesas e rodesia-nas desencadeiam ações conjuntas em Manica e Sofala contra os guerrilheiros do Zimbabué, da COREMO e da FRELIMO. Os autores es-tudam com minúcia todo este processo político, militar económico e financeiro de construção da aliança. Sendo ela essencial, como demonstram, à viabilização da continuação da guerra colo-nial em Angola e Moçambique (a África do Sul financia repetida e generosamente, até 1974, a compra de armamento, fornece blindados, cede helicópteros, aviões, pilotos, transmissões, ma-nutenção, fornece apoio logístico, apoio em ter-mos de informação, uma ajuda cuja dimensão os autores revelam como indissociável da pró-pria capacidade do governo português poder

manter a guerra a partir dos finais da década de 1970, tal ajuda deve, sobretudo, ser integra-da no novo esforço estratégico sul-africano de criar e hegemonizar na África austral uma zona político-militar e económica de poder bran-co. Desígnio de que o governo de Lisboa, não podendo prescindir do auxílio que nesse qua-dro recebe, se tenta discretamente distanciar, quer por razões de condenação internacional do mesmo quer pelo risco das “independências brancas” que ele trazia ínsito. O facto é que Portugal não pode fugir à força

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A novidade não está, naturalmente, na revelação de uma cooperação militar luso-sul-africana que vinha praticamente desde o início da guerra colonial, mas informal e local, entre estruturas militares e policiais dos dois países.

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centrípeta do projeto estratégico sul-africano, ainda por cima potenciado, desde fins de 1969, pelo apoio que lhe confere a mudança de polí-tica da administração Nixon nos EUA. E, pri-meiro em junho de 1970 e finalmente em 14 de outubro do mesmo ano, os chefes militares e depois os ministros da defesa dos três países assinam o acordo de base do Exercício Alcora já transformado em verdadeiro Plano de Defesa da África Austral tripartido. O nível de exten-são da cooperação é claramente o de uma alian-ça político-militar regional, como bem assina-lam os autores: órgãos de decisão, planeamento e execução desde o topo, a nível estratégico-po-lítico (envolvendo governos, primeiros-minis-tros, ministros da defesa e dos negócios estran-geiros), ao nível da estratégia militar (chefes de estado-maior, comandantes-chefes, chefes dos serviços e polícias de informações) até ao nível operacional (quartel-general combina-do, EM alargado, forças de combate e logísti-ca próprias) e à doutrina comum. Uma aliança que articulava ainda, como se documenta na obra, aspetos financeiros e de fomento econó-mico regional. Só faltava dar-lhe a publicidade a que, entre 1970 e 1974, o governo de Lisboa se vai opondo, com a preocupação desesperada e contraditória de não prescindir de um apoio imprescindível, nem com isso se comprometer excessiva e publicamente com o grande desíg-nio hegemónico da África do Sul pelo o qual é obviamente arrastado.

Crítica sul-africana à condução da guerra colonial em Angola O que o livro agora revela, precisamente, é como as chefias militares sul-africanas, parale-lamente ao crescimento da sua ajuda financeira, operacional e logística à guerra, vão ganhando um concomitante poder de opinião e interfe-rência na condução das operações em Angola e Moçambique, que hoje surge, apesar de tudo, como surpreendente pelo seu caráter inusitado e intrusivo. Não só levando as chefias portu-guesas a deslocarem o centro das operações de

contrainsurgência em Angola, do norte para o leste e sudoeste do território (como convinha à segurança das fronteiras sul-africanas), e em Moçambique, para a zona de tete, mas até opi-nando quanto aos aspetos mais imediatos da condução da guerra no terreno e quanto do mé-rito dos oficiais ou funcionários responsáveis. Isso é exemplarmente evidenciado no interes-santíssimo balanço que o general A. P. Fraser se permite fazer, na reunião conjunta dos co-mandos militares de junho de 1970, sobre a condução da guerra no leste de Angola. Inte-ressante pela relação de forças que já evidencia na aliança tripartida em gestação e pelos propó-sitos hegemónicos claramente subjacentes ao apoio sul-africano. O doutrinador da contras-subversão, em conjunto com os seus comandos, refere sem peias que o “colapso do programa de aldeamentos” e os progressos que a guerri-lha do MPLA registava no leste, a despeito das ações da tropa colonial portuguesa e do muito dispendioso apoio da África do Sul - cuidadosa-mente contabilizada - se deviam a erros básicos e a “imperfeições” na condução da contrainsur-gência que ele aponta: a) A direção política da guerra por parte dos portugueses não punha a política no comando, não compreendia que uma guerra de guerrilha não se ganha pela via militar mas pela política, pela capacidade de captar as populações e dei-xar o inimigo sem apoios entra a massa cam-ponesa. Os portugueses, diz Fraser, apostam quase tudo na “reação militar”, nas operações militares episódicas e pontuais da tropa espe-cial e quase nada na ação política e social de conquistar as populações por parte dos órgãos da malha da administração civil, aliás quase inexistentes nas “terras do fim do mundo” do leste de Angola. A missão da tropa era criar condições para o governo administrar com segurança e cumprir as suas tarefas políticas. Ora, esse desvio e os “excessos” cometidos pela tropa portuguesa nas suas operações - a que me referirei adiante - tinham o efeito contrapro-ducente de voltar os povos contra a potência

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livroscolonial e, sobretudo, para os sul-africanos, de

facilitar os apoios à guerrilha não só do MPLA mas dos namibianos que lutavam contra a ocu-pação do sudoeste africano (hoje Namíbia). O leste e o sudoeste de Angola eram a fronteira avançada do poder sul-africano. b) Para suprir a carência da ocupação adminis-trativa e militar dessas zonas, a tropa da qua-drícula tinha que se ocupar de tarefas preven-tivas e administrativas que não lhe competiam, descurando as suas missões ofensivas e de pa-trulha e remetendo-se a uma atitude atentista e passiva. A tropa não profissional esforçava-se, no essencial, por cumprir as comissões de forma a voltar sã e salva à metrópole. Segundo o general sul-africano, os oficiais milicianos «não são motivados para esta guerra, não têm nenhum interesse em Angola» e «têm um de-sejo primordial de regressar a casa com a pele intacta». Convém referir, como documentam os autores, que os detalhados pareceres do Estado-Maior do Exército e do EMGFA sobre as críticas sul-africanas nessa reunião de junho de 1970 são geralmente concordantes com o seu conteúdo e com a necessidade de corrigir as “imperfeições” apontadas. Esses documentos não apresentam

tanto diferenças substanciais de doutrina entre os chefias militares dos dois países sobre a con-dução da guerra antissubversiva, mas revelam sobretudo as dúvidas das chefias sul-africanas quanto à possibilidade de ela ser aplicada com sucesso por um poder político ausente e distan-te do território colonial em guerra.

Na realidade, subjacente às críticas de Fraser estava a verdadeira divergência da África do Sul, que surge subliminarmente no balanço do general: uma potência colonial distante, europeia, não podia dominar aquela guerra.

Não só por falta de meios materiais mas por-que a tropa e parte da administração tinham sempre para onde recuar, logo, o que preten-diam era safarem-se intactos e regressar a casa. Só um poder branco autóctone, sem zona de retirada, podia conduzir a guerra em ter-mos de a poder vencer. têm razão os autores ao prognosticarem corno efeito quase certo do Exercício Alcora, se o 25 de Abril e a des-colonização se não têm imposto, a emergên-cia de “independências brancas” em Angola e Moçambique seguramente fomentadas pelo governo de Pretória.

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Os massacres da população em AngolaRelacionada com esta, a investigação dos auto-res lança outra luz sobre urna questão que só agora começa a ser abordada pelos trabalhos académicos relativos à temática da guerra co-lonial: a dos massacres das populações africa-nas pela tropa colonial. Contrariando alguns pontos de vista indulgentes ou fruto de pre-conceitos correntes que consideram tais acon-tecimentos como pontuais e excecionais (em reação aos massacres da UPA no norte de An-gola, em 1961, ou na zona de tete, anos mais tarde), a documentação agora estudada evi-dencia o reconhecimento por parte do Estado-Maior do Exército do caráter frequente do ataque indiscriminado às populações controla-das pelo inimigo no leste de Angola, dando ex-plicitamente razão às críticas apontadas pelo general Fraser, mas já levantadas anterior-mente pelo próprio ministro da defesa Pier W. Botha às autoridades portuguesas. O parecer do EM do Exército refere ser «frequente sur-girem dezenas ou centenas de baixas causadas ao inimigo no leste e sul de Angola, indica-ção essa acompanhada do material capturado, que normalmente se resume, quanto muito, a duas ou três armas». E conclui: «É prática que urge terminar sob pena de “virarmos” toda a população contra nós». O que na opinião do general Fraser já se instalara nessa região: «medo e ódio aos portugueses». E acrescenta que «o efeito de um único excesso dos por-tugueses levará muito tempo a desaparecer, sendo que infelizmente, tem havido muitos». Já em 1968 o mesmo general Fraser notificara o CEMGFA, Câmara Pina, da morte de 200 bantus, “gente inocente”, numa recente opera-ção das tropas portuguesas. Pouco depois, nas operações Luambi e Nova Fase efetuadas pe-los comandos portugueses no Cuíto Canavale com helicópteros sul-africanos, são reportados 170 mortos e 200 prisioneiros e a captura de 3 canhangulos.O Exercício Alcora, formalizado em 1970, es-condia, portanto, como agora este livro reve-

la, uma importante aliança estratégica entre o Portugal colonial e os regimes racistas da Rodésia do Sul e da África do Sul, mantida se-creta, com vista à preservação, sob a hegemo-nia sul-africana, de um bloco político-militar e económico de regimes de hegemonia bran-ca na África austral. A Revolução portugue-sa pôs-lhe termo quando, ao cabo de quatro anos de intensa cooperação militar, operacio-nal, logística, de segurança, financeira, etc. o Alcora se preparava, aparentemente, para dar um salto decisivo no sentido da sua publici-tação e consolidação. Mas é um fim, na reu-nião de Pretória, em junho de 1974, em ple-na fase spinolista do processo revolucionário, não destituído de notórias ambiguidades, a refletir a situação ambígua que atravessava a própria Revolução, antes ainda da aprovação da lei da descolonização de julho desse ano. A delegação portuguesa enviada pelo gene-ral Costa Gomes a Pretória concordou com a continuação do Alcora «até que a situação se esclareça», mas sem divulgar a sua existên-cia; comprometeu-se a continuar a «combater o terrorismo» se não se chegasse a um cessar fogo com as guerrilhas e a impedir que «os ter-roristas utilizem território português contra os territórios vizinhos», assegurando que o Go-verno português se opunha às independências imediatas das colónias.

Estava tudo ainda a começar. Com o fim da guerra colonial acabará o Alcora. A disputa pela África austral, já sem a intermediação colonial portuguesa, vai levar às terríveis guerras civis que durante anos vão continuar as guerras coloniais em Angola e Moçambique, agora atingidas pela intervenção direta e indireta das potências racistas subsistentes. O Alcora tripartido, naturalmente, nunca mais se reunirá, mergulhando ainda mais no secretismo de sempre, agravado pela desmemória a que este trabalho em boa hora pôs termo. Bem-hajam os seus autores por mais este tão importante contributo.

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A partir de uma conferência organizada no ISCTE, com o apoio, entre outros, da Fundação Friedrich Ebert, ligada à social-democracia alemã, derivaram Luke March e André Freire esta obra, que se pretende um diagnóstico, e de certo modo um prognóstico, da esquerda radical europeia sob o prisma da ciência política. A obra divide-se num primeiro capítulo, onde March elabora um panorama comparativo da esquerda radical na Europa, e um segundo capítulo, onde André Freire se centra no caso português.

Embora como senso comum a ideia de “esquerda radical” seja facilmente apreensível, como objeto analítico ela exige cautela, tal a diversidade de casos que alberga. March responde ao problema com uma definição relativamente simples deste campo como o conjunto de partidos que se coloca à esquerda da social-democracia e preserva um legado de crítica ao capitalismo como algo não a reformar mas a transformar radicalmente. Isto operacionaliza-se numa tipologia quádrupla de (1) comunistas conservadores, (2) comunistas reformadores, (3) socialistas democráticos e (4) socialistas populistas. O primeiro grupo representaria o comunismo ortodoxo cristalizado no tempo da Guerra Fria;

o segundo, um aggiornamento desse legado que descarta seus aspetos mais controversos (leninismo, centralismo democrático, crítica da “democracia burguesa”, economia estatizada) e abraça outros típicos de uma agenda pós-materialista mais contemporânea (por exemplo ambientalismo, feminismo, democracia local); o terceiro grupo distancia-se mais do legado comunista ortodoxo a favor da agenda pós-materialista, assim como o quarto grupo, que no entanto privilegia uma retórica antissistema e antielite para disfarçar uma menor representação institucional. No primeiro grupo encontramos, por exemplo, o PCP ou o KKE grego, no segundo o PCF francês, no terceiro o BE, a par do Synaspismos grego e diversos representantes da esquerda ecologista nórdica, no quarto grupo o Die Linke alemão ou o SWP inglês.Qualquer tipologia desta espécie arrisca sempre a distorção em nome do encaixe nas categorias, e neste caso a distinção entre comunistas reformadores e socialistas democráticos parece-nos difusa e problemática; ademais, espanta a colocação no quarto grupo do Die Linke, um dos membros da família com mais deputados e representação institucional (March admite que seja um caso em transição). Apesar destas

Prisma, perspetiva, expectativa: um olhar sobre a esquerda radicalJosé boRGEs REis

André Freire e Luke MarchA Esquerda Radical em Portugal e na Europa: Marxismo, Mainstream ou Mar-ginalidade?Almedina, 2012

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falhas, é de reconhecer a exaustividade e dar o benefício da dúvida heurístico.Num diagnóstico geral, March vê uma esquerda radical europeia em consolidação e crescimento gradual após um grande recuo no final da Guerra Fria, embora com disparidades - na verdade só em 6 países, entre eles Portugal e a Grécia, se diagnostica um grande sucesso, em 9 países um sucesso moderado, enquanto o leste europeu permanece terreno hostil. Através de uma fastidiosa decomposição de fatores explicativos, o sucesso é explicado pela conjugação favorável de fatores externos e internos. Externamente, a esquerda radical floresce tipicamente onde há ceticismo face à UE e à globalização, um sistema partidário polarizado, onde já exista um partido da família com legado histórico, onde os obstáculos à representatividade (por exemplo, limites mínimos de votação) sejam baixos, entre outros. Os fatores externos não são suficientes, pois há países onde prevalecem sem fortalecer significativamente a esquerda radical (Reino Unido, Polónia) e, inversamente, países onde

rareiam sem definhá-la (Holanda, Suécia). O sucesso da esquerda radical exige também o concurso de fatores internos: os partidos mais fortes são os que tiveram uma evolução ideológica, superaram o dogmatismo interno, têm lideranças pragmáticas e carismáticas, colaboram em campanhas concretas com atores parlamentares e o movimento de justiça global; inversamente, os mais fracos são os que persistem em disputas internas e questões doutrinais de antanho, na oposição ideológica à participação no governo, com ativistas

envelhecidos e conservadores (p. 101).Seguindo e aprofundando esta tipologia, Freire analisa a esquerda radical portuguesa nas suas origens históricas, perfil ideológico e organizativo, performance eleitoral, base social e possíveis evoluções. De pendor fortemente quantitativo, o exercício tem a virtude de reunir uma série de dados dispersos sobre os partidos da esquerda portuguesa (PS incluído), fornecendo uma útil referência para quem queira aferir o estado dos saberes sobre a matéria ou afinar futuras investigações.A questão principal que transparece e para onde toda a análise parece convergir é, no entanto, outra: a disponibilidade da esquerda radical para a governação. Freire tem pugnado por essa evolução e dá-lhe aqui expressão académica. O cerne do argumento está no que Freire chama a congruência ideológica entre partidos e eleitorados. A partir de inquéritos a eleitores, Freire coloca os partidos numa escala esquerda-direita, de 1 a 10, e estabelece comparações entre várias subamostras para constatar que o eleitorado está, em

geral, à direita dos partidos e que, portanto, os partidos estão enviesados à esquerda, particularmente BE e PCP, enquanto o PS se encontra mais próximo dos seus eleitores e do eleitor médio. Conclusão: a esquerda radical necessitaria de maior moderação para melhor representar os seus eleitores e facilitar convergências à esquerda. Caso contrário, o défice de representação à esquerda em Portugal persistirá e a direita continuará a ter maiorias governativas mesmo quando não tem maiorias sociais.

A Num diagnóstico geral, March vê uma esquerda radical europeia em consolidação e crescimento gradual após um grande recuo no final da Guerra Fria, embora com disparidades - na verdade só em 6 países, entre eles Portugal e a Grécia, se diagnostica um grande sucesso,

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Esta fundamentação tem vários problemas. Quantificar as diferenças entre partidos numa escala, mesmo que ordinal, é um passo metodológico já de si sujeito a pressupostos e vieses. O que representa, no fim de contas, o BE ser 2,9 à esquerda e o PC 3,4? Esclarecê-lo exigiria exaustivos anexos típicos de uma tese académica, compreensivelmente ausentes do livro. Ademais, basear o escalonamento nas perceções dos eleitores é um critério aceitável mas insuficiente: o olhar externo do eleitor está sujeito a numerosas mediações e pode divergir grandemente do olhar interno dos agentes e organizações políticas. No fim de contas, o exercício torna-se artificioso, e um conhecimento assente em metodologias mais qualitativas (por exemplo, observação participante) porventura forneceria respostas mais simples ao enigma da aversão ao poder da esquerda radical portuguesa. Por fim há um problema epistemológico na precedência dada à perceção dos eleitores. Os partidos certamente refletem e adaptam o posicionamento do

eleitorado, mas não o transformam também? Aqui tocamos num certo reducionismo positivista (à falta de melhor expressão), que é uma das principais limitações da obra, uma conceção estática do político que assume os posicionamentos como dados e ignora a lógica da sua transformação no tempo. A política tem certamente aritmética, mas tem tanta mais dialética.

Em conclusão, dir-se-ia que esta obra representa um olhar situado sobre a esquerda radical - como a social-democracia vê a esquerda radical e como gostaria de vê-la. Isso não diminui a valia de muita informação que apresenta e boa parte da tipificação que propõe, mas prejudica-lhe a clarividência na análise da divergência entre social-democracia e esquerda radical. Mas a esse respeito os tempos de crise que atravessamos levarão ainda a muitos realinhamentos e, quiçá, a social-democracia seja obrigada a adaptações ainda maiores que o seu rival à esquerda.

Lançamento e debate do livro A Esquerda Radical em Portugal e na Europa, no ISCTE

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Entre um exame de Inglês de 9.º ano, com pro-tocolo com o BPI e uma grande editora, o des-pedimento massivo de professores e professo-ras, um pacote de exames nacionais que é uma excrescência no quadro europeu, ou o cheque-ensino, ficam as opções de Crato: transferência de recursos para o privado e uma nova enge-nharia social.Acaba a “gestão controlada das desigualdades”, como foi sendo panache das respostas do PS1. Naturalizam-se as desigualdades de partida em percursos escolares ratificados pelos exames, e precocemente desenhados. Entram todos, são arrumados em prateleiras diferentes cada vez

mais cedo. Dupla dualização: nos conteúdos e na escola que se pode frequentar. Neste caminho, a tentativa de definição de per-cursos escolares pelos exames e a aposta “vo-cacional” para alunos de 6.º ano são demons-trativos. Igualdade e liberdade são valores em guerra. A igualdade de oportunidades, no aces-so e no sucesso, e o sistema público de ensino são garantias constitucionais menosprezadas. Se alguma coisa faltasse perceber, eis que a bandeira do cheque ensino abanou as dúvidas deste pacote ideológico, radicalmente liberal e conservador.O Estado, ou seja, os impostos pagos por todos,

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1 - Estas observações, de Stephen Stoer, de atualidade renovada, reportam-se às opções para o ensino secundário: «As ciências da educação, em geral, e a sociologia da educação, em particular, fornecem material empírico e teórico, e uma massa crítica considerável que vai no sentido de mostrar que quando a diversificação não é um recurso dos alunos, dos estudantes ou das suas famílias, mas um dispositivo do sistema edu-cativo que o usa com vista ao aumento da sua eventual eficácia política e social, a seletividade social da escola aumenta.” “Gestão Controlada das Desigualdades?”, in A Página, novembro de 1999.

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sustentarão um programa de recuo no sistema público de ensino de muitas décadas. Os priva-dos viverão da renda garantida pelo Estado, o que não traz nada de novo ao padrão capitalis-ta nacional. O seu recheio ideológico é definido pelo eixo família/liberdade: a liberdade é mais forte do que a igualdade; logo a liberdade (de escolha) das famílias sobrepõe-se à igualdade (de oportunidades) das crianças e dos jovens; a família é mais importante do que o Estado; logo, a família deve assumir maior responsabilidade na educação dos seus filhos; e porque o Estado é um empecilho, o mercado tudo resolverá pela sua própria natureza.Há, acautele-se, aspetos de continuidade. Os cortes nos recursos do sistema público de en-sino foram assinados com a troika, incluindo o PS2. A “racionalização” dos recursos vinha de trás, os mega-agrupamentos também, tal como a ideia da escola como parente da empresa e

centrada nos resultados. Com efeito, a hegemo-nia do pensamento único para a educação, com a socialização para o mundo do trabalho cada vez mais cedo, a adesão ao empreendedorismo, a fé na economia do conhecimento, apontadas exigências de um mercado de trabalho interna-

cionalizado e de mutação rápida, não têm nada de novo face ao padrão anterior. têm agora a chancela da troika.A inflação discursiva em torno da mão-de-obra qualificada, o dever de atestar empregabilidade em detrimento do direito ao trabalho, nada disto é novo. Pela porta da frente do governo Sócrates entraram as exigências do “mercado da educa-ção”, até pela via do sobrediscurso da OCDE. E os seus ministros não estiveram sozinhos na performance: instituições europeias, OCDE e ló-bis desenham o pensamento único3. A novidade desta direita, fundada num “corte com o passado”, é o modelo de exames nos pri-meiros nove anos de escolaridade obrigatória, a extensão dos golpes no sistema público, a liqui-dação sem eufemismos da “igualdade de oportu-nidades” e a cisão dos percursos dos alunos/as a começar no 2.º ciclo, é a dupla dualização do ensino – nos currículos e nas escolas.

Há quem releve os apetites da “nova direita”, que desde a década de 1990 vem fazendo ruído sobre o fracasso da escola pública, com grupos de pressão, como a FLE (Fórum para Liberda-de da Educação), e comentadores de estimação, como José Manuel Fernandes, saído do mesmo

A novidade desta direita, fundada num “corte com o passado”, é o modelo de exames nos primeiros nove anos de escolaridade obrigatória, a extensão dos golpes no sistema público, a liquidação sem eufemismos da “igualdade de oportunidades” e a cisão dos percursos dos alunos/as a começar no 2.º ciclo, é a dupla dualização do ensino – nos currículos e nas escolas.

2- O Memorando impõe para a educação, nos próximos dois anos, um corte de, pelo menos, 375 milhões de euros – através, sobretudo, da “criação de agrupamentos de escolas” e da “redução das necessidades de pessoal”.3 - Cf. “Análise de Memorandum da Comissão Europeia sobre a educação e a formação ao longo da vida”, in Francis Vergne, L’Avenir n’est pas à vendre, p. 10. Para os países da OCDE o ensino representa o “último grande mercado” – 875 milhões de euros por ano, um mercado tão apetecido como o automóvel. Vários autores identificam lóbis e grupos de pressão, desde Banco Mundial à OMC, OCDE e aos seus grupos internos de pressão (grupo de Bilderberg, Comissão trilateral, Grupo de Davos).

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baú de Nuno Crato. Sem nos determos nos conhecidos fru-tos da deslocação de eixo de radicais, da esquerda para a di-reita, é no radicalismo ideoló-gico desta direita que convém concentrar esforços. PSD e CDS meteram um ide-ólogo na pasta para usar a tesoura do corte com o pas-sado. Nuno Crato não era um qualquer, tinha uma imagem apaziguadora depois da fe-rocidade de Maria de Lurdes Rodrigues, e tinha obra publicada. O eduquês em discurso direto foi apropriado pelos defensores da desburocratização das escolas. Mal sabiam onde se estavam a meter. A obra parte de mistificações sobre o sistema de ensino para o atacar e desenhar o modelo socialmente higienizador e darwinista. O pro-blema do ensino em Portugal seria “culpa de Rousseau”, do romantismo e do construtivis-mo à mistura, que idealizavam uma escola para cada um e para todos; seria “culpa das ciências da educação”, responsáveis pelo laxismo triun-fante, pela propagação, através de programas, investigadores e decisores políticos, do “edu-quês”, pelo triunfo do “ensino centrado no alu-no” e pela desvalorização dos currículos. Aquelas duas falsificações levaram Crato a de-fender uma política de seleção de alunos (e de professores) através dos exames: «Não se pode avaliar professores sem avaliação externa aos alunos»4, e «os exames podem ser orientadores de percursos escolares, levando, por exemplo, a encaminhar estudantes com dificuldades para vias alternativas, com o mesmo ou com outro término escolar»5.

Contra as paixões dos român-ticos e pedagogos, Crato era a lisura da razão matemática e o triunfo do bom senso. O pro-grama do XIX Governo clari-ficou a natureza do corte com o passado: a «substituição da facilidade pelo esforço, do la-xismo pelo trabalho, do diri-gismo pedagógico pelo rigor científico, da indisciplina pela disciplina, do centralismo pela autonomia»6. E desde a muni-cipalização7, até da gestão das

escolas, aos exames no fim de todos os ciclos de ensino, tudo está no programa do XIX Go-verno. Entre um livro, e a fama, e a realidade de um ministério vai a sua distância, e a lua de mel com o ministro foi-se com as últimas greves de professores. Mas cabe testar o recheio dos con-ceitos esforço, trabalho, rigor científico, disciplina, autonomia.O essencial deste programa reside em três as-petos: na revolução, mais ruidosa ou mais silen-ciosa, dos currículos e programas, nos exames e no favorecimento do privado sob o lema da cen-tralidade das famílias. Descrentes na “bondade natural do homem”, apostam na força dos hábi-tos, do treino forçado, da tradição, para moldar a natureza humana. Só aquela descrença e aquela convicção lhes permitiu pôr crianças de 9 anos a responder so-bre uma expedição marítima às Berlengas e im-por um (caro) programa de 3 exames nacionais nos 9 anos iniciais de escolaridade obrigatória. É inaceitável a forma como este ministério descarta milhares de professores e professoras do sistema, mas não o é menos a forma como

4 - Declarações de Nuno Crato em 15 de Abril de 2008.5 - O eduquês em discurso direto, p. 486 - Programa do XIX Governo Constitucional, p. 109.7 - A Câmara de Cascais contratualizou com a Universidade Católica um estudo para fazer do concelho o pioneiro na municipalização do ensino, com o custo de 27 500 euros.8 - Em boa parte esta liquidação assentou no seu “triunfo do bom senso”, cujos perigos não se mediram; áreas indefinidas e mal avaliadas, não deixavam de constituir espaços de autonomia para as escolas.

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trata crianças e jovens, impossibilitados de se defenderem destes abusos se a comunidade dos adultos não se mobilizar - dos pais, das mães, dos sindicatos e associações, dos professores e professoras, dos que pensam a educação e de-fendem a escola pública.Quanto aos eixos do programa e no que aos conteúdos respeita, destaca-se: o reforço das “ciências” sobre a asfixia das “expressões”; a liquidação de áreas curriculares não disciplina-res8; a reforma de programas como o de mate-mática, à revelia das mais acreditadas reflexões e dos resultados obtidos, numa espécie de capri-cho vingativo. As duas primeiras opções servi-ram, como é evidente, para reduzir o número de professores; repletas de carga ideológica, servi-ram na perfeição a tabela excel.É sob os exames que ressalta a violência do corte. Em primeiro lugar porque se fizeram em contraciclo, no plano europeu (são, pois, uma resposta nacional). O propósito de Crato é fazer exames para diferenciar percursos esco-

lares e poder vir a tê-los em conta na avaliação dos professores. Proposta original quando, no quadro europeu, os exames, que se expandiram a partir da década de 1990, segundo os dados publicados9, na maioria dos países se realizam no fim do que corresponderá ao 9.º ano, muito longe dos 3 momentos de exame realizados nos primeiros 9 anos de escolaridade obrigatória. Na última década, centraram-se na avaliação de competências e não de conteúdos. Sobre o afunilamento dos alunos em percursos defini-dos pelos exames, deixa-se o exemplo de Malta, onde os exames determinam que os alunos se agrupam, no 5.º e 6.º anos, segundo as capaci-dades, ou a Polónia, onde maus resultados nos exames de 9.º podem empurrar os alunos para a realização de ensino profissional de curta dura-ção. Em segundo lugar porque há malfeitorias que não podem ser esquecidas10. Em terceiro lugar destaca-se a multiplicação de testemun-hos de mal-estar das crianças, respostas aos ingredientes da receita: medo, treino, disciplina.

9 - Exames nacionais dos alunos na Europa: objetivos, organização e utilização de resultados, Eurydice 2010.10 - O exame de Português de 4.º ano, da primeira fase, merece nunca ser esquecido. Abria com uma notícia do Público, adaptada: «Descobertas 120 espécies novas nas ilhas Berlengas. Uma equipa de cientistas mergulhou entre anémonas (1) cor-de-rosa e peixes azuis escondidos em recifes de corais (2) vermelhos, para fazer o maior levantamento da biodiversidade (3) marinha das ilhas ao largo de Peniche. Estibaliz Ber-ecibar chegou a mergulhar duas vezes por dia nos mares das Berlengas, arquipélago de ilhas e rochedos com encostas muito inclinadas, a dez quilómetros de Peniche. Esta bióloga (4), especializada em algas marinhas, integrou a equipa dos 29 cientistas mergulhadores que participou na expedição (5) às Berlengas, de 18 a 30 de setembro, a bordo do Creoula, navio-escola da Marinha Portuguesa. O navio fez-se ao mar para se conhecerem as espécies marinhas destas ilhas, de acordo com o projeto Marbis, criado em 2007 para ajudar a identificar as zonas do mar português que devem ser protegidas». Para além de as Berlengas serem um local absolutamente familiar e atraente para crianças de 9 anos, obrigadas a deslocarem-se da sua escola para outras, com professores que desconheciam, no primeiro exame da sua vida, os dois primeiros parágrafos da notícia implicavam a consulta de 5 sinónimos, num texto extensíssimo.

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Os resultados foram desastrosos. Poder-se-ia pensar que tudo isto foi feito por gente sem memória dos exames de 4.ª classe do Estado Novo, sem memória do crucifixo sobre o quadro preto, dos carrapitos de professoras desconhe-cidas ornamentados por olhares ferozes sobre as canetas bic, do tempo em que a escola não era “para todos”. Mas não, eles sabem exata-mente o que querem – medo, treino, disciplina.E nesta desindividuação cabe ainda o aumento do número de alunos/as por turma. Sendo certo que há estudos para todos os gostos, qualquer professor/a sabe que 30 alunos/as numa turma compromete qualquer tentativa de individual-ização do ensino em contexto de sala de aula, e que é uma violência ter 6 alunos com neces-

sidades educativas especiais numa turma. Neste corte com o passado, os processos não contam, o indivíduo não existe, conteúdos e treino re-solvem os problemas do insucesso. E se dúvidas restassem, as decisões do conselho de ministros de 5 de setembro vieram desfral-dar a bandeira ideológica do cheque-ensino, indiferente aos maus resultados da experiência sueca. E ou este programa visa a destruição de escolas públicas ou, a manter-se o duplo

financiamento dos sistemas, ficará bem mais caro aos bolsos dos portugueses. «A liberdade de escolha e uma concorrência entre escolas e sistemas», segundo Crato, são o sustento da re-visão do Estatuto do Ensino Particular e Coop-erativo, além da responsabilidade da educação centrada nas famílias. A hipocrisia do discurso sobre a liberdade das famílias tem um nome: seleção social. As famílias ficarão com o ónus, o governo com a faca. O governo que não imporá o fim do fu-nil aos colégios privados, com vagas limitadas e seleção dos seus alunos - e é disso mesmo que em grande parte vive o seu sucesso. As escolas privadas ficarão com os meninos e meninas das famílias ricas e de classe média, sem problemas

de aprendizagem ou disciplinares; e, com muita sorte, com os das famílias carenciadas que cor-respondam a este perfil. As escolas públicas fi-carão com o resto. Não há nenhuma autonomia para as famílias: nem o contributo do Estado resolverá as dificuldades das famílias mais po-bres, nem haverá liberdade de escolha porque a escola privada deixará à porta o que não lhe in-teressar. A liberdade das escolas privadas falará bem mais alto do que a das famílias.

A hipocrisia do discurso sobre a liberdade das famílias tem um nome: seleção social. As famílias ficarão com o ónus, o governo com a faca.

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A primeira parte do título deste artigo reproduz o da obra coletiva recentemente dada à estampa sob a coordenação de José Soeiro, Miguel Car-dina e Nuno Serra, na editora tinta da China. Não é meu propósito fazer propriamente uma recensão do livro (até porque nele participei) mas, a pretexto dele e da intenção que lhe presi-de – a desmontagem crítica dos vários sentidos do “senso comum” -, tecer algumas considera-ções breves.A primeira é sobre o “senso comum” político latu senso (isto é, sobre o senso comum no debate corrente das principais questões políticas, eco-nómico-sociais e outras que afligem as pessoas nos dias de hoje). O que é esse “senso comum” político? Essa invisível imanência que escorre-ga para as consciências e as vai moldando in-sensivelmente, quotidianamente, muitas vezes

insidiosamente, ao sabor de uma representação global e dominante da realidade que escapa aos destinatários atomizados e frequentemente in-defesos? Eu diria que é a absoluta explicitação da hegemonia de uma ideia/uma ideologia tor-nada, pela eficácia da sua inculcação, “esponta-neamente indiscutível”. transformada em “ver-dade” aceite com prévia anulação dos anticorpos ou do filtro da análise crítica. Nesse sentido, é o poder de uma representação que conquista a adesão corrente ultrapassando as prevenções previsíveis do raciocínio analítico. Por isso mes-mo, de alguma forma, a hegemonia no máximo da sua força condicionadora da vontade comum. É o que acontece quando, aos olhos de muitos, a necessidade da austeridade se justifica, quase sem se a questionar, porque “vivemos acima das nossas possibilidades”.

Não acredite em tudo o que pensa, ou pense melhor naquilo em que acreditaFERnAndo RosAs

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Por isso é difícil desmontar e anular critica-mente o “senso comum”, porque é o combate do pensamento crítico contra a força “espontâ-nea” da aceitação acrítica. A dificuldade do ra-ciocínio e do conhecimento contra a facilidade e a eficácia de uma ideia tornada de deglutição automática. Mas tal dificuldade só torna mais urgente o esforço.A segunda observação serve, precisamente, para lembrar que a década de 80-90 do século XX foi marcada por uma fundamental alteração de hegemonias: a vitória do neoconservadoris-mo neoliberal sobre as ideologias marxistas, marxizantes e de esquerda conquistadas nos anos 60 e 70. A década do tatcherismo e do reaganismo precedeu e preparou, também no plano ideológico, a grande mudança contrarre-volucionária na estratégia de expansão e acu-mulação do capitalismo que teve, com a Grande

Depressão de 2008, o pretexto para a drástica radicalização da sua ofensiva. No fundo, com o desemprego massivo, a precarização das re-lações laborais, a baixa de salários e pensões, o ataque ao Estado social, as privatizações de setores estratégicos – tudo brutalmente radi-calizado através das políticas de austeridade e do saque operado pela especulação contra as dívidas soberanas – aquilo que temos pela fren-te é a tentativa não só de operar uma espan-tosa transferência dos rendimentos da esfera do trabalho para a do capital, mas o propósito de alterar duradouramente e a favor deste a correlação de forças com o mundo do trabalho. Uma verdadeira regressão civilizacional que, se puder, não poupará, naturalmente, o plano político-institucional, ou seja, o da organização do Estado nos moldes demoliberais herdados da vitória sobre o nazi-fascismo no pós-guerra. É o património global das aquisições históricas

dessa época que está em causa. No caso portu-guês, o património das conquistas remanescen-tes da revolução de 1974/1975. Na realidade, insisto, é de uma contrarrevolução funcional-mente semelhante à da época dos fascismos, por enquanto prescindindo de formas extremas de violência e subversão (até porque não existe uma ameaça revolucionária), aquilo de que es-tamos a falar.A terceira nota é para afirmar que a rápida propagação do liberalismo neoconservador e contrarrevolucionário na Europa só foi possí-vel pela conjugação de 3 fatores: a implosão do socialismo real, que não se limitou a arrastar esses regimes mas colocou em questão o con-junto das conceções teóricas marxistas e mar-xizantes, abrindo uma grave crise de identidade política e ideológica nas esquerdas internacio-nais, o que desarmou largamente a resistência

popular; a rendição da social-democracia ao ne-oliberalismo, abandonando o paradigma refor-mista do pós-guerra (Blair, percussor da tercei-ra via, teve condignos continuadores: Schmidt, Craxi, González, Rocard…) e franqueando, por antecipação, todo o terreno ao rápido controlo por parte das direitas neoliberais dos aparelhos de Estado e das suas políticas, tanto a nível na-cional como europeu; e a agudização da crise internacional do capitalismo com a Grande De-pressão de 2008: num ambiente de hegemonia ideológica e política neoliberal, a crise tornou-se, pelos estragos e dramas sociais de toda a ordem que origina, pelo medo, pela insegu-rança, pela desmobilização, terreno fértil para implantação de um senso comum conservador, justificador e legitimador dos piores aspetos das medidas austeritárias. A crise potenciou e radicalizou a ofensiva neoconservadora do ca-pitalismo.

É difícil desmontar e anular criticamente o “senso comum”, porque é o combate do pensamento crítico contra a força “espontânea” da aceitação acrítica.

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Quarta observação: a hegemonia neoconser-vadora e neoliberal instalou, assim, o “senso comum” como novo catecismo popular e com fins muito precisos: apresentar como inevitá-vel e inelutável a estratégia da austeridade e de sobre-exploração, demonizar e desacreditar quaisquer propostas alternativas ao diktat das troikas e desmobilizar e desarmar os esforços de resposta popular e da opinião pública contra a demência destruidora da austeridade. Desti-nado a criar a apatia, a aceitação resignada, a submissão, a descrença, o “senso comum” con-servador, de alguma maneira, tornou-se o prin-cipal instrumento da estratégia austeritária ao nível da opinião pública. E o seu grande aliado é o medo. Na realidade, o senso comum conser-vador é uma estranha mas eficaz aliança entre o desconhecimento e o medo.Como quinta observação, direi que o desconhe-cimento é o moderno obscurantismo desta épo-ca neoconservadora do desenvolvimento capi-talista. A sua diferença principal em relação ao velho obscurantismo pré-capitalista e anticapi-talista é que este era fixista e defensivo. Efetiva-mente, no passado, tratava-se de manter os de “baixo” como sempre tinham estado, na igno-rância, discriminados no acesso à informação, à educação e à cultura. O novo obscurantismo, ao contrário, tem de destruir, ou transformar, num sentido regressivo, deve anular ou manipular

os efeitos do que se conquistou em termos da consciência social. Deve reorganizar o “con-senso” em torno do novo regime de espoliação. Ou seja é de natureza ofensiva, por isso exige grandes meios e ação profunda. É agora um obscurantismo programado ideologicamen-te e que decorre, desde logo, da concentração do controlo dos média pelos grandes grupos financeiros e pelas equipas de ”profissionais” ao seu dispor. Rapidamente eles procederam a uma homogeneização dos conteúdos por pa-drões de estupidificação, de desmobilização cí-vica, de naturalização da ordem estabelecida e de anulação do espírito crítico com uma eficácia totalizante sem precedentes, porque se abriga sob uma “invisibilidade” aparente que decorre do respeito formal pela liberdade de informa-ção. Mas o novo obscurantismo ataca também os fundamentos do sistema educativo e científi-co: o estrangulamento financeiro e a contrarre-forma pedagógica e curricular com que se cerca e desvaloriza a escola pública; a regressão cien-tífica que, sob todos os aspetos, hoje é claro que representou para as universidades o processo de Bolonha; os estrangulamentos em curso da investigação científica e as tentativas de sobre elas instalar tutelas de natureza ideológica. O neoconservadorismo percebe que o sucesso da contrarrevolução depende desta “limpeza” pro-funda, indispensável à sua instalação das coisas

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simples do senso comum e do consenso que ele induz em torno do status quo. O medo é a outra face do senso comum. O medo que na popu-lação trabalhadora e nas clas-ses intermédias, a recessão, o desemprego e a pauperização, eminente ou atual, difundem: o medo de um presente (e se calhar de um futuro) onde grande parte dos instrumen-tos sociais e políticos de repre-sentação e de defesa dos mais fracos se debilitaram, per-deram eficácia, quando não desapareceram; o medo das soluções alternativas, quando se não as conhece ou elas são dominantemente apre-sentadas como um passaporte para o caos. O medo e o desconhecimento são, efectivamente, o combustível do senso comum.Sexta questão: como se vence política e so-cialmente o medo? Na minha opinião, quando a inorganicidade do medo ou da revolta surda e atomizada dão lugar à materialização de um sujeito político emancipatório. Quando o medo se transforma em consciência da necessidade. Se se quiser, quando, por um desses imprevi-síveis saltos do processo histórico, a quantida-de se torna qualidade. Isto é, a oportunidade e a viabilidade de uma alternativa se tornam conscientes e capazes de transformar o medo e a apatia em energia libertadora. Quando as pes-soas entendem não só que há uma saída, mas, principalmente, que ela está ao seu alcance, que ela vale o risco e o sacrifício de lutar por ela.Foi o que aconteceu em Portugal, nas eleições presidenciais de 1958, durante a ditadura, um relâmpago de revolta no céu azul da “ordem”, porque a população acreditou que era possível vencer o medo – “abaixo o medo!” era o slogan do general Delgado. Melhor: o povo teve a in-tuição, propagada como uma onda, de que aque-le general destemido não se limitava a cumprir o costumeiro ritual de presença da oposição,

mas lhe oferecia a possibilida-de real, ao seu alcance, de mu-dar de vida.Foi, mais uma vez, o que se passou na manhã de 25 de abril de 1974, na baixa de Lisboa, com a capitulação da Cavalaria 7 perante Salgueiro Maia: as pessoas, inicialmente espectadoras do movimento militar, compreenderam que o regime não só deixara de ter exército, como este, ou parte dele, era capaz de derrubar a velha ditadura. Deu-se então

esse misterioso salto qualitativo na consciência coletiva: «Eles já não nos podem vencer, mas nós podemos derrotá-los», essa intuição da al-teração da correlação de forças que se apodera como um súbito solavanco do movimento das massas e faz o povo espectador passar a sujei-to revolucionário atuante. Faz o golpe militar transmutar-se em processo revolucionário.Em qualquer dos dois casos, sétimo e último ponto, essa consciência da viabilidade da mu-dança, esse salto fundamental na perceção da realidade, fora fruto de um persistente e arris-cado labor contra-hegemónico. De uma semen-teira crítica, cultural e política, legal e clandes-tina, multiforme, que adubara os terrenos onde visível ou invisivelmente se defrontavam a he-gemonia dominante e o seu contrário.Precisamente, creio que este livro a que de início me referi, vai, qual formiguinha, nesse grande carreiro que é o de construir de uma nova cultura crítica capaz não só de derrotar o senso comum conservador, mas de evidenciar os contornos de uma alternativa anticapitalista assumida como alcançável, necessária e urgen-te por parte dos mais fracos. Em certo sentido, capaz de criar um outro sentimento comum e com o campo social e político correspondente, surgidos da negação do “senso comum” neo-conservador. A nova hegemonia é isso mesmo. A condição indispensável para tudo o resto.

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A afirmação das Relações Internacionais como uma ciência social autónoma ou como um ramo da Ciência Política é para mim secundária. te-nho igualmente a convicção teórica de que não será através da luta pela hegemonia de uma abordagem marxista das relações internacio-nais que se vai transformar o mundo. Julgo po-rém necessário à esquerda ter bases sólidas para o pensamento acerca da realidade internacional.Uma teoria das relações internacionais deve as-sumir a teoria social e a teoria do Estado que tem subjacente. O objetivo deste artigo é forne-cer pistas para uma abordagem socialista e ver-dadeiramente emancipatória, por não abdicar da cientificidade nem ceder ao positivismo. trata-rei desta questão no âmbito da disciplina aca-démica das Relações Internacionais tendo como preocupação: contribuir para uma luta de ideias e uma compreensão das relações internacionais intimamente ligadas à luta política e social.

Quem estuda ou estudou Relações Internacio-nais já se deparou com esta pergunta: ‘Idealismo ou Realismo?’. É com esta pergunta com rastei-ra que costumamos perder a bússola que indica a esquerda. O Idealismo diz-nos que a política é ‘a arte do bom governo’. O Realismo diz-nos que a política ‘é a arte do possível’. Vemo-nos forçados a escolher entre a ingenuidade/bon-dade do otimismo antropológico Idealista e o cinismo/maldade do pessimismo antropológico Realista. Recusemos uma escolha condicionada pelos limites do liberalismo e do conservadoris-mo.“Uma teoria serve sempre a alguém e a algum propósito” sublinhava Robert Cox, em 1981. E ainda hoje é inegável a hegemonia dos paradig-mas do mainstream da teoria das relações inter-nacionais: que inclui hoje não apenas a velha dicotomia Idealismo/Realismo, mas também o Construtivismo como “oposição oficial e res-

Marxismo no “segundo segundo debate”das Relações InternacionaisbRuno Góis

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peitável”. No entanto, existem muitas outras abordagens.Falando da primeira década deste século XXI, Martin Griffiths afirma que as Relações Inter-nacionais se tornaram “um espaço de intenso debate nos últimos anos”, contrapondo que até finais dos anos noventa “ainda era possível di-vidir este campo em três principais perspetivas – Realismo, Liberalismo e Marxismo” e con-cluindo que, desde então, “[n]ão apenas estas abordagens evoluíram em novas direções, mas a elas juntaram-se uma série de novos ‘ismos’ competindo pela atenção, incluindo o feminis-mo e o construtivismo”1.

Quantos “Grandes Debates”?Os chamados Grandes Debates das teorias das Relações Internacionais são um mito2 mas são incontornáveis. A ideia de grandes debates na disciplina, alimentada pelas consequências pre-vistas ou imprevistas do kuhnianismo3, tende para os seguintes cúmulos: num extremo, um evolucionismo cientifista acrítico, em que a nova “ciência normal” é superior às anteriores, no outro, um ludismo epistemológico, em que o fetiche é a procura da última moda teórica.No entanto, julgo ser através da sua crítica e aproveitando a sua organização historiográfi-

ca que chegamos a conhecer melhor esta dis-ciplina académica. O chamado primeiro debate é entre o realismo político e o idealismo. Este “primeiro debate” envolve divergências filosófi-cas entre o pessimismo antropológico (ou seja, o conservadorismo do realismo político) e o otimismo antropológico (dos liberais ou idea-listas)4. O “segundo debate” das RI, chamado metodológico, ocorre entre tradicionalistas e comportamentalistas/cientificistas. De um lado os defensores dos tradicionais métodos da história, do direito e da filosofia e, do outro, os defensores da ciência empirista. O “terceiro de-bate” surge com várias versões: neo-realistas vs

neoliberais; neo-realistas vs globalistas; inter-paradigmático; epistemologias positivistas vs pós-positivistas.

Materialismo Histórico como “teoria crítica”Apesar daqueles “grandes debates”, o verda-deiro debate metateórico5 só chega às RI pela via do neo-gramsciano Robert Cox. “Uma te-oria serve sempre a alguém e a algum propó-sito” afirmou teórico canadiano Robert Cox, em 1981, num artigo que é aceite como a che-gada da teoria crítica às Relações Internacio-nais: “Social Forces, States and World Orders:

(...) uma grande abordagem das relações internacionais alicerçada numa teoria

social marxista que reinterprete os contributos do feminismo, da teoria crítica e de

outras tradições teóricas consistentes com “ a concepção materialista da história”

1 - GRIFFItHS, Martin (Ed.)(2007), International Relations Theory for the Twenty-Fist Century. An Introduction. London and New York: Routledge, p. i. 2 - SMItH, S. (2008), in REUS-SMIt, C. & SNIDAL, D. (eds.), The Oxford Handbook of International Relations. Oxford: Oxford University Press, p. 726.3 - Refiro-me às ideias inspiradas trabalho do historiador e filósofo das ciências thomas Kuhn (ver KUHN, thomas S. (2009), A Estrutura das Revoluções Cientificas. Lisboa: Editora Guerra & Paz).4 - Aqui refiro-me apenas ao dito “primeiro debate”. Sobre as taxonomias e causas da paz e da guerra nas diferentes vertentes de Realismo e Liberalismo ver os quadros das páginas 90 (“Realism”, artigo de tim Dunne e Brian Schmidt ) e 103 (“Liberalism”, artigo de tim Dunne) em BAYLIS, John, SMItHS, Steve & OWENS, Patricia (Eds.) (2011), The Globalization of World Politics. An Introduction to International Relations. 5th Ed. New York: Oxford University Press.5 - MENEZES E SILVA, Marco António (2005), “teoria Crítica em Relações Internacionais”. Contexto Internacional. 27, 2 (julho/dezembro 2005),249-282.6 - COX, Robert W. (1981), “Social forces, states, and world orders: beyond international relations theory”. Millennium - Journal of Interna-tional Studies. 10 (1981) 126-155. disponível on-line em Sage Journals, <http://mil.sagepub.com/content/10/2/126>.

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Beyond International Relations theory”6. Dis-tinguindo, por um lado, aquilo a que chama “te-orias críticas”, que seriam comprometidas com a emancipação, por outro, as “problem-solving theories” ou “teorias de resolução de proble-mas”. Esta distinção revela-se decalcada da di-ferença entre teorias críticas e teorias clássicas feita por Max Horkheimer, em 19377, embora Cox se inspire mais em Gramsci que na Escola de Frankfurt.O crítico canadiano vê o materialismo histórico como uma fonte fundamental de teoria crítica e de correção à teoria neo-realista das relações internacionais, salientando a este respeito qua-tro aspetos. Primeiro, a dialética ao nível da ló-gica e ao nível da história real como princípio de dinâmica quer da teoria, quer da realidade. O “[m]aterialismo histórico vê no conflito um processo de reconstrução contínua da natureza humana e a criação de novos padrões de rela-ções sociais os quais mudam as regras do jogo e a partir das quais […] novas formas de confli-to podem emergir”. Segundo, “através do enfo-que no imperialismo, o materialismo histórico

acrescenta uma dimensão vertical à rivalidade entre os estados mais poderosos”, consideran-do a dimensão da “economia política mundial”. terceiro, “o materialismo histórico alarga a perspetiva realista através da preocupação com a relação entre Estado e sociedade civil”. Quarto, “o materialismo histórico centra-se no processo produtivo como um elemento crítico na explicação da formação histórica particular assumida pelo complexo Estado/sociedade ci-vil”. Em síntese, “[o] materialismo histórico examina as ligações entre o poder na produção, o poder no Estado, e o poder nas relações inter-nacionais”8.Robert Cox é um crítico da perspetiva a-his-tórica do neo-realismo e do determinismo es-truturalista que identifica não apenas no neo-realismo mas em todos os estruturalismos, estruturalismo marxista incluído. Porém não deita fora o contributo marxista, que é anterior e superior ao desvio estruturalista9.O quadro em que a ação se move, na análise co-xiana, consiste em dois triângulos de estruturas que se influenciam reciprocamente: uma entre

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7 - HORKHEIMER, Max (2003), “teoría tradicional y teoría crítica”, in Teoría crítica. 1ª Ed. 3a reimp. Amorrortu editores: Buenos Aires, pp. 223-271.8 - COX, Robert W. (1981), opus cit, pp. 134-135.9 - Uma interessante atualização da crítica ao estruturalismo como sendo origem de uma degenerescência da razão que continuaria nas cor-rentes pos-estruturalistas e pos-modernistas pode ser encontrada em NEttO, José Paulo (2010), “Posfácio”, in COUtINHO, Carlos Nelson, O Estruturalismo e a Miséria da Razão. 2ª. Ed. São Paulo: Expressão Popular, p. 28.

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capacidades materiais, ideias, instituições; outra entre forças sociais, formas de Estado, or-dens mundiais. A teoria crítica neo-gramsciana desenvolvi-da pelos sucessores de Cox10 tem porém o vício de aplicar os conceitos de Gramsci como tipos-ideais weberianos.

Teoria emancipatória para além do pós-positivismo?Chris Brown e Kirsten Ain-ley no livro Compreender as Relações Internacionais suma-riam bem a relação das diversas correntes de pensamento surgidas nas últimas décadas e o projeto emancipatório. Colocam imediatamente de parte o liberalismo contemporâneo por ser, e bem, amplamente considerado fora do campo emancipatório, e identificam entre as demais correntes teóricas um grande fosso entre os que pretendem restabelecer o projeto moderno de emancipação (inspirados em Kant, Hegel e Marx) e os que “criticam os pressupostos sub-jacentes à teoria emancipatória” (inspirados em Nietzsche, Heidegger e Foucault)11.Brown e Ainley concretizam: “o primeiro grupo [...] está claramente associado ao pensamento de esquerda e progressista que vem da Revo-lução Francesa”. E mais adiante afirmam: “O mais influente de todos os teóricos críticos foi, e continua a ser, Karl Marx. Foi ele que estabele-ceu com maior clareza que a ‘emancipação’ não podia ser apenas um processo político, deixan-do incólumes as desigualdades económicas”. No campo académico das Relações Interna-cionais, Marx tem sido tratado principalmente através de intermediários, particularmente: os economistas políticos internacionais inspirados em Gramsci e os teóricos políticos internacionais ins-

pirados na Escola de Frank-furt12.Na sequência da secção “O pensamento internacional crí-tico, pós-estruturalista e ‘pós-moderno’”, onde se incluem aquelas citações, Brown e Ain-ley concluem que o pós-posi-tivismo é o que une as várias perspetivas que desafiam o consenso neo-neo, ou seja, que as teorias que desafiam o con-senso entre neoliberais e neo-conservadores têm pouco em comum salvo a sua tendência pós-positivista. Porém, como

salientam os mesmos autores, há uma exceção dentro do campo das correntes de pensamento que desafiam este consenso liberal-conserva-dor: uma corrente que não é nem positivista, nem pós-positivista. Essa vaga que está para além do debate entre positivistas e pós-positi-vistas chama-se realismo crítico.Heikki Patomaki e Colin Wight formularam a questão “E depois do pos-positivismo?” num artigo germinal sobre “as promessas do rea-lismo crítico”13, há mais de uma década, porém pouco eco temos desse debate em Portugal.No realismo crítico, afirmam Brown e Ainley, “encontram-se autores que são indiscutivel-mente da esquerda radical, frequentemente marxistas, mas que rejeitam o anti-cientismo dos pós-estruturalistas e dos pós-modernis-tas”14. O realismo crítico não é por si só uma teoria das relações internacionais, o realismo crítico é uma filosofia da ciência que preten-de superar o debate entre positivistas e pós-positivista. Esta filosofia da ciência teve como seu mais destacado representante em Roy Baskar, embora não se limite a este autor. Jor-ge Rivas, um dos defensores da aplicação do realismo científico às Relações Internacionais,

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10 - GILL, Stephen Gill (Ed.) (1993), Gramsci, historical materialism and international relations. New York: Cambridge University Press.11 - BROWN, Chris & AINLEY,Kirsten (2012), Compreender as Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva, p. 101.12 - Idem, Ibidem, p. 102.13 - PAtOMAKI, Heikki & WIGHt, Colin (2000), “After Postpositivism? the Promises of Critical realism”. International Studies Quarterly, Vol. 44, No. 2. (Jun., 2000), pp. 213-237.14 - BROWN, Chris & AINLEY, Kirsten (2012), Opus cit, p. 103.

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argumenta e resume desta forma o que há de comum entre positivistas e pós-positivistas: “tanto o positivismo como o interpretativismo envolvem posições ontológicas anti-realistas e baseiam-nas nas suas epistemologias antropo-cêntricas (empirista e interpretativista, respe-tivamente)”15.Este realismo crítico nem deve ser confundi-do com o realismo político do primeiro debate, nem tampouco com a “via média” de Alexander Wendt. Diferentemente da “via média” de Wen-dt, não é um compromisso, mas uma superação do debate entre positivistas e pós-positivistas.Do ponto de vista metateórico, esta proposta de realismo crítico é, em resumo, o inverso da de Wendt: assume um relativismo/falibilismo epistemológico e um realismo/objetivismo on-tológico. É assim que se afasta da “falácia epis-temológica”, afirmando que há uma realidade para além das aparências que é objetiva e não totalmente conhecida ou conhecível, mas não é por esse facto negada16.Colin Wight e Johnathan Joseph na introdução à coletânea Scientific Realism and International Relations afirmam que:“[o] realismo científico/realismo crítico trabalha ao nível da crítica fi-losófica, desafiando os pressupostos filosóficos da maioria das teorias contemporâneas das RI e dessa forma introduz por si só contributos epistemológicos e ontológicos”17. O realismo crítico é um desenvolvimento específico do re-

alismo científico aplicado às ciências sociais. As aplicações desta filosofia da ciência às ciências sociais têm em comum o facto de considera-rem, ou pelo menos não negarem, as seguintes características, de acordo com resumo de Wi-ght e Joseph: “Existe uma realidade social que consiste em múltiplas forças que condicionam as vidas dos indivíduos; algumas dessas forças podem bem ser inobserváveis, no entanto, são reais; estas forças são estruturadas por forma de relações externas e internas, estruturas de poder e papéis sociais; as ciências sociais podem não captar a natureza das forças causais mera-mente através da investigação empírica; as ci-ências sociais e políticas são fundamentalmente sociais e políticas por natureza e refletem, em parte, a posição do investigador na realidade social; a interação entre agentes e estruturas e forças materiais e ideacionais é uma questão para ser colocada empiricamente e não por de-creto teórico”18.

“Segundo segundo debate”?Chris Brown em “Situating Critical Realism” defende que: “embora o realismo crítico não seja nem a próxima grande ideia, nem um tema adequado para um grande debate, pode desem-penhar um papel importante no revigoramento de uma tradição de pensamento que tem sido injustamente negligenciada nos últimos vinte anos, ou mais”: “o marxismo”19.

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15 - RIVAS, Jorge, “For real this time: scientific realism is not a compromise between positivism and interpretivism”, in JOSEPH,Jonathan & WIGHt, Colin (eds.) (2010),Scientific Realism and International Relations. Chippenham and Eastbourne, Great Britain: Palgrave Macmillan, pp. 203-227.16 - Idem, Ibidem.17 - JOSEPH,Jonathan & WIGHt, Colin, “Intruduction”, in JOSEPH,Jonathan & WIGHt, Colin (eds.) (2010), Scientific Realism and Inter-national Relations. Opus cit, pp. 1 a 30.18 - Idem, Ibidem, pp. 1 e 2.19 - BROWN, Chris, “Situating critical realism”. Millennium: journal of international studies. 35 (2). 2007. pp. 409-416.

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Afirma Chris Brown que a aplicação do realismo crítico às relações internacionais só é útil se servir para revitali-zar o marxismo, e que se for, no entanto, servir apenas para revitalizar os debates sobre epistemologia e ontologia não servirá para nada20.Opinião diferente da de Chris Brown têm Marjo Koivisto e Simon Curtis, que num artigo de 2010, defendem as possi-bilidades de um Segundo ‘Se-gundo Debate’21. Filiando-se, a este respeito, no pensamento de Colin Wight, criticam o facto de o carácter ‘científico’ do estudo das Relações Internacio-nais ter sido apenas concedido às abordagens positivistas. Rejeitam portanto a incomensura-bilidade entre ciência e história afirmada desde o dito ‘Segundo Debate’, debate metodológico entre cientifistas e tradicionalistas22. Digno de nota é, aliás, que Marjo Koivisto e Simon Cur-tis consideram que os autores que classificam com neo-marxistas e particularmente o traba-lho de Robert Cox têm a mesma sensibilidade histórica que advogam necessária para as Re-lações Internacionais. Marjo Koivisto e Simon Curtis defendem a fusão da história com a teoria social. Com os partidários desta proposta, que incluem não só os referidos autores, abre-se espaço a um grande diálogo entre a sociologia histórica e o materialismo histórico nas Rela-ções Internacionais.Ainda relativamente a Chris Brown, Colin Wight e Johnathan Joseph consideram que a tentativa deste autor para reduzir o realismo

crítico a uma forma de mar-xismo é problemática. Em primeiro lugar, reduzir o re-alismo científico/realismo crítico ao trabalho de Roy Bhaskar, como faz Brown, é para Wight e Joseph um erro porque a via de Bhaskar não é o único realismo científico possível. Muitos autores, que acolheram o realismo crítico, vão para além do trabalho de Bhaskar: não aceitando, e bem do meu ponto de vista, nomea-damente a sua dialética trans-cendental – como é o caso de

Callinicos23 24. Além disso, e como argumentam Wight e Joseph, o realismo crítico é consistente não apenas com o marxismo mas também com o feminismo e as teorias críticas das relações internacionais25.

Relações Internacionais e “anatomia da sociedade civil”Na sua conferência “As relações Internacionais como Ciência Social”26, Iver Neumann, embora tenha assumido que rejeita a via marxista, to-cou num ponto que é fundamental: as RI têm de prestar mais atenção aos fundadores da teoria social. É também por aí que passa a proposta que defendo.A minha proposta é que considerados os con-tributos de linhagem marxista bem como ou-tros que sejam úteis à compreensão das Rela-ções Internacionais, a revitalização da tradição marxista das Relações Internacionais deverá ser feita através do debate aberto pelo realismo

20 - Idem, Ibidem.21 - CURtIS, Simon & KOIVIStO, Marjo (2010), “towards a Second ‘Second Debate’? Rethinkingthe Relationship between Science and History in International theory”. International Relations. Vol. 24 (4). pp. 433–455.22 - Idem, Ibidem, p. 436.23 - BHASKAR, Roy & CALLINICOS, Alex (2003), “A Debate: Marxism and Critical Realism”. Journal of Critical Realism, 1:2, may 2003, pp. 89-114.24- CALLINICOS, Alex, “A Critical Realist Ontology”. in The resources of critique. Cambridge: 2006, pp. 155-181.25- JOSEPH,Jonathan & WIGHt, Colin (2010), Opus cit, p. 3.26 - NEUMANN, Iver (2013), “International Relations as a Social Science” [Registo vídeo]. Recorded on Monday 28 January 2013 in New theatre, East Building, LSE. UK. (75 min.). color. Disponível em: London School of Economics, <http://youtu.be/Fa5qXsHiWqA>.

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crítico nesta disciplina. Aliás acompanhando de perto a proposta de Faruk Yalvaç, que afirma: “[u]ma teoria social marxista enriquecida pe-los princípios do realismo crítico pode fornecer uma alternativa radical quer aos às conceções positivistas, quer às conceções construtivistas das RI [...]”27.No que me diz respeito, uso aqui, como anteriormente referido, o “realismo críti-co” num sentido amplo.Novos caminhos para uma teoria emancipatória das relações internacionais poderão ser aber-tos por uma grande abordagem das relações internacionais alicerçada numa teoria social marxista que reinterprete os contributos do fe-minismo, da teoria crítica e mesmo de outras tradições teóricas das Relações Internacionais consistentes com “a concepção materialista da história”.Ainda que outros “marxismos” tenham propos-tas diferentes, defendo que a teoria social em que nos devemos basear funda-se no pensamen-to social e político que o próprio Marx desen-volveu ao longo da sua vida, sendo O Capital superior a manuscritos anteriores. Isso não significa rejeitar os trabalhos anteriores, mas considerá-los como um todo28.Como o próprio Marx afirmou, a revisão crí-tica que operou à filosofia do direito de Hegel conduziu-o ao “resultado de que relações jurí-dicas, tal como formas de Estado, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira dos ingleses e franceses do

século XVIII, resume sob o nome de ‘sociedade civil’, e de que a anatomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia políti-ca”29.Não foi por falta de temas que não me dediquei nestas linhas a um tema concreto: o imperialis-mo e a globalização, a transnacionalização das classes, a relação entre a contradição trabalho/capital e a contradição povos/imperialismo, a contradição de género, a emancipação das mi-norias sexuais, a relação do imperialismo com o direito internacional, relação do direito inter-nacional com a emancipação, a questão nacional e o internacionalismo, a teoria do Estado e sua conexão com a questão da guerra e cooperação internacional, os problemas ambientais, os bens comuns e a soberania alimentar... tudo isso são questões às quais uma teoria marxista das re-lações internacionais tem de saber responder. Aparentemente não tratei neste texto daquilo que Lenine chamou, e bem, a “análise concre-ta da situação concreta”. Mas antes da defesa dessa abordagem levada a cabo pelo autor de O Imperialismo. Fase Superior do Capitalismo30.

O Marxismo pode fornecer uma ontologia científica que sirva de base ao estudo das relações internacionais. Defendo que é necessário corresponder também teoricamente à unidade (ontológica) da realidade social, desta forma constituindo um amplo campo de compreensão das relações internacionais como uma questão não apenas de Estados mas também de géneros, classes, povos e potências.

27 - YALVAÇ, Faruk (2010), “Critical Realism, International Relations theory and Marxism” in JOSEPH,Jonathan & WIGHt, Colin (eds.)(2010), Opus cit, pp. 167-185.28 - Aliás e rejeitando a tese “Marx ideológico versus Marx científico”, própria dos Althusserianos, acompanho a argumentação de Shlomo Avineri, que referindo-se ao prefácio de 1873 escrito por Marx para a segunda edição do volume 1 d’ O Capital, afirma: “[n]os seus últimos anos, Marx defendia, pois, a validade e significado da Crítica de Hegel, que ele escrevera quando tinha vinte cinco anos”, concluindo que “não só não há uma ‘ruptura’ entre o jovem Marx e o Marx maduro, como a garantia de continuidade foi proporcionada pelo próprio Marx”. AVI-NERI, Shlomo (1978), O Pensamento Político e Social de Karl Marx. Coimbra: Colecção Coimbra Editora, p. 82.29 - MARX, Karl (1982), “Prefácio a Para a Crítica da Economia Política”. in MARX, Karl & ENGELS, Friedrich, Obras Escolhidas em três tomos. Lisboa: Avante. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm>.30 - LÉNINE, V. I. (1984), O Imperialismo. Fase Superior do Capitalismo. (Impressão abril de 2000). Lisboa-Moscovo: Edições Progresso.

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ACoNTECE PoR FAbiAn FiGuEiREdo

4 de Novembro a 4 de Dezembro 2013Curso Livre “Contos de Cinco em Cinco”Faculdade de Letras, Lisboa+infos: http://www.fl.ul.pt/agenda/view/88727/date/2013-12-03

8-9 novembroSeminário: “Buén Vivir, uma proposta vinda da periferia do mundo”Orientado por Alberto Acosta. Língua de traba-lho do seminário: castelhano. Lisboa, Centro de Recursos para o Desenvolvimento do CIDAC (R tomás Ribeiro 3), 21h.

8 - 9 de novembro Fórum Precariedade e DesempregoOrganização: Associação de Combate à Precariedade-Precários Inflexíveis. Lisboa+info: http://www.precariosinflexiveis.org/

9 novembroProjeção do filme“Não”Debate aberto à assistênciaOrador: Comentário por Marcelo Moriconi (CIES-IUL) & Mário Olivares Gomez (ISEG-UtL), Auditório Silva Leal, ISCtE-IUL, 18h00

11-12 novembroHomenagem a Aquilino Ribeiro no Cinquentenário da sua MorteFaculdade de Letras da Universidade do Porto+ infos: http://sigarra.up.pt/flup/pt/noticias_geral.ver_noticia?p_nr=15522 Colóquio «Guerra e Propaganda no Século XX» FCSH-UNL+infos: http://ihc.fcsh.unl.pt/pt/agenda/item/35129-col%C3%B3quio-guerra-e-propaganda-no-s%C3%A9culo-xx

13 novembroViolência contra as Mulheres, Género e Proteção SocialRita Freitas (Univ. Federal Fluminense) 17h00, Sala 2, CES-Coimbra+infos: http://www.ces.uc.pt/eventos/

14 de novembro de 2013Story of a death foretold: the coup against Allende, 11 September 1973Oscar Guardiola-Rivera (Birkbeck College | University of London) 16h00, Sala 1, CES-Coimbra+infos: http://www.ces.uc.pt/eventos/

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15 novembroProjeção do filme “Hannah Arendt”Debate aberto à assistênciaOrador: Comentário por Mário Vieira de Car-valho (FCSH-UNL) & Maria João Cabrita (Univ. do Minho e FCSH-UNL), Local: Auditó-rio Silva Leal, ISCtE-IUL, 18:00

15 e 16 de novembro de 2013III Colóquio de Teologias FeministasBärbel Wartenberg-Potter (Bispa da Igreja Luterana Alemã) Ivoni Richter Reimer (teóloga luterana)Teresa Forcades i Vila (Monja Beneditina e teóloga)CES-Lisboa, Picoas Plaza,+infos: http://www.ces.uc.pt/eventos/

18 novembro“A Segunda Grande Depressão - dinâmicas e deba-tes da crise”XII Curso Livre de História Contemporânea FCSH-UNL | Fundação Mário Soares Coord. científica: Prof. Doutor Francisco Louçã+ infos: http://www.fmsoares.pt/iniciativas/ilustra_iniciativas/2013/001047/001047.pdf

19-20 novembroII Seminário “Tempos Sociais e o Mundo Contemporâneo”Campus de Gualtar, Braga

tem o tema “As Crises, as Fases e as Ruturas” e é coordenado pelo CECS-UMinho, com par-ceria do CICS-UMinho, das universidades de Vigo, Federal da Paraíba, técnica de Lisboa e Associação Portuguesa de Estudos do tempo e Sociedade. Call for papers até 30 de abril+infos: http://www.ics.uminho.pt/ModuleLeft.aspx?mdl=~/Modules/UMEventos/EventoView.ascx&ItemID=6802&Mid=356&lang=pt-PT&pageid=3&tabid=0

Até 24 nov/13Vidas Ciganas – Romani Lives – Lungo Drom Mostra Espanha 2013Museu da Cidade, Lisboa

4-6 dezembroSeminário Internacional “Trabalho em Saúde, De-sigualdades e Políticas Públicas”Campus de Gualtar, Braga Evento envolve o CICS-UMinho, a Associação Portuguesa de Sociologia - Secção trabalho, Organizações e Profissões, a ABRASCO - Gt trabalho e Educação, o Departamento de Ciên-cias Sociais da ENSP/FIOCRUZ e o Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz - CRIS/FIOCRUZ.+infos: http://www.ics.uminho.pt/ModuleLeft.aspx?mdl=~/Modules/UMEventos/EventoView.ascx&ItemID=7401&Mid=356&lang=pt-PT&pageid=3&tabid=0

5 a 7 de dezembroSimpósio Internacional Cinema e Representação CES-Lisboa, Picoas Plaza+ infos: http://www.ces.uc.pt/eventos/index.php?id=7884&id_lingua=1

7 de dezembro1973 – 2013 3º Congresso da Oposição Democráti-ca 40 anos depoisUniversidade de Aveiro, Aveiro

Organização: Centro de Documentação 25 de Abril; Centro de Estudos de Hist Contempo-rânea do ISCtE; Centro de Estudos Interdis-ciplinares do Século XX da Univ. de Coimbra; Centro de Estudos Sociais da Univ de Coimbra; Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do território da Univ de Aveiro; Instituto de História Contemporânea da FCSH da Univ Nova de Lisboa; Não Apaguem a Memória; Seara Nova, Delfim Sardo e João Marujo

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17-19 de Fevereiro de 2014Congresso Internacional: A Violência no Mundo Antigo e MedievalFaculdade de Letras, Lisboa +infos: http://www.fl.ul.pt/agenda/view/88720/date/2014-02-17

27, 28 Fevereiro e 1 Março de 2014«Resisting war in the 20th century» Conferência InternacionalInstituto de História Contemporânea, UNL, Lisboa+infos: http://ihc.fcsh.unl.pt/pt/agenda/item/35103-international-conference-resisting-war-in-the-20th-century

17-20 de abrilMarxism 2014: ideas to challenge the systemUnion House, the University of Melbourne, Parkville VIC 3052, Melbourne (Australia)+infos: http://www.marxismconference.org

25 de Abril 40º aniversário da Revolução de 25 AbrilManifestação, Lisboa+infos: www.25abril.org

1º de MaioManifestação, em todo o país+infos: www.cgtp.pt

9-10 de Maio“The Welfare State in Portugal in the age of austerity”ISEG, Lisboa+ infos: http://www.ics.ul.pt/instituto/?ln=p&mm=1&ctmid=2&mnid=1&doc=&ev2id=1253&mtype=

Até 31 de Maio40 anos do “25 de Abril” no Museu Nacional da Imprensa Exposiçãotodos os dias, entre as 15h e as 20h Museu Nacional da Imprensa, Estrada Nacional 108, nº206 . 4300-316 Porto+infos: http://www.e-cultura.pt/Agenda-CulturalDisplay.aspx?ID=34997 20-21 de JunhoConferência Internacional “Gender in focus: (new) trends in media”Braga Organização da equipa do projeto de investigação “O género em foco: representações sociais nas revistas portuguesas de informação generalista” (CECS/FCt), com o fim de servir de fórum para discutir ideias, experiências e resultados de pesquisas na área, reunindo investigadores, ONGs e profissionais dos média. +infos: http://www.ics.uminho.pt/ModuleLeft.aspx?mdl=~/Modules/UMEventos/EventoView.ascx&ItemID=7609&Mid=356&lang=pt-PT&pageid=3&tabid=0

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Normas para apresentação dos artigos1. O Conselho de Redação da Vírus aceita colaborações de quem queira nela participar, reservando-se o direito de publicar ou não os trabalhos propostos e de determinar o prazo e o espaço da sua divulgação.2. A Vírus, além de textos originais, publica traduções de textos de outras publicações desde que conside-rados relevantes pelo seu Conselho de Redação e conformes com as presentes normas.3. Os textos devem ser submetidos em formato Word e enviados por correio eletrónico para [email protected]. A apresentação deve ser corrida, sem espaços extra entre parágrafos, cabeça-lhos ou qualquer formatação especial. 4. Os/as autores/as deverão fazer acompanhar o seu texto de uma breve nota biográfica. 5. As contribuições submetidas para qualquer uma das secções deverão seguir o acordo ortográfico. 6. As notas deverão vir com a numeração seguida, em pé de página. 7. As referências bibliográficas serão sempre feitas nas notas, seguindo o modelo dos exemplos a seguir apresentados. a) Livros: AGLIEttA, Michel (1976). Régulation et crises du capitalisme: l´expérience des Etats-Unis. Paris: Calmann-Lévy.

b) Coletâneas:

FREIRE, João (org.) (2009). Trabalho e Relações Laborais – Atitudes Sociais dos Portugueses. 9. Lisboa: Imprensa de

Ciências Sociais.

EStANQUE, Elísio (2004). “A reinvenção do sindicalismo e os novos desafios”, in SANtOS, Boaventura de Sousa (org.),

Trabalhar o mundo – os caminhos do novo internacionalismo operário. Porto: Edições Afrontamento, pp. 299-334.

c) Revistas: COStA, Hermes Augusto (2009a). “A flexigurança em Portugal: Desafios e dilemas da sua aplicação”. Revista Crítica de

Ciências Sociais, 86, 123-144.

d) No caso de publicações electrónicas é necessário indicar também a data da última consulta à página e o respetivo URL. 8. Provas tipográficas: a revisão das provas tipográficas é da responsabilidade do Conselho de Redação, que garante a reprodução fidedigna e tipograficamente correta dos textos selecionados para publicação.

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Colaboraram nesta edição

ALDA SOUSA | ANA báRbARA pEDROSA | ANDREA pENIcHEbRUNO GÓIS | cEcÍLIA HONÓRIO | FAbIAN FIGUEIREDO

FAbRIcE ScHURmANS | FERNANDO ROSAS | FRANcIScO LOUçãHELENA ROmãO | JOSÉ bORGES REIS | JOSÉ cASImIRO

JOSÉ mANUEL pUREzA | JÚLIA GARRAIO | LUÍS FAzENDAmARIANA mORTáGUA | mARISA mATIAS | SOFIA ROQUE

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