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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ GUERRAS E REVOLUÇÕES NO SÉCULO XX] Ano 5, n° 8 | 2015, vol.2 ISSN [22364846] 1 As políticas da memória sobre o Holocausto na Alemanha Oriental Ludmyla Franca * A Alemanha Oriental no segundo pós-guerra Diante do mal estar gerado a partir da intensificação e problematização dos fluxos migratórios que, nos últimos meses, tem aumentado na Europa, o debate acerca da questão dos refugiados, que faz eclodir discurso xenófobos e de extrema-direita, bem como a forma de lidar com este problema trazem à tona a discussão sobre o nazismo e sobre o Holocausto e como este legado foi tratado na Alemanha dividida do segundo pós-guerra. Embora a fratura ainda existente não seja propriamente discutida para além da legitimação de alguns discursos políticos, a relação entre o passado nazista e a divisão da Alemanha, passados 25 anos da Reunificação, ainda sobrevive, dentre outros aspectos, sob a forma de discrepâncias, diferenças, rancores e ressentimentos. Longe de esgotar as questões sobre o tema, haja vista os limites da discussão aqui proposta, o objetivo deste texto é refletir sobre as dinâmicas políticas na RDA no * Bolsista CAPES, doutoranda em Ciência Política na Freie Universität Berlin [email protected] 1 Sonja Combe (1993, 137), ao tratar da questão judaica na RDA, sentencia: Auschwitz war die Basis der Teilung Deutschlands gewesen. (Auschwitz foi a base para a divisão da Alemanha). 2 Texto original: “In dieser Situation beobachtet man misstrauisch die Tendenz, dass in Reden über deutsche Geschichte nunmehr die DDR-Gesellschaft als eine Verlängerung der deutschen Gesellschaft unter der Naziherrschaft betrachtet wird. Damit wird bei einem untergegangenen politische System die unliebsame Verantwortung abgeladen und die Geschichte der Bundesrepublik davon gereinigt.” 3 Texto original: “Angetreten, wie der Namen bereits erkennen lässt, vorrangig Wege zur Aufarbeitung des DDR-Unrechts zu diskutieren, erkannten ihre Mitglieder – Bundestagsabgeordnete, Zeitzeugen der DDR-Diktatur und Experten – erst im Zuge ihrer außerordentlich instruktiven Anhörungen und Debatten die große erinnerungspolitische Unwucht im Bereich der NS-Gedenkstättenpolitik. Das Huckepack-Verfahren, durch das die Aufarbeitung der NS-Vergangenheit auf dem Rücken der Erinnerungspolitik an die DDR-Diktatur mitgeschleppt wurde, gereicht zwar den Initiatoren dieser List [email protected]

REVISTACONTEMPORÂN EA–$DOSSIÊ ... - Área de História · Conjunto das Forças Aliadas. ... em paralelo de duas teorias oponentes: ... da vitória de uma ideologia sobre a outra

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[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

1  

As políticas da memória sobre o Holocausto na Alemanha Oriental

Ludmyla Franca*

A Alemanha Oriental no segundo pós-guerra

Diante do mal estar gerado a partir da intensificação e problematização dos

fluxos migratórios que, nos últimos meses, tem aumentado na Europa, o debate acerca

da questão dos refugiados, que faz eclodir discurso xenófobos e de extrema-direita,

bem como a forma de lidar com este problema trazem à tona a discussão sobre o

nazismo e sobre o Holocausto e como este legado foi tratado na Alemanha dividida

do segundo pós-guerra. Embora a fratura ainda existente não seja propriamente

discutida para além da legitimação de alguns discursos políticos, a relação entre o

passado nazista e a divisão da Alemanha, passados 25 anos da Reunificação, ainda

sobrevive, dentre outros aspectos, sob a forma de discrepâncias, diferenças, rancores e

ressentimentos.

Longe de esgotar as questões sobre o tema, haja vista os limites da discussão

aqui proposta, o objetivo deste texto é refletir sobre as dinâmicas políticas na RDA no

* Bolsista CAPES, doutoranda em Ciência Política na Freie Universität Berlin [email protected] 1 Sonja Combe (1993, 137), ao tratar da questão judaica na RDA, sentencia: Auschwitz war die Basis der Teilung Deutschlands gewesen. (Auschwitz foi a base para a divisão da Alemanha). 2 Texto original: “In dieser Situation beobachtet man misstrauisch die Tendenz, dass in Reden über deutsche Geschichte nunmehr die DDR-Gesellschaft als eine Verlängerung der deutschen Gesellschaft unter der Naziherrschaft betrachtet wird. Damit wird bei einem untergegangenen politische System die unliebsame Verantwortung abgeladen und die Geschichte der Bundesrepublik davon gereinigt.” 3 Texto original: “Angetreten, wie der Namen bereits erkennen lässt, vorrangig Wege zur Aufarbeitung des DDR-Unrechts zu diskutieren, erkannten ihre Mitglieder – Bundestagsabgeordnete, Zeitzeugen der DDR-Diktatur und Experten – erst im Zuge ihrer außerordentlich instruktiven Anhörungen und Debatten die große erinnerungspolitische Unwucht im Bereich der NS-Gedenkstättenpolitik. Das Huckepack-Verfahren, durch das die Aufarbeitung der NS-Vergangenheit auf dem Rücken der Erinnerungspolitik an die DDR-Diktatur mitgeschleppt wurde, gereicht zwar den Initiatoren dieser List [email protected]

 

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que tange ao tratamento e superação do trauma causado pela experiência nazista na

sociedade alemã e entender alguns aspectos que, relacionados a este processo,

conduzem a falhas no tratamento da questão nazista, sem cair, contudo, num

tratamento maniqueísta do problema ao estilo do enfoque “Leste vs. Oeste”.

O primeiro aspecto a ser tratado para a compreensão do tema é concernente à

divisão da Alemanha e como a questão nazista foi alçada a um argumento legitimador

na formação dos novos Estados alemães. Há um entendimento de senso comum sobre

a forma como a Alemanha compôs com seu passado fascista, como se os Julgamentos

de Nurembergue e seus desdobramentos na seara política e judiciária houvessem

resolvido a questão e produzido um consenso sobre o mal, sobre a responsabilidade e

sobre o erro. Contudo, o que emana dos estudos mais profundos sobre o tema

contradiz tal entendimento.

Porque dois Estados

A divisão da Alemanha em dois Estados (Estado conservador ocidental e

Estado estalinista linha-dura oriental) em detrimento da criação de um único estado

social-democrata (Third Way) visou, primordialmente, possibilitar a necessária

neutralidade da Alemanha após sua capitulação em 1945 e minimizar o risco de uma

ofensiva da União Soviética (URSS) sobre o território alemão. Outrossim,

intencionalmente ou não, a divisão da Alemanha teve o sentido também de realizar

uma inegável correção de caráter moral.1

Conforme descreve Mary Fulbrook (1992, 1), no contexto da derrota de Adolf

Hitler e do Terceiro Reich, restava claro que a Alemanha, durante séculos, era a “terra

no centro da Europa” que provocava os vizinhos tanto a leste quanto a oeste de suas

fronteiras e que oscilava ao sabor de suas instabilidades domésticas, especialmente as

de caráter político e econômico, conduzindo a uma série de conflitos, que culminaram

em duas guerras profundamente violentas e traumáticas. Se os conflitos sociais e

econômicos de sua rápida industrialização durante o Império Alemão (1871-1918)

integraram o rol dos fatores que contribuíram para a eclosão da I Grande Guerra, a

1 Sonja Combe (1993, 137), ao tratar da questão judaica na RDA, sentencia: Auschwitz war die Basis der Teilung Deutschlands gewesen. (Auschwitz foi a base para a divisão da Alemanha).

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continuidade das crises sociais e econômicas pós-1918, durante a República de

Weimar, culminaram na ascensão de Adolf Hitler e levariam à II Grande Guerra.

A solução draconiana adotada ao cabo do lapso temporal de 1945 a 1949,

período no qual circunstâncias conjeturais mudaram as rotas eventualmente pensadas

e acordadas no final da guerra, seria, a um só tempo, uma solução para a “questão

alemã” e também para a questão europeia. Dividir a Alemanha ao meio, delimitando a

partilha do mundo ocidental em dois grandes blocos, foi uma forma também de

assegurar alguma estabilidade no contexto da Guerra Fria. Outrossim, é importante

salientar que os Aliados não possuíam uma clara ideia do que fazer com a derrotada

Alemanha e que o pós-Guerra foi marcado por tensões, disputas e dúvidas sobre o

futuro não só desse país como também da Europa: a divisão em dois Estados foi ad

hoc, decorrente de um conjunto de acontecimentos e fatores não intencionais, um

processo marcado pelas tensões e desacordos existentes dentro do próprio Conselho

Conjunto das Forças Aliadas. Tampouco havia desde o princípio alguma intenção

consciente de dividir a Alemanha, ainda que alguns historiadores vejam na divisão

territorial em zonas, realizada após a capitulação alemã, um esboço da futura divisão

estatal (FULBROOK, 1992, 12).

Assim, por quase meio século, a nação alemã foi transformada em dois

Estados: um autointitulado democrático e um comunista, compondo dois sistemas

que, diferentemente das experiências alemãs precedentes, eram dotados de

estabilidade e de uma pretensão para a longevidade, até a mudança dos contextos

geopolíticos do final da década de 1980, que culminaram no fim da divisão e numa

reunificação relativamente rápida, porém difícil.

A experiência da divisão da Alemanha em dois Estados, em lugar da opção

por uma Terceira Via social-democrata, funcionou também como um teste empírico

em paralelo de duas teorias oponentes: de um lado, tinha-se a tentativa de criar uma

democracia parlamentarista estável, pautada nos valores democráticos anglo-

 

4  

americanos; de outro, a aplicação da interpretação, em voga à época, das teorias do

Marxismo-Leninismo. Estava representada aí a Guerra Fria, com ambos os polos do

conflito.

Desse contexto, que não possuía absolutamente qualquer traço da pretendida

neutralidade, as hostilidades entre Leste e Oeste, separados agora pela Cortina de

Ferro, produziram, no imaginário coletivo de ambas as Alemanhas, o entendimento de

que o “Outro” era sempre o “Mal”, o “Inimigo”, gerando uma polarização

maniqueísta a partir da percepção do mundo em duas únicas possibilidades,

irredutíveis, absolutas e antagônicas. Cada um dos lados se investiu da missão de

derrotar o Mal, criando para si a aura de representante do Bem. E esta perspectiva

permanece ainda nas discussões sobre o passado das Duas Alemanhas, talvez pela

falta de horizonte histórico e pela presença (ainda) desta abordagem maniqueísta e

enviesada na forma de tratar este período. Há uma disputa por legitimação de valores

e, neste território ideológico, a compreensão termina embotada pelos interesses

políticos envolvidos, gerando um viés político por meio da instrumentalização da

história.

Neste sentido, Ursula Heukenkamp (1993, 189) alerta para os maus usos da

história do Terceiro Reich e do nazismo, que ainda servem de elementos para

legitimação das polarizações produzidas pela Guerra Fria e que, além de gerarem

equívocos acerca da compreensão do passado, fomentam as contradições e exclusões

geradas no contexto da divisão da Alemanha. A interpretação da experiência

socialista da RDA como extensão da sociedade alemã sob o domínio nazista é uma

faceta do viés político engendrado num processo de Reunificação que contem a marca

da vitória de uma ideologia sobre a outra (e de todas as pessoas nelas envolvidas),

com o propósito de descarregar no sistema vencido toda a pecha em relação ao

nazismo, ao tempo em que a Bundesrepublik tem sua história purificada:

Nessa situação, observa-se com suspeita a tendência que, em discursos sobre a história alemã, a sociedade da Alemanha Oriental seja vista como uma extensão da sociedade alemã sob o regime nazista. Com isto, esta desagradável responsabilidade é

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descarregada no sistema político extinto ao passo em que a história da República Federal é purificada.2 (tradução nossa)

A confusão do Terceiro Reich com a RDA, imputados como duas faces de

uma mesma moeda, ainda que numa análise histórica profunda não possa ser

sustentada, acabou tornando-se uma versão divulgada e aceita pelo senso comum, o

que criou um dilema para seus ex-cidadãos no trabalho de memória sobre este

período: as discussões sobre a RDA perpassam pelo pano de fundo da teoria das

“duas ditaduras alemãs”, o que reforça preconceitos, estereótipos e atrapalha, se não

impede, a compreensão acerca destes períodos históricos. Neste sentido, um bom

exemplo é trazido por Günter Morsch3 (2015), ao discorrer sobre a instrumentalização

da história após 1990:

Iniciada [a Comissão-Enquete para Reabilitação da História e Consequências da Ditadura do SED], como o nome sugere, principalmente para discutir maneiras de trabalhar a injustiça existente na RDA, reconhecem seus membros – deputados do Bundestag, testemunhas da ditadura e especialistas em RDA – somente no curso de suas audiências e debates extremamente instrutivos, o grande desequilíbrio no que tange à política de memória no campo dos memoriais do passado nazista. O Huckepackverfahren 4 , pelo qual o processamento do passado nazista foi levado nas costas da política de memória sobre a ditadura na RDA, embora tenha conduzido os iniciadores desta astúcia à

2 Texto original: “In dieser Situation beobachtet man misstrauisch die Tendenz, dass in Reden über deutsche Geschichte nunmehr die DDR-Gesellschaft als eine Verlängerung der deutschen Gesellschaft unter der Naziherrschaft betrachtet wird. Damit wird bei einem untergegangenen politische System die unliebsame Verantwortung abgeladen und die Geschichte der Bundesrepublik davon gereinigt.” 3 Texto original: “Angetreten, wie der Namen bereits erkennen lässt, vorrangig Wege zur Aufarbeitung des DDR-Unrechts zu diskutieren, erkannten ihre Mitglieder – Bundestagsabgeordnete, Zeitzeugen der DDR-Diktatur und Experten – erst im Zuge ihrer außerordentlich instruktiven Anhörungen und Debatten die große erinnerungspolitische Unwucht im Bereich der NS-Gedenkstättenpolitik. Das Huckepack-Verfahren, durch das die Aufarbeitung der NS-Vergangenheit auf dem Rücken der Erinnerungspolitik an die DDR-Diktatur mitgeschleppt wurde, gereicht zwar den Initiatoren dieser List zur Ehre, der Bundesrepublik dagegen zur bleibenden Peinlichkeit“ 4 O Huckepackverfahren é uma prática política adotada pelos partidos alemães segundo a qual um partido pequeno “monta nas costas” de um partido grande para driblar uma restrição.

 

6  

honra, levou, em contrapartida, a República Federal a um constrangimento permanente (tradução nossa)

De modo geral, os ex-membros da sociedade alemã oriental tem dificuldade

em falar fora dos seus nichos sobre o passado, pois que a associação com a pecha do

pertencimento ao passado ditatorial alemão (e a consequente redução ao nazismo) está

presente sempre.5 Outrossim, a associação do nazismo à RDA contribui para o

processo de amnésia e demissão de responsabilidade sobre o Holocausto, como se o

problema do neonazismo não fosse uma questão de toda a Alemanha, mas somente da

Alemanha Oriental.

Questão de legitimação

Para compreender melhor a forma como a Alemanha Oriental buscou tratar o

passado nazista e como este processo de superação do passado afetou suas dinâmicas

sociopolíticas, é mister entender o contexto geopolítico da época de sua fundação e os

desdobramentos deste contexto nos seus 40 anos de existência.

Ao explicar a história política da RDA, Mary Fulbrook (1992) propôs uma

divisão em datas, a saber:

1. Transformação democrática antifascista (ocupação e divisão da Alemanha):

1945 – 1949;

2. Fundação do socialismo (início da gestão do Secretário-Geral Walther

Ulbricht): 1949 – 1961;

3. A caminho do desenvolvimento de uma sociedade socialista: 1961 – 1970;

4. Sequência e aprofundamento do desenvolvimento da sociedade socialista

(fim do governo de Ulbricht e ascensão de Erich Honecker ao poder): 1971 – 1984; e

5. Colapso do comunismo e Reunificação (saída de Honecker, em outubro de

1989, e nomeação de um novo Secretário-Geral: Egon Krenz): 1984 – 1990.

De 1949 a 1971, sob o comando de Walther Ulbricht, a fundação da RDA é

marcada por uma forte tentativa de transformação democrática amparada pelo

5 “Uma crítica do antifascismo na RDA é certamente importante, mas simplesmente nega-lo não é possível.” (Texto original: Eine Kritik des Antifaschismus in der DDR ist sicher nötig; aber einfach negiert werden kann er auch nicht. (HEUKENKAMP, 1993, 189

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antifascismo, que serve de base para a construção do discurso que vai legitimar o

fortalecimento das fundações do socialismo durante sua implantação (1949-1961) e

desenvolvimento (1961-1970). Com a saída de Ulbricht, em 1971, assume Erich

Honecker, responsável por tonar mais sólidas as estruturas comunistas, dando

seguimento ao projeto de uma sociedade socialista (1971-1984), o que termina por

fracassar com a eclosão de um período de crescente agitação política, instabilidade

econômica e fortalecimento do discurso de oposição, que culminam na Revolução

Pacífica (1989), na Queda do Muro de Berlim (1989) e na Reunificação (1990).

Por seu turno, nessa primeira fase, de estabelecimento da divisão e fundação

de ambos os Estados, a Alemanha Ocidental, sob o comando de Konrad Adenauer,

chama para si a missão de ser aliada do ocidente na luta por “democracia e liberdade”

contra o “totalitarismo comunista” (DANYEL, 1995, 129). O medo do comunismo

cresce e acaba sendo maior que o desejo de punir ex-nazistas, culminando na

instrumentalização da memória. Com o propósito de focar no futuro da Alemanha, e

não em seu passado (WOLFF-POWĘSKA, 2015, 173-174), a despeito das

condenações judiciais dos ditos “top ranking nazis” e dos julgamentos que se

seguiram, foi possível até mesmo uma certa tolerância à injustiça nos procedimentos

de “desnazificação”, dos quais muitos nazistas de segunda linha, que escaparam de

serem levados a julgamento, seguiram impunes e foram até mesmo inseridos nas

estruturas políticas da CDU (União Democrática Cristã, na sigla em alemão), o

partido de Adenauer, por exemplo.

Portanto, sobre a República Federal (RFA), fala-se de uma memória oficial

(POLLAK) produto da instrumentalização do passado em vista dos interesses

presentes. Não há necessariamente esquecimento, mas sim uma falta de reflexão sobre

o passado livre de quaisquer perspectivas ideológicas e uma forte interferência dos

objetivos políticos atuais, com o escopo de construir um discurso capaz de influenciar

a percepção dos indivíduos em relação ao que deve ser lembrando e como deve ser

 

8  

lembrado. A despeito da existência de julgamentos, esforços de memória e discussão

sobre o tema, a maior importância, na seara política, foi dada ao jargão Nie wieder

Sozialismus (Nunca mais Socialismo), que buscou enfatizar o combate do “nazismo

atual” – personificado, segundo o entendimento desta corrente, pelo socialismo, que

seria assim uma expressão do totalitarismo – deixando em segundo plano a reflexão

sobre o passado propriamente dito.

O grande objetivo de Adenauer, no contexto geopolítico do pós-guerra, era

integrar-se ao projeto econômico ocidental, ainda que ao custo de entregar parte do

território alemão para Stálin, que, a princípio, tampouco tinha interesse em fundar um

Estado satélite, buscando tão somente tirar o máximo que pudesse da sua parte da

Alemanha, a título de reparação de guerra. Adenauer apostava, como posteriormente

aconteceu, que a Alemanha Oriental seria atraída naturalmente para a Alemanha

Ocidental em vista do sucesso econômico desta (FULBROOK, 1992)6.

Desse modo, com o desenrolar dos acontecimentos, a divisão da Alemanha

passou de uma mera conjectura a uma realidade, vindo a ser levada a cabo em 1949,

com a fundação da RDA. Sendo um Estado que, em princípio, sequer deveria existir,

não fossem os interesses econômicos e políticos existentes no contexto do pós-guerra,

boa parte de sua legitimação passava pelo confronto dos sistemas políticos

antagônicos e da concorrência sobre as interpretações acerca do passado nazista.

Ambos os Estados aceitavam, como parte de suas formações e da continuidade do

povo alemão, o fato de ter de lidar com este momento histórico. Todavia, as causas

que desencadearam a ascensão do nazismo na Alemanha foram diferentemente

interpretadas e geraram distintos modos de lidar com o passado. Enquanto na RFA

houve uma opção por uma espécie de alienação do passado em face de um perigo

maior, o comunismo, com a adoção do discurso do combate ao totalitarismo, na RDA

o antifascismo representado na luta contra o imperialismo (igualmente uma

6 A tática usada por Adenauer nos anos 1950 para rechaçar o SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands, o partido social-democrata alemão) seria repetida por Helmut Kohl e pela CDU em 1990, como forma de se firmar no poder durante o processo de Reunificação, minando as pretensões do concorrente SPD e também do PDS (antigo SED). A pecha do termo “comunismo“ expressa no jargão “Nie wieder Sozialismus” foi e ainda é uma ferramenta ideológica valiosa e muito usada, que influi sobremaneira os discursos sobre a RDA, vinculada sempre ao termo “totalitarismo“ e associada constantemente como uma extensão ou continuidade das práticas nazistas, gerando uma forte instrumentalização da história para fins políticos.

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instrumentalização do passado) tornou-se uma ideologia valiosa para o Estado,

onipresente na memória cultural deste, o que, segundo Walzer, Moller e Tschuggnall

(2012, 162) foi em parte revogado apenas quando da adesão da RDA à

Bundesrepublik, em 1990.

Norbert Frei (1995, 130), citando Rainer Lepsius, destaca como estas posturas

“anti”, adotadas por ambos os Estados, foram importantes para a superação de seus

deveres em face da capitulação: de um lado, a RFA poderia se livrar de reparações e

do peso do passado nazista ao mudar o seu foco da luta contra o nacional-socialismo

para o antitotalitarismo em geral; por seu turno, a RDA poderia também se liberar do

dever reparatório em face da URSS ao se alinhar à luta antifascista contra o

imperialismo.

Também tendo em conta a instrumentalização das normativas “anti”, feita pela política externa, é permitido à comparação empiricamente saturada destacar primordialmente as diferenças entre os dois países: em face de uma intervenção dos aliados ocidentais, válida para além dos anos 1950, com implicações – não só políticas e morais, mas também financeiras – para a República Federal em virtude dos crimes do “Terceiro Reich” (Reparação de Israel), a extensão do postulado da fundação, de antinazista para antitotalitarista, foi certamente um alívio. A RDA, apesar de ter de pagar altas reparações para a União Soviética, viu-se, de resto (sem muita surpresa) menos implicada em seus deveres, por conta da política para o passado adotada pelo Grande Irmão estalinista. A este respeito, as diferenças na instrumentalização da política externa refletiram a diferença entre a (...) “externalização” do passado nazista pela RDA e sua “internalização” pela República Federal.7 (tradução nossa)

7 Texto original: “Auch im Blick auf die außenpolitische Instrumentalisierung des normativen „Anti" dürfte der empirisch gesättigte Vergleich eher die Unterschiede markieren: Angesichts eines bis weit in die fünfziger Jahre hinein geltenden (...) Interventionsvorbehalts der Westalliierten sowie ihrer auf Dauer angelegten, nicht nur politisch-moralischen, sondern auch finanziellen Inpflichtnahme der Bundesrepublik für die Verbrechen des „Dritten Reiches" (Wiedergutmachung für Israel) kam der Erweiterung des antinationalsozialistischen Gründungspostulats zum Antitotalitarismus sicherlich auch eine gewisse Entlastungswirkung zu. Die DDR mußte gegenüber der Sowjetunion zwar hohe Reparationsleistungen erbringen, sah sich im übrigen aber, kaum überraschend, vom stalinistischen

 

10  

Antifascismo como ideologia estatal

A forma como os alemães orientais teriam de lidar com o passado recente foi

determinada pela perspectiva soviética, quando do processo de instauração de uma

“democracia do povo”, engendrada, todavia, por meio de uma ditadura. Em “Guerra e

revolução”, Lênin sustenta que toda guerra é fruto das contradições da época,

possuindo sempre o caráter de luta de classes8, expresso no antagonismo entre

imperialismo e socialismo. O socialismo, consoante sua perspectiva, sempre

significaria o estado de paz (mas não a paz burguesa, que oprime a classe operária ao

compor suas questões sob o falso manto de uma ausência de conflitos). Viver sob o

socialismo era o exercício do verdadeiro estado de paz, ainda que, para se chegar à

paz, fosse necessário passar por uma guerra. Existiriam, portanto, guerras justas,

aquelas que visavam salvaguardar o socialismo e alcançar este estado de paz, sendo as

demais guerras naturalmente injustas, engendradas pelo afã imperialista do capital.

Nesta esteira, o uso do passado nazista, sob o prisma de uma interpretação

classista do regime, serviu aos propósitos dos rituais políticos internos da RDA,

criando uma doutrina a um só tempo capaz de legitimar o SED (Sozialistische

Einheitspartei Deutschlands, o Partido Socialista Unificado da Alemanha) e de lidar

ideologicamente com a Guerra Fria, seguindo a versão de Georgi Dimitrov para o

fenômeno nazista, segundo a qual o nazismo era uma expressão brutal e extrema do

capital financeiro.9 Assim sendo, a reforma agrária e o confisco da propriedade

privada, operados dentro do processo de formação do novo Estado socialista, foram

entendidos como medidas necessárias para a superação das condições injustas que

propiciaram o surgimento do fascismo na sociedade alemã, tirando de cena uma elite

Großen Bruder vergangenheitspolitisch wenig in die Pflicht genommen. Insofern reflektierten die Differenzen in der außenpolitischen Instrumentalisierung den Unterschied zwischen der (...) „Externalisierung" der NS-Vergangenheit durch die DDR und ihrer „Internalisierung" durch die Bundesrepublik.” 8 Lenin Collected Works, Progress Publishers, 1964, Moscow, Volume 24, pages 398-421. Translated by Isaacs Bernard. Public Domain: Lenin Internet Archive 2999 (2005). Disponível em: “Marxists Internet Archive”: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/may/14.htm 9 DIMITROV, Giorgi. Arbeiterklasse gegen Faschismus. VII. Weltkongress der Kommunistischen Internationale. Bericht, erstattet am 2. August 1935 zum 2. Punkt der Tagesordnung des Kongresses: Die Offensive des Faschismus und die Aufgabe der Kommunistischen Internationale im Kampfe für die Einheit der Arbeiterklasse gegen Faschismus. Disponível em http://www.mlwerke.de/gd/gd_001.htm

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financeira – necessariamente fascista – para colocar na posição de liderança uma nova

elite, com origem social e ideologia não burguesas.10

Na construção ideológica do Estado socialista, o mito dos comunistas como

combatentes ferrenhos do nazismo foi o pilar a partir do qual se construiu a produção

estatal da memória sobre este período, com o propósito não somente de promover a

integração dos cidadãos ao novo Estado, mas também de fornecer instrumental

ideológico para excluir os inimigos do socialismo. O escopo, no primeiro momento de

fundação do Estado, não era discutir ou julgar a atividade individual durante o

Terceiro Reich, mas sim os feitos presentes e o grau de envolvimento dos sujeitos na

construção democrática do novo Estado. Destarte, a memória acerca do Holocausto

focou-se no papel do Partido Comunista e da URSS como resistências antifascistas e

no uso desta memória como elemento de propaganda, que colocava a RDA como

herdeira e sucessora desta luta, projetando a discussão do problema para a construção

de um futuro desta nova Alemanha (ao passo que a RFA era identificada com o

passado fascista). Neste sentido, Groehler (1993, 49) destaca a ligação engendrada, na

fundação da RDA, entre resistência, combatentes do nazismo e antifascismo visando a

fins políticos:

Em princípio, apesar de todas as expressões verbais de um amplo antifascismo ou antinazismo, começou aqui a ligação fatídica da oposição ao nazismo com as pretensões políticas. Na política comunista, apenas seria atestado como genuíno antifascismo aquele que ao mesmo tempo em que realiza a compreensão do fascismo, também pudesse erradicar o mal trazido por este. Como havia uma ligação indissociável entre o fascismo e o capital monopolista, de acordo definição dimitroviniana, então todo antifascista genuíno

10 Ainda que a “desnazificação” no Leste tenha sido mais radical que no Oeste, foi possível para alguns nazistas seguirem suas carreiras também na RDA.

 

12  

tinha que estabelecer a meta de eliminar esta ordem também.11 (tradução nossa)

Com este pano de fundo ideológico, o SED pretendeu converter a RDA na

pátria de todos os alemães que rejeitam o fascismo e a guerra e que se engajam pela

paz e pela amizade entre os povos. A identificação do socialismo com o humanismo,

que pretendeu ver ambos os conceitos como sinônimos, está na base da teoria

antifascista em voga na RDA. O antifascismo como princípio moral deveria ser o

elemento que criaria o vínculo e a lealdade dos cidadãos em relação ao novo Estado,

trazendo como consequência a substituição da memória individual pela luta contra o

imperialismo, elevado ao status de um dogma ou credo, com a remissão da culpa em

vista do engajamento e da lealdade pela RDA. Destarte, buscando produzir

estabilidade interna pela fidelidade à nova ordem política estatal, o foco da discussão

sobre o passado estava voltado para os inimigos ideológicos, especialmente a RFA,

com um forte criticismo em relação aos países vizinhos, e não para a discussão sobre

os limites de culpa e responsabilidade dos alemães orientais em relação ao nazismo.

Nacionalização da memória e socialização do antifascismo

A postura alienante diante do passado, provocada por esta tendência de

construção ideológica ex nunc, sequestrou o papel da memória individual no cenário

político, buscando substituí-la por rituais de comemoração, esvaziando de sentido o

próprio ato de lembrar. A memória oficial construída assim, como algo abstrato e

distante, desconectado da experiência individual, associada à também generalizante

luta antifascista, visou à alienação em face do passado e à conversão da experiência e

da expiação em questões ideológicas e etéreas, sem elementos de consciência

individual envolvidos. Em outras palavras, os rituais comemorativos buscaram tornar

geral e abstrata a experiência individual e concreta, o que acabaria por gerar a

demissão subjetiva em face do conflito de consciência inerente ao passado nazista. 11 Texto original: “Im Prinzip begann hier trotz aller verbalen Bekundungen eines breiten Antifaschismus oder Antinazismus bereits die verhängnisvolle Verknüpfung der Gegnerschaft zum Nationalsozialismus mit politischen Vorgaben. Nur echten Antifaschismus, der zugleich im kommunistischen Politikverständnis die Wurzeln dessen ausrotten sollte, was Faschismus hervorgebracht hatte, wollte man sie bescheinigen. Da es laut Dimitroffscher Definition einen untrennbaren Zusammenhang zwischen Faschismus und Monopolkapital gab, musste sich danach jeder echte Antifaschist das Ziel setzen, diese Ordnung auch zu beseitigen.”

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Tal política descambou na criação de um tabu em face da responsabilidade privada

pelos crimes dos nazistas, que durou até a Queda do Muro.

Reduzindo humanismo a socialismo, a política da URSS terminou por também

produzir a redução do fascismo ao nazismo. O estabelecimento destas reduções e

equivalências objetivou libertar os cidadãos da RDA de seu passado nazista tanto pela

renovação das autoridades estatais (agora socialistas), que tornaram o novo Estado

uma sucessão da tradição socialista e soviética (e não da tradição nazista), quanto

pelo seu distanciamento da burguesia, representada pela rival RFA, que se

apresentava neste contexto como herdeira e representante da velha Alemanha (e do

Terceiro Reich) no cenário internacional. Assim, enquanto a RFA buscava focar seus

esforços oficiais de memória e purgação do passado na resistência civil e militar e na

luta atual contra o totalitarismo comunista, na RDA se cultuava o legado heroico dos

comunistas na resistência ao nazismo e se fomentava a negação da identidade com a

velha Alemanha em favor de uma identidade com a URSS, criando assim uma nova

Alemanha.

Ambas as perspectivas e políticas em face do passado nazista foram incapazes

de dar conta de entender racionalmente o Terceiro Reich, ou seja, não buscaram

compreender a experiência pretérita sem deixar que os interesses políticos e

ideológicos interferissem no processo de compreensão histórica. De um lado, na

RDA, com sua teoria das duas morais — a moral socialista/humanista versus a moral

fascista/nazista —, instrumentalizou-se o passado para viabilizar politicamente o novo

Estado, gerando lealdade civil por meio da propaganda e da ideologia. Por seu turno,

a RFA, com a teoria do antitotalitarismo — que buscou equiparar a ditadura nazista à

ditadura do SED na RDA —, num esforço de pertencer aos valores ocidentais,

promoveu um engajamento num suposto perigo atual, o que alienou os sujeitos da

discussão sobre o passado. Nenhuma das duas vias criadas pelos gêmeos antagônicos

da Guerra Fria foi capaz de lidar com o passado com vistas a compreender os

 

14  

elementos da experiência nazista em sua multiplicidade de aspectos, suas

consequências, origens e legado, uma vez que o estabelecimento de um vínculo entre

políticas de memória e instrumentalização da história para atender a fins políticos

maculou o processo em ambos os Estados. Como bem destaca Günter Morsch (2015),

as políticas de memória estão constantemente em perigo em face dos interesses

políticos e, neste caso, temos um exemplo desta instrumentalização da história.

Se a operacionalização do trauma da experiência nazista, num primeiro

momento, permitiu ligar os sujeitos ao novo Estado socialista, numa tentativa de

purgar suas culpas através do pertencimento ao grupo dos vitoriosos e à fraternidade

socialista, a censura e o monopólio empreendidos pelo SED silenciou toda e qualquer

discussão em esfera pública que não fosse intermediada pelos agentes do Estado.

Esta censura estatal não só em relação ao passado fascista mas igualmente em

vários outros aspectos da vida quotidiana, descambaria no surgimento da

Nischengesellschaft (KOTT, 2002, 27), uma “sociedade de nichos”, alcunha pela qual

posteriormente iria se denominar a própria RDA. Os sujeitos na Alemanha Oriental

viviam cerrados no paradoxo de duas vidas paralelas: uma vida pública, onde se

professavam valores e comportamentos em conformidade com os ditames do partido;

e uma vida privada, em nichos, na qual os sujeitos poderiam se despir das suas

personagens públicas e criar um estilo de vida, dentro de suas esferas íntimas, alheios

ao que se passa no espaço público. Deste modo, era possível lidar com os controles e

com a censura de maneira menos desgastante e sem maiores conflitos. Com a

memória acerca do nazismo não foi diferente: o silêncio na esfera pública foi imposto

por muito tempo (WOLFF-POWĘSKA, 2015, 153-156), restando às memórias

individuais ou subterrâneas (POLLAK, 1989) duas opções: o tabu ou a narrativa nos

espaços privados, como o espaço familiar, por exemplo.

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De cúmplices a vítimas do nazismo

Na esteira da política adotada pelo SED na RDA, um fenômeno interessante

ocorreu: com a prevalência do enfoque antifascista como elemento de propaganda a

serviço da vinculação da população ao Estado, houve não somente a demissão

subjetiva da consciência em face do nazismo, como também a conversão da

população da RDA em vítima do nazismo engendrado pelas elites capitalistas. O

extermínio dos judeus passou a ser um aspecto marginal no debate sobre o tema e o

foco passou a ser o imperialismo alemão, que oprimiu a classe trabalhadora e outros

grupos diferenciados, vítimas do anti-humanismo nazista.

Com tal distanciamento, aliado ao olvido do calvário das vítimas nos campos

de concentração, a questão nazista passou gradativamente a ser fato exclusivo da

história da sociedade ocidental. A subordinação das teorias sobre o Holocausto à

ideologia comunista produziu o absurdo de apagar as vítimas e construir uma retórica

baseada em falsas premissas, reservando o status de vítima apenas para os comunistas

que foram libertados dos campos de concentração (WOLFF-POWĘSKA, 2015, 161).

O antissemitismo, a homofobia e a perseguição aos Sinti e Roma ficaram relegados a

uma importância secundária diante do anticomunismo nazista, produzindo uma

memória oficial onde o genocídio não era uma questão a ser enfrentada em primeiro

plano, ao tempo em que constituiu sujeitos em perspectiva abstrata no rol das vítimas

do nazismo: “classe trabalhadora“, “povo“, etc.12

12 Olaf Groehler, citando Lutz Niethammer, chama a atenção para o modo como, nas primeiras duas décadas da RDA, o Judesein, o “ser judeu“, teve de se formatar numa existência internacional dentro dos quadros de uma ordem para o futuro proposta pelo comunismo, ocorrendo assim sua assimilação na nova comunidade. A isto ele chama de conflito entre política comunista e identidade judaica. Ninguém deveria ser identificado necessariamente como um judeu, mas sim como um membro da comunidade internacional comunista engajado na realização dos objetivos propostos por esta ordem. Este processo também teve por escopo evitar discussões acerca das perseguições aos judeus realizadas por Stálin nos últimos anos de seu governo ou mesmo se posicionar em relação ao papel do Estado de Israel. (Cf. op. cit., p. 50)

 

16  

Nesse sentido, a deformação histórica produzida pela propaganda ideológica

contornou o imbróglio teórico possível ao se tentar explicar a relação dos judeus com

o ocidente e com o capitalismo. Deste modo, o apagamento das vítimas do

Holocausto e a construção de um fetiche em torno do sofrimento e do triunfo

soviético também respondiam à necessidade de não enfrentamento deste aspecto, que,

em sendo discutido, colocaria em xeque a construção teórica antifascista sustentada

pelo SED.

Outro aspecto que foi descartado pela política de produção de memória na

RDA refere-se aos crimes do governo estalinista13. Para fins de sustentação das

teorias antifascistas do SED, não chegavam ao conhecimento dos cidadãos da RDA

notícias sobre os gulags soviéticos (campos de trabalhos forçados da URSS),

tampouco sobre os atos bárbaros perpetrados por Stálin, que facilmente poderiam ser

equiparados àqueles perpetrados por Hitler, haja vista a perseguição a judeus,

homossexuais, minorias étnicas e dissidentes políticos. A constante encenação dos

atos heroicos, da denúncia do fascismo remanescente nos vizinhos, especialmente na

RFA, a produção de uma enorme quantidade de sítios de memória sobre o terror

nazista em museus e nos campos de concentração (preservados como espaços de

memória e de afirmação dos valores socialistas), enfim, toda uma topografia

comemorativa e rememorativa em datas, eventos, museus e nos lugares de martírio e

tormento das vítimas eram não apenas formas de desviar a atenção para os horrores

praticados por Stálin ou de criar vínculos dos sujeitos com o Estado, mas em última

instância também de perda da consciência histórica.14

A lembrança sobre o passado nazista não focava no racismo nem nas vítimas

das câmaras de gás, dos fuzilamentos, dos trabalhos forçados, mas em um conjunto

abstrato de 11 milhões de seres humanos de todos os países europeus que lutaram

contra Hitler, combatendo o fascismo e trazendo de volta a paz para a humanidade

(WOLFF-POWĘSKA, 2015, 161). Não restou assim quase nenhum espaço neste 13 Neste sentido também, ver POLLAK, 1989, p. 4-8. 14 Sobre o antissemitismo estalinista e como foi possível compor o discurso antifascista com a continuidade da perseguição a judeus bem como a outros grupos étnicos em países socialistas, Groehler ressalta que os meios de comunicação da Alemanha Oriental não possuíam qualquer interesse em cobrir estes eventos, fazendo assim com que toda a problemática decorrente destes atos fosse inexistente na RDA, haja vista a população não possuir informações sobre tais fatos: um fato sobre o qual não se fala simplesmente não aconteceu. (GROEHLER, 1993, 50 e ss.)

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discurso para se tratar da culpa e da responsabilidade dos alemães, pois o termo

“vítima” passou a designar todos os mártires e heróis da luta antifascista, que foram

mortos por suas crenças políticas.

O fetiche sobre esta vitória e sobre sua comemoração, referida em inúmeros

museus e monumentos, apagou vítimas, produziu falsas premissas, levou a falsas

conclusões e alienou os cidadãos de sua responsabilidade pelo ocorrido. Foi possível

criar uma memória oficial alienada de importantes perspectivas históricas e sem

qualquer guinada subjetiva, desconsiderando indivíduos e suas biografias, em prol da

representação à exaustão do movimento de resistência ao Terceiro Reich.

A questão judaica e o Holocausto na RDA

O apagamento das vítimas e a exaltação de uma resistência comunista ao

nazismo desenrolou-se em outros aspectos. A questão judaica na Alemanha Oriental

igualmente sofreria influência do viés político socialista em relação à interpretação da

experiência fascista do Terceiro Reich. Olaf Groehler (1993, 48), ao demonstrar a

postura do KPD (Kommunistische Partei Deutschlands, o Partido Comunista Alemão)

observa que já em agosto de 1945, quando, em distintas ocasiões, se discorreu sobre

as “vítimas do fascismo”, pugnou-se que os judeus alemães, por serem uma massa

passiva de indivíduos, que não lutou ao ser oprimida e perseguida pelos nazistas, não

faziam jus a uma assistência social diferenciada, vez que não possuíam o status de

combatentes do nazismo, um entendimento, que era sustentado não só por

comunistas, mas também por socialistas, cristãos e liberais, conforme destaca

Groehler (1993, 53):

Nas primeiras fases da história do pós-guerra alemão, um mal-entendido básico e um erro de julgamento já estavam claros: que os judeus alemães compunham uma massa passiva e dócil, que não fazia jus ao título de combatentes do nazismo! Uma caricatura

 

18  

chocante não só nas mentes dos antifascistas alemães – mas também de comunistas, socialistas cristãos e cidadãos liberais!15 (tradução nossa)

A diluição das vítimas do Holocausto e sua subsunção a um conjunto abstrato

de vítimas permitiu, assim, falar em nazismo sem tratar do Holocausto, sem discutir o

antissemitismo a fundo, sem enfrentar a pulsão genocida que marcou o regime. Não

houve enfrentamento do racismo, nem tampouco as mortes engendradas pelo regime

hitlerista foram individualizadas e pensadas em face dos motivos para perseguição, o

que produziu uma memória incapaz de atender aos pressupostos de um processo de

accountability e de “nunca mais”. Sequer os monumentos, símbolos e rituais da RDA,

criados para fomentar a memória coletiva acerca do Terceiro Reich, possuíam alguma

referência mais concreta e profunda às vítimas da guerra e do nazismo: eram sempre

monumentos para exaltar a vitória socialista.

Neste sentido, Olaf Groehler (1993, 54), com o propósito de ilustrar a forma

como na RDA logrou-se colocar o racismo e o genocídio em segundo plano, destaca a

interpretação acerca das causas do Holocausto, trazida em duas brochuras do Instituto

para o Marxismo-Leninismo, responsável por guiar a forma como a escrita da história

sobre o nazismo seria feita na RDA:

1. os comunistas foram as principais e mais importantes vítimas do

fascismo;

2. o antissemitismo fascista foi uma cortina para esconder a luta contra o

movimento revolucionário dos trabalhadores e da URSS: não foi o racismo em si,

mas o anticomunismo e o antibolchevismo os principais pilares da ideologia nazista;

3. o antissemitismo foi e ainda é uma expressão do afã de lucro da classe

dominante — paralelamente aos objetivos políticos, a política em relação aos judeus,

levada a cabo pelo fascismo, configura-se, em última instância, num saque, num

roubo, iniciado com a pilhagem das propriedades dos judeus e culminando com a

apropriação de toda as operações e instalações industriais.

15 Texto original: “Hier wurde bereits in der frühesten Phase deutscher Nachkriegsgeschichte ein Grundmissverständnis und ein Fehlurteil deutlich, dass die deutschen Juden zu einer passiven und gefügigen Masse abstempelte, die keinen Anspruch Kämpfer gegen den Nationalsozialismus verdienten! Ein erschreckendes Zerrbild also auch in den Köpfen deutscher Antifaschisten – von Kommunisten über Sozialisten, Christen und liberalen Bürgern!”

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Sendo assim, o Holocausto nazi-fascista não foi instrumentalizado apenas

politicamente em face da doutrina comunista, mas também considerando a

autoimagem do SED, o contexto da Guerra Fria e a campanha contra a RFA. Em

função disto, a escrita da história na RDA dificilmente conseguiria apresentar uma

outra interpretação dos fatos, seja na esfera pública ou mesmo de forma alternativa,

reservada ao domínio privado. Até 1989, as premissas para a interpretação da história

do nazismo possuíam, na RDA, o status de dogmas, cabendo aos historiadores tão

somente confirmar o elo entre o Holocausto e a definição dimitroviniana do fascismo.

Ao final dos anos 1960, a discussão sobre antissemitismo e Holocausto, que

pugnava por uma pura instrumentalização de escopo econômico do genocídio judaico,

tornou-se inaceitável pela comunidade de historiadores. Por conta da impossibilidade

de seguir reproduzindo os jargões impostos pela política, historiadores e também

teólogos buscaram criar grupos individualizados de pesquisadores, que passaram a

investigar aspectos específicos e lembranças individuais acerca deste período

histórico. Todavia, nos anos 1970, ao lado destes esforços de um estudo da questão

judaica no Holocausto livre do viés político, surgiram temáticas caras à doutrina

política, que terminariam por influenciar fortemente a condução dos estudos sobre o

tema (GOEHLER, 1993).

A primeira delas tem a ver com a diretiva política moscovita em face da

política internacional, que estipulava posturas pró-árabes e anti-israelenses em seus

Estados-satélites. Como na RDA o discurso antissemita era severamente punido, as

críticas a Israel deveriam ser tratadas sob o viés do sionismo, do imperialismo e até

mesmo do fascismo. O antissemitismo latente daí decorrente, intensificado pelos

conflitos no Oriente Médio em 1967 e 1973, não foi tematizado até a queda do Muro.

Dentre os aspectos que influenciaram a condução da questão judaica na RDA

tem-se também as considerações de política externa em face dos Estados Unidos da

América (EUA) e seu apoio à política israelense no Oriente Médio.

 

20  

A questão judaica na RDA ganhou, todavia, um forte impulso entre os anos de

1985/1986 até a derrocada do sistema, em 1989, com a redescoberta e exaltação das

tradições e histórias de vida judaicas na cultura alemã. Este período de redescoberta

pode ser compreendido entre o ano de 1986, quando houve uma grande comemoração

pelo bicentenário da morte do filósofo judeu-alemão Moses Mendelssohn, até

novembro de 1988, quando ocorreu o cinquentenário da Reichsprogromnacht (Noite

dos Cristais). Os anos de 1987 e 1988 seriam assim os mais produtivos no que

concerne à escrita da história dos judeus na Alemanha Oriental sob um viés menos

politizado.

História como instrumento

A doutrina política que ditou a forma como o passado deveria ser interpretado

substituiu historiadores por intérpretes da história alinhados com a doutrina comunista

(WOLFF-POWĘSKA, 2015, 161): o fetiche da vitória e da resistência diluiu e

degradou a memória acerca do horror, do genocídio e da culpa. A memória foi

convertida em um amálgama abstrato, alheio às pessoas e eventos aos quais ela

deveria fazer menção. Ademais, a competição pela vitimização como mito fundador

da RDA tinha por escopo colmatar a lacuna deixada pela impossibilidade, por força

do nacional-socialismo, de se construir o Estado a partir de referências a sentimentos

nacionais ou à soberania nacional – como se deu em outros países do bloco comunista

– compensando assim o deficit de legitimidade da classe regente.

Os currículos escolares da RDA também tinham por objetivo doutrinar acerca

da forma como se deveria olhar o passado nazista (WOLFF-POWĘSKA, 2015, 165).

A educação antifascista era aclamada como um instrumento para se evitar o

esquecimento acerca do mal perpetrado pelo fascismo hitlerista, bem como para

manter a lembrança acerca das vítimas do Holocausto e dos feitos heroicos da

Resistência. A juventude, que não vivenciou tais eventos, seria ensinada a

compreendê-los e incorporá-los sob o signo da vitória e não com o enfoque na

responsabilidade de nunca mais permitir que o mal se repita.

Entretanto é importante frisar que uma tal instrumentalização da história do

fascismo na Alemanha não foi exclusividade da RDA. Hoje o tema ainda é tratado ao

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sabor dos interesses políticos em jogo e se a crítica ao antifascismo da RDA aponta

para uma instrumentalização com vistas a legitimar políticas e sistemas, o mesmo

pode ser dito ainda hoje em relação à Bundesrepublik. Nesta esteira, Günter Morsch

(2015)16 traz um exemplo interessante desta prática:

"O governo Conservador-Liberal, na promoção dos antigos memoriais de campos de concentração, coloca ênfase em Buchenwald, razão pela qual o Ministério do Interior, na época responsável pela cultura, concedeu um montante de apoio financeiro muito superior ao memorial em Weimar do que aos memoriais de Ravensbrück e Sachsenhausen. Opinião enviada ao Chanceler, pedindo um justo equilíbrio nos investimentos, ressaltando o significado histórico especial de Sachsenhausen como um campo-modelo e sede administrativa de todo o sistema dos campos de concentração, acabou por ser rejeitada por Kohl com uma justificação típica, que me foi trazida por um de seus conselheiros pessoais: “Onde a poluição (pela RDA) foi maior, ali também deve ser o purgatório maior.” Sob aviso acerca da posição de destaque dada pela RDA ao memorial em Weimar, com fins ideológicos e propagandísticos, Kohl legitimou a manutenção da posição de destaque do memorial de Buchenwald na nova República Federal. A história real da era nazista era secundária para ele; principal, no entanto, era o ímpeto de política de memória. (tradução nossa)

Sandrine Kott (2002) descreve como, nos primeiros anos após a Reunificação

(1990-1995), a análise histórica pautada tão somente no estudo dos documentos

oficiais do regime da RDA se prestou a confirmar a teoria das duas ditaduras alemãs,

16 Texto original:“Die konservativ-liberale Regierung legte bei der Förderung der ehemaligen KZ-Gedenkstätten einen Schwerpunkt auf Buchenwald, weshalb das seinerzeit für Kultur zuständige Bundesinnenministerium einen weitaus höheren finanziellen Förderbetrag an die Gedenkstätte bei Weimar als für die Gedenkstätten Ravensbrück und Sachsenhausen ausreichte. Meine an den Kanzler gerichtete Bitte um einen gerechten Ausgleich, den ich mit dem Hinweis auf die besondere historische Bedeutung von Sachsenhausen als Modelllager und Verwaltungszentrale des gesamten KZ-Systems begründete, lehnte Kohl schließlich mit einer für ihn typischen, von seinem persönlichen Referenten mir überbrachten Begründung ab: „Dort, wo die Verschmutzung [durch die DDR] am größten war, dort müsse auch das Purgatorium am größten sein.“ Unter Hinweis auf die ideologisch und propagandistisch durch die DDR begründete Vorrangstellung der Mahn- und Gedenkstätte bei Weimar legitimierte Kohl die Beibehaltung der herausgehobenen Stellung der Gedenkstätte Buchenwald auch in der neuen Bundesrepublik. Die reale Geschichte in der NS-Zeit war für ihn sekundär, primär dagegen der erinnerungspolitische Impetus.“

 

22  

fazendo, assim, a ligação entre nazismo e comunismo sob a alcunha generalizante de

totalitarismo, conforme a sua interpretação ocidental. Esta compreensão sofreu

críticas, especialmente por parte de historiadores que, analisando um maior conjunto

de variáveis e aspectos, demonstraram que a comparação é precária e carente de

fundamento, tornando minoritário o discurso que pugna pela equivalência das duas

experiências. Outrossim, isto não impediu seu uso na seara política.

Conclusão

O compromisso estatal com o antifascismo na SBZ (Sowjetische

Besatzungszone, a Zona de Ocupação Soviética da Alemanha) impediu uma

compreensão mais ampla sobre o Terceiro Reich como um aspecto pertencente à

própria história dos alemães orientais, marcadamente aqueles nascidos após a

fundação da RDA.

Dentro de uma sociedade fechada, não apenas no sentido figurado, mas em

sentido literal, uma vez que as fronteiras territoriais do Estado eram limites

intransponíveis para a maioria da população, que restava confinada dentro das linhas

espaciais e ideológicas da comunidade socialista, a percepção acerca do Outro já

seria, em si, complexa, por conta de idealizações e incompreensões próprias da

ausência de contato com o exterior. Aliada a esta limitação física, temos a recusa ao

estrangeiro-inimigo, subjacente às teorias criadas a partir do viés dimitroviniano e

comunista acerca do antifascismo, expressa na oposição e rejeição de tudo aquilo que

se encontrava fora do projeto soviético. Ainda que houvesse um discurso de

internacionalização, na prática, a política era de isolamento. O outro, o estrangeiro, o

que está fora da comunidade socialista seria, necessariamente, um inimigo e deveria

ser rechaçado. Um forte sentimento de unidade e homogeneidade deveria ser o

elemento pelo qual a estabilidade e coesão estatais seriam promovidas, e o

antifascismo foi um dos instrumentos usados com vistas a produzir tal coesão, na

impossibilidade de recurso ao apelo nacionalista.

O esforço do Estado para induzir uma auto-percepção dos alemães orientais

como uma unidade étnico-nacional, apesar das restrições ao discurso nacionalista e do

cometimento com uma doutrina de inspiração internacionalista, acaba, de certo modo,

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logrando êxito e colaborando para o que se chama de formação do sujeito socialista

(KOTT, 2002, 29). Contudo, a partir do processo de Reunificação, esta identidade vai

trazer algumas dificuldades na integração destes sujeitos num projeto de Alemanha

unificada que, de fato, decorreu mais por uma assimilação do que por uma

reunificação propriamente dita. Este sentimento de perda da pátria, de derrota de seus

valores e de apagamento de suas referências, numa sociedade já habituada a fechar-se

em nichos, termina por provocar mais introspecção do que abertura (POLLAK, 1989,

7-8).

Tais falhas ao confrontar o passado nazista são elementos que geraram

incompreensão sobre o fascismo e abriram espaço para o senso comum construir um

sem número de juízos equivocados ao sabor dos interesses políticos do contexto.

Olhar para estes elementos e entender suas dinâmicas a partir do viés da compreensão

sobre o modo como a experiência pretérita foi possível e as consequências que

produziu, livre da tentação de realizar juízos de causalidade ou de servir a uma

ideologia, parece ser uma forma de afastar o viés político e contribuir para uma

reflexão autêntica sobre o passado, produzindo a superação dos abusos da memória e

suas consequências funestas.

Todavia, a crítica necessária ao antifascismo na RDA não pode prescindir de

uma reflexão acerca da instrumentalização da história da RDA. Nos primeiros anos da

Reunificação (1990-1995), o viés político foi empregado de forma ampla para

consagrar a interpretação que associava a ditadura do SED ao nazismo, colocando

ambas as experiências como sendo expressões de um mesmo contexto totalitário sob a

alcunha de “as duas ditaduras alemãs”. A marca da vitória, presente no processo de

Reunificação, viabilizou a consagração, por um determinado lapso temporal, da teoria

vigente na RFA, segundo a qual a experiência socialista foi uma continuidade do

fascismo hitlerista. Tal instrumentalização se deu em vista de fins de propaganda

 

24  

política, como aponta mais diretamente Morsch (2015), mas também mencionam o

fenômeno Heukenkamp (1993) e Kott (2002).

Apesar de estas interpretações enviesadas terem sido gradativamente

abandonadas pela comunidade científica (KOTT, 2002), o seu uso político ainda

subjaz não somente em determinadas falas políticas, mas também nas percepções do

senso comum, que reforçam preconceitos. Ademais, o interesse acadêmico em relação

à RDA foi diminuindo a partir de 1995, sendo a sua história bastante marginalizada

em termos de comunidade científica, algo que, para Sandrine Kott, ocorreu a partir da

conquista de sua autonomia temática quando da perda de sua função para a política

global. Fora das possibilidades de instrumentalização com vistas a escopos políticos, a

história da RDA e a análise do sujeito socialista despertaram pouco interesse, algo

que, com o advento dos 25 anos de Reunificação, espera-se seja revertido.

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