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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO RICARDO CABRAL PEREIRA AMAZONA: a construção de um espetáculo com as ruas do Rio de Janeiro RIO DE JANEIRO 2020

RICARDO CABRAL PEREIRA - ppgac-ecoufrj.com.br

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RICARDO CABRAL PEREIRA

AMAZONA: a construção de um espetáculo

com as ruas do Rio de Janeiro

RIO DE JANEIRO

2020

1

Ricardo Cabral Pereira

AMAZONA: a construção de um espetáculo

com as ruas do Rio de Janeiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena

da Escola de Comunicação da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como requisito

parcial para a obtenção do título de Mestre em

Artes da Cena.

Orientadora: Prof. Drª Livia Flores Lopes

Rio de Janeiro

2020

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

C117aCabral, Ricardo Amazona: a construção de um espetáculo com asruas do Rio de Janeiro / Ricardo Cabral. -- Rio deJaneiro, 2020. 140 f.

Orientador: Livia Flores Lopes. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa dePós-Graduação em Artes da Cena, 2020.

1. Amazona. 2. teatro na rua. 3. criação emdramaturgia. 4. performatividade. 5. política. I.Lopes, Livia Flores, orient. II. Título.

3

Ricardo Cabral Pereira

AMAZONA: a construção de um espetáculo

com as ruas do Rio de Janeiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena

da Escola de Comunicação da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como requisito

parcial para a obtenção do título de Mestre em

Artes da Cena.

Aprovada em

_______________________________________________

Profª Drª Livia Flores Lopes, UFRJ

_______________________________________________

Profª Drª Eleonora Batista Fabião, UFRJ

_______________________________________________

Prof. Dr. Felipe Kremer Ribeiro, UFRJ

4

Às trabalhadoras e trabalhadores da cultura,

aos povos e aos seres da floresta,

ao povo da rua.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,

a Capes, que apoiou o desenvolvimento deste trabalho, e ao Programa de Pós-Graduação em

Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que acolheu este projeto de

dissertação no quadro de suas linhas de pesquisa. Viva a pesquisa em artes e viva a universidade

pública brasileira.

Ao elenco de Amazona, Anna Clara Caralho, Camila Costa, Chris Igreja, Marcéli

Torquato e Victor Seixas, trabalhadoras da cultura que estiveram e seguem estando todas as

noites na linha de frente do espetáculo, produzindo coragem e desafiando com o próprio corpo

a coreopolícia da cidade. Obrigado pela confiança, pela entrega profunda ao projeto, pela

paciência com os meus próprios processos de aprendizagem, pela generosidade artística a cada

dia de trabalho e, sobretudo, pela companhia ao longo desse período tão conturbado da história

recente de nosso país. Se sobrevivemos a esses últimos dois anos, foi sem dúvidas porque

estivemos juntas.

A meus pais, Marisa Cabral e Mauro Pereira, parceiros de vida que caminham ao meu

lado e me ofereceram, sem hesitar, todo o suporte emocional e material necessário para que eu

pudesse me lançar por inteiro nesse projeto de pesquisa. Obrigado por me brindarem a

oportunidade rara e preciosa de perseguir meus sonhos, por me apoiarem tanto e por, desde

pequeno, me fazerem confiar no meu poder de realização. Obrigado pela minha formação,

dentro e fora de casa. Por todo amor e todo o carinho – eu amo vocês e serei eternamente grato.

À minha professora orientadora, Livia Flores, que me estimulou a voar longe e livre,

descobrindo na pele as aventuras fascinantes da pesquisa em artes. Obrigado pela

disponibilidade permanente, pelo acolhimento, pelos ouvidos sempre abertos, pelas indicações

afiadas de leitura e pela justa medida entre orientação e autonomia. Aprendi e sigo aprendendo

com você.

Agradeço também à Eleonora Fabião e ao Felipe Ribeiro, que aceitaram meu convite

para as bancas de qualificação e de defesa. A Eleonora, muito obrigado pelas sugestões precisas

que me fizeram compreender a importância de construir um campo de pesquisa, o que

reconfigurou completamente este projeto. A Felipe, agradeço pelas tantas conversas e trocas de

mensagens, pelos desabafos, pelos encontros acolhedores e generosos e por me contagiar com

sua paixão pelo delírio. A vocês, muito obrigado pelo olhar atento e por vibrarem tão fortemente

para que Amazona acontecesse e ganhasse o mundo.

6

A minhas professoras Gabriela Lirio, pelo acompanhamento e pela parceria ao longo

das primeiras experiências práticas do projeto; Adriana Schneider, pelas discussões da

disciplina Arte e Política da Cena, absolutamente fundamentais ao desenvolvimento da

pesquisa; Alessandra Vanucci, pelos comentários sobre uma das primeiras versões da

dramaturgia, que mudaram o rumo da história da peça; Carmem Gadelha, pela compreensão

afetuosa com as desventuras de um diretor-artista-aluno-pesquisador; e Teresa Bastos, pela

torcida incansável pelo projeto. Toda gratidão a vocês, assim como a Livia, Eleonora e Felipe,

professoras instigantes e inspiradoras, cujo trabalho perseverante e comprometido me inspira a

construir um percurso acadêmico ético, propositivo e apaixonado. Uma vez mais, viva a

universidade pública brasileira.

A Carolina Calcavecchia, artista gênia que eu admiro tanto e parceira de toda a vida,

que me presenteou com seu olhar sobre o projeto, materializado na maior parte das fotos que

compõem esta dissertação. A Rafaela AmoDeo, um presente que Amazona me trouxe, por

colaborar comigo ao longo de todo o processo, me oferecendo um apoio inteligente e precavido

no árduo trabalho que é conduzir um processo de montagem na rua. A Mayara Máximo, deusa

do corpo com quem aprendo tanto, que se desdobrou em mil para estar junto e que propôs uma

das minhas cenas preferidas da peça, a nossa querida conchinha. A Flávia Trizotto, artista

incrível, sensível e inteligente, que comprou nossa ideia sem pensar duas vezes e criou a cara

de Amazona para o mundo. A Gunnar Borges – que foi quem primeiro me fez acreditar num

projeto de mestrado – e a Mariah Miguel, que estiveram conosco durante tanto tempo e que

permanecem vivos em Gilmar e Sebastiana.

A Fernando Assumpção, que chegou junto com toda força quando atravessamos um

momento difícil e delicado do projeto. A Pedro Emanuel, que mergulhou fundo e emprestou

seu corpo a Gilmar no momento em que mais precisávamos de ajuda. A Jorge, que cuidou de

nossa segurança. A Andrêas Gatto, Anele Rodrigues, Elmir Mateus, Jefferson Santos, Mauricio

Lima, Nina Harper e Rafael Ribeiro, que também estiveram presentes ao longo do processo,

oferecendo corpo, escuta e pensamento para que construíssemos juntos esse laboratório de

aventuras estranhas com a rua. E também a Raquel Pimentel, Marcela Antunes, André Mantelli

e Bárbara Pelacani, que fizeram registros fotográficos preciosos de nosso trabalho, que ilustram

as páginas desta dissertação.

Aos meus parceiros de mestrado, Dieymes Pechincha, Érika Neves, Gabriel Morais,

Poliana Paiva, Ian Calvet, Ludmila Rosa, Necylia Monteiro, Pedro Emanuel, Vinícius Reis,

Daniel Cintra, Angelica Menezes e Raphael Janeiro, com quem me abri várias vezes durante o

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primeiro ano de disciplinas e de quem recebi impressões e sugestões valiosas e generosas.

Agradeço também pela companhia ao longo daquele 2018 tão difícil de engolir. Que alegria

que estivemos juntos.

A dona Penha, Luis e Nathalia Macena, pelo exemplo de guerrilha propositiva e por nos

acolherem tantas vezes e com tanto carinho em sua vila. A Ildenir, pelo cuidado, guia e auxílio

espiritual em momentos tão delicados. E, por fim, a Mohammed El Hajji, meu professor e

primeiro orientador ao longo de toda graduação em jornalismo, que me abriu as portas para o

gosto pela pesquisa científica, estimulando minha autonomia e senso crítico sem usar jamais

um argumento de autoridade.

Ora iê iê ô, minha mãe Oxum!

Atotô, meu pai Omolu!

Odoyá, minha rainha Iemanjá!

Salve a força das matas, salve o povo da floresta!

Salve o caboclo Raoni. Salve o caboclo Tupiara. Salve dona Joana Dark!

Okê, okê, okê, caboclo!

Salve o povo da rua! Laroyê, Exú!

Salve as crianças! Salve os espíritos mirins!

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“Amazona, além de rio, é espaço de posicionamento e reivindicação do que lhe

pertence. É a raiz tomando seu lugar diante do concreto, arregaçando os pisos urbanos

pra nos lembrar que chão é outra coisa. Chão é firmamento – de semente e de passo –

que define o que virá. Em solo infértil não vinga semente, não nasce raiz, não sobre

tronco, não desdobra galho, flor, folha, fruto. Em solo firme, o que é vivo reverbera,

ganha corpo, ocupa espaço, se destina a algo e a si mesmo com fundamento. E o que

nos resta, no atual curso da cidade, a não ser nos lembrar do que é vivo e reverbera?

(...) Eu, Anna Clara, estou hoje no Rio de Janeiro para vingar a terra: por profundo

respeito e gratidão à senhora geradora da vida, entrego meu corpo em ação a ela e,

com ela, a gente vem lembrar que é possível. Tem planta nascendo em tudo que é

fenda de asfalto e raiz lembrando do que se trata a força. Nosso trabalho é ouvir seu

chamado, é fazer do nosso corpo um grande amplificador dessa força. Essa é uma

peça das matas reivindicando seu lugar. Essa cidade é delas.”

Texto do programa do espetáculo Amazona, escrito pela atriz Anna Clara Carvalho.

9

RESUMO

CABRAL, R. Amazona: a construção de um espetáculo com as ruas do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro, 2020. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Escola de Comunicação,

Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 2020.

Esta dissertação versa sobre o processo de construção do espetáculo Amazona, que estreou em

2018 no Rio de Janeiro com direção e dramaturgia de Ricardo Cabral. No primeiro capítulo, ao

apresentar as “aventuras estranhas”, série de ações performativas na cidade que funcionou como

mote da pesquisa, investigamos o sentido do político recuperado por Arendt, tendo como

ferramentas a cartografia em Rolnik e o perspectivismo ameríndio em Viveiros de Castro.

Numa aproximação psicanalítica, partindo de Freud e Kehl, o estranho é tomado como

oportunidade de experimentar movimentos coreopolíticos com a cidade, conforme proposto por

Lepecki a partir de Rancière. Butler, enfim, nos ajuda a mirar de forma ética o encontro com a

diferença no espaço público. No segundo capítulo, examinamos o processo de construção do

texto do espetáculo, explicitando o princípio compositivo de escuta, registro, recorte e colagem.

Desfiamos o processo de escritura da peça à luz das proposições de Barthes, que se desdobram

num debate sobre escrita não-criativa, apropriação e remix. Ao mesmo tempo, recuperamos o

processo de encenação do texto, em diálogo com o conceito de dramaturgia dinâmica em Barba,

apontando também os modos de ensaio do espetáculo a partir de aproximações com trabalho

do diretor do Teatro de Concreto, Francis Wilker. No último capítulo, ao tratar do espetáculo

propriamente dito, resgatamos o momento histórico em que estreou Amazona, em meio às

eleições presidenciais de 2018, e descrevemos como esse contexto político embaralhou os

limites entre ficção e realidade ao confundir teatro e guerrilha. Para essa discussão, examinamos

as categorias de artlike art e lifelike art em Kaprow, a performatividade do espaço em Féral e

a genealogia do site-specific em Kwon, correlacionando-os à noção de risco tanto em Carreira

como em Féral. Tomando como referência o trabalho do grupo paulista Teatro da Vertigem,

pensamos os desdobramentos políticos da arte no espaço público, à luz das proposições de

Bishop, Thompsom e Rancière.

Palavras-chave: Amazona; teatro na rua; criação em dramaturgia; performatividade; política.

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ABSTRACT

CABRAL, R. Amazona: a construção de um espetáculo com as ruas do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro, 2020. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Escola de Comunicação,

Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 2020.

This research discusses the creative process of Amazona, a performance which debuted in 2018

in Rio de Janeiro and was written and directed by Ricardo Cabral. In the first chapter, while

presenting “strange adventures”, a series of performative actions which worked as the motor of

the research, we investigate the idea of political as recovered by Arendt, taking Rolnik's

cartography and Amerindian perspectivism in Viveiros de Castro as practical-theoretical tools.

In a psychoanalytical approach, relying on Freud and Kehl, the strange is seen as an opportunity

to experiment choreopolitical movements in the streets, as proposed by Lepecki and Rancière.

Butler, eventually, helps us to ethically aim the otherness in the public space. Afterwards, in

chapter two, we examine how the play was written, explaining the compositional principle of

listening, registering, cutting and pasting. We then unravel its writing process in light of

Barthes’ propositions, which unfolds in a debate about non-creative writing, appropriation and

remix. At the same time, we recover the enacting process of the text, in a dialogue with the

concept of dynamic dramaturgy in Barba, and reveal how we rehearsed the performance, based

on approaches to Teatro do Concreto’s director, Francis Wilker. Finally, in last chapter, while

dealing with the performance itself, we recall the historical moment in which Amazona debuted,

in the middle of 2018 Brazilian presidential elections, and describe how this political context

blurred the limits between fiction and reality, theatre and guerrilla. Going deeper into this

discussion, we examine Kaprow’s artlike art and lifelike art categories, the spatial

performativity in Féral and the site-specific genealogy made by Kwon, correlating them to the

notion of risk in both Carreira and Féral. We also discuss, while bringing up the work of Teatro

da Vertigem as a reference, how art in public spaces may unfold politically, in the light of

Bishop, Thompsom and Rancière’s propositions.

Key-words: Amazona; street theatre; devised dramaturgy; performativity; politics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

1 AVENTURAS ESTRANHAS: CORPO, POLÍTICA E CIDADE 20

1.1 Aventura: da polis grega ao perspectivismo ameríndio 22

1.2 Aventuras estranhas com estranhos: coreografias do dissenso 30

1.3 Ética e julgamento no encontro entre estranhos 38

2 PRINCÍPIO COMPOSITIVO: ESCUTA, REGISTRO, RECORTE E COLAGEM 44

2.1 Questões de escritura: apropriação e remix na construção do texto da peça 49

2.2 Modos de ensaios e dramaturgia dinâmica no levantamento das cenas 64

3 AMAZONA: A PERFORMATIVIDADE DA CENA NA RUA 72

3.1 A performatividade da cena e do público 74

3.2 Teatro e guerrilha, corpo e risco 80

3.3 Notas sobre a circulação do espetáculo 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 107

ANEXO: A DRAMATURGIA DE AMAZONA 111

12

INTRODUÇÃO

“Everybody knows

that our cities were built to be destroyed”

Caetano Veloso (1971)

Amazona é um espetáculo itinerante que conta a história de uma guerrilha de mulheres que

decide vingar a terra sobre a cidade. Sebastiana, Moema, Tuãni e Iaci são líderes de uma

célula revolucionária que planta sementes de abóbora nas frestas do concreto, nos buracos do

meio-fio e entre as pedras portuguesas, esperando o dia em que a mata vai brotar pelo asfalto

e tomar a cidade de volta para si. O espetáculo começa num espaço fechado – como um

escritório comercial, a sala de uma casa, ou o camarim de um teatro – e em seguida explode

pelas ruas, tomando a cidade. A montagem, com direção e dramaturgia assinadas por mim,

estreou no centro do Rio de Janeiro entre os meses de outubro e novembro de 2018, quando

cumpriu uma temporada de vinte apresentações nos arredores da igreja da Candelária.

É difícil localizar com precisão o início da gestação de Amazona. Talvez seis anos

atrás, em 2014, no final do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, quando pela

primeira vez a população brasileira se viu dividida entre coxinhas e petralhas. Naquele ano, as

eleições presidenciais reconduziram Dilma à presidência por uma pequena margem de votos,

o que estimulou o candidato derrotado, Aécio Neves, a dar início a uma campanha

revanchista: ele pede então a recontagem dos votos e capitaneia um movimento da oposição

de obstrução às pautas governistas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Sem

conseguir articular uma resposta, o governo se isola e, aos poucos, vai perdendo o que restava

de sua base política. O desemprego dispara, os preços explodem e o poder aquisitivo diminui

drasticamente, depois de uma sequência de anos em alta. Em 2015, denúncias e investigações

de políticos escancaram a corrupção profunda entre a administração pública e o alto

empresariado nacional. Parte do país sai então às ruas para pedir o afastamento de Dilma

Rousseff, bradando gritos contra a corrupção, num movimento financiado pela elite

econômica do país. Outros tantos brasileiros também saem às ruas, mas para defender o

processo eleitoral que colocara o Partido dos Trabalhadores pela quarta vez consecutiva no

poder.

Observamos, pouco a pouco, a polarização dos embates, que já vinha se desenhando

desde as eleições presidenciais. No fatídico dia 17 de abril de 2016, assistimos à sessão de

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votação de abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, transmitida em

rede nacional e via streaming pela internet. A derrota foi de todos, que nos deparamos

cruamente com a baixeza de nossos representantes republicanos. O presidente interino Michel

Temer assume e faz seu primeiro pronunciamento ao lado de um gabinete composto

integralmente por homens brancos. Meses depois, o processo é concluído no Senado e Dilma

é afastada definitivamente da presidência, acusada de manobrar o orçamento federal com

pedaladas fiscais, uma prática até então comum a seus antecessores e a diversos governos

estaduais e municipais. Nas primeiras semanas do governo Temer, o legislativo aprova a as

pedaladas como instrumento legal de controle orçamentário.

Tem início então uma ascensão conservadora sem precedentes na história do país.

Reforma trabalhista, reforma da previdência e reforma curricular nas escolas. Desmonte das

políticas de cultura e pesquisa em ciência e tecnologia. Crise fiscal nos estados. A massa de

desempregados e endividados cresce, a inadimplência dispara e explodem também os índices

de violência e a quantidade de pessoas em situação de rua – famílias inteiras passam a morar

nas esquinas, pedindo dinheiro nos sinais e nas portas dos bancos. Estou numa composição da

linha dois do metrô e um vendedor de balas é surpreendido por dois seguranças e retirado do

vagão. Um policial militar de Bangu leva dois tiros quando reage a um assalto a seu carro, no

Cosme Velho. Uma amiga chora num bar do centro da cidade, enquanto me conta de sua

dívida com o Santander. Um refugiado sírio é ameaçado por um brasileiro armado com dois

pedaços de pau, enquanto vende esfirras em Copacabana. Um corpo de um jovem músico

despenca do alto de um prédio em Laranjeiras.

No ano seguinte, em agosto de 2017, eu tateava a escrita de um projeto de mestrado

para o processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Diante desse cenário convulsivo, eu me perguntava como e para

onde caminhar. Foi daí que me atraiu a ideia de perseguir um itinerário à utopia. À época, era

fácil que eu destilasse críticas às administrações municipal, estadual e federal, mas era quase

impossível precisar o que eu efetivamente gostaria de propor em termos de construção de

cidade ou país. Como eu poderia caminhar na direção de um lugar que eu nem mesmo sabia

qual era? O pré-projeto, diante disso, visava montar um espetáculo itinerante na cidade

baseado na investigação de um possível itinerário rumo à utopia.

Em março de 2018, a execução política brutal da vereadora carioca Marielle Franco,

mulher, negra, lésbica e favelada, defensora dos direitos das minorias, lança um pequeno

grupo de artistas reunidos por mim nas ruas da cidade. O mote inicial era encontrar uma

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forma de responder propositivamente, e não reativamente, diante do cenário tenebroso que

atravessávamos – a mesma perguntada lançada por Eleonora Fabião a Márcio Abreu numa

troca de e-mails entre os dois publicada pela revista Sala Preta (2016). Era o começo de uma

série de quatro rodas de conversa, que aconteceram entre os meses de março e abril daquele

ano. Eram encontros semanais abertos, que aconteciam sempre em espaços públicos da cidade

e cujo objetivo era debater coletivamente nossa conjuntura política e social, de modo a

descobrir possíveis estratégias de ação que passassem necessariamente pelo encontro de

nossos corpos com a cidade. Não me interessava ainda pensar o espetáculo ao qual

chegaríamos ao final, mas que tipo de processo de trabalho gostaríamos de inaugurar juntos.

Lembro que foi na terceira roda, no começo de abril, que arriscamos pela primeira vez

que viver aventuras estranhas com a cidade poderia abrir espaço para outras cidades possíveis

dentro de nossa própria cidade. Aventura, do latim ad venire, significa ir na direção das coisas

que vêm até nós. É, portanto, um encontro vertiginoso com o desconhecido. A estranheza, por

sua vez, disputa o imaginário da rua, desenrijecendo noções estanques sobre o que é ou não

permitido fazer com a cidade. Passamos os dois meses seguintes às rodas, entre maio e julho

de 2018, vivendo e experimentando aventuras estranhas com o centro do Rio, num processo

amplamente aberto a artistas e colaboradores que se interessavam por estar junto (mesmo que

de forma intermitente), ainda sem nenhum compromisso com a definição de uma ficha técnica

para o espetáculo. A história e a peça, nesse momento, pouco importavam. A única regra, que

garantia o posterior desdobramento da investigação numa dramaturgia, era registrar o trabalho

em imagens, textos e áudios. Regar o chão da praça, subir em árvore no meio de avenida,

costurar os lixos do chão à própria roupa, desenhar com giz no asfalto preto, andar pela

Candelária de olhos fechados, fazer pescaria de gente pela cidade.

O primeiro capítulo deste trabalho se debruça sobre esse período inicial do processo,

das aventuras estranhas, a partir de diversos trechos de diários do processo. Se aventura

significa ir na direção das coisas que vem até mim, interessa pensar em que medida esse

encontro produz política entre corpo e cidade. A partir de Ericsson Pires (2007),

compreendemos o encontro como potência de produção de diferença, isto é, como

oportunidade de realizar o outro e de realizar-se a si mesmo enquanto outro. A noção é

fundamental para que possamos retomar certo sentido do político na polis grega, recuperado

por Hannah Arendt (1988), que nos conta que para os gregos antigos a política não era

considerada um meio para a liberdade, mas a liberdade ela mesma: poder ir em frente e

começar algo novo e poder se relacionar com muitos conversando, e assim conhecer as coisas

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que num dado momento constituem o mundo. Política, nesse contexto, é algo que acontece

entre nós, homens e mulheres. Significa justamente o embate entre diferentes modos de ver

que, sozinhos, nunca dão conta de explicar a realidade.

Conforme destrincharemos ao longo do primeiro capítulo, duas ferramentas

conceituais foram importantes para compreender o que possa ser um estado aventureiro. De

um lado, o perspectivismo ameríndio, estudado por Viveiros de Castro (2015) e transportado

por nós à paisagem da cidade, abriu nossa percepção para um possível universo urbano

povoado por diversos agentes subjetivos, humanos e não humanos. De outro, a cartografia de

paisagens psicossociais em Suly Rolnik (2016) serviu como método à aventura: o corpo em

aventura trabalha num diapasão entre aderência e resistência, entre apropriação e

expropriação. Juntos, os dois autores nos ajudam a compreender que aventuras estranhas são

um modo de produção de saber que não permite que tratemos o aventureiro como sujeito e as

coisas da rua como meros objetos.

A estranheza, por sua vez, aparece uma forma de mobilizar dissensos com a rua,

experimentando coreografias inesperadas com a cidade. O estranho das aventuras, assim,

produz movimentos que tensionam a reprodução forçada de uma circulação urbana que nos é

imposta por leis e arquitetura, à luz da proposta coreopolítica de André Lepecki (2012),

baseada nas noções de polícia e política em Rancière (1996). Numa aproximação psicanalítica

que parte de Freud (1969) e Maria Rita Kehl (2019), aposto que o estranho de certas aventuras

venha da realização na rua de desejos dissensuais que foram reprimidos pela força

homogeneizante da coreopolícia. Num mundo em que sabemos tudo sempre, o estranho

também abre espaço para um intervalo de indeterminação precioso em que, de repente, não

sabemos nomear o que temos diante de nós.

Como veremos nos relatos do processo transcritos ao longo do primeiro capítulo, é

bastante comum, quando nos aventuramos, que estranhas e estranhos apareçam, perguntem,

contem suas histórias e, às vezes, queiram também se aventurar conosco. Nossa aposta, diante

disso, é valorizar o estanho e a estranheza como modos de produção de conhecimento,

conforme proposto por Eleonora Fabião (2015). Assim, aventuras estranhas são uma forma de

fazer emergir do urbano saberes inesperados sobre a cidade e sobre a própria vida. Por outro

lado, se abrimos espaços de dissenso entre estranhos, Judith Butler (2015) nos ajuda a criar

estratégias para mirar esse encontro com o diferente de uma forma ética.

Ao longo desses primeiros meses, fomos dezenove colaboradores, entre artistas da

cena, performers, uma fotógrafa e uma produtora. Além de mim, Andrêas Gatto, Anele

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Rodrigues, Anna Clara Carvalho, Camila Costa, Carolina Calcavecchia, Chris Igreja, Elmir

Mateus, Gunnar Borges, Jefferson Santos, Mariah Miguel, Mauricio Lima, Mayara Máximo,

Nina Harper, Rafael Ribeiro, Rafaela AmoDeo e Rafaela Azevedo atravessaram o processo,

alguns do início ao fim, outros de forma mais ou menos intermitente. Terminado esse período,

tínhamos um grande repertório de materiais, que incluía uma centena de páginas de diários de

processo, mais de duzentos minutos de áudios e gravações, dezenas de fotos e uma lista com

cerca de trinta propostas de ações com a cidade. Chegava então o momento de esboçar o arco

ficcional da peça, e foi do rearranjo dos materiais coletados que nasceu Amazona, a história

dessas mulheres que, numa cidade que atravessa um contexto político explosivo, se reúnem

para vingar a terra, plantando em tudo que é rachadura do concreto. Aquilo que as

personagens dizem na trama – as falas do texto – vêm então justamente do que escutamos

durante o período de trabalho com a rua, assim como de fragmentos de obras que nos

serviram de referência ao longo do processo de criação, a exemplo do livro “A queda do céu”,

escrito pelo xamã yanomami Davi Kopenawa em parceria com o etnólogo Bruce Albert

(2015).

Se aventuras estranhas representam a criação de um espaço intencional de pergunta e

escuta da rua, o segundo capítulo discute justamente o processo de apropriação na escrita do

texto da peça, a partir da análise de duas de suas cenas. Partindo da morte do autor em Barthes

(2004) e investigando a noção de escrita não-criativa, que é alvo de análise de pesquisadoras

como Tatiana Capaverde (2018), Sayonara de Oliveira (2018) e Leonardo Villa-Forte (2016),

destrinchamos o princípio compositivo de escuta, registro, recorte e colagem que deu origem

à dramaturgia. O que interessa, aqui, é revelar um tipo de escritura que faz uso de citações

múltiplas, num processo que se desenvolve a partir da seleção, da organização e da

articulação de materiais. Mesmo assim, não parece razoável afirmar que se trate de um

processo não criativo, já que as ações de registro, recorte e colagem caracterizam escolhas

inevitavelmente inventivas. Por isso mesmo, nos parece mais adequado pensar a escritura de

Amazona a partir das ideias de Lev Manovich (2007) sobre a prática do remix.

Diferentemente da apropriação, a remixagem considera um trabalho sistemático de

recombinação entre textos novos e antigos, a tal ponto que se torna difícil precisar os próprios

contornos dos materiais originais.

No final de julho de 2018, com a chegada da dramaturgia, era preciso enfim definir a

ficha técnica do espetáculo. Anna Clara Carvalho e Chris Igreja, presentes desde a primeira

roda, entraram para o elenco junto com Camila Costa, Mariah Miguel e Gunnar Borges, que

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também haviam acompanhado o processo de forma mais ou menos assídua. Mais tarde, com

os ensaios já em andamento, Mariah e Gunnar deixariam o processo, motivados por questões

financeiras1. No lugar deles, a pouco menos de dois meses da estreia, entraram para o projeto

Marcéli Torquato e Victor Seixas. Além do elenco, Mayara Máximo e Rafaela AmoDeo, que

também haviam estado conosco desde o início, apoiaram meu trabalho na condução dos

ensaios e assinaram uma colaboração de direção. Anna Clara Carvalho e Gunnar Borges

ficaram com a direção de arte, que cuidou dos figurinos e da cenografia do espaço interno da

sala. Carolina Calcavecchia, também presente desde a primeira roda, assinou as fotografias e

filmagens do espetáculo e Flávia Trizotto cuidou da programação visual do projeto. Além de

dramaturgo e diretor, eu acumulava ainda as funções de diretor de produção e assessor de

imprensa.

Começamos os ensaios ainda no mês de agosto. Como eu mesmo havia escrito o texto

da peça, era natural que eu já tivesse em mente muitas imagens do que esperava da encenação

de várias das cenas. Eu tinha medo, então, de, como diretor, acabar dando ao texto justamente

aquilo que eu desejava enquanto dramaturgo. À época, chamou minha atenção a pesquisa de

Eugenio Barba (2014), diretor do Odin Teatret, que fala numa pluralidade de dramaturgias.

Para ele, há uma dramaturgia narrativa, mais ligada ao texto e a história em si, e uma

dramaturgia dinâmica, que pensa sons, objetos, espaços e a movimentação das atrizes e atores

em cena. A função do diretor, nesse contexto, seria forjar relações entre as duas dramaturgias,

na busca por encontros contraditórios e complexos. Amparados por Barba, ainda no segundo

capítulo apresentamos então como se deu o levantamento das cenas propriamente ditas, num

desdobramento do princípio compositivo de escuta, registro, recorte e colagem. Para isso,

retomamos a construção de duas cenas da peça e, partindo delas, aproveitamos para discutir

também nossos modos de ensaio na rua, num diálogo com o diretor do grupo brasiliense

Teatro de Concreto, Francis Wilker (2014).

Depois de dois meses e meio de ensaios, Amazona estreou no dia 17 de outubro de

2018, dando início a um novo ciclo da pesquisa, que reunimos ao longo do terceiro capítulo

deste trabalho. O mote da discussão é um texto de Alan Kaprow (1993), em que o artista

aponta dois caminhos da arte ocidental ao longo do século XX – o que ele chama de artlike

1 O projeto não dispunha de recursos para pagar os artistas, que portanto tiveram que trabalhar de forma

voluntária ao longo dos nove meses da primeira roda à última apresentação da primeira temporada. Nossa única

fonte de recursos era uma poupança mensal que eu fazia com parte da bolsa de mestrado que recebia da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes. Essa verba, mesmo que pequena, foi

fundamental e indispensável para o desenvolvimento da pesquisa. Ela garantiu condições minimamente dignas

para o trabalho e foi usada basicamente para: compra e confecção de materiais de figurino e cenografia;

impressão de materiais gráficos; verba de lanche para os ensaios; e outros pequenos gastos de produção.

18

art e lifelike art. Ao investigar de que maneira podemos localizar o espetáculo nas categorias

desenhadas por Kaprow, percebemos que Amazona, enquanto trabalho que se desenrola na

rua, precisa negociar a todo o momento essa interface entre a ficção da narrativa e o aqui e

agora da cidade. Aqui, então, torna-se fundamental o diálogo com o diretor e pesquisador

André Carreira (2008), que entende que essa seja uma condição inevitável da arte da rua, já

que a cidade porta um plano de significação que é anterior à encenação.

Por isso mesmo, há sempre algo do real que escapa à representação. Josette Féral

(2018), que analisa alguns dos trabalhos do grupo paulista Teatro da Vertigem, diz que a

performatividade dos espaços resiste à fabulação e produz, no olhar de quem assiste, um jogo

de vai e vem entre realidade e ficção. Partindo, então, de entrevistas com pessoas que

assistiram Amazona, vemos que a expectativa de teatro por parte do espectador parece

produzir uma semiotização do espaço da cidade, o que faria com que as coisas da cidade

passassem a significar de modo diferente. De dentro da cena (se é que há um dentro e um

fora), as atrizes também são obrigadas a trabalhar num desequilíbrio constante entre a

fabulação da narrativa e o real que corre solto pela cidade. A constatação vai ao encontro das

proposições de Carreira (2008), que entende que a interpretação na rua deve necessariamente

estar baseada numa estrutura flexível e adaptável, o que, para nós, aproxima seu entendimento

de trabalho de atriz e de ator do que Féral (2015) poderia chamar de um teatro performativo.

Ao seguir discorrendo sobre as implicações de arte e vida em Amazona, não podemos

deixar de mencionar que o espetáculo estreou entre o primeiro e o segundo turno das eleições

presidenciais de 2018, que levaram ao Palácio do Planalto o capitão reformado do exército

Jair Messias Bolsonaro, depois de uma campanha misógina, racista e homofóbica que

desprezou violentamente valores caros à democracia, como os direitos humanos e a liberdade

de imprensa e de expressão. Na reta final dos ensaios, o Rio de Janeiro – assim como todo o

país – vivia um clima de intensa polarização. Fomos filmados enquanto trabalhávamos na rua

e não era raro que pessoas passassem bradando gritos de “Olha o mito!” no meio das

apresentações. Isso, somado ao fato de que nos propúnhamos a fazer um espetáculo itinerante

à noite pelas ruas desertas do centro da cidade, fez com que uma crise de medo e insegurança

se instaurasse na equipe. Não parecia haver muita diferença entre fazer teatro e fazer

guerrilha, ou ao menos o corpo parecia responder da mesma forma, o que nos obrigou a

encontrar estratégias teóricas e práticas para seguir adiante. Fazer teatro na rua havia se

tornado um ato de coragem.

19

Em seus estudos sobre o site-specific, sobre os quais discorremos ao longo do terceiro

capítulo, a pesquisadora Miwon Kwon aponta uma virada na história dos trabalhos que

dialogam com o espaço da cidade. Segundo ela, há um alargamento da compreensão do que

seja um site, que passa a ser percebido como linguagem. Desse modo, obras que antes se

aproximavam da arquitetura e visavam integrar-se à paisagem da cidade passam a propor

tensionamentos entre arte e a arquitetura, disputando o próprio sentido de democracia. Ao

localizar Amazona na discussão levantada pela autora, percebemos que, no caso das artes

performativas, esse é embate que acontece no espaço, mas também no corpo – e corpo é vida.

Josette Féral (2015), então, nos ajuda a compreender que a existência de um risco real às

atrizes rompe a chamada lei da reversibilidade do acontecimento teatral, o que faria colapsar

aos olhos do público as clivagens entre realidade e ficção. O Teatro da Vertigem, que costuma

trabalhar com espaços de alta densidade política e simbólica, aparece então em nossa

discussão como referência importante, na medida em que, segundo Silvia Fernandes (2018), o

grupo provoca os limites que separariam teatro de ato público. Nossa aposta, então, é que se

artistas conferem ao princípio privado do trabalho uma instância pública do comum, conforme

afirmou Rancière (2005), quando trabalham com a rua, perturbam duplamente os princípios

de uma sociedade bem organizada.

20

1 AVENTURAS ESTRANHAS: CORPO, POLÍTICA E CIDADE

“Resistir é produzir diferenças”

Ericsson Pires (2007,44)

Foto: Carolina Calcavecchia

O relógio da praça Mauá, no Centro do Rio de Janeiro, marcava pouco mais de dez horas de

uma manhã fresca do final de março de 2018. Éramos nove artistas em roda, algumas cangas

sobre o concreto ainda frio, uma cesta com maçãs, bananas e cachos de uva e meia dúzia de

garrafas d’água. Fazia menos de dez dias da execução da vereadora Marielle Franco, até hoje

sem resposta, e ainda respirávamos luto.

Ali, naquela roda, nos colocávamos a mesma pergunta que a artista Eleonora Fabião

faz a Marcio Abreu numa troca de e-mails publicada pela revista Sala Preta: como agir

propositivamente e não reativamente diante do atual estado das coisas? (2016, 346) Como

responder propositivamente, e não reativamente, diante dessa onda conservadora que se aliou

ao desmantelamento de uma série de políticas públicas progressistas que vinham sendo

erigidas nos últimos quinze anos? Diante de um golpe jurídico a uma presidenta

democraticamente eleita? Diante de governos conservadores nas esferas municipal, estadual e

21

federal? Da reforma trabalhista e do congelamento dos gastos públicos em saúde e educação

por vinte anos? De um significativo avanço evangélico sobre a vida pública? Do

escancaramento das relações promíscuas entre o setor público e o privado, aprofundando

ainda mais a crise do modelo representativo da democracia liberal? Diante da execução

política de uma vereadora mulher, negra e favelada? “Eles não têm limites, mas a gente

sempre tem”, disse à certa altura a fotógrafa Carolina Calcavecchia, os olhos cheios d’água.

“A gente sempre joga limpo.”

O conceito mote do pré-projeto da pesquisa era o par itinerário utopia. Itinerância é

qualidade daquilo que se move para todos os lados e lugares e que, por isso mesmo, se

atualiza constantemente. Pressupõe deslocamento, viagem, trajetória, caminho, percurso, rota,

roteiro. Diferentemente da errância, a itinerância pressupõe um ponto de partida e um ponto

de chegada, e por isso mesmo é também um exercício de autonomia e escolha.

A utopia, por sua vez,

é um lugar fora de todos os lugares, (...) um lugar onde terei um corpo sem corpo,

um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua

potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre

transfigurado (...). O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o

país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam

imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível

quando se quer e invisível quando se deseja (FOUCAULT, 2013, 8).

Segundo Deleuze e Guattari, “a utopia não é um bom conceito porque, mesmo quando ela se

opõe a História, ainda se refere a ela e inscreve-se nela como um ideal ou uma motivação”

(apud MIRANDA, 2000, 252). Rancière (2005) também prefere, em seu lugar, trabalhar com

o conceito de heterotopia. Fato é que a maior parte da bibliografia a respeito do termo sobre a

qual me debrucei parece sempre associar o desejo do bom à irrealidade. Suponho que essa

assimilação imediata possa derivar da própria genealogia da palavra. Utopia foi usada pela

primeira vez no inglês por Thomas More, a partir do grego ou-topos, significando literalmente

um não-lugar. No livro “Utopia” (2017), More faz uma extensa e detalhada descrição de uma

fictícia ilha, chamada Utopia, que abrigava uma sociedade complexa que, entre outras

características, não possuía um regime de propriedade privada. Em inglês, utopia se pronuncia

do mesmo modo que eutopia, do grego eu-topos, um bom lugar. Com a mesma pronúncia, é

natural que não houvesse portanto diferenciação entre bom e não-lugar. Um bom lugar

tornou-se assim o mesmo que um não-lugar, desestabilizando nossa capacidade de projetar a

concretização real de nosso imaginário de bons lugares. Desde então, a irrealidade do bom

22

utópico esteve sempre fadada a carregar consigo um desmerecimento perante à realidade do

real.

No caminho oposto, Ernst Bloch, filósofo alemão da metade do século passado, faz

uma defesa relevante do conceito de utopia. Ele afirma que a esperança humana brota do

inevitável sonho de uma vida melhor do que a que nos coube até aqui. Ninguém pode viver

sem “velejar em sonhos” (2005, 194) e por isso todos os dias sonhamos e imaginamos “no

próprio mundo aquilo que ajuda o mundo” (2005, 14). Bloch entende o ato de sonhar como

um ato de coragem em direção ao futuro, que nos permite estranhar o presente. Esperança não

é afeto, mas ato de direção cognitiva. Nesse cenário, a utopia opera menos como um topos,

isto é, como um lugar para ser alcançado, e mais como uma imagem, que ao ressoar em nós

mobiliza o front de nosso imaginário de possível. A utopia, então, não é algo que está fora do

real, mas em seu limite. Participa, portanto, de sua composição

e enquanto a realidade não for completamente, determinada, enquanto ela contiver

possibilidades inconclusas (...), enquanto for assim, não poderá proceder da

realidade meramente fática qualquer objeção absoluta contra a utopia. Poderá haver

objeção contra utopias malfeitas, (...) que divagam abstratamente, incorretamente

mediadas (2005, 19).

Para Bloch, boas utopias dialogam necessariamente com o que já é e com o que já existe,

enquanto utopias inoperantes provêm da não consideração de uma correlação clara entre

utopia e mundo real. Pensar um itinerário à utopia, visto desse modo, deixa de ser uma

elucubração abstrata e gratuita, ou mesmo uma fantasia romântica irrefletida, para tornar-se

ação urgente, de investigação daquilo que ainda não viemos a ser. Diz Grace Passô, no

programa de “Preto”, que o teatro é um lugar histórico de resistência e de pensamento do

impossível. “Não o impossível como aquilo que desiste”, ela ressalva, mas “o impossível

como potência do imaginário, do que inventa outra forma de ser”2. O horizonte utópico

carrega sempre a possibilidade de produzir liberdade diante das agruras do presente.

1.1 Aventura: da polis grega ao perspectivismo ameríndio

Foi na terceira roda de conversa que falamos pela primeira vez em aventuras estranhas, que

apareceram como uma possível resposta ao desejo de traçar um itinerário em direção à utopia.

Era instigante imaginar que uma aventura estranha pudesse disparar modos de relação

diferentes com a cidade. Lembro que era o dia do meu aniversário e dois bolos de chocolate

2 Programa do espetáculo “Preto”, realizado pela Companhia Brasileira de Teatro e dirigido por Marcio Abreu,

que estreou no Sesc Campo Lindo, em São Paulo, no dia 09 de novembro de 2017.

23

muito doces eram devorados por um exército de formigas que avançava sobre a grama. O Rio

de Janeiro estava sob intervenção federal fazia dois meses e tornara-se comum ver tanques

militares rodando pelas ruas do Centro. Juntos, naquela manhã, fizemos uma aposta:

arriscamos que viver aventuras estranhas com a cidade poderia abrir espaço para outras

cidades possíveis dentro de nossa própria cidade.

Aventura, do latim ad venire, significa se aproximar; ir na direção (ad) das coisas que

vêm até nós (venire). É um encontro: as coisas, no plural mesmo, estão vindo em nossa

direção e nós seguimos corajosamente na direção delas. Enquanto imagem, a experiência de

uma aventura não é a mesma que marchar na ponta da flecha de um tempo histórico

positivista; ou mesmo que caminhar na direção de um inalcançável horizonte utópico que

sempre se afasta; ou que lançar o corpo do alto de um precipício no abismo do desconhecido.

Aventura, em vez disso, é pura pororoca.

Pororoca, do tupi poro’roka, significa estrondar, estourar, rebentar. Na foz do rio

Amazonas, o encontro da água doce com as correntes salgadas do mar provoca uma

sublevação aquática que pode chegar a cinco ou seis metros de altura e a trinta quilômetros

por hora. Momentos antes da pororoca, um silêncio abrupto toma conta da floresta e

prenuncia a grande onda, que rebenta em seguida com estrondo, engolindo árvores e

alargando à força as margens do rio.

Aventura é encontro vertiginoso com o desconhecido: por mais que vislumbremos as

coisas que vêm em nossa direção, vemos apenas sua superfície – e não tudo o mais, que só

pode ser conhecido no próprio ato do encontro. “O campo [do encontro] será sempre

composto por um imenso quadro de probabilidades com suas infinitas variações”, afirma

Ericsson Pires (2007, 71). Em “Cidade ocupada”, ele faz uma genealogia de diversas

experiências artísticas da história cultural brasileira que se basearam no encontro enquanto

campo de potência de produção de diferença – eu realizo o outro e realizo a mim mesmo

enquanto outro. “O encontro age como força constituinte no jogo das singularidades” (PIRES,

2007, 71).

Anna Clara Carvalho, artista do projeto, não poderia imaginar que, numa tarde de

junho de 2018, passaria horas conversando com o Homem Aranha. Sim, ele mesmo – o

Homem Aranha se chama Alberto, tem 50 anos e começou a trabalhar aos seis com o pai, que

já fazia animação de festas. “De onde veio essa coisa de Homem Aranha?”, ela lhe perguntou

a bordo do VLT.

24

“Da necessidade, sempre vem da necessidade. Eu queria trabalhar com solda, já fiz

curso de serralheria, mas é muito caro investir, uma máquina é 500 reais”, contou. “Então eu

sou artista. Tem cada uma que fazem e chamam de arte. Como é mesmo o nome daquele cara

que cortou a orelha?”

“O Van Gogh?”

“Isso.”

“Eu acho que no caso dele foi um surto mesmo.”

“E não é sempre um surto?”, Alberto retruca. “Eu acho que a arte vem sempre de um

surto, o artista cria num surto. Deus, por exemplo, criou isso aqui num surto, no caso, o big

bang. Só um surto mesmo pra criar tudo isso.”

A partir dessa dimensão de encontro como produtor de diferença, interessa pensar que

a aventura seja uma oportunidade de retomar certo sentido da política grega, recuperado por

Hannah Arendt. Ela reexamina a polis grega para contrariar a concepção corrente de que a

política seja um meio para alcançar a liberdade, como a politicagem partidária da democracia

liberal burguesa nos levou a crer. “Não significa entender-se aqui a coisa política ou a política

justamente como um meio para possibilitar aos homens a liberdade, uma vida livre”, ela

aponta. “Ser-livre e viver-numa-polis eram, num certo sentido, a mesma e única coisa.”

(2007, 12) Assim, a coisa política é um objetivo, não um meio; uma prática cujo próprio

sentido é a liberdade “e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o

espaço político no verdadeiro sentido” (2007, 21). E a dimensão da aventura, diz ela, é

inerente à ideia de liberdade (1998, 15).

Arendt entende que essa seja uma liberdade de movimento, “de ir em frente e começar

algo novo e inaudito” (1998, 21), e é interessante que ela também assuma como necessário ao

exercício do livre agir a dimensão do encontro com o outro. “É verdade”, afirma, “que o agir

também jamais pode realizar-se em isolamento, porquanto aquele que começa alguma coisa

só pode leva-la a cabo se ganhar outros que o ajudem” (1998, 20).

Era abril de 2018 quando eu me sentei num banco no meio da praça Mauá. Fazia duas

semanas que o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva havia sido preso. Um homem me vê e

caminha na minha direção. Eu ainda não sei, mas seu nome é Tiago. Ele me pede dinheiro

para almoçar. Eu também tenho fome e por isso proponho que encontremos um lugar barato

para almoçarmos juntos: “A gente pede dois pratos, um para mim e um para você, topa?”

25

“Prefiro o dinheiro mesmo, eu ainda tenho que encontrar trabalho. E aqui não é barato

não, aqui é a Mauá. Barato mesmo só na Senador Pompeu, mas lá eles não vão me deixar

entrar assim”, ele aponta os pés sujos e a havaiana encardida.

Dou quatro reais a ele. “Você trabalha com o quê?”

“Às vezes descarrego caminhão. Ou quando tem muito papelão a gente vai lá e cata,

vende.” Ele me conta que acabou de acordar e que saiu para tentar conseguir algum dinheiro

para o dia. Pergunto se ele pode me contar uma aventura.

“Tem não”, responde.

“Uma aventura”, eu insisto. “Pode ser estranha.”

“Não tem aventura.”

“Pode ser uma aventura que você gostaria de viver” – ouço minhas próprias palavras

enquanto percebo que aventura, na verdade, é puro privilégio. Se pororoca alarga à força a

margem dos rios, aventura alarga à força minha ideia de mundo. Tiago é outro e eu sou outro.

“Sair do Brasil”, ele diz enfim. “O Brasil tá me maltratando, eu quero ir pra Londres.”

“Londres?”

“É, eu não me importo com o frio, eu gosto de usar roupão. Comprar uma casa pra

minha mãe e um carro pra mim.” Pensa por uns segundos. “E cantar.”

“Cantar?”

“Tipo Snoop Dog. Fazer clipe, sabe?”

Tiago diz que tem que partir e nos despedimos com um aperto de mãos. Mal ele se

afasta, dois homens vestidos em vermelho e branco se aproximam3. Dizem que a Polícia

Federal reportou atividades suspeitas minhas e querem ver meus documentos. Explico a eles

que minha identidade não está comigo, mas que se for preciso minha mochila está a poucas

quadras dali. Enquanto falo, a mão de um deles já levantou minha camisa e agora entra e sai

do meu bolso. E do outro bolso. E do outro, e do outro. Ele mexe em mim. “Qual é a minha

atividade suspeita?”, eu pergunto.

“Abordar as pessoas. Você estava abordando as pessoas, não estava?”

De fato, Tiago era a terceira pessoa com quem conversava aquela manhã. Conto a eles

em detalhes os meus encontros: o primeiro com um funcionário, que limpava o chão da praça

munido de um lava-jato, e o segundo com outro homem, também funcionário, que catava à

mão os lixos dos canteiros. “Falar com gente é atividade suspeita?”

3 Vermelho e branco é a cor do uniforme dos agentes do Centro Presente, uma parceria público-privada entre a

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, que garante

policiamento extra no Centro da cidade entre 6h da manhã e 22h da noite.

26

“Depende.”

“Depende do que?”

“Na verdade o suspeito era mais ele, esse que tava aí falando com você. Você viu? Ele

só saiu porque viu a gente chegando. Você falou com ele, não falou?”

“Falei. Mas qual é a atividade suspeita dele?”

“Pedir dinheiro. Você não viu? Ele passou abordando todo mundo. Todo mundo. Você

não pode sair por aí pedindo dinheiro assim, incomoda.”

“Eu entendo, pode incomodar. Mas é crime?”

“Ele não tava só pedindo dinheiro, ele tava coagindo as pessoas. E coagir alguém pra

conseguir dinheiro é crime. Ele tava chegando e falando com todo mundo, você não viu?”

“Então falar com as pessoas é atividade suspeita?”

“Depende.”

“Depende do que?”

“E se ele tivesse portando uma arma branca? Você é homem, mas e se fosse uma

mulher?”

“Como vocês sabiam que eu e ele estávamos por aí abordando pessoas?”

“A Polícia Federal, tô te falando.”

“E como eles souberam?”

“Se liga, rapaz. Você tá no centro do Rio de Janeiro.”

Eles dão meia-volta e vão embora. De longe, um deles vira na minha direção uma

última vez e grita: “Vê se não sai mais sem documento. Já pensou o VLT te atropela e você

sem identidade? Aí eu quero ver.”

Um par de horas mais tarde eu volto a encontrar Tiago, lá pelos arredores do Cais do

Valongo. Ele cata alguma coisa num monte de lixo. Eu digo a ele que os canas me revistaram

logo depois da nossa conversa. Ele me dá pouca ou nenhuma atenção. “Sei como é.”

Além da possibilidade de, agindo, começar algo novo e inaudito, Arendt aponta outra

liberdade fundamental ao político na polis: a liberdade de encontrar com muitos para

conversar e, assim, tomar conhecimento das várias coisas que compõem o mundo em um

dado momento. “Trata-se aqui talvez da experiência”, diz ela, “de ninguém poder

compreender por si, de maneira adequada, tudo que é objetivo em sua plenitude, porque a

coisa só se mostra e se manifesta numa perspectiva, adequada e inerente à sua posição no

mundo” (1998, 21). Subjaz essa noção de política a noção de que o mundo, por ser comum a

muitos, é algo que se constrói entre os homens, e portanto “só se torna compreensível na

27

medida em que muitos falarem sobre ele e trocarem suas opiniões, suas perspectivas, uns com

os outros e uns contra os outros” (1998, 21).

A tentativa de fazer da praça Mauá um espaço de conversa entre estranhos, no entanto,

me foi rapidamente interditada. Do mesmo modo, a indiferença de Tiago diante de meu relato

sobre a revista policial, talvez fale de um corpo já habituado a não poder começar. “Parece

que só hoje reconhecemos o extraordinário significado político inserido no poder-começar”,

diz Arendt, “pois as formas de dominação total não se contentaram em pôr um fim no livre

externar de opinião, senão que puseram mãos à obra para exterminar, em princípio, a

espontaneidade do homem em todas as áreas” (1998, 19). Mesmo na polis, porém, é

importante ressaltar que nem todos exerciam essa liberdade. Afinal, só praticavam a política

os homens livres, mas não as mulheres, não os escravizados, não as crianças e não os velhos.

Fica então a pergunta: como exercer a liberdade sem dominar ou ser dominado?

O sol se pondo bem de frente, refletido na Baía de Guanabara. Vejo meninos brincando na

beira do cais. Sento perto. Eles estão subindo e descendo as escadas que dão para o mar. Os

dois quase escorregam no limo, se cospem. O menor me pede dinheiro. Não tenho mas

lembro que trago um bombom no bolso. Ofereço e ele aceita na hora. Divide com o amigo e

os dois jogam o meio bombom todinho na boca.

“Esse bombom é caro, tia?”

“Custa três reais.”

“Vale a pena mesmo então. É muito gostoso.”

“Podemos brincar de uma brincadeira sem corrida? Tô meio cansada.”

O menor diz pra gente jogar pife. 1 2 3 4 pife 6 7 8 9 pife e assim vai falando pife em

todo número que for da tabuada de cinco. Brincamos também de quem cospe mais longe. Um

rapaz desce correndo as escadas para tirar uma foto e quase escorrega no limo. Isso chama

nossa atenção e voltamos a olhar o mar. “Tá vendo, tia, os peixes?”

“Tô sim, uns bem pequenininhos, filhotinhos né?”

“Não, tia, lá embaixo tem uns muito grandes. Olha, um baiacu!

“Caramba, é mesmo, que bonito!” Pergunto se eles já pescaram.

“Não, tia.”

“Vamos pescar então?”

“Vamos! Quando?”

28

“Semana que vem, segunda, três horas aqui.” Os dois saem correndo e eu lembro que

não sei seus nomes. Mas eles já estão no meio da praça, então eu grito bem alto: “Qual seu

nome?”

“Gabriel!”, um deles grita de volta para mim.

Vejo um homem pescando na outra ponta do cais, todo equipado. Pergunto a ele o que

preciso de mais simples para pescar. Ele diz: um carretel de linha, um anzol, chumbinho e

camarão. “Mas camarão é muito caro, moço, não pode ser outra carne?”

“Peito de frango dá. Mas pescando assim você vai sujar suas mãozinhas.”

“Eu não me importo.”

Por mais que em aventura desejemos abrir um espaço receptivo para a cidade, há

sempre uma inevitável condição de ação do corpo presente no espaço. As considerações de

Suely Rolnik (2016) sobre cartografias sensíveis, então, nos ajudaram a lidar com a questão

ao longo do processo. Decidimos, então, abraçar o caráter ativo do encontro com a cidade e

jogar com ele, compreendendo que aventurar-se joga ao mesmo tempo com aderência e

resistência, num movimento duplo entre apropriação e expropriação. Como a prática do

cartógrafo, a aventura é ao mesmo tempo receptiva e propositiva, numa conexão vertiginosa

com o presente. Assim, ela compreende a inevitabilidade política da presença do corpo e age a

partir dela, potencializando o encontro com a rua.

A cartografia pôde então servir como método à aventura na produção de saberes sobre

a cidade. Liliana da Escócia, Virgínia Kastrup e Eduardo Passos organizaram um trabalho

valioso sobre a cartografia enquanto método, e também reconhecem seu “caráter aventureiro”

(2009, 137). O trabalho do cartógrafo, bem como do aventureiro, é ser levado por um campo

de forças desconhecido, estando sempre disponível para o cultivo. Exige uma atenção sem

concentração, uma escuta atenta e distensionada e, sobretudo, não ter medo de perder tempo,

porque só assim podemos encontrar justamente o que não procurávamos – e terminar jogando

pife no meio da praça.

Se a cartografia é método, conhecer a praça não admite separação entre sujeito e

objeto. À diferença do que pregou a ciência moderna, “conhecer não é tão somente

representar o objeto ou processar informações acerca de um mundo supostamente já

constituído; mas pressupõe implicar-se com o mundo, comprometer-se com sua produção”

(PASSOS; ALVAREZ, 2009, 131). Produzir conhecimento sobre a praça, então, significa

implicar-se com ela, seus moradores, trabalhadores, sua arquitetura. Eu me permito ser

seduzido por lava-jato e catação de lixo. Converso com Tiago, jogo com as forças policiais e

29

volto para contar a história – um tipo de conhecimento que provoca fronteiras rígidas entre

sujeito, objeto, experiência e relato.

Essa ideia de ser seduzido pelas coisas e pessoas da rua foi fundamental para o

desenvolvimento de nossas aventuras. Em “Metafísicas canibais”, Eduardo Viveiros de Castro

(2015) compara a dicotomia entre cultura e natureza na epistemologia ocidental e em algumas

sociedades ameríndias. Segundo ele, nossa episteme ocidental opera a partir da concepção de

que exista um primitivo estado natural que é transversal a todos os entes da natureza, do qual

o processo de aculturamento nos eleva, afastando-nos de uma barbárie selvagem. Só possuem

ponto de vista sobre o mundo, portanto, aqueles que detêm uma determinada cultura. Assim,

nós, humanos, dotados de consciência sobre nós mesmos, temos por extensão consciência

sobre os demais entes naturais. Mas os sabiás, por exemplo, não têm consciência de si, e por

isso mesmo não possuem a capacidade de lançar sobre nossa humanidade um olhar de

alteridade – são, portanto, apenas natureza.

A cosmologia ameríndia, por sua vez, é quase uma reversão desse quadro: existe uma

mesma cultura que é transversal a todos os seres animados (ou ao menos a boa parte deles) e

que ganha diversas formas no mundo por meio de naturezas diferentes. Há então certa

“humanidade” (entre muitas aspas, é evidente) que é comum a todos os entes, ainda que com

expressões físicas diferentes: guaribas aqui, cotias ali, humanos acolá. A capacidade de ter um

ponto de vista sobre o mundo, nesse contexto, é transversal a todas as espécies: os queixadas

se entendem enquanto “humanos” e veem a nós, humanos, como outros. E o mesmo acontece

com plantas, fenômenos da natureza e até com algumas classes de artefatos manufaturados.

A etnografia da América indígena contém um tesouro de referências a uma teoria

cosmopolítica que imagina um universo povoado por diferentes tipos de agências ou

agentes subjetivos, humanos como não humanos (...), todos providos de um mesmo

conjunto básico de disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas, ou, em poucas

palavras, de uma “alma” semelhante. Essa semelhança inclui um mesmo modo, que

poderíamos chamar performativo, de apercepção: os animais e outros não-humanos

dotados de alma “se veem como” pessoas, e portanto, em condições ou contextos

determinados, “são” pessoas, isto é, são entidades complexas com uma estrutura

ontológica de dupla face (uma visível e outra invisível), existindo sob os modos

pronominais do reflexivo e do recíproco e os modos relacionais do intencional e do

coletivo (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, 43-44).

.

Ao longo do processo, interessou-nos essa concepção de mundo segundo a qual o real é

composto necessariamente por uma multiplicidade de pontos de vista, associados a uma

constituição material específica de cada ente. Enquanto a epistemologia branca e europeia

historicamente negou a existência de alma a animais, objetos inanimados e humanos

30

considerados menos humanos (como indígenas, povos escravizados, mulheres etc.), a

cosmologia ameríndia tem como ponto central a legitimidade das diferentes perspectivas

sobre o real, o que pressupõe que uma única delas não seja capaz de, sozinha, dar conta da

totalidade do mundo. Parece, então, que podemos fazer uma correlação ente o perspectivismo

ameríndio e o político da polis. Afinal, como aponta Arendt “se alguém quiser ver e conhecer

o mundo tal como ele é ‘realmente’, só poderá fazê-lo se entender o mundo como algo

comum a muitos, que está entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um

de maneira diferente” (1998, 21).

Viveiros de Castro explica que “a noção de múltiplos pontos de vista sobre a realidade

sugere que, no que concerne aos Makuna4, qualquer perspectiva é igualmente válida e

verdadeira, e que uma representação verdadeira e correta do mundo não existe” (2015, 63).

Aparece aqui, aliás, o papel fundamental do xamanismo na cosmologia ameríndia. Os xamãs

detêm a “capacidade de ver simultaneamente segundo duas perspectivas incompatíveis”

(2015, 63) e podem, então, realizar um tipo de mediação entre as diferentes espécies e os

diferentes modos de ver o mundo. Eles têm a capacidade de adotar, temporariamente e em

condições especiais, o ponto de vista de outra espécie e depois voltar para contar a história.

Enquanto episteme, o perspectivismo interessa à aventura porque permite

compreender a rua como um território de encontro entre diferenças. Sair em aventura não

pode posicionar o aventureiro enquanto sujeito e as coisas e pessoas da rua enquanto objetos.

Em vez de olhar as coisas, somos olhados por elas. Somos observados, seduzidos ou mesmo

repelidos por poste, prédio, placa, paralelepípedo, vidraça e pessoa, pessoas, muitas, várias

pessoas. Experimentar o ponto de vista da cidade e dos outros sobre nosso corpo. Buscar a

fala do outro não para falar por ele, mas para encontrar nele palavras que deem corpo às

nossas próprias perguntas. E voltar para contar a história, sempre voltar para contar a história.

1.2 Aventuras estranhas com estranhos: coreografias do dissenso

No dia em que conheci Tiago na praça Mauá, duas questões me chamaram a atenção. A

primeira dizia respeito à limpeza do espaço: quem limpa?, como limpa?, o que limpa? A

segunda vinha da intervenção direta das forças policiais quando usei a área de trânsito da

praça como território de encontro entre estranhos. Em uma anotação em meu diário daquele

mesmo dia à noite, lê-se:

4 Os Makuna, também chamados de Yeba-masã, compõem uma população indígena brasileira. Estão no noroeste

da Amazônia, às margens do Rio Uaupés e seus afluentes. Fonte: Programa Povos Indígenas no Brasil.

Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Makuna>. Acesso em 17 jan. 2020.

31

informação sobre nossos corpos circulando em velocidade inimaginável. regar a

praça é escolher qual informação sobre meu corpo vai se fixar nas câmeras de

vigilância num espectro temporal de longa duração. regar a praça é abrir espaço,

preparar o chão, amolecer concreto duro. é cuidar antes do plantio. o que queremos

plantar? o que desejamos que nasça? regar é encontrar caminho aquoso pelos

desvios, pelas rachaduras, pelas fendas e pelos buracos. é abrir caminho.5

Nessa noite, decidi que voltaria à praça para regar não seus canteiros, mas o chão. Regar

concreto, pitoco e faixa de pedestres é uma aventura estranha, portanto, que deriva de um

primeiro encontro em estado de aventura com a cidade – o dia em que conheci Tiago. Trata-se

de um princípio de composição que discutiremos mais adiante, no segundo capítulo deste

trabalho. Antes, porém, fica a pergunta: por que uma aventura estranha?

Foto: Marcela Antunes

Em 2015, Eleonora Fabião se encontra com um estranho e dá início à ação “Linha”. Ela

explica por telefone a uma amiga, quando lhe pede que marque seu primeiro encontro, “sim,

aquilo que a gente ouviu ao longo de toda a infância que não deveria fazer de jeito nenhum –

conversar com estranhos” (2015, 103). Em “Linha”, Eleonora se encontra com desconhecidos

5 Diário do autor.

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e juntos planejam uma ação para realizar a dois. Terminado o encontro, é esse primeiro

desconhecido que lhe indica o próximo, e assim corre a linha. Em Nova York, Elenora e Jeff

pularam de mãos dadas nas águas do Hudson River. Rachel e Eleonora levaram um pé de figo

para passear de barco. Com Lucy, caminharam de mãos dadas vestidas de fantasmas por cerca

de 50 quadras, até o teatro onde “O fantasma da ópera” segue em cartaz há décadas.

“Linha”, ela conta, tenta reconhecer e valorizar o estranho e a estranheza como modos

de conhecimento e de relação. “O corpo performativo arranca a rotina das situações, dos

lugares e das coisas tornando-nos delirantemente lúcidos e lucidamente delirantes.” (2015,

104) A estranheza disputa o imaginário da rua, do que fazemos com a rua e de como fazemos

na rua, desenrijecendo os saberes sobre a cidade e propondo uma forma aventureira de estar

com ela. Trata-se de “suspender hábitos de conduta e modos usuais de percepção, relação e

cognição para criar um estranho-estado-de-coisas; ou melhor, para revelar o estranho-de-

todas-as-coisas” (2015, 104).

Os fluxos do capital e a primazia neoliberal relacionam nossos trajetos diários nas

grandes cidades à utilidade, ou melhor, à eficiência. Tempo é dinheiro, afinal. Ao mesmo

tempo, o discurso da violência promove um esvaziamento da rua que retroalimenta a própria

sensação de insegurança, na medida em que desencoraja a ocupação espaço público (PIRES,

2007). O resultado é uma experiência de cidade que acaba nos sonegando a própria coisa

pública. Em sua análise dos trabalhos do Teatro da Vertigem, Silvia Fernandes considera que

“a morte na alma é o resultado mais danoso da anestesia sensível e social que o cidadão [...]

experimenta, gota a gota, pelo simples fato de viver num espaço público que recusa sua

destinação precípua” (2010, 71).

Diante de certezas endurecidas sobre o que é ou não permitido na cidade, o estranho

nos lembra que os sentidos da rua não são estanques. Se o real é inalcançável e nos

relacionamos sempre com os saberes sobre as coisas, nunca com as coisas em si, e se os

saberes sobre as coisas são mutáveis, dado que não são as próprias coisas, podemos

transformar nossa experiência de cidade quando estranhamos as camadas de saber sobre a

cidade.

Em “Coreopolítica e coreopolícia”, André Lepecki chama atenção para o fato de que

construções arquitetônicas e leis prescrevem a coreografia dos corpos nos supostos espaços de

livre circulação da cidade. Pare, vire aqui, ande ali. Lepecki entende esse espaço urbano

controlado como o “suporte material necessário para conter a efemeridade, a precariedade, o

deslimite e a imprevisibilidade ontológica da política” (2012, 48). Propõe, portanto, que

33

experimentemos movimentos que atravessem a cidade enquanto mobilizadores de dissenso,

isto é, que rompam com a reprodução forçada de uma circulação imposta.

Poderiam dança (ou ação política imaterial) e cidade (fazer legislativo-arquitetônico

material) encontrar-se e renovar-se numa nova política do chão, numa coreopolítica

nova em que se possa agir algo mais do que o espetáculo fútil de uma frenética e

eterna agitação urbana, espetáculo esse que não é mais do que uma cansativa

performance sem fim de uma espécie de passividade hiperativa, poluente e violenta

que faz o urbano se representar ao mundo como avatar do contemporâneo? Podem a

dança e a cidade refazer o espaço de circulação numa coreopolítica que afirme um

movimento para uma outra vida, mais alegre, potente, humanizada e menos

reprodutora de uma cinética insuportavelmente cansativa, se bem que agitada e com

certeza espetacular? (2012, 49).

Lepecki propõe uma coreografia política no chão urbano, “que atente aos acidentados terrenos

da pólis e suas histórias” (2012, 49). Seu conceito deriva da noção de política em Rancière

(1996), para quem política não significa propriamente o processo de conformação das

diferenças em direção a um sentido comum, mas justamente as oposições constantes entre

diversos modos de ser, os vários embates entre diferentes recortes do mundo sensível, a

pororoca que se subleva do encontro entre água de rio e mar. O político manifesta-se

necessariamente pelo dissenso e, portanto, para Rancière política é exercício constante de

perturbação do sensível. Por outro lado, tudo aquilo que age no sentido de promover o

consenso e a homogeneidade estaria dentro do que ele localiza como polícia:

[as noções habitualmente aceitas] designam com a palavra política o conjunto dos

processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a

organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das

funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar a esse

conjunto de processos um outro nome. Proponho chamá-lo polícia. (...) Proponho

reservar a palavra política ao conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da

polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea (...),

uma modificação singular do que é visível, dizível, contável (1996, 372).

O estranho das aventuras, explicado de outro modo, é uma forma de praticar coreopolítica

com a cidade. Ericsson Pires (2007) caminha num sentido parecido ao perceber na produção

artística carioca do fim dos anos 90 um movimento de criação de uma “tradição de traição

delirante” que disputa os saberes sobre a rua. Em maio de 2000, sem nenhum apoio

institucional, o artista Ducha e uma parceira conseguem entrar no Cristo Redentor e gelatinam

os holofotes que iluminam o monumento. Os dois escapam sem ser vistos e a estátua anoitece

banhada em vermelho, o que ganhou as manchetes da maioria dos jornais na manhã seguinte.

Pires percebe no trabalho de Ducha e de seu coletivo, o Atrocidades Maravilhosas, uma

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continuidade de certa tradição delirante que remonta a Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica,

Artur Barrio e Lygia Clark. Não se trata, ele explica, de usar a rua apenas como suporte

material para obras de arte, mas de entendê-la como “meio de produção de sentido, que se

desloca o tempo todo, que extrapola as tentativas de significação estática, que distende e

nomadiza as iniciativas institucionais através da lógica do uso” (2007, 37).

Ao tomar a rua como meio de produção de sentido, o estranho abre espaço para que

gestos antes considerados improváveis, impossíveis ou mesmo interditos surjam na paisagem.

São, por que não, gestos delirantes. Para Pires, o delírio é uma forma de disputar os saberes da

cidade, de responder propositivamente (e não reativamente) ao biopoder. Assim como

Lepecki, ele defende uma estratégia performativa que aja diretamente sobre o presente e suas

ranhuras, provocando o projeto hegemônico de poder. A ideia, que propomos aqui, é que

realizar aventuras estranhas cumpre papel importante nessa disputa, experimentando outros

sentidos do espaço público e revelando outras cidades possíveis dentro de uma mesma cidade.

Foto: Carolina Calcavecchia

Disputar os sentidos da rua, no entanto, não quer dizer necessariamente inventar nomes novos

para o que já existe, mas apostar em momentos de indeterminação na significação das coisas.

Num mundo em que sabemos tudo sobre tudo a todo momento, o estranho atravessa o

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cotidiano abrindo espaço para um intervalo de tempo precioso em que, de repente, não

sabemos o que temos diante de nós. Em junho de 2018, depois de encontrar os meninos na

praça Mauá, Chris Igreja saiu pelas ruas do Centro com vara de pescar, linha, anzol e várias

iscas estranhas e passou a tarde pescando pessoas pela cidade. Como nomear uma mulher que

cruza o largo da Carioca com um par de sandálias preso à ponta de uma vara de pescar? É

arte? Ela está pagando promessa? É louca? E o que dizer desse homem que rega o chão da

praça sem parar, horas e horas a fio?

Ao não saber que pescaria e regação são arte, tampouco sei que sou público e por isso

talvez possa um pouco mais. Por não me entender necessariamente enquanto espectador, que

portanto deve observar e assistir, talvez chegue um pouco mais perto e diga alguma coisa.

Talvez regue um pedaço do concreto ou pegue para mim o tal par de sandálias, que pende da

linha de pescar. Um homem que saía do metrô foi pescado por um tapa-olho. “Eu estava

mesmo precisando”, ele disse à Chris. Insistiu, porém, em dar-lhe algo em troca e, no meio da

confusão das seis da tarde, rascunhou no verso de uma folha uma lista com suas canções

preferidas. “É pouco, mas é o que tenho aqui”, disse, entregando-lhe o pedaço de papel.

“Ouve quando você puder.”

Foto: Marcela Antunes

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Num sábado de maio, perto do meio-dia, eu regava mais uma vez a cidade, dessa vez na praça

Tiradentes. A água recém havia terminado e eu caminhava com o regador vazio, pensando em

como conseguir um pouco mais, quando uma senhora me perguntou numa esquina: “O que

você tá fazendo com essa água toda?”

“Tô regando o chão da praça, mas a água acabou de acabar”

Ela olhou ao redor. “Passou um amigo meu aqui agorinha, agorinha. Ele é segurança

ali no teatro, tá vendo? Tá vendo ali, naquela portinha?”, ela aponta o Teatro João Caetano.

“Vem, eu vou te levar lá que ele consegue água pra você.”

Atravessamos a rua juntos e eu pergunto a ela: “E a senhora? Faz o que aqui?”

Um carro buzina no momento exato em que ela me responde. Eu não escuto. “O

que?”, pergunto outra vez.

“Programa.”

Do outro lado da rua, ela me apresenta seu amigo, um homem simpático que leva o

regador para encher dentro do teatro enquanto conversamos. “Eu já tô indo embora, mas as

meninas não deixam, elas querem companhia. Daqui a pouco eu vou é escondida”, e ri. O

homem então reaparece, me entrega de volta o regador cheio d’água e volta a sumir dentro do

teatro.

“Você quer regar um pouco comigo?”, eu pergunto a ela.

“Que convite indecente, hein.”

“Você quer ou não quer?”, pergunto numa risada.

Ela levanta os braços para o céu. “Me rega aqui então!”

Em “O estranho”, Freud (1969) tenta fazer uma espécie de genealogia da sensação de

estranheza para dar a ela um sentido libidinal. O que ele sugere é que o estranho não nasça,

como comumente imaginamos, apenas do encontro com algo não habitual. Afinal, nem tudo

que é extraordinário nos é estranho – e, pelo contrário, algumas novidades chegam mesmo a

serem recebidas por nós com prazer e alegria, o que leva-o a concluir finalmente que “algo

tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar para torná-lo estranho” (1969, 277).

Se, psicanaliticamente falando, todo afeto emocional quando reprimido se transforma

em algum tipo de ansiedade ou de angústia, aquilo que causa a sensação de estranheza, então,

“pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna” (169, 300, grifo do autor). A estranheza,

portanto, viria da aproximação do sujeito a um conteúdo de desejo recalcado pelo complexo

de castração. Nesse sentido, o estranho “não é nada de novo ou alheio, porém algo que é

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familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo

de repressão” (1969, 301).

Ouso arriscar então que o estranho de certas aventuras venha justamente da realização,

na rua, de desejos da ordem do dissenso que foram reprimidos pela linha de força consensual

e homogeneizadora da coreopolícia. Dito de outra forma, aposto que viver aventuras estranhas

possa trazer à tona fantasias desviantes sobre a rua, que deveriam ter permanecido reprimidas,

ou ao menos ignoradas em nosso inconsciente. Isso não significa que um desconhecido que

me vê regar o ponto de ônibus e estranha minha ação desejasse ele mesmo regar o chão da

praça em algum momento de sua história pessoal remota. O que proponho, num contexto

psicanalítico, é que sejamos uma maré de ressentidos, que abdicamos de nossas escolhas

desejantes para viver a cidade segundo as determinações de um superego urbano capitalista.

Trata-se, segundo Maria Rita Kehl, de um comportamento típico dos neuróticos: “em vez de a

direção indicada pelo desejo”, ela explica, “o sujeito escolhe a segurança subjetiva de ‘fazer o

que deve ser feito’” (2018, 7). Assim, por mais docilizado que tenha sido pelas linhas de

poder policiais (RANCIÈRE, 1996), o passante que esbarra com a irrupção do estranho na

cidade ainda “está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser”

(1969, 303) e é tomado então por um sentimento “fatídico e inescapável” (FREUD, 1969,

296), porque aquilo que deveria ter permanecido oculto de repente vem à luz – seu próprio

princípio desejante sobre o urbano.

Um aproximação psicanalítica ao estranho nos ajuda a compreender que, por mais que

a polícia aja para castrar determinados modos de agir desviantes sobre a rua, eles “existem

ainda dentro de nós” (FREUD, 1969, 308) e “tão logo acontece realmente em nossas vidas

algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho”

(1969, 308, grifo do autor). Por isso mesmo, ainda que estejamos, desde o surgimento das

sociedades soberanas, submetidos a todo tipo de controle e repressão, a contestação da ordem

foi e é uma constante. Ainda que os dispositivos estejam a serviço da manutenção de um

poder e de uma coesão social, o fenômeno da insurreição é sempre possível porque o

pulsional e o inconsciente nunca estão totalmente submetidos à repressão cultural. Existem

sempre pontos de fuga, que se encontram no desejo não controlado e na permanente produção

de novos sentidos a partir daquilo que deveria permanecer oculto mas subleva-se. É esse então

o estranho das aventuras: experimentar o político no espaço público, um espaço que, segundo

Arendt, “já deixou de ser, em nossa época, um âmbito de grandes empreendimentos e

aventuras” (1998, 16).

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Aventura. Ad venire. Ir na direção das coisas que vêm até nós. Que corpo é esse que

encara o encontro vertiginoso com o estranho? Que corpo é esse que aposta no risco enquanto

possibilidade? Frio na barriga feito bússola. Posso me aventurar pela arquitetura, posso me

aventurar com pessoas, me aventuro nos fluxos do afeto. Pisar só no preto, seguir uma

bicicleta, puxar papo com alguém que não conheço, caminhar de olhos fechados, dançar no

meio duma praça, brincar na faixa de pedestres – ou, quem sabe, só andar. Andar sem rumo

certo já desafia a coreografia do urbano. Não, não estou indo almoçar. Nem indo para o

trabalho. Nem voltando para casa, muito menos indo ao supermercado ou ao médico. Estou

andando na direção dos passos e tudo pode mudar a qualquer tempo. Ou não. O que me seduz

na cidade? Que esquina me seduz a virar? Por quanto tempo fico parado? É preciso se

conectar com o desejo e com o presente. Com toda essa cidade que me olha e também me

deseja. Uma aventura pode ser uma movimentação frenética ininterrupta – ou várias e várias

horas de pura paragem. Imagine que vamos entrar num grande tabuleiro. Experimentar o real

em realidade ampliada, com direito a brisa passando por debaixo do sovaco. “A disposição

para o encontro: o encontro com o outro, o encontro no outro, o encontro como território que

se modifica” (PIRES, 2007, 11) a cada instante – esse instante. No encontro, eu realizo o

outro. E realizo a mim mesmo enquanto outro. Escapar do decurso habitual das coisas. Um

entrecruzamento entre o acidental-exterior e o necessário-interior. Ah, o acaso. Há sem dúvida

uma eroticidade no horizonte incerto de uma aventura. Nós estamos juntas. É pura pororoca.

1.3 Ética e julgamento no encontro entre estranhos

Sigo regando a praça Tiradentes. As pedras portuguesas pretas desenham coroas imperais

sobre as pedras brancas. “Ei, vem cá”, escuto atrás de mim. A voz vem de uma viatura da

polícia. Caminho até o carro e me debruço sobre o vidro. “Qual é o seu nome?”

“Ricardo.”

“Ricardo, sargento Elias. Você está fazendo o que?”

“Regando o chão da praça.”

“E pra que você está regando o chão?”

“Pra que você acha que eu tô regando?”

Ele esquadrinha pelo para-brisa o rastro d’água no chão. “Pra marcar alguma coisa.

Vai ter evento aqui?”

“Não, eu tô só regando mesmo.”

Ele me olha fundo e o outro policial, ao volante, dá uma risadinha. “Mas pra que?”

39

“O que você acha que pode nascer aqui?”

“Já pensou se nasce uma árvore de piroca? Um mar de piroca preta envernizada aqui

na praça, já pensou?”, ele bate no painel preto do carro, chamando atenção pra dureza do

plástico. “Você ia ter que regar aqui todo dia, duas vezes por dia.”

“Vocês tão sempre aqui na praça?”

“Sempre.”

“Então eu posso regar um dia e você outro.”

“Que isso! Piroca eu não rego não, piroca eu jogo veneno. Agora, se for uma árvore de

buceta eu rego.” Pensa por um segundo. “Ou cu. Cu eu também rego, numa boa.”

“Cu é universal, não é?” O sargento Elis gargalha.

“Tudo bem, regar não é crime não, eu só tava curioso. Pode ir.”

“Eu vou regar aqui em volta do carro então pra gente ver no que dá.”

“E se nascer a árvore de piroca?”

“Aí é com você”, eu digo.

Em “Relatar a si mesmo”, Judith Butler (2015) tenta rastrear o que compreenderia uma

aproximação ética no encontro com o outro. O que nos interessa pensar aqui é: se aventuras

estranhas abrem espaços de dissenso, como podemos então mirar esse encontro com a

diferença de forma ética?

Butler aponta um inevitável fracasso em nossa tentativa de alcançar nossa própria

identidade: há sempre algo da experiência que não pode ser rememorado, recuperado ou

mesmo nomeado; algo que precede a própria entrada do discurso em nossa história enquanto

sujeitos, uma espécie de pré-história que nunca saberemos como contar. A constatação do que

ela chama de uma “opacidade” fatal diante de nós mesmos poderia significar a falência de

qualquer projeto ético – afinal, se não sei nem ao menos quem sou, como agir eticamente

perante o outro? Butler, no entanto, aponta que um novo sentido ético pode emergir

justamente dessa falha inevitável.

O reconhecimento de que não somos, em cada ocasião, os mesmos que nos

apresentamos no discurso poderia implicar, por sua vez, certa paciência com os

outros que suspenderia a exigência de que fossem idênticos a todo momento. (...)

Quando pedimos para conhecer o outro, ou pedimos para que o outro diga, final ou

definitivamente, quem é, é importante não esperar nunca uma resposta satisfatória.

Quando não buscamos a satisfação e deixamos que a pergunta permaneça aberta e

perdure, deixamos o outro viver, pois a vida pode ser entendida exatamente como

aquilo que excede qualquer relato que dela possamos dar (2015, 60-61).

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Perguntar quem é o outro e deixá-lo viver é um exercício de percepção dos limites de

meu próprio conhecimento. Significa estabelecer uma ética do reconhecimento do outro

baseada na percepção de que meu horizonte epistemológico é necessariamente construído,

histórico e, portanto, limitado. No largo da Carioca, enquanto segurava na ponta do anzol uma

nota de cinco reais, Chris foi ameaçada por um homem vestindo um colete de guardador de

carros. Depois de passar longos minutos rodeando-a em silêncio, ele disparou: “Essa menina

tá brincando? Ela tá jogando comigo? Você acha que pode vir aqui fazer o que quiser?” E

mirou fundo nas suas mãos. “Escuta só, eu tô te vendo, eu quebro todos esses seus dedos. Fica

de graça pra você ver.” A pergunta então é: como não julgar aquele que quer me oprimir?

Como deixar viver ao assassino?

Mesmo que Butler proponha certa suspensão do juízo, ela reconhece que o julgamento

é necessário à vida política e pessoal. O caminho, portanto, seria permanecer o máximo de

tempo possível no intervalo entre conhecer e julgar. De um lado, aderir ao que pensamos ter

aprendido a partir de nossas experiências e conhecimentos de vida até aqui. De outro, resistir

criticamente a esses mesmos saberes. Outra vez, um movimento duplo, de aderência e

resistência.

Ética, portanto, é arriscar-se no desconhecimento. É valorizar o momento em que

percebo que aquilo com o que me deparo diverge de tudo o que me formou até então. Para

Butler, esse movimento, que compreende uma disposição em desfazer-se perante o outro,

seria precisamente o que constitui nossa humanidade.

Sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primária, uma angústia, sem dúvida,

mas também uma oportunidade de sermos interpelados, reivindicados, vinculados ao

que não somos, mas também de sermos movidos, impelidos a agir, interpelarmos

nós mesmos em outro lugar e, assim, abandonarmos o “eu” autossuficiente como um

tipo de posse (2015, 171).

Valorizar a percepção de que o que temos diante de nós diverge de tudo o que nos formou até

aqui implica, em certa medida, permitir-se habitar a estranheza. Quando Nina Harper dá um

aulão de subidas em árvores no canteiro central Presidente Vargas, ela provoca os saberes

sobre a cidade ao mesmo tempo em que dialoga com estranhos que olham, se aproximam,

falam e às vezes também tentam subir. A interpelação abre espaço para o contato com pessoas

que de outra forma talvez ela não chegasse a conhecer. Enquanto conversam, seus mundos se

cruzam, se sobrepõem, se entrecortam. Trata-se de um modo de conhecer a cidade, uma

episteme viva e em formação.

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Foto: Carolina Calcavecchia

Quando Rafaela AmoDeo pede que uma mulher desconhecida lhe ajude a costurar uma sacola

de papel do McDonald’s nas costas de sua blusa, ela inaugura um laboratório ético. Era uma

tarde de junho de 2018 e a artista cruzava a avenida Rio Branco costurando à roupa os lixos

que encontrava pelo chão. Juntas, ela e a desconhecida se perguntaram o que mais poderiam

ou não encontrar jogado pelas ruas do Centro. Imaginaram de onde teria vindo a sacola e

como ela teria chegado até ali. À certa altura, a mulher lhe pergunta se ela se achava normal,

ao que Rafaela lhe devolveu: “Você me acha normal?”

“É que não se vê muita gente fazendo isso por aqui. É um pouco estranho. Eu venho

de cidade pequena e aqui na cidade grande ninguém ajuda ninguém. A gente acaba ficando

muito sozinha.”

Alguns minutos depois, quando a desconhecida já havia partido, Rafa percebeu um

senhor que a observava à distância. “Menina, não se deve costurar vestindo a roupa no próprio

corpo”, ele disse. Ele vestia uma boina na cabeça e tinha um broche do Super-Homem

abotoado junto ao peito.

“Minha avó dizia a mesma coisa”, respondeu Rafa. “Eu nunca soube o porquê.”

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Ele se aproximou. Explicou que, antigamente, quando uma pessoa morria, os vivos

costuravam-na dentro de um lençol antes de jogá-la ao mar. “O mar é um grande cemitério”,

concluiu.

Foto: Carolina Calcavecchia

Rafa mostrou-lhe um maço de cigarros vazio. “O senhor poderia costurar nas minhas costas?”

Ela lhe passou a linha e a agulha e ele começou a coser com uma velocidade e destreza

impressionantes. Pediu-lhe então a tesoura para cortar a linha e ficou admirado com o objeto,

que era grande, prateado e reluzia à luz do dia.

“Mas que tesoura. Foi herança?” Rafa respondeu-lhe que sim. “Sua pele na perna é

morena, não é mesmo? Pensei que era meia-calça”, ele prosseguiu, ao que ela não respondeu

nada. Diante do silêncio, ele emendou: “Tenho uma condição: quero que você me explique o

que é que está fazendo aqui.”

“Costurando.”

“Eu também tenho manias estranhas”, ele disse. “Fortes, radicais.”

“Manias que dariam medo a alguém?”

“Não, não são perigosas”, e passou-lhe a tesoura de volta. “Eu amo costurar, por

exemplo.” Passou os próximos minutos dando-lhe uma aula de costura e acabou cosendo-lhe

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também um pote de Danoninho vazio, enquanto lhe mostrava mil jeitos diferentes de passar a

linha pelo tecido. Ao final, o senhor deu-lhe seu cartão de visitas, onde se lia que era

advogado trabalhista. “Ninguém conversa muito comigo. Se um dia você quiser conversar

mais, me procura.”

Aventuras estranhas potencializam a rua como lugar de manifestação do dissenso e de

encontro com o outro. São modos de perceber o espaço público não apenas como espaço de

circulação, como o quer a coreopolícia, mas também como espaço de produção de saberes e

de imaginação políticos a partir do encontro entre diferenças e diferentes. Somos artistas

aventureiros, cartógrafos, xamãs, inventores e contadores de histórias. Somos gente

esperançosa, que arrisca uma rua utópica e avança feito pororoca.

Foto: Carolina Calcavecchia

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2 PRINCÍPIO COMPOSITIVO: ESCUTA, REGISTRO, RECORTE E COLAGEM

“Contra uma teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência”

Eduardo Viveiros de Castro (2011, online)

Foto: Carolina Calcavecchia

Quando Chris Igreja tinha um sal de frutas preso à ponta de seu anzol, uma mulher se

aproximou e perguntou: “Pode pegar mesmo?”

“Claro”, ela pegou e Chris logo emendou: “Você toma muito sal de frutas?”

“É bom pra dor de estômago, você sabe, eu tomo muito remédio pra dor.”

“Você sente muita dor?”

“Hoje graças a Deus estou melhor, mas já senti muita. Tive paralisia infantil. Tomei

muito remédio, fiz várias cirurgias.” Ela seguiu contando que cresceu no Espírito Santo, mas

que morou a maior parte de sua vida em Minas Gerais. “Tem muitos anos que eu saí de lá.

Hoje se eu voltar não acho mais minha cidade.”

“Por que?”

45

“Eles construíram uma hidrelétrica. Tiraram todo mundo de lá, alagou tudo. Levaram

a cidade lá pra cima”, disse, apontando em direção ao céu com os braços. “Não sobrou

nenhuma rua.”

Naquele momento, em meados de junho, nem podíamos imaginar que, meses depois,

parte desse mesmo diálogo entraria numa das cenas da peça. Como mencionamos no último

capítulo, as aventuras estranhas dividiam-se em duas etapas. Num primeiro momento, os

artistas saíam em estado aventureiro pelas ruas, dentro de uma compreensão teórica do

conceito que partia das discussões que destrinchamos no capítulo anterior e que se desdobrou

também numa série de práticas psicofísicas que visavam experimentar no corpo esse estado de

aventura. Depois, então, deveriam elaborar uma proposição aventureira e estranha para viver

com a cidade. Foi motivada pelo encontro com Gabriel e seu amigo à beira mar que Chris

Igreja decidiu pescar pessoas pela rua. Assim, em vez de bolar a portas fechadas sua proposta

de ação, ela saiu em aventura e descobriu no próprio encontro com praça, pife, peixe e

pescador questões que lhe pareceram latentes no espaço público. O estado aventureiro era

ferramenta para fazer saltar à vista as imbricações entre diversas partilhas do sensível urbano.

A aposta era buscar um fazer artístico que prezasse menos por certa ideia de

originalidade e mais pelo rearranjo do que já está posto, numa tentativa de não impor nossas

impressões e desejos primeiros sobre a cidade, sem que eles passassem antes por um encontro

corpo a corpo com suas esquinas, imagens e memórias. Esse sistema de criação acabou se

tornando um método, que residia basicamente num trabalho de escuta, registro, recorte e

colagem. O processo nos permitia deslocar de seus lugares originais casos e coisas que já

estavam em circulação pela cidade, construindo pontes de sentido inesperadas entre eles. O

princípio acabaria se estendendo, depois das aventuras, ao próprio processo de construção do

texto da peça, e também a todo o trabalho de levantamento das cenas do espetáculo.

Retomando à cartografia que discutimos no primeiro capítulo, Suely Rolnik (2016)

compreende que seu exercício esteja intimamente relacionado ao movimento da antropofagia:

o cartógrafo devora linguagens que lhe pareçam favoráveis à composição de cartografias

outras, que se fazem necessárias ao nosso tempo e espaço. É o que Rolnik chama de

transvaloração: a criação de novos valores por meio de valores que já existem6. O cartógrafo

é, assim, aquele que dá língua a afetos que pedem passagem, e aqui a autora compreende

linguagem não apenas como veículo, mas como ferramenta de criação de mundos. A prática

6 Transvaloração é também um tema nietzscheano, que tenta inverter a hierarquia de valores estabelecida pela

filosofia de Platão e perpetuada pelo cristianismo. Para Nietsche, é preciso destruir velhos valores para criar

novos, o que só aconteceria por meio dessa inversão.

46

da cartografia, portanto, é um “espaço de emergência de intensidades sem nome; espaço de

incubação de novas sensibilidades e de novas línguas ao longo do tempo (...), a escolha de

novos mundos, sociedades novas” (2016, 69).

Nenhuma das aventuras foi, portanto, criada a portas fechadas em discussões internas

do grupo. Foi o sufocamento diante de um ponto de ônibus lotado na hora do rush, no meio da

Presidente Vargas, que levou Nina Harper a subir pelas árvores em busca de ar. Uma semana

depois, ela ofereceria uma masterclass de subidas em árvores no canteiro central da avenida.

Do mesmo modo, o encontro de Anna Clara Carvalho com o Homem Aranha no VLT

desdobrou-se na figura de uma super-heroína: semanas depois, ela vestiu maiô vermelho,

patins e uma capa turquesa onde se lia “POSSO AJUDAR” e passou uma tarde inteira se

disponibilizando para ajudar pessoas na praça Mauá. Ouviu desabafos, acendeu um cigarro e

ajudou uma adolescente a ensaiar um desfile de moda.

Foto: Carolina Calcavecchia

47

Foto: Carolina Calcavecchia

48

Ao mesmo tempo em que aventuras estranhas eram eventos com fim em si mesmos, eram

também uma forma de criar, a partir de seus registros, um arcabouço de memórias, imagens e

ações que poderiam futuramente ser rearranjadas e justapostas dentro de um arco ficcional.

Ao todo, esse período de levantamento de materiais para a construção de uma dramaturgia foi

do início do processo, em meados de março, até o início de julho de 2018, o que compreende

tanto as rodas de conversa como as aventuras estranhas. O último desses quase quatro meses,

em especial, foi dedicado a um trabalho intensivo que aliava a experimentação de pequenos

programas performativos7 a práticas de contação de histórias8. Os programas eram enunciados

curtos construídos a partir do arcabouço de material que tínhamos até então, como ações ou

imagens que haviam surgido ao longo do processo, e sempre miravam encontros com

estranhas e estranhos. Pedir ajuda a alguém para lembrar a letra de uma canção, tropeçar

numa pessoa e contar-lhe um segredo, conseguir água de beber com um ou uma

desconhecida, mostrar a alguém um detalhe escondido na paisagem, tropeçar e ser ajudada a

se levantar, fazer uma dancinha enquanto conversa com alguém, entre vários outros.

Eram aventuras curtas, de até sessenta minutos, que ganhavam norte a partir dos

enunciados. A única regra era que o enunciado não podia ser revelado enquanto dispositivo de

trabalho, de modo que as artistas se viam obrigadas a desenvolver estratégias éticas e estéticas

para sustentar e justificar uma relação estranha com desconhecidos. Quando, depois,

voltávamos a nos encontrar para partilhar no coletivo as experiências, os relatos sempre se

inscreviam dentro de uma prática de contação. Às vezes, eu pedia que as atrizes relatassem a

experiência acrescentando uma mentira à narrativa, que nunca chegávamos a saber qual era.

Noutras, deviam contar a aventura primeiro a um colega, para que então ele ou ela contasse a

história a todo o grupo, tomando a história em primeira pessoa e adicionando ao relato um

detalhe inventado. No meu jogo preferido, A conta sua aventura de frente para B e pode,

sempre que quiser, estalar os dedos e pedir ajuda a C, que está sentado às suas costas. Ao

receber a palavra, C acrescenta um pedaço de história que A em seguida repete, devendo

portanto incorporá-lo à sua narrativa.

7 Compreendo aqui programa performativo à luz do proposto por Eleonora Fabião: “um conjunto de ações

previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo

público ou por ambos sem ensaio prévio. (...) É este programa/enunciado que possibilita, norteia e move a

experimentação. Proponho que quanto mais claro e conciso for o enunciado — sem adjetivos e com verbos no

infinitivo — mais fluida será a experimentação. Enunciados rocambolescos turvam e restringem, enquanto

enunciados claros e sucintos garantem precisão e flexibilidade” (FABIÃO, 2013, 4). 8 A maior parte das práticas de contação vieram de uma oficina de dez encontros ministrada pela atriz e diretora

Meran Vargens, professora e artista-pesquisadora da Universidade Federal da Bahia. A oficina, que aconteceu

como parte de sua pesquisa de pós-doutoramento, foi realizada entre os meses maio e junho de 2016 na

Faculdade de Dança Angel Vianna.

49

Os jogos eram importantes porque estimulavam a fabulação de nossas experiências

com a rua. Afinal, nossa proposta nunca foi falar pelas pessoas com quem encontrávamos,

mas abrir espaço para que a fala do outro reverberasse em nós perguntas inesperadas. Daí a

mentira, a invenção e a traição das palavras. Fabular o real era uma forma de atualizar a

história no corpo, a partir da memória e da imaginação de quem conta.

2.1 Questões de escritura: apropriação e remix na construção do texto da peça

Numa sexta-feira de junho, passei um mesmo enunciado a todo grupo: pedir ajuda a um

estranho para contar uma história, a história de como tínhamos chegado até ali. “O que você

quer dizer com aqui?”, Anna Clara me perguntou. “O que você quiser entender como aqui”,

respondi. Depois da rua, os relatos foram partilhados dentro do jogo das três posições, que

mencionei acima. O ator Gunnar Borges contou sua história para Chris Igreja, turbinado por

Nina Harper, sentada logo atrás dele:

Gunnar Borges: A terra aqui é muito boa. Você joga uma coisa nela, dá. Eu fico

imaginando como era aqui antes deles chegarem e tomarem tudo. Imagina? Eu não

tava lá, mas eu gosto de me imaginar lá. Quando era tudo terra, tudo mato. Eu tinha

um pé de maracujá. A minha vizinha me deu umas sementes, eu plantei, ela não

sabia do que era e nasceram meus maracujás. Você já viu um maracujá? Ele é lindo,

amarelão, todo enrugadinho. Parece... (estala os dedos)

Nina Harper: Uma compota.

G.B.: Parece uma compota, as sementes ficam dentro, como se fosse um potinho

amarelo. Por dentro ele tem uns tentáculos brancos. Muito fofo. Eu lembro que um

dia apareceu uma lagarta. E eu fiquei na dúvida se eu matava a lagarta ou se eu

deixava lá, colocando em risco o maracujá. (estala os dedos)

N.H.: Na verdade o que eu queria mesmo era que ela virasse uma borboleta.

G.B.: Na verdade o que eu queria mesmo era que ela virasse uma borboleta. Então

eu deixei. Um dia eu cheguei e ele não tava aqui. Quer dizer, não é bem assim. Ele

tava. A lagarta tava. Mas tinha uma coisa em cima deles. Tinha essa igreja, que eles

simplesmente vieram e colocaram, como se a terra de baixo também não fosse

minha, você entende? Sem ter me avisado. Quer dizer, você tem a sua terra, você

acha que ela é sua, vem alguém e tira a terra de você. Pra construir... (estala os

dedos)

N.H.: Coisa, essas coisas enormes.

G.B.: Pra construir coisa, essas coisas enormes. Você cobre a terra com coisa. Com

coisa. A tragédia começou quando eles começaram a cobrir terra com coisa. Ou

quando um imbecil abriu a terra pra tirar coisa dela. Quando um imbecil veio e

colocou essa porra em cima do meu pé de maracujá, que eu regava todo dia de

manhã. Esse imbecil agora toma maracujá em pó, diz que é igualzinho. Esse

imbecil. Mas eu sei que o meu maracujá não cedeu. Ele tá aí ainda. Aqui embaixo. E

eu rego, eu continuo regando. Porque eu sei que um dia ele vai furar esse concreto

todo e crescer enorme, tomar a igreja pelas janelas, árvore e uns galhos enormes

vazando pelas portas... (estala os dedos)

N.H.: As pessoas loucas, cheio de macaco pulando, jogando laptop na cara das

delas.

G.B.: As pessoas loucas, cheio de macaco pulando, jogando laptop na cara delas.

Você aceita um biscoito? Começou quando eles pegaram a terra, que era de todo

50

mundo, e disseram que esse pedaço era deles, esse outro era de não sei quem.

Cercadinho pra tudo que é lado. Mas a terra não é de ninguém, a terra é a deusa.9

Misturada a outros materiais, a história acabou se transformando numa das cenas da peça.

Para que possamos então discutir a operação do princípio compositivo de construção do texto,

vale recapitular alguns materiais que, junto à história contada por Gunnar, serviram à escritura

da mesma cena.

Alguns dias antes, Anna Clara havia recebido o seguinte enunciado-programa: cumprimentar

um estranho e insistir que vocês se conhecem. Perto da esquina da avenida Primeiro de Março

com a Presidente Vargas, ela se aproximou de uma mulher de mais ou menos trinta anos e

disparou um “Oi, quanto tempo!”

“Ai, que isso!”, a mulher se virou num salto.

“Que isso o quê? Eu cortei o cabelo?”

“Não, você me assustou!”

“A gente não se conhece? A gente não estudou na mesma escola?”

Chris e sua pescaria. Um homem se aproxima: “O que você está fazendo?”

“O que você acha que eu estou fazendo?”

“Pescando? Eu pescava muito quando era mais novo.”

“Essa é a minha primeira vez. Você tem alguma dica?”

“Meu avô me ensinou que na pesca a gente precisa ficar olhando pra vara e fazer

silêncio. Os peixes escutam tudo.”

Eu regando o chão da praça Mauá. Um senhor passa por mim e pergunta: “O que você anda

regando aí?”

“O chão da praça.”

“Que beleza. Nesta terra em se plantando tudo dá. Sabe quem disse isso?”

“Quem?”

“Pero Vaz de Caminha, 1500. Essa terra é uma benção, meu filho. Uma benção.”

Uns cem litros mais tarde, à beira da baía de Guanabara, outro homem se aproxima:

“O que cê fumou, cara? Eu queria só metade disso aí.”

“Fumei nada não, tô só regando o chão.”

9 Transcrição de áudio de ensaio.

51

“Mas regar é pra regar planta, pra planta crescer.”

“O que você acha que pode crescer aqui?”

“Só dá pra nascer pirâmide.” A água acabou e eu preciso encher o regador. Digo que

volto logo. O nome dele é Gilmar e ele me diz que, enquanto eu estive fora enchendo o

regador, choveu: “Deve ter algum sentido nisso aí. Você regou o chão, foi embora, o céu me

regou. Você voltou e parou. Mas quer saber? Você pode regar o quanto quiser, pode vir aqui

regar todo dia que não vai nascer nada. Não tem como nascer, não tem terra. Pode até ter, mas

muito lá embaixo. Eles botaram esse concreto todo aqui foi justamente pra não nascer nada.”

Foto: Marcela Antunes

Março de 2018. Visito com minha turma de mestrado a Vila Autódromo, comunidade

brutalmente removida pela gestão de Eduardo Paes à frente da prefeitura do Rio na esteira do

preparo da cidade para os megaeventos esportivos de 2014 e 201610. Como forma de seguir

pressionando a administração municipal pelo cumprimento dos acordos e de manter viva a

10 Cf. MÜNCH, M. Direitos humanos e a colonização do urbano: Vila Autódromo na disputa. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2017.

52

memória da luta, oferecendo uma versão alternativa à narrativa oficial, os moradores

remanescentes inauguraram o Museu das Remoções.

Na visita, parte da disciplina “Performance no museu” ministrada pela professora

Gabriela Lírio, conversamos por mais de três horas com dona Penha, Luis e Nathalia Macena,

mãe, pai e filha que são parte da liderança do movimento. O processo de remoção afetou

dramaticamente os laços entre moradores e famílias, destruindo suas casas, áreas de lazer

comunitárias e centenas de árvores frutíferas. Hoje, o que era a vila cedeu lugar ao

estacionamento de um mega-hotel de luxo. “Cada árvore que eles destruíam a gente sentia na

alma, era horrível. Você olhava praquele monte de pó morto e pensava que até ontem era uma

árvore, dava fruta”, desabafou Luis, enquanto projetava fotos das antigas árvores na parede.

“A vida era muito boa.” Ele se deteve então por um momento. “Ainda é, né.”

Mais adiante, ao exibir um vídeo da ação truculenta da guarda municipal contra um

protesto dos moradores, dona Penha completou: “Chega alguém e diz que a terra que era sua

não é mais, é dele. E se você diz que não, te batem. Você, sua família, pegam sua filha, batem

no seu pai, entram na sua casa. Roubam tudo, levam tudo.”

Anna Clara chega para o ensaio numa tarde de julho. Estamos os dois adiantados, enquanto

esperamos os demais, e ela me conta que não anda se sentido muito bem. Não de saúde, de

alma mesmo. “Sabe qual é a parte boa de chegar no fundo do poço?”, ela me pergunta. “Tem

uma cama elástica lá embaixo.”

Em “O autor como apropriador”, o romancista-pesquisador Leonardo Villa-Forte analisa a

escrita não criativa do poeta estadunidense Kenneth Goldsmith, que lançou “Traffic”, “The

weather” e “Sports”, volumes que compõem o que ele batizou de trilogia americana. Em

“Traffic”, por exemplo, Goldsmith transpõe para as páginas do livro os boletins de trânsito

das vias mais movimentadas de Nova York, transmitidos por uma estação de rádio ao longo

de um dia inteiro, véspera de feriado na cidade. Em “Weather”, o autor segue um princípio

similar, mas tem como fonte boletins da previsão do tempo do noticiário local. “Sports”, por

sua vez, é uma transcrição literária e literal da narração de uma partida de beisebol do início

ao fim.

Ainda que radicalmente diferente de Amazona, creio que seja válido ampliar o escopo

da discussão do trabalho de Goldsmith para pensar os processos de apropriação na escrita do

texto da peça. Villa-Forte aponta que a trilogia de Goldsmith repete na literatura o mesmo que

53

Duchamp inaugurou nas artes plásticas, ao trazer para dentro da galeria objetos

manufaturados ordinários. Cada um a seu modo, tanto Duchamp como Goldsmith centram sua

prática nas ações de recepção e reaproveitamento de materiais já existentes. “O autor é um

receptor, tão receptor que sua obra é constituída daquilo que ele consome, não do que ele

‘cria’ (...). A pergunta não é ‘o que criar?’, mas ‘o que fazer com o que chega até mim?’”

(2016, 69).

Aventuras estranhas, nesse contexto, representam a criação de um espaço intencional

de pergunta e escuta da rua, ativada por artistas cuja ação era balizada por uma ética

cartográfico-aventureira e estranhopolítica. São um modo de fazer com que coisas cheguem

até mim, se quisermos retomar a pergunta de Villa-Forte. O registro, então, torna-se

imperativo. Tatiana Capaverde, uma das organizadoras do livro “Escrita não criativa e

autoria”, atenta para “a importância da memória no processo da reescrita” (2018, 85). No caso

de Amazona, sem o registro gravado ou escrito não haveria meios de realizar, meses depois, o

trabalho de seleção, recorte e colagem que engendrou o texto da peça. Como condutor do

processo de experimentação, portanto, uma de minhas preocupações centrais era garantir o

registro de nossas aventuras com a cidade, estimulando desde o início nos artistas envolvidos

a manutenção de um diário de trabalho pessoal, ao qual poderíamos recorrer mais tarde

quando precisássemos. O que construímos, então, foi uma dramaturgia a posteriori, numa

composição literária que partia dos diversos materiais coletados ao longo do período das rodas

e das aventuras estranhas.

Os fragmentos elencados acima, por exemplo, deram origem à cena do encontro entre

Moema, uma das guerrilheiras, e Gilmar, um homem que molha o chão com seu regador

verde. Na temporada de estreia, a cena acontecia aos pés da Candelária, essa igreja-

monumento que é ao mesmo tempo marco arquitetônico da cidade e da violência do Estado

brasileiro11. Enquanto Moema se aproxima, Gilmar molha os degraus, o parapeito e as

reentrâncias da construção de pedra. Sem se fazer notar, ou ao menos sem que ele a perceba,

ela se aproxima e

MOEMA: A gente se conhece?

11 Na noite do dia 23 de julho de 1993, dois carros com placas cobertas abriram fogo contra dezenas de pessoas

em situação de rua, que dormiam nos arredores da igreja, a maioria negros adolescentes menores de idade.

Foram mortos Paulo Roberto de Oliveira, de 11 anos; Anderson Pereira, de 13 anos; Marcelo Cândido de Jesus,

de 14 anos; Valdevino Miguel de Almeida, de 14 anos; Gambazinho, de 17 anos; Leandro da Conceição, de 17

anos; Paulo José da Silva, de 18 anos; e Marcos Antônio da Silva, de 19 anos. A investigação levou ao

indiciamento de sete homens, entre policiais e ex-policiais militares. O episódio, que à época causou comoção

nacional, ficou conhecido como chacina da Candelária. Desde então, no largo em frente à igreja, é possível ver o

desenho de oito corpos de crianças sobre a calçada de pedras portuguesas.

54

GILMAR: AI QUE ISSO

MOEMA: Que isso o que?

GILMAR: A gente não se conhece não, que isso.

MOEMA: Por que você tá regando?

GILMAR: Por que você acha que eu tô regando?

MOEMA: Se eu soubesse eu não perguntava.

Rega.

MOEMA: Você pode regar o quanto quiser que não vai nascer nada.

GILMAR: A terra aqui é muito boa. Você joga uma coisa nela, dá.

MOEMA: Não tem como nascer, não tem terra. Pode até ter, mas muito lá embaixo.

Eles botaram esse concreto todo aqui foi justamente pra não nascer nada.

GILMAR: Eu fico imaginando como era isso aqui antes deles chegarem. Eu não

tava lá, mas eu gosto de me imaginar lá. Quando era tudo terra, tudo mato. As

pessoas tão muito malucas. Esquisitas. Apáticas.

MOEMA: Gente sem terra.

GILMAR: Não come uma banana, um mamão. Toma água de coco de caixinha.

MOEMA: Isso é pra nascer chão? Vai nascer o que? Pirâmide?

GILMAR: Eu tenho um pé de maracujá. A minha vizinha me deu umas sementes, a

gente não sabia do que era e pum, deu maracujá. Você já viu maracujá? Ele é todo

amarelão, todo enrugadinho. Parece uma compota, as sementes ficam do lado de

dentro e tem uns tentáculos brancos.

MOEMA: Saudade. Hoje em dia só pozinho.

GILMAR: Teve um dia que apareceu uma lagarta. Aí eu fiquei na dúvida se eu

matava a lagarta ou deixava ela lá, o maracujá em perigo. O que eu queria mesmo

era que ela virasse uma borboleta.

MOEMA: Que foi?

GILMAR: Um dia ele não tava mais aqui.

MOEMA: Quem?

GILMAR: O maracujá, a lagarta. Quer dizer, eles tavam. Tão. Mas tinha uma coisa

em cima deles. Tem. Essa igreja. Eles simplesmente vieram e colocaram como se eu

não cuidasse da planta. Quer dizer, você tem a sua terra, você acha que ela é sua,

vem alguém e tira a terra de você. Pra construir essas coisas enormes. A tragédia

começou quando eles começaram a cobrir terra com coisa. Ou quando abriram a

terra pra arrancar coisa dela. Quando um imbecil veio e colocou essa coisa em cima

do pé de maracujá que eu regava todo dia. Esse imbecil agora toma maracujá em pó

e diz que é igualzinho. Que imbecil. Você não entende o que eu tô falando.

MOEMA: Você não me conhece.

GILMAR: Nem você.

MOEMA: Isso aqui é o que sobrou lá de casa. Faz menos de uma semana que eu fui

embora, hoje se eu voltar lá não acho nem minha rua. Construíram um

estacionamento. Grande assim. Tiraram todo mundo de lá, agora só concreto, sobrou

ninguém.

GILMAR: Ele tá aí.

MOEMA: Quem?

GILMAR: O maracujá. A lagarta eu não sei se já virou borboleta ou o que. Vai ter

um dia que ele vai rasgar esse concreto todo e crescer enorme, tomar a igreja pelas

janelas, árvore, uns galhos enormes vazando pelas portas, as pessoas loucas, cheio

de macaco pulando, jogando laptop na cara das pessoas. Você aceita um biscoito?

MOEMA: Eu sinto muito pelo seu pé de maracujá. Mesmo. A terra não é de

ninguém, a terra é a deusa.

GILMAR: Ele deve andar um pouco espremido, é verdade, mas ele tá encontrando

um caminho bom, juntando força pra sair. Bonito isso. A terra é a deusa.

MOEMA: Você tá esperando ele sair?

GILMAR: Qualquer hora dessas ele pum, sai.

MOEMA: Você não acha realmente que

GILMAR: Tem certeza que você não quer um biscoito?

MOEMA: Qual é o seu nome?

GILMAR: Gilmar. Você me desculpa, eu ainda tenho que regar todo aquele lado de

lá. (Indo embora.) Eu rego tudo porque confesso que não sei pra onde ele foi

crescendo então...

55

MOEMA (indo atrás dele): Gilmar.

GILMAR (se desvencilha): A vida era muito boa. Ainda é, né.

MOEMA: Gilmar, por favor.

GILMAR (se desvencilha outra vez): Eu não te conheço.

MOEMA: Você não pode mesmo acreditar que esse maracujá ainda tá aí.

GILMAR: Você nunca cuidou de planta não, menina? Nunca te aconteceu da sua

planta ser dada como morta e você segue regando, regando, regando aquele caule

podre até que na primavera seguinte ela vem e pum, brota com tudo outra vez?

MOEMA: Isso é uma igreja inteira, Gilmar.

GILMAR: Me deixa em paz.

MOEMA: Quando explodiram a minha casa também não sobrou nada. Cada árvore

que eles explodiam a gente sentia na alma, era horrível, você olhava praquele monte

de pó morto e pensava que até ontem era uma árvore, dava fruta. Gilmar. Você sabe

que ele não tá mais aí, não sabe? Você sabe que ele foi soterrado, não sabe?

GILMAR: Imbecil! No fundo, no fundo, a gente tá aqui só por causa do dinheiro.

Chega alguém e diz que a terra que era sua não é mais, é dele. E se você diz que não,

te batem – você, sua família, comem sua filha, batem no seu pai, entram na sua casa,

roubam tudo, levam tudo. Cadê as flores dessa cidade?

MOEMA: Sabe qual é a parte boa de chegar no fundo do poço? Tem uma cama

elástica lá embaixo. O primeiro passo é reconhecer a injustiça, o segundo é agir.

GILMAR: Como?

MOEMA: Você dá o primeiro passo sozinho. E encontra aliada pro segundo.

GILMAR: Onde?

MOEMA: Eu tô aqui. Dá o primeiro passo, fala comigo.

GILMAR: Você não me disse seu nome.

MOEMA: Moema.

GILMAR: Eu acho que foi.

MOEMA: O que?

GILMAR: O primeiro passo, eu quero me vingar.

MOEMA: Você quer plantar?

GILMAR: Plantar?

MOEMA: Plantar. Imagina. Mil, dois mil, três mil pés de maracujá. Uma ebulição

de maracujá. Um zilhão de pés maracujá crescendo selvagem pela cidade, tomando

tudo que é prédio, tudo que é poste, tudo que é placa. Macaco jogando laptop na

cara das pessoas.

MOEMA: Então vamos. A gente tem que ir.

GILMAR: Pra onde?

MOEMA: Você quer ou não quer se vingar?

Moema vê Tuãni, Iaci e Sebastiana se aproximando12.

12 Texto do espetáculo “Amazona”, não publicado. Cf. Anexo.

56

Foto: Carolina Calcavecchi

Em Amazona, nosso desejo de construir o texto da peça partindo da escuta de estranhos vinha

de um pressuposto que imaginava que apenas se aventurando na diferença poderíamos

encontrar respostas propositivas para a cidade. Se relembramos o perspectivismo ou a política

da polis, todos temos uma perspectiva diferente sobre o real, e por isso mesmo um único

modo de ver não pode ser capaz de, sozinho, dar conta da totalidade das coisas. A escrita com

outras vozes, portanto, era uma tentativa de investigar uma epistemologia para a dramaturgia,

entendendo a cidade como campo de uma pesquisa cartográfica (PASSOS, KASTRUP,

ESCÓCIA, 2009). Em seu artigo sobre apropriação e autoria na literatura, Capaverde aponta

que “uma vez superada a autoria, (...) o campo da linguagem será o espaço da manifestação de

um sujeito que não será mais aquele ser completo e uníssono, mas o ser incompleto e

múltiplo, composto de outros e de diferentes vozes” (2018, 79).

A escrita do texto, porém, não partiu apenas de falas de pessoas que encontramos na

rua, mas também de obras científicas, literárias e cinematográficas que serviram de referência

ao processo. Um exemplo é “A queda do Céu”, obra do xamã yanomami Davi Kopenawa em

parceria com o etnólogo Bruce Albert (2015). Depois da virada que o perspectivismo

ameríndio havia causado no processo, Chris Igreja mencionou o livro em uma de nossas

conversas de fim de ensaio. Numa mistura refinada entre testemunho e manifesto, o livro é

57

uma denúncia ao mesmo tempo profética e sensível do avanço predatório do homem branco

sobre as terras indígenas, especialmente com a expansão da fronteira agrícola brasileira rumo

ao interior do país a partir dos anos 60. A primeira parte do livro, porém, se resume a uma

densa explanação sobre a cosmologia yanomami, partindo de relatos de experiências

xamânicas de Kopenawa desde sua infância. O luto pela floresta é narrado de forma afiada

pelo autor.

Acho que o filho de Omama13, hoje, está morto. Sua imagem14, porém, ainda existe,

muito longe daqui, onde os rios desaguam, do lado do nascer do sol, ou talvez no

céu. Eu a vi no tempo do sonho, junto com a de nossa floresta, aos prantos. Esta,

doente e transformada em fantasma pelas fumaças de epidemia, pedia aos xapiri

para curá-la e acabar com o sofrimento causado pelo furor dos brancos. Implorava-

lhes que limpassem as árvores e tornassem suas folhas brilhantes de novo; que

fizessem crescer suas flores e lhe devolvessem a fertilidade. Dizia a eles: “Vocês são

meus, devem vingar-me!” (2015, 86, grifo nosso)

Há sempre uma agência no olhar yanomami sobre as coisas da floresta. À semelhança do que

diz Viveiros de Castro sobre o perspectivismo, elas têm agência, numa epistemologia que

confere aos entes da natureza uma porção de vida sem correspondência em nossa

compreensão ocidental racionalista. As montanhas, por exemplo, são as casas das protetoras

da floresta. Elas não estão lá “à toa” (2015, 91), diz Kopenawa. Em uma das passagens, ele

descreve seus sonhos xamânicos de criança, nos quais sobrevoava a floresta. “Meus braços se

transformavam em asas, como as de uma grande arara-vermelha. Eu podia então contemplar o

topo das árvores abaixo de mim, como de um avião” (2015, 90). Num outro trecho, descreve

um sonho recorrente em que era perseguido por uma onça gigante.

Às vezes, eu tentava fugir dela trepando numa árvore. Mas ela vinha atrás de mim,

subindo pelo tronco com suas garras afiadas. Amedrontado, eu me escondia nos

galhos mais altos. Não tinha mais para onde escapar. A única coisa que eu podia

fazer para me salvar era me jogar do alto da árvore na qual eu tinha me refugiado.

Desesperado, eu agitava os braços no vazio, como asas, e, de repente, conseguia

voar! Planava em círculos, bem alto acima da floresta, como um urubu. No final, me

via de pé, numa outra floresta, noutra margem, e a onça temida não podia mais me

alcançar (2015, 91).

13 Omama é o demiurgo da cosmologia yanomami. “Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita

suas folhas e os rios cuja água bebemos. Foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos” (KOPENAWA; ALBERT,

2015, 81). 14 “Todo ente possui uma ‘imagem’ (utupë a, pl. utupa pë) do tempo das origens, que os xamãs podem ‘chamar’,

‘fazer descer’ e ‘fazer dançar’ enquanto ‘espírito auxiliar’ (xapiri a). Esses seres-imagens (‘espíritos’)

primordiais são descritos como humanoides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais

extremamente luminosos e coloridos. Entre os Yanomami orientais, o nome desses espíritos (pl. xapiri pë)

designa também os xamãs (xapiri thë pë). Praticar o xamanismo é xapirimuu, ‘agir em espírito’, tornar-se xamã é

xapiripruu, ‘tornar-se espírito’. O transe xamânico, consequentemente, põe em cena uma identificação do xamã

com os ‘espíritos auxiliares’ por ele convocados” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, 610).

58

Esses dois trechos, combinados a outros materiais, deram origem a outra cena da peça. Na

salinha, depois que somos recebidos por Sebastiana, assistimos à chegada de Moema e Tuãni

para logo descobrir que outras duas mulheres, Iaci e sua mãe Joana, não apareceram para o

encontro. A busca das duas é o mote de nossa saída para a rua. Quando encontramos Iaci,

descobrimos que Joana deixou o grupo depois de uma perseguição com a polícia:

SEBASTIANA: O que que aconteceu, Iaci?

IACI: A polícia veio atrás da gente

TUÃNI: A polícia?

IACI: Não foram as câmeras, eu não dei esse mole, alguém contou alguma coisa.

Alguém tem que ter falado alguma coisa. Eles apareceram de repente, as luzes, a

sirene. A gente saiu correndo e eles caçando a gente de bicicleta, eram uns doze pelo

menos. A minha mãe sem fôlego ficando pra trás, eu não sabia o que fazer. A gente

subiu numa árvore. Subiu até o topo e eu me dei conta de que a gente não tinha mais

pra onde fugir. A minha mãe gritando, eles chegando, aquele mar de bicicleta, os

apitos, lanterna. A única coisa que a gente podia fazer era se jogar lá do alto. Daí eu

comecei a agitar os braços, desesperada, pedindo ajuda (se interrompe)

TUÃNI: Iaci?

IACI: E os meus braços se transformaram em asas, que nem uma arara vermelha

gigante. A minha mãe se agarrou em mim e eu voei, saí voando. A gente via o topo

dos prédios, como se tivesse num avião. Planava em círculo lá no alto, e eles

olhando pra gente lá de baixo, agora eles desesperados sem conseguir alcançar.

SEBASTIANA: E a Joana?

IACI: Não aguentou, esse fogo e depois isso. Foi demais pra ela, é demais.15

Foto: Carolina Calcavecchia

15 Texto do texto espetáculo “Amazona”, não publicado. Cf. Anexo.

59

Para construir a cena, os trechos de Kopenawa foram combinados a notas de meu diário de

trabalho. Em uma tarde de maio de 2018, Chris Igreja, Gunnar Borges e eu experimentávamos

composições com a arquitetura da Candelária. O jogo se desenrolou de forma ousada, quase

acrobática, e os dois se dependuravam pelas portas de ferro da igreja. Quando percebi que

estavam exaustos, encerrei o trabalho e, mal atravessamos a rua, vimos doze agentes do

Centro Presente chegando ao largo da igreja num comboio de bicicletas. Eles davam voltas

pela praça como que procurando alguma coisa. Imediatamente, lembrei dos policiais que me

detiveram na praça Mauá. “Se liga”, um deles me disse. “Você tá no centro do Rio de

Janeiro.” Depois de algum tempo rondando, as bicicletas se separaram e partiram. Nunca

saberemos se estavam ou não procurando por nós.

Foto: Ricardo Cabral

60

Em “A morte do autor”, Barthes (2004) aponta a raiz moderna da figura do Autor, que

responderia ao racionalismo e ao individualismo da florescente ideologia capitalista pós-Idade

Média. No que ele considera um paradigma positivista sobre a escrita, a crítica explica a obra

pela pessoa humana de quem a escreve, como se o autor “fosse sempre afinal a voz de uma só

e mesma pessoa, (...) a revelar a sua ‘confidência’” (2004, 58). Escritores como Mallarmé,

Valéry e Proust, no entanto, segundo Barthes experimentaram modos de escritura que punham

em xeque essa primazia da autoria, em favor de certa performatividade da linguagem, que vai

depois desaguar nas vanguardas do século XX – por exemplo, nas práticas de escrita

surrealistas.

Nesse movimento performativo apontado por Barthes, o ato da escrita perde sua

dimensão de expressão de uma subjetividade única e privilegiada para tornar-se um gesto de

inscrição que já não representa mais alguma coisa. Em vez disso, aparece como “um espaço

de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, da qual nenhuma é

original” (2004, 62). A questão de uma antioriginalidade é central tanto na discussão de Villa-

Forte como na análise de Sayonara Oliveira, que também estuda a obra de Goldsmith. Esta

última enxerga no trabalho do poeta um tipo de autoria que declina certo paradigma criativo,

fazendo uso em vez disso de apropriações e citações diversas. Ela associa Goldsmith a “um

outro conceito de autor, compreendido agora como o agenciador ou arranjador dos discursos,

nunca o seu detentor em primeira mão ou derradeiro criador” (2018, 13).

Villa-Forte, por outro lado, sinaliza que a escolha tanto dos materiais e como da forma

de rearranjá-los caracteriza uma inevitável intervenção autoral, o que o leva a concluir que

seja “impossível não haver brecha criativa mesmo dentro dos processos de escrita não

criativa”. Estão em jogo, ele aponta, decisões complexas no percurso da apropriação, como: o

que incluir, o que deixar de fora e como apresentar a obra ao público. O próprio Goldsmith, a

seu lado, afirma que para ele a grande questão passa a ser “como eu faço o meu caminho

através deste emaranhado de informação – como eu a gerencio, como a analiso, organizo e

distribuo” (apud OLIVEIRA, 2018, 15). Nesse cenário, o valor da autoria passa a ser então

“sua capacidade de articular uma massa caótica de obras, nomes próprios e referências”

(CAPAVERDE, 2018, 93).

Segundo o pesquisador de teorias da mídia Lev Manovich, vivemos hoje no que ele

prefere chamar de uma cultura do remix. Manovich faz questão de diferenciar o remix do

conceito mais geral de citação e apropriação. “Se remixar implica em sistematicamente

rearranjar o texto inteiro, citar refere-se apenas a inserir alguns fragmentos de texto(s)

61

antigo(s) no texto novo” (2007, 4)16. Originalmente do campo da música, a prática do remix

tornou-se possível graças ao desenvolvimento dos multi-track mixers, ferramenta que permitiu

que diferentes elementos de uma mesma música fossem gravados em canais separados e

depois editados e mixados numa mesma faixa. O dispositivo logo abriu espaço para que uma

canção pudesse então ser re-mixada, num processo que rapidamente se espalhou por diversos

campos das artes, entre videomakers, fotógrafos e artistas visuais.

A noção de remix interessa a esta pesquisa justamente porque considera um trabalho

sistemático de recombinação entre textos. É o que acontece, por exemplo, tanto na cena de

Moema e Gilmar como no encontro de Iaci: não são apenas inserções, mas recombinações

fluidas entre materiais já existentes e trechos novos. Manovich diz que prefere falar em remix

porque a noção de apropriação exprime a cópia do original como um todo, e não esse

retrabalho sistemático sobre as fontes. Para ele, trata-se de um processo diferente do caso do

urinol de Duchamp, em que vemos o “resultado da transferência de um signo cultural de uma

esfera a outra, em vez de alguma modificação do signo” (2007, 3)17. Quando falamos, então,

de um princípio compositivo de escuta, registro, recorte e colagem no processo de escrita de

Amazona, é preciso compreender que o ato de colar quase sempre implica certa costura do

material antigo a trechos novos.

Em muitos momentos antes da estreia, porém, hesitei em assinar a dramaturgia da

peça. Eu era mesmo o autor? O que isso queria dizer? Importa ser autor? Manovich alerta que

“enquanto no reino da música comercial a remixagem é oficialmente aceita, em outras áreas

culturais ela é vista como uma violação dos direitos de propriedade e portanto como roubo”

(2007, 3)18. Como então citar no teatro? Ao mesmo tempo, observando a construção das

cenas, vemos que o processo de recombinação faz com que, ao longo das sete versões do

texto, a própria noção de contorno e de originalidade dos materiais perca o sentido. Haveria o

que citar?

Entre apropriação e remix, prefiro trabalhar com os verbos escutar, registrar, recortar e

colar apenas pelo fato de que, postos dessa forma, eles me revelam desde o princípio as

ferramentas concretas que tenho à disposição para trabalhar. Voltando à Barthes (2004), que

prefere utilizar o conceito de escriptor no lugar de autor, eu desobrigo-me de exprimir

qualquer coisa, ou mesmo de nutrir a obra, e em vez disso performo um princípio compositivo

16 Tradução do autor. No original: “If remixing implies systematically rearranging the whole text, quoting refers

inserting some fragments from old text(s) into the new one.” 17 Tradução do autor. No original: “As in the case of Duchamp’s famous urinal, the aesthetic effect here is the

result of a transfer of a cultural sign from one sphere to another, rather than any modification of a sign.” 18 Tradução do autor. No original: “while in the realm of commercial music remixing is officially accepted, in

other cultural areas it is seen as violating the copyright and therefore as stealing.”

62

a partir de um arcabouço de materiais que chegaram até mim. A escritura, nesse sentido, se dá

em processo, num fazer que não imagina onde vai chegar ao final. É o próprio fazer, isto é, o

próprio manuseio das ferramentas de composição, que guia o caminho do trabalho.

Durante o processo, antes mesmo da escrita do texto, era comum que eu brincasse que

mais parecíamos um grupo de guerrilha. Reuníamo-nos numa salinha apertada de um prédio

comercial, pactuávamos acordos, saíamos em ação pela rua, voltávamos à base e

confabulávamos. Pessoas iam e vinham e não era certo quem estaria no próximo encontro. Os

funcionários da portaria não entendiam quem éramos. Entrávamos e saíamos em horários

avessos ao comercial, carregando um paralelepípedo, um regador, várias bexigas cheias de ar

ou só as mãos em concha segurando umas poucas gotas d’água antes que elas se esvaíssem

pelo chão. Às vezes, uma capa de super-heroína pregada às costas. Noutras, lixos costurados à

roupa chacoalhando pra lá e pra cá. “A gente pensava que vocês eram psicólogos”, os

porteiros nos contariam mais tarde entre risadas. À época, entendi que essa era a história que

já estávamos contando e sugeri então que abraçássemos o próprio processo na ficção, de

modo que a dramaturgia da peça contaria a história de um grupo de guerrilha. Em uma

conversa depois do fim da primeira temporada, Chris Igreja rememorou sua sensação quando

compartilhei a ideia:

A ficção nascia do que já estávamos fazendo. As aventuras tinham sido uma forma

de responder propositivamente ao que estávamos vivendo na cidade. Correr por

dentro, abrir espaço pelas frestas. A ideia de uma guerrilha fez todo sentido. Bastou

que a gente entendesse que o aparelho sempre havia estado ali, era o que a gente

vinha fazendo desde o início: confabulando, buscando estratégias de ação, se

aventurando.19

A primeira versão do texto da peça mais parecia uma colcha de retalhos, alinhavada por

fragmentos de registros do processo. Até aquele momento, em meados de julho de 2018, o

texto contava a história de uma guerrilha performativa, que realizava pela cidade as ações que

nós mesmos tínhamos experimentado: costurar os lixos do chão à roupa, pescar pessoas etc.

Não havia ainda a ideia específica de uma vingança da terra, embora já houvesse em nosso

repertório menções mais ou menos frequentes a rega, floresta, maracujá, plantio e subidas em

árvores.

Passava das nove da noite do primeiro sábado de agosto quando eu cruzei a porta de

metal chumbado da Arca da Montanha Azul, vestindo calça e camiseta brancas. O lugar, que

fica no alto da rua Alice, em Laranjeiras, é uma casa de práticas religiosas que desenvolve

19 Entrevista concedida por Chris Igreja a mim no dia 12 de dezembro de 2018.

63

desde 1997 rituais com a ayahuasca. Feito com cipós e ervas da bacia amazônica, o chá é

usado como medicina em diversas culturas indígenas sul-americanas. À diferença das práticas

espirituais em que o contato com o sagrado é mediado necessariamente por um terceiro (um

padre, pastor ou médium, por exemplo), os rituais de ayahuasca se singularizam por

promoverem uma conexão direta com o divino.

O trabalho na Arca é bastante musical. A banda da casa toca um repertório bem

sincrético e numa mesma noite cantamos para Jesus, Iansã, Buda, Krishna e Lao-Tsé. Os

rituais começam às dez da noite e varam a madrugada até seis da manhã, quando os portões

são reabertos (salvo em ocasiões especiais, quando se realizam à luz do dia). Ao longo de toda

a noite, não é permitido falar ou tocar outra pessoa, com exceção dos iniciados da casa, que

cuidam e assistem o trabalho de todas e todos. De cunho fortemente pessoal, as experiências

variam muito de pessoa para pessoa. Incorporações, mirações e estados de meditação

profunda são comumente relatados por quem faz uso da medicina.

Eu não frequentava a Arca fazia um ano. Com a chegada da reta final do processo,

porém, senti que seria importante pedir licença para que inaugurássemos na rua um novo

momento, dos ensaios e da encenação propriamente dita. Imaginava, por isso, que seria um

ritual atravessado pelo povo da rua, uma jornada com exus e pombas-giras, entidades da

umbanda tipicamente ligadas às questões terrenas e cujas moradas são as esquinas e

encruzilhadas da cidade. Seu Tranca-Ruas, Maria Padilha, Laroyê Exú.

Em vez disso, porém, eu me via no meio da mata. As minhas mãos chacoalhavam no

ar e puxavam linhas invisíveis que vinham do centro da terra. Meu corpo se agitava em pura

magia. Tudo brotava. Eu estalava os dedos, golpeava o peito, farfalhava a mão sobre a testa e

batia palmas. “É sobre a força da mata”, uma voz ressoava dentro da minha cabeça. “Conta

essa história sobre a força da terra.” Foi uma surpresa viver um trabalho eminentemente

caboclo. Na umbanda, os caboclos são entidades comumente associadas aos espíritos

indígenas – protetores das matas, guerreiros e pajés ligados à força da natureza e da cura. Seus

objetos sagrados são os cocares, os maracás, as penas e o rapé. Okê, okê, okê, caboclo.

No dia seguinte ao ritual na Arca, recebi um e-mail de uma das professoras do meu

programa de mestrado, Alessandra Vanucci, a quem eu havia enviado a primeira versão da

dramaturgia como trabalho final da disciplina “Processos de criação”. “Li em alguma revista

pseudocientífica uma previsão ficção-científica de quantos anos a natureza demoraria para

retomar metrópoles abandonadas pelo ser humano”, ela escreveu, num comentário sobre a

cena de Moema e Gilmar. Aquele foi o gatilho para que eu passasse a noite reescrevendo a

64

peça, que agora se centrava na figura de quatro mulheres que lideravam a vingança da terra.

Junto com o público, elas plantam sementes de abóbora20 nas fendas do asfalto, entre as

pedras portuguesas e nos buracos do meio fio, esperando o dia em que a mata vai romper o

concreto e tomar a cidade de volta para si. “Tudo pode estar perdido”, diz à certa altura Iaci.

“Mas ainda tem terra”.

A salinha, nesse contexto, virava um aparelho, o lugar em que elas encontram o

público que ainda não sabe do plano. Depois de meses de preparação, uma série de conflitos

põe em xeque o desenrolar da noite, e elas se veem obrigadas a contornar os embates e

negociar formas de seguir em frente. No caminho, Moema conhece Gilmar, um homem que

quer se juntar a elas em seu plano de vingança. Mas as quatro mulheres vão ter que se abrir

para o encontro com esse estranho que não esperavam receber.

2.2 Modos de ensaio e dramaturgia dinâmica no levantamento das cenas

O que viemos até aqui nomeando como dramaturgia remonta ao sentido clássico do termo, da

poética da arte dramática, que pensa os princípios da construção do texto teatral. É a atividade

do dramaturgo, o autor de dramas. “A dramaturgia clássica”, diz Patrice Pavis, “examina

exclusivamente o trabalho do autor e a estrutura narrativa da obra” (1999, 113). Com o tempo,

no entanto, a noção de dramaturgia passou a considerar também a realização cênica do texto

no espaço e no tempo, numa virada que para Pavis é marcada pelo teatro épico de Brecht.

“Trata-se de compreender como ideias sobre os homens e sobre o mundo são enformadas,

portanto, em texto e em cena” (1999, 114, grifo nosso).

Eugênio Barba, diretor e fundador do Odin Teatret, fala em “uma pluralidade de

dramaturgias” (2014, 37). Ele define o termo a partir da chave etimológica drama-ergein, do

grego “trabalho das ações”. Dramaturgia, para ele, designa as relações entre os componentes

de um espetáculo numa dimensão vertical, num modo de operação que permite que o diretor

trabalhe ao mesmo tempo com o organismo inteiro – o espetáculo – e suas partes

estratificadas. Barba diferencia três compreensões de dramaturgia com as quais trabalha. Em

primeiro lugar, ele menciona a dramaturgia narrativa, que diz respeito à “trama dos

acontecimentos que orientam os espectadores sobre o sentido ou sobre os vários sentidos do

espetáculo” (2014, 40). Basicamente, ela está relacionada ao trabalho com personagens, fatos,

histórias e textos. A segunda dramaturgia é a orgânica ou dinâmica, que orienta as ações

físicas e vocais dos atores, além de trabalhar com ritmos, objetos, sons e qualidades espaciais.

20 O pé de abóbora é uma planta conhecida pela alta capacidade de resistência em terrenos inóspitos, a exemplo

do espaço urbano.

65

Por último, Barba menciona também o que ele chama de dramaturgia evocativa, isto é, a

capacidade do espetáculo de gerar ressonâncias afetivas e emocionais nos espectadores.

Diferentemente das outras duas, ela não indica uma ferramenta de trabalho, mas um objetivo.

“A dramaturgia orgânica faz com que o espectador dance cinestesicamente em seu lugar; a

dramaturgia narrativa movimenta conjecturas, pensamentos, avaliações, perguntas; a

dramaturgia evocativa permite que ele viva uma mudança de estado” (2014, 40). Barba diz

que seu trabalho como diretor, diante desse cenário, tem a ver com “forjar” e “amalgamar”

relações entre a dramaturgia narrativa e a orgânica. O objetivo, segundo ele, seria “a

destilação de relações complexas, capazes de subverter relações óbvias” (2014, 41), numa

combinação ambígua e contraditória.

Quando começamos os ensaios, eu queria oferecer à encenação certa autonomia sobre

o material textual. Isso porque, enquanto dramaturgo, eu já tinha prontas as imagens de muitas

cenas na minha cabeça. Eu acreditava, então, que era preciso encontrar estratégias de ensaio

que estimulassem certa autonomia da dramaturgia dinâmica sobre a dramaturgia narrativa,

não no intuito de estimular uma esquizofrenia cênica entre o que se diz e o que se faz, mas

para dar ao encontro entre partitura física e texto um frescor pela possibilidade de encontrar

sentidos imprevistos.

Em “Queimar a casa” (2014), Barba reconhece que o espaço também cria dramaturgia

porque nunca é neutro, seja ele qual for. Um palco italiano, o claustro de um castelo ou o

pátio de uma fazenda, todos “transpiram informações e impõem signos materiais que podem

ser acentuados, contrastados, rejeitados, mas não omitidos” (2014, 84). Barba considera que

todo movimento no espaço da cena provoca uma reação equivalente, isto é, uma resposta

dinâmica, que atinge tanto os outros atores em cena como os espectadores na plateia. Todo o

espaço dança, ele diz, à medida que um corpo se move.

Decidi então antepor ao trabalho com a dramaturgia textual experimentos de

composição que derivassem da relação das atrizes com o espaço da cidade. À diferença,

portanto, dos ensaios que dedicam seu período inicial para leituras e análises do texto, propus

que levantássemos as cenas a partir de jogos. Partindo deles, construiríamos uma partitura de

movimento que poderia então ser recoberta pelo texto. Assim, em vez de começar o

levantamento das cenas a partir do trabalho sobre a dramaturgia textual, chegávamos a ela

somente ao final.

Na história da peça, ao sair da salinha, as mulheres se dividem para procurar Iaci.

Sebastiana e Tuãni saem com o público pelo beco do Bragança enquanto Moema procura a

66

companheira desaparecida pela Visconde de Inhaúma. Para levantar essa primeira cena

externa, levei para o ensaio uma corda de sete metros de comprimento. Amarrei as pontas e

propus que as atrizes Camila Costa e Mariah Valeiras jogassem por uma hora, deixando a

corda tensionada ao longo de todo o jogo. Sem poder abandonar o contato corpo-corda, as

duas experimentavam como a matéria podia ajudá-las a se relacionar com o beco numa

inevitável interdependência de movimento entre si.

Foto do autor.

Francis Wilker, diretor do brasiliense Teatro de Concreto diz que para ele “ensaio procura

muito mais nomear um tempo e espaço que os artistas pactuam para viver essa aventura da

experiência a partir de determinados procedimentos e impulsos” (2014, 157, grifo nosso).

Visto a partir daí, o jogo era um conjunto de regras em comum, que nos permitia investigar

relações possíveis com as coisas e os espaços da cidade. Eu instigava que as atrizes

experimentassem aderências e resistências à arquitetura (paredes, meio-fio, poste), aos

passantes e à própria corda. De dentro, elas respondiam experimentando velocidades,

intensidades e planos diversos. Às vezes eu interrompia o jogo para reajustar a amarração da

67

corda, aumentando ou diminuindo a distância entre as duas. Quando batia palmas, elas

suspendiam o movimento, num intervalo que servia para que tomassem consciência da

relação espacial que estavam experimentando entre si e com a cidade naquele preciso

momento. Ao som de novas palmas, retomavam o movimento.

O código das palmas era uma forma de me comunicar com as atrizes em jogo,

sublinhando precipitados de relação que interessavam à pesquisa. Como diz Antônio Araújo,

diretor do Teatro da Vertigem, “o meu trabalho poderia funcionar (...) como uma espécie de

‘antena’ ou ‘radar’ de pontos teatralmente potentes” (2006, 130). Com caderno e caneta na

mão, eu tentava anotar em garranchos as poses que mais me seduziam. Wilker, ao relatar suas

experiências com as notas de direção, compara seu trabalho ao de uma pintura com vários

pincéis:

um tenta registrar ações; o outro, os textos; aquele outro, procedimentos, qualidades

ou possibilidades de linguagem presentes naquela proposta; outro se faz perguntas

sobre o que viu ou anota retornos sobre a atuação daqueles atores; um último pensa

em junções, conexões e colagens entre elementos que estão constituindo o repertório

daquele processo (2014, 168).

Era impossível, porém, fazer uma boa descrição dos momentos que me interessavam. Mal

elas entravam numa pose já passavam para outra e era difícil descrever com precisão as

qualidades das posturas – plano alto ou baixo, pernas mais ou menos abertas, colunas

arqueadas ou não, mãos tensionadas ou relaxadas, a direção do olhar etc. Foi por isso que

decidi fotografar o jogo. Ao final, selecionei e rearranjei as fotos numa sequência de poses, no

que considero um processo análogo ao princípio de registro, recorte e colagem, que

discutimos mais acima: de posse das imagens, cabia então à Camila e Mariah, agora sem a

matéria corda, criar movimentos que as levassem de uma pose a outra, chegando a uma

partitura que inevitavelmente guardava certa memória de corda. Em seguida, trabalhamos no

ajuste de ritmos, durações, intensidades e estados e, no ensaio seguinte, com o texto decorado,

recobrimos enfim a partitura com o diálogo, fazendo as adaptações que se mostravam

necessárias.

68

Foto do autor.

Uma anotação dessa manhã chama a atenção no meu diário de trabalho, uma transcrição de

uma conversa que ouvi enquanto as atrizes se moviam pelo beco enlaçadas pela corda. “Isso é

arte”, disse um homem. “Até que tem sentido”, respondeu-lhe uma mulher que caminhava a

seu lado. “Se você pensar bem, não tem movimento sem resistência.” Essa conversa

entreouvida me fez perceber que a nova fase, de encenação do texto, seguia perturbando o

sensível partilhado sobre a cidade. O jogo, por que não, podia ser visto como mais uma

aventura estranha. Os ensaios, então, não seriam só meio para determinado fim – a saber, a

construção de uma determinada cena ou espetáculo. Estávamos ali, naquela manhã de garoa

fina, perto da hora de almoço de um centro da cidade apinhado de gente, levantando uma cena

e ao mesmo tempo produzindo estranhos sobre o que podem duas mulheres, corda e beco

juntos. Wilker, ao avaliar a trajetória do Concreto, também compreende que exista certa

variação no entendimento do que seja um ensaio, quando trabalhamos em espaços públicos.

ele se torna “resultado” e “processo”, meio e fim. (...) Aquele transeunte que passa

pela praça enquanto o artista experimenta seus procedimentos, que se deixa atrair,

não se relaciona com aquele fato como “ensaio”. Aquela presença em ação, para ele,

69

já é um elemento novo na paisagem da cidade que irá afetá-lo em algum nível (2014,

105).

Passei a empregar esse mesmo sistema de trabalho para levantar várias cenas da peça. Para

marcar as cenas da salinha, trabalhamos com uma bola. Para o encontro de Iaci e o voo da

arara, fitas coloridas. Para uma cena de correria das personagens, criamos o percurso de cada

uma num jogo em que as atrizes pintavam o asfalto e as calçadas com giz branco. Corda, bola,

fita, giz – sempre coisas21. Esse trabalho com coisas em Amazona remonta às aventuras

estranhas, quando era comum que voltássemos da rua com objetos encontrados pelo caminho:

uma placa, um paralelepípedo, uma foto ou o que mais fosse. À época, me interessava menos

a função e a memória deles e mais sua figura, seu volume, seu peso e forma no espaço: como,

ao serem carregadas, alteravam a estrutura e a presença do corpo. Quando comecei a desenhar

a estratégia de levantamento de cenas a partir dos jogos, imaginava que seria importante

encontrar alguma ferramenta que mantivesse os corpos do elenco em relação, de modo que

eles não se perdessem diante das infinitas possibilidades de relação com a própria cidade. As

coisas, assim, apareceram como uma forma de resguardar certa tensão entre os corpos das

atrizes, que depois se desenvolveria numa relação de contracena com a chegada do texto.

Para o primeiro ensaio da cena em que Moema e Gilmar se encontram na Candelária,

levei para Chris Igreja e Gunnar Borges um bambu de dois metros de comprimento. O jogo

consistia em sustentar o bambu a dois, aplicando em suas extremidades uma tensão que o

mantivesse suspenso. O processo foi mais ou menos análogo ao do jogo da corda: explorar

relações entre corpo, bambu e igreja; fotos; seleção e rearranjo das imagens; e posterior

construção da partitura física, para então chegar ao texto. Essas três fases (jogo, construção da

partitura e inserção do texto) aconteciam idealmente em dois dias diferentes de ensaio, de

modo que no primeiro o elenco não tivesse ainda o texto decorado. Nas sequências abaixo,

comparamos imagens do jogo com o bambu no ensaio à esquerda com fotos do espetáculo à

direita.

21 Usamos aqui o termo coisa amparados pela discussão levantada por Diana Taylor. “Eu digo coisa no lugar de

objetos porque ‘objeto’ sugere um grau de estabilidade fenomenológica. Uma cadeira é uma cadeira. É produto

de uma nomeação. Você pode rotular uma cadeira, atribuir a ela um proprietário ou uma época e colocá-la num

arquivo. Objetos (...) são categorizáveis. Coisas, pelo contrário, são mais ambíguas; elas evocam processo,

transformação e a possibilidade de substituição” (TAYLOR, 2018, 124).

70

Fotos: Ricardo Cabral (esq.) e Bárbara Pelacani (dir.)

Nesse primeiro par de fotos, o local da ação foi alterado de uma coluna para outra. Moema

encontra Gilmar e observa-o por um tempo antes de perguntar: “A gente se conhece?” O

encontro entre os dois poderia acontecer de várias formas, mas a partir das fotos decidimos

que a chegada seria uma ação de espreita da atriz, que viria pela lateral da igreja e

surpreenderia Gilmar num susto. Movemos então o encontro uma pilastra para dentro, em

direção ao centro da igreja, para que pudéssemos acompanhar a ação se desenvolver por mais

tempo num percurso mais longo.

Fotos: Ricardo Cabral (esq.) e Carolina Calcavecchia (dir.)

Aqui, a relação entre corpo e parapeito se mantém, mas atriz e ator invertem os lados que

ocupam e a intensidade da ação se modifica. Com o desenrolar da cena, Gilmar conta a

Moema que rega o chão por causa do pé de maracujá, ao que ela responde que a planta não

pode estar viva. Ele não quer escutá-la, tenta ir embora, e no encontro entre texto e partitura o

desvencilhamento de Gilmar ganhou corpo num pique-pega entre os dois, separados pelo

71

parapeito. O embate se intensifica e ele se vê obrigado a encarar a realidade de que o

maracujá dificilmente ainda sobrevive. Gilmar então explode, abandona seu regador, caminha

desconsolado até o parapeito e deita sobre a pedra. Moema vai atrás dele e nós, do público,

seguimos os dois. Ela molha seus cabelos, passa a mão sobre sua testa, deita em cima de seu

corpo e lhe pergunta: “Sabe qual é a parte boa de chegar no fundo do poço?”, momento que

corresponde ao par de fotos abaixo.

Fotos: Ricardo Cabral (esq.) e Carolina Calcavecchia (dir.)

Os corpos permaneceram lado a lado, mas foram rotacionados duas vezes: uma no eixo

vertical, para criar um ambiente de projeção vocal mais favorável na direção do público; e

outra no eixo horizontal, conferindo certo estranho à imagem ao mesmo tempo que

intensificando a atmosfera de escuta e acolhimento da cena. O momento acabou batizado

internamente de “conchinha” pela equipe da peça.

72

3 AMAZONA: A PERFORMATIVIDADE DA CENA NA RUA

“Ó as rainhas do pecado tão chegando (...)

Cê tá curtindo? Cê tá gostando?

Mas abre o olho que aqui sou eu quem mando

Sou eu quem mando, sou eu queimando

Sou eu queimando na fogueira do pecado”

Ava Rocha, Vítor Hugo e Gabriela Carneiro da Cunha (2018)

Foto: Carolina Calcavecchia

No ensaio “The real experiment”, de 1983, Allan Kaprow observa dois caminhos das

vanguardas da arte ocidental no último século: o que ele chama de artlike art e lifelike art. A

primeira, segundo o artista, desenha uma fronteira bem definida entre arte e vida, assim como

separações bastante claras entre os gêneros – escultura, pintura, vídeo, música etc. Assim, o

fazedor de uma artlike art estaria mais próximo à ideia de um especialista, sempre em diálogo

com a história da arte e seus espaços tradicionais (a galeria, o museu, a sala de teatro), onde

há divisas claras que delineiam obra de um lado e público do outro. “A artlike art envia sua

73

mensagem numa via de mão única: do artista para nós. (...) Você não pode responder, e

portanto transformar, um trabalho de arte que seja artlike” (1993, 204)22.

Kaprow então faz uma genealogia das investidas que, desde os futuristas italianos,

parecem realizar um pensamento artístico diferente: obras que colocam a arte a serviço da

vida, ou melhor, que não enxergam separação alguma entre arte e vida. São trabalhos aos

quais é difícil dar contorno definitivo na medida em que tratam de diversos processos que se

interconectam e se perpassam, numa retroalimentação da obra em direção ao público (e

mesmo a coisas, máquinas e animais) e de volta para a obra, abrindo conversas que se

replicam e influenciam mutuamente. “Os possíveis limites entre a lifelike art e o resto da vida

foram mantidos borrados de forma intencional. Onde estava a arte, onde estava a vida, onde

uma ou outra começava e terminava eram perguntas sem importância” (1993, 205-206).23

Ele apresenta então três modelos frequentemente utilizados ao longo do século XX na

direção dessa fusão entre arte e vida. O primeiro vem dos ready mades de Duchamp, que

mencionamos no último capítulo. O segundo, por sua vez, encontra espaços tradicionalmente

não dedicados à arte (como uma floresta ou uma rua) e trabalha com eles seja como ready

mades, seja intervindo neles para construir a obra. O terceiro modelo, por último, seria uma

espécie de arte protoconceitual, em que a partir dos conceitos que carregamos sobre o que seja

ou não arte, olhamos para o mundo e, em pensamento, damos a chancela de obra a coisas que

já existem, como a coreografia dos carros numa grande avenida ou a arquitetura pictórica de

um imenso rochedo natural.

Kaprow aponta que quando levamos uma coisa ordinária para o lado de dentro do

museu, porém, seguimos limitados pela possibilidade de deslocamento e pela própria

capacidade da galeria. “As vias expressas de Los Angeles na hora do rush, as viagens de avião

a várias cidades ou as ligações telefônicas feitas dos nossos quartos” (1993, 207)24, diz, não

cabem no museu. Da mesma forma, quando levamos o público a espaços não-convencionais

não escapamos de que eles estão lá para nos verem fazer alguma coisa, ou seja, seguem

carregando suas preconcepções do que seja ou não arte, só que agora num site específico. O

mesmo, segundo ele, aconteceria na terceira via, embora de modo inverso: dessa vez é o

22 Tradução do autor. No original: “Artlike art sends its message on a one-way street: from the artist to us. (…)

You can’t ‘talk back’ to, and thus change, an artlike artwork.” 23 Tradução do autor. No original: “The possible boundaries between lifelike art and the rest of like were kept

intentionally blurred. Where the art was located, where life was, and when one or the other ‘began’ and ‘ended’

were of no importance. Such distinctions were merely provisional.” 24 Tradução do autor. No original: “The Los Angeles freeways at rush hour, or airplane trips to various cities, or

telephone calls made from our bedrooms (…).”

74

artista que tenta enquadrar as coisas do mundo dentro de certas molduras artísticas pré-

existentes.

Kaprow está se referindo aqui a diversas investidas do campo das artes ao longo do

século XX, pelo até o momento da escrita de seu texto, no início da década de 80. Entre elas

estão as obras e manifestos Dadas, Surreliastas e Situacionistas, os happenings e a body art,

entre tantos outros. À certa altura, o artista parece ressentir-se pelo fato de que essas

experiências não tenham conseguido, pelo menos até aquele momento, ir muito longe na

direção de borrar arte e vida. Isso se devia, segundo ele, ao fato de que os artistas ainda se

mantinham demasiadamente presos às molduras tradicionais da artlike art. “Nós não fomos

curiosos o suficiente”, aponta. “Pensamos que para que a não-arte fosse transformada na

grande arte do modelo ocidental seria preciso apenas colocar-lhe uma moldura adequada”

(1993, 207)25.

De fato, em Amazona, a moldura teatral, mesmo fora da caixa preta, é bastante clara.

Quando chegamos ao edifício, sabemos que estamos ali para assistir a um espetáculo de

teatro. Durante a peça, as atrizes projetam sua voz para serem ouvidas e a separação entre

elenco e público é bastante delimitada. Ao mesmo tempo, por acontecer em espaços

alternativos aos da tradição teatral (como sala comercial, portaria de prédio, elevador, rua,

praça e chafariz), a montagem faz uso de duas das estratégias apontadas por Kaprow: por um

lado, levamos o público para um espaço não-tradicional e, por outro, conferimos o status de

obra de arte às coisas do mundo real que atravessam a ficção: os becos são escuros, as

badaladas da Candelária perfuram os diálogos, o mau cheiro é real, é preciso cuidado para

atravessar a rua e a atriz grita para sobrepor sua voz ao pagode alto da sexta à noite. Não há

refletores nem amplificação de som. A cidade, portanto, não é cenário, mas uma dramaturgia

que é operada em tempo real por atrizes, passantes e espectadores.

3.1 A performatividade da cena e do público

No último capítulo, vimos como algumas cenas foram construídas a partir do princípio

compositivo de jogo, registro, recorte e colagem. O levantamento de outras cenas, no entanto,

obedeceu a uma lógica que prefiro chamar aqui de performativa. Digo performativa porque

são cenas cujo mote é menos centrado na ideia de representação que na execução de uma ação

propriamente dita. Quando Sebastiana e Tuãni buscam Iaci e sua mãe, as duas atrizes sabem

exatamente onde vão encontrá-la. Trata-se de uma marca e ação de buscar não é real, mas

25 Tradução do autor. No original: “Well, we weren’t curious enough. Instead, we found that nonart could be

transformed into high art on the Western model simply by framing it properly.”

75

representação da busca. Em diversos outros momentos, porém, o trabalho do elenco não é

repetir marcas, mas realizar determinadas ações. É o que acontece, por exemplo, quando

Sebastiana recebe o público e o acomoda na salinha. Ou mesmo quando plantamos ao final da

peça:

GILMAR: É uma ação direta que vocês tão propondo?

IACI: A cidade tá um caos e quem reage alto acaba explodido. Nós vamos lentas,

subterrâneas. A gente abre mato em cima de concreto.

TUÃNI: E quando eles se derem conta, a floresta já rasgou o chão e devorou a

cidade.

GILMAR: É a vingança da terra.

IACI: Tudo pode parecer perdido, mas ainda tem terra.

SEBASTIANA: A gente planta em fresta, buraco, fenda, entre pedra portuguesa, no

meio do concreto. Abram os envelopes que vocês receberam. (Moema, Tuãni e Iaci

distribuem punhados de terra.) Cada uma tem uma semente e vai receber um

punhado de terra. Semente na mão direita, punhado de terra na mão esquerda. Se

todo mundo aqui plantar uma, são mais de trinta só essa noite. Ninguém fica pra

trás, todo mundo cuida de todo mundo. Preparadas? Vamos. (Plantam com o

público.)26

Foto: Carolina Calcavecchia

26 Trecho do texto espetáculo “Amazona”, não publicado. Cf. Anexo.

76

As atrizes – e também o público – plantam de verdade, ao mesmo tempo em que mostram que

estão plantando. Engajam-se, assim, nas três operações que para Josette Féral são as raízes do

performativo: ser-estar; fazer; e mostrar que se faz.

Quando Schechner menciona a importância da “execução de uma ação” na ideia de

performer, ele, na realidade, não faz senão insistir neste ponto nevrálgico de toda

performance cênica, do “fazer”. É evidente que tal fazer está presente em toda forma

teatral que se dá em cena. A diferença aqui – no teatro performativo – vem do fato

de que esse “fazer” se torna primordial (2015, 118).

De fato, como comenta Féral, a distinção entre representação e performatividade não é

estanque e há uma inevitável performatividade em toda obra cênica. Em nosso caso, enquanto

trabalho que se desenrola com a rua, Amazona precisa negociar permanentemente com a

ficção da narrativa e com o aqui e agora da cidade. Hoje, olhando em retrospectiva, percebo

que o desafio de contar uma história na rua é que, enquanto a ficção pressupõe a construção

de certo mundo fechado e internamente verossimilhante, o espaço público pede

esburacamento, perfuração e adaptabilidade. O desafio, portanto, é dar conta dos dois: fechar

abrindo – ou melhor, descobrir um contorno que seja suficientemente poroso.

O diretor e pesquisador André Carreira investiga as relações entre cena e cidade a

partir do que ele nomeia como teatro de invasão. “As linhas dos edifícios, as tensões dos

usuários, o trânsito de veículos e pessoas e o controle social do lugar público” (2008, 7), diz,

são discursos que devem ser reinterpretados pelo discurso cênico, quando escolhemos as

estruturas físicas da cidade como suporte para construções espetaculares. Mais que uma

possibilidade, ele afirma, trata-se de “uma condição que pesa sobre a prática criativa da arte

da rua” (2008, 3). Os espetáculos do teatro de invasão, portanto, “não se contentam com estar

na rua, mas buscam incorporar no funcionamento da cena os fluxos da rua, ou por outro lado,

subverter esses fluxos fabricando rupturas dos ritmos cotidianos” (2008, 2). A cidade, então,

não é cenografia, mas dramaturgia.

Se os fluxos da rua portam um plano de significação anterior à encenação, parece que

haverá sempre algo do real que inevitavelmente escapará à toda tentativa de representação.

Josette Féral, ao comentar os espetáculos do Teatro da Vertigem, diz que os ruídos, pedestres

e imprevistos fatalmente forçam o real em cena. A performatividade dos espaços, como ela

chama, resiste à fabulação e dispara no olhar de quem assiste um jogo de vai e vem entre a

realidade do lugar e ficção da narrativa. Lembro de uma sessão de Amazona em que um

morador de rua participou ativamente de uma das cenas mais enérgicas da peça, a briga entre

Tuãni e Moema logo antes do fim do espetáculo. Mais tarde na mesma noite, quando

77

conversávamos em um bar depois da peça, um amigo me perguntou por que um dos atores

não havia agradecido conosco ao final, quando recebemos os aplausos. “Que ator?”,

perguntei. “O que não parava de gritar com elas durante a briga”, ele me respondeu.

Para Ismail Xavier, o embaralhamento entre cena e cotidiano por um lado e a

multiplicidade de polos de atenção e distração por outro fazem com que o público se relacione

com a urbe num diapasão entre reconhecimento e estranhamento. Há, ele escreve, um

“estranho-familiar que nos cerca por todos os lados” (2018, 117). O economista Guilherme

Costa assistiu três vezes Amazona, uma na estreia do espetáculo na Candelária e outras duas

na temporada de 2019 na Cinelândia. Conversamos logo depois de uma dessas apresentações,

em sua casa, e ele me contou que enquanto espectador é difícil diferenciar o que é marca do

que é improviso, o acontecimento combinado do inesperado. Guilherme mencionou alguns

exemplos:

Logo que a gente saiu do prédio, tinha uma cena entre duas personagens [quando

Tuãni e Sebastiana buscam Iaci]. No fim, quando as duas tinham acabado de se

abraçar, passou um carro que lançou alguma coisa de vidro que estourou no chão.

Fez um barulhão. Eu levei um susto, todo mundo se assustou, as atrizes se olharam

em pânico e disseram que a gente tinha que continuar. Eu não entendi se era da peça

ou não, mas fazia todo sentido pro momento. Na cena seguinte [quando encontram

Iaci], uma luz apagou de repente na hora em que ela falava de Deus. Isso te deixa

atento. Você presta atenção nas coisas de um jeito diferente27.

Gostaria de associar esse “jeito diferente” da fala de Guilherme ao pensamento de Féral. Ela

aponta que a expectativa do espectador, quando chega a um determinado lugar para assistir

uma peça de teatro, altera sua percepção e instala certa teatralidade sobre o espaço. “Em lugar

de serem perceptíveis em sua relação com o real, eventos, objetos e signos diversos começam

a significar de modo diferente” (2015, 104, grifo nosso). O estranhamento apontado acima

tanto por Xavier (2018) como por Guilherme, estaria ligado então a esse processo de

semiotização da paisagem.

Na mesma entrevista, ele me contou que trabalhou por alguns anos perto da

Cinelândia: “Já passei várias vezes por aquelas ruas, mas naquela noite eu percebia outras

coisas na praça, nos prédios... tudo era diferente.”28 Minha sugestão é que, ao não poder

diferenciar com precisão o que é cena do que é acaso, Guilherme viveu certo estranhamento

na leitura da paisagem da cidade, que lhe abriu brechas para um re-conhecimento de um

espaço que ele já conhecia. Voltando à Eleonora Fabião, aposto que o estranhamento causado

27 Entrevista concedida por Guilherme Costa a mim no dia 21 de setembro de 2019. 28 A mesma entrevista concedida por Guilherme Costa a mim no dia 21 de setembro de 2019.

78

pela ausência de separação clara entre ficção e realidade tenha suspendido seus “hábitos de

conduta e modos usuais de percepção, relação e cognição para criar um estranho-estado-de-

coisas” (2015, 104)29.

Do lado de dentro da cena, as atrizes por sua vez também são obrigadas a estabelecer

um movimento duplo constante entre a realidade do lugar e a construção ficcional da

narrativa. Para Carreira, a interpretação na rua deva contar com certas “lacunas” (2008, 6),

que só podem ser preenchidas no momento em que intérpretes, rua e público se encontram.

Em termos técnicos, ele considera que o trabalho de interpretação no teatro de invasão deva

ser compreendido como “uma estrutura flexível” que “dialoga com as incertezas próprias do

espaço” (2008, 6).

não há preparação – ensaio – que possa responder, do ponto de vista da tarefa

interpretativa, a todas as variáveis que necessariamente funcionarão no momento da

“invasão”. Consequentemente, o ator (...) não deverá supor a plena realização no

projeto dos ensaios, mas construir um instrumental que se defina pela capacidade de

adaptabilidade (2008, 5-6).

Ao constatar certa insuficiência do ensaio enquanto preparação e apontar qualidades como a

adaptabilidade como ferramentas fundamentais no manejo da “incerteza” do espaço urbano,

Carreira aproxima seu entendimento de interpretação do que Féral poderia chamar de um

teatro performativo. Ao comentar o espetáculo “Bom Retiro 958 metros”, do Vertigem, ela

afirma que

o espaço é nutrido por uma exterioridade, por conflitos, por uma heterogeneidade

que o espetáculo precisa canalizar ou com a qual deve operar. Como resultado, o

lugar permanece aberto à pluralidade. A arte torna-se experiência de vida, o que

sublinha ainda mais a performatividade (2018, 135).

Fazendo Amazona pela cidade, as atrizes não podem controlar o desenrolar da ação, muito

menos a reação do público e do entorno. Nossa estratégia, então, é avaliar depois de cada

29 Ao mesmo tempo, penso que Amazona não endereça de forma clara o lugar do público ao convidá-lo a mover-

se. O diretor e pesquisador Dieymes Pechinca, numa entrevista concedida a mim no dia 18 de outubro de 2019,

me contou que se sentia confuso com sua condição de expectação durante a peça. “Somos observadores ou

guerrilheiros? Realmente importamos? Nós temos agência real sobre a história?”, me perguntou, num bar perto

da praça XV, logo depois de uma apresentação da peça. De fato, na cena que abre o espetáculo, a atriz Marcéli

Torquato recebe o público aos poucos, em pequenos grupos, olhando no olho de cada um. Depois, em outra

cena, Chris Igreja pede ajuda a uma espectadora, que guardará a terra durante todo espetáculo até a hora do

plantio. Camila Costa também interpela uma pessoa do público, e lhe pergunta se ela também não preferiria

explodir a cidade no lugar de plantar. Mas a pergunta não é real. Não temos uma versão alternativa da peça caso

o grupo daquela sessão prefira realmente queimar concreto no lugar de plantar abóbora. Os sinais são

contraditórios, me apontou Dieymes, de modo que essas pequenas ações contrastam com um conjunto maior,

sobre o qual o público sabe não ter ingerência. Seriam, portanto, uma espécie de falsas promessas, já que

geramos uma expectativa de ação que não pode se realizar.

79

apresentação as propostas e desdobramentos de cada escolha, no caminho de construir

coletivamente certa inteligência performativa que não espera que o espetáculo aconteça todas

as noites da mesma forma. Quando, em 2019, voltamos a entrar em cartaz no Rio, a cena de

Moema e Gilmar acontecia na escadaria da Câmara Municipal da cidade, na Cinelândia. Num

dos dias de apresentação, porém, as escadas estavam tomadas pela programação da 3ª Mostra

do Filme Marginal, que aconteceria no Centro Cultural da Justiça Federal, mas fora censurada

pelo espaço30. As exibições, então, aconteceram no meio da praça, projetadas num telão.

Surpreendido logo antes de entrar em cena, o ator Victor Seixas optou por fazer a cena na

frente de uma agência do Banco do Brasil. Mais tarde, na cena final do plantio, que também

aconteceria na Câmara, o elenco manteve o local original, e atrizes e público plantaram

sementes misturados aos espectadores e às imagens e sons da projeção.

Féral afirma que a performatividade implica “uma tomada de risco real ao performer”

(2015, 122), que não pode controlar completamente o desenrolar da ação que pratica. “O

‘valor do risco’, o ‘malogro’, tornam-se constitutivos da performatividade e devem ser

considerados como lei” (2015, 122). Às vezes, porém, o real surpreende de tal forma que pode

ameaçar colapsar a própria ficção. Amazona estreou no dia 17 de outubro de 2018,

exatamente entre o primeiro e o segundo turno das eleições que elegeram presidente o capitão

reformado do exército Jair Messias Bolsonaro, e o clima no Rio de Janeiro, assim como em

diversas capitais do país, era de extrema polarização. Na noite de 07 de outubro, no mesmo

dia do primeiro turno, o mestre de capoeira Moa do Katendê foi morto com doze facadas em

Salvador, depois de uma discussão política em um bar31. No dia anterior, a transexual

Julyanna Barbosa tinha sido atacada em Nova Iguaçu por quatro homens com uma barra de

ferro32. No depoimento à polícia, ela contou que um deles gritou: “Olha o tamanho do viado,

Bolsonaro tem que ganhar para tirar esses lixos da rua.” Na mesma semana, um estudante fora

agredido na Universidade Federal do Paraná porque vestia um boné do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST33. Ele levou diversas garrafadas de vidro na cabeça.

30 Após terem filmes excluídos de mostra, organizadores criticam censura e cancelam evento no CCJF. O Globo

Online. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/apos-terem-filmes-excluidos-de-mostra-organizadores

-criticam-censura-cancelam-evento-no-ccjf-23896079>. Acesso em 01 nov. 2019. 31 Moa do Katendê: Os minutos que antecederam o assassinato de mestre de capoeira esfaqueado após discussão

política. BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45806355>. Acesso em 12

dez 2018. 32 Transexual espancada na Baixada Fluminense passa por exame de corpo de delito. Extra Online. Disponível

em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/transexual-espancada-na-baixada-fluminense-passa-por-exame-de

-corpo-de-delito-rv1-1-23148453.html>. Acesso em 12 dez 2018. 33 Com boné do MST, estudante da UFPR é agredido por apoiadores de Bolsonaro. Revista Fórum. Disponível

em: <https://www.revistaforum.com.br/com-bone-do-mst-estudante-da-ufpr-e-agredido-por-apoiadores-de-bolso

naro/>. Acesso em 12 dez 2018.

80

3.2 Teatro e guerrilha, corpo e risco

São quase seis horas da noite da primeira quinta-feira de novembro, a primeira quinta depois

do segundo turno das eleições, e Jair Bolsonaro é o presidente do Brasil. Estamos na mesma

salinha de pouco mais de vinte metros quadrados do prédio da rua da Quitanda e, do janelão

de vidro, ainda se vê o sol forte no céu – são os primeiros dias do último horário de verão do

país. A saleta, com banheiro e copa embutida, tem piso de madeira e poucos móveis. Sob a

janela, um altar rodeado por mudas de comigo-ninguém-pode. Encostados às paredes, bancos

variados formam uma pequena arena e, entre eles, uma meia-dúzia de sacos de trinta ou

quarenta quilos de terra também fazem as vezes de assento.

Marcéli Torquato, atriz de Amazona, chora sentada numa dessas pesadas sacas de

terra. À sua volta, estamos eu, Anna Clara Carvalho, Camila Costa e Chris Igreja, todas do

elenco. Na última noite, um carro preto havia acompanhado repetidamente diversos trechos da

peça: vez ou outra, quando nos dávamos conta, ele estava ali outra vez, o mesmo carro preto.

O vidro fumê, porém, não deixava ver o lado de dentro. Entre soluços, Marcéli disse que

estava com medo, que preferia ter ficado em casa naquele dia. “Quando você me ligou, era

pra gente fazer uma peça de teatro, e não isso”, disse, lembrando o dia em que eu a havia

convidado para o projeto, a dois meses da estreia, depois que a atriz Mariah Miguel precisara

se afastar do processo. Digo-lhe que ninguém podia imaginar que as coisas tomariam aquele

rumo, o processo eleitoral sugando nossas energias feito um ralo gigante. Agora tínhamos que

nos cuidar, porque precisaríamos de força e saúde para seguir em frente. Ficar perto de

pessoas queridas, tomar sol, comer bem – estratégias de vida.

Relembro ao grupo o caso da plataforma Reaja: tão logo saíra o resultado do segundo

turno, no próprio domingo à noite diversas pessoas começaram a compartilhar em seus grupos

de WhatsApp o contato de uma suposta rede de apoio a pessoas LGBTQI+, o Reaja. O

contato, no entanto, subitamente desapareceu do aplicativo e não demorou para que

começassem a surgir nos grupos especulações de que a rede poderia ser na verdade uma

armadilha para compilar informações de pessoas com orientações sexuais e identidades de

gênero não normativas. A hipótese deixou desesperados vários amigos que tinham feito

contato com o número. Dias depois, no entanto, o Reaja veio a público explicar o mal-

entendido: eles haviam disponibilizado como contato oficial da plataforma o número pessoal

de um dos seis advogados da rede. A adesão, no entanto, foi gigantesca e o número recebeu

mais de 15 mil mensagens só nas primeiras horas, o que levou o WhatsApp a cancelar a conta

e bloquear o usuário.

81

Retomo então o episódio do carro preto na noite anterior e lanço-nos uma pergunta:

como nos proteger sem cair na cultura do medo? Era difícil. Na noite da sexta-feira anterior

ao primeiro turno, a dez dias da estreia, fazíamos o percurso da peça para estudar o efeito da

iluminação pública no espetáculo34. Quando chegamos à Candelária, um grupo de mais ou

menos vinte pessoas segurando velas brancas acesas estava diante da igreja. Uma mulher,

carregando uma cruz de madeira de quase um metro de altura, rezava e tinha a voz

amplificada por um megafone. A seu lado, um homem com uma imagem de Virgem Maria

bradava palavras de ordem defendendo a família e o ainda candidato Jair Bolsonaro. Um

segundo homem, que fotografava o evento, viu quando nos aproximamos e chamou num

canto Rafaela AmoDeo, artista que assinou a colaboração de direção do espetáculo. “Eu sei

quem vocês são”, disse a ela, identificando-se como repórter do extinto Jornal do Brasil. “Vi

vocês ensaiando mais cedo. Se eu fosse vocês, ia embora daqui.” Na mesma semana, em um

dos ensaios, um homem vestindo o rosto de Bolsonaro estampado numa camisa preta nos

filmou com o celular enquanto trabalhávamos. De repente, parecia que estávamos numa

guerrilha de verdade.

Em “One place after another” Miwon Kwon (2002) faz uma genealogia da relação

entre arte e site nas últimas décadas. O movimento que eu gostaria de sublinhar na história

contada por ela reside na ampliação da compreensão do que seja um site, que deixa de ser

uma instância exclusivamente física e geográfica para ser percebido como uma construção

sociopolítica, para além de suas especificidades espaciais. Site é linguagem, portanto35. Kwon

argumenta que esse alargamento de compreensão do que seja um site teria levado a uma

virada na prática dos artistas com a rua, em especial nas produções artísticas em espaços

públicos financiadas pelo governo dos Estados Unidos ao longo da segunda metade do século

XX, principal objeto de sua pesquisa.

Kwon percebe que um conjunto de obras que antes se aproximava bastante da

arquitetura e do design, visando integrar-se à cidade e oferecendo conforto e utilidades (áreas

de lazer, praças, largos, parques, mirantes etc.), começa a perder espaço diante de trabalhos

que propõem um tensionamento entre a obra e seu site. Trabalhar o site de forma específica

(site-specific) passa a significar então provocar a arquitetura36. Um exemplo é o caso de

34 O desenho de luz em Amazona é realizado a partir do encontro entre o percurso espacial da peça e as

estruturas de iluminação, públicas ou privadas, disponíveis em postes e fachadas de lojas e comércios ao longo

do trajeto. 35 O que nos remete ao entendimento de cidade que encontramos na análise de Pires (2007), discutida no

primeiro capítulo. 36 Cabe aqui pensar arquitetura como esse tangível que age, em conjunto com a operação intangível das leis, por

certa ordem das coreografias urbanas, conforme a discussão de Lepecki (2012) no primeiro capítulo.

82

Richard Serra, artista que em 1981 instala o Tilted Arc no meio da Federal Plaza, em

Manhattan, comissionado pelo governo estadunidense. A obra era um arco gigante em aço

COR-TEM, com 37 metros de largura, 3,7 metros de altura e levemente inclinado para um

dos lados. Em 1989, no entanto, depois de quatro anos de disputas judiciais, a obra foi

removida da praça. As audiências concluíram que a escultura, além de um obstáculo à

circulação dos pedestres, era feia e opressora. Serra, de seu lado, recusou que a peça fosse

instalada em outro lugar. Para ele, a obra residia justamente na relação com o espaço da praça.

Kwon compreende que esse outro modo de pensar e agir do site-specific promove uma

perturbação, cujo “objetivo é tornar evidentes as contradições sociais reprimidas que

subjazem os espaços públicos (...), tornando-as perceptíveis e, portanto, reconhecíveis” (2002,

75)37. Boa parte do estudo de Kwon, no entanto, é baseado em trabalhos ligados às artes

visuais, com suas execuções contratadas pelo poder público. O caso de Amazona, por sua vez,

é diferente por algumas razões. Primeiro, porque não havia qualquer tipo de anuência das

gestões municipal, estadual ou federal à realização da peça. Segundo, porque Amazona é uma

arte da cena, ou melhor, uma arte performativa, de modo que não há separação entre sujeito e

meio de produção: o resultado do trabalho (a obra por assim dizer) não é exterior a mim, isto

é, ao meu corpo – o que significa dizer que não há espetáculo sem a implicação direta dos

corpos das atrizes.

Kwon enxerga nos trabalhos de arte que lidam com o espaço público “um site de luta

política sobre o significado de democracia” (2002, 80)38 que passa pelo embate entre

diferentes concepções sobre os usos e destinos do urbano. No caso de Amazona, e das artes

performativas de modo geral, essa disputa por certa compreensão do político acontece no

espaço, evidentemente, mas também no corpo. Há, portanto, uma porção de vida que se soma

à camada representacional e fictícia e que é inseparável dela. O corpo está em jogo, e o corpo

é vida.

A noção de risco aparece nos artigos de André Carreira como um elemento recorrente

às artes da rua. “A rua é o espaço inóspito que se opõe ao conforto e segurança dos espaços

íntimos” (2008, 6), diz. Em 2006, ele foi convidado pelo grupo goiano Teatro que Roda para

dirigir o espetáculo “Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro

Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido)”. Na montagem, Dom Quixote é um

executivo cansado da rotina que mergulha num mundo imaginário e poético para salvar-se do

37 Tradução do autor. No original: “is intended to bring into relief the repressed social contradictions that

underlie public spaces (…), rendering them perceptible, thus knowable.” 38 Tradução do autor. No original: “a site of political struggle over the meaning of democracy.”

83

fastídio. Seu fiel escudeiro Sancho-Pança é um catador de papel, cuja carroça lhe serve de

cavalo. Ao final da apresentação, Quixote é preso por agentes que chegam numa viatura da

polícia. “Seria a realidade invadindo a ficção? Veto à poesia?”, se pergunta o crítico Igor

Silva (2011).

Féral afirma que a teatralidade, mais que uma condição específica do teatro, é uma

operação cognitiva de quem assiste. Enquanto olho, eu realizo duas clivagens simultâneas.

Por um lado, distingo o meu espaço do espaço do outro, de modo que este último me aparece

como um espaço diferente do cotidiano, “onde a ficção pode surgir” (2015, 107). Por outro,

diferencio também realidade e ficção no interior da própria cena. Afinal, apesar de haver

representação, “a ação representada envolve o real – (...) os corpos movimentam-se, fazem

gestos, realizam ações, os objetos têm certa densidade, as leis da gravidade funcionam” (2015,

110).

Foto: Carolina Calcavecchia

A existência de um risco real à integridade física do ator, no entanto, romperia um pacto

fundamental entre público e peformers: a lei da reversibilidade do acontecimento teatral, um

acordo tácito entre artistas e espectadores de que os atores podem, a qualquer momento,

interromper o espetáculo e retomá-lo outra vez desde o princípio (FÉRAL, 2015). Quando,

84

enquanto espectador, percebo que há um risco real à vida dos atores ou à minha própria, “o

performer associa-se ao real e seu ato fora das regras e dos códigos não pode mais ser

percebido como ilusão, ficção, jogo. O espaço e o tempo da cena são dramaticamente

modificados e, por isso mesmo, destruídos” (FÉRAL, 2015, 99). Em outras palavras, as

clivagens colapsam e já não podemos diferenciar com precisão o espaço da representação do

espaço cotidiano. Lenira Camargo, professora universitária aposentada que assistiu a peça na

primeira temporada, me contou que

a tensão que as personagens viviam era real. Eu me sentia com medo de andar no

centro da cidade àquela hora da noite. Às vezes alguma coisa na cidade chamava

minha atenção e eu podia ficar um pouco pra trás, mas logo voltava correndo atrás

do grupo. Eu tinha medo39.

À certa altura da peça, ainda dentro da salinha, Tuãni diz ter descoberto um plano do governo

para fomentar o medo entre as pessoas. “Eles tocam o terror, o povo pede intervenção, eles

mesmos têm a receita e saem da história como se fossem os salvadores da pátria”, a atriz

Camila Costa olha a cidade pela janela e vai aos poucos elevando o tom de voz, até gritar a

plenos pulmões com o corpo todo projetado para o lado de fora: “Você entende que se a coisa

pega fogo não tem volta atrás? Que lei marcial dá toque de recolher, proíbe as pessoas de

ficarem na rua? Eles acabaram de prender vinte e três pessoas que não se conheciam por

formação de quadrilha. Você já pensou o que eles podem fazer com a gente?”

39 Entrevista concedida por Lenira Camargo a mim no dia 07 de dezembro de 2018.

85

Foto: Carolina Calcavecchia

Em nossa conversa, Lenira me contou que também sentiu medo nessa cena:

Ela estava berrando aquelas coisas pra rua e minha vontade era tirar ela de lá. Fiquei

esperando que alguém gritasse alguma coisa de volta. Ou que arremessassem

alguma coisa pra dentro da sala. Ou até que alguém entrasse pela porta e invadisse a

sala. A gente não anda podendo dizer essas coisas alto desse jeito40.

Lembro do dia em que, com a peça já em cartaz, passei às atrizes um dispositivo novo para a

cena em que Sebastiana e Tuãni encontram Iaci: se alguém da rua, um transeunte qualquer,

ameaçasse atravessar a cena, elas deveriam interromper os diálogos e encontrar um jeito de

evitar que a pessoa cruzasse o espaço da cena. Meu entendimento era que, se a ação da

guerrilha era clandestina, as personagens não podiam permanecer imunes ao fato de serem

escutadas por desconhecidos. A ideia me ocorreu depois de observar Marcéli olhando

incansavelmente em todas as direções durante algumas apresentações.

Na verdade eu olhava pros lados de medo. Eu me preocupava que alguma coisa

pudesse acontecer com a gente ou com o público. Alguém tacar uma pedra. Teve um

momento em que eu não queria mais fazer a peça, mas eu não podia te ligar no meio

da temporada pra dizer “Oi, Ricardo, eu não vou mais fazer”. Não por você, mas por

40 A mesma entrevista concedida por Lenira Camargo a mim, no dia 07 de dezembro de 2018.

86

mim mesmo. Se nem em cena eu era capaz de lutar pelo que eu acredito, o que mais

eu ia fazer da vida? Foi aí que eu entendi que a peça era um exercício de coragem.41

Hannah Arendt, ao resgatar a compreensão do político na polis, de que tratamos no primeiro

capítulo desta dissertação, aponta que para os gregos havia uma ligação entre a coisa política

e o risco. “Só podia ser livre quem estivesse disposto a arriscar a vida” (1998, 16), numa

concepção que, em sua opinião, nunca mais teria desaparecido de nossa consciência e acabou

transformando a coragem numa virtude cardeal da política até os dias de hoje.

De fato, diante do panorama sociopolítico polarizado e raivoso que atravessávamos

naqueles meses de 2018, havia um necessário processo de transmutação de medo em coragem

que precisávamos realizar a cada noite de apresentação. Já não sabíamos muito bem a

diferença entre a vida e a peça, porque tanto o corpo como o entorno pareciam responder da

mesma forma. Ao longo da primeira temporada, era comum que carros cruzassem as

apresentações bradando gritos de “Bolsonaro!” ou “Olha o mito!” Em uma entrevista depois

do fim da temporada, Camila comentou os episódios:

Como eles [os gritos] vinham dos carros, era impossível que quem gritava realmente

estivesse ouvindo os diálogos. Então eu acho que as manifestações aconteciam

porque éramos corpos na rua fazendo coisas que não se esperam de corpos de na rua.

É a ideia de que a cidade não é feita pra isso. Quando acontece de um grupo de trinta

pessoas se sentar no gramado da Candelária? Quando você vê alguém correndo

dentro de um chafariz desativado? A gente estava desafiando a lógica concreta da

cidade. Concreta mesmo, porque tem a ver com os usos do cimento, do asfalto, das

paredes.42

De fato, parece não haver outra explicação que não o fato de que fossem gritos coreopoliciais

bradados contra a coreopolítica realizada pelos corpos do público e das atrizes na peça, se

quisermos retomar a discussão do primeiro capítulo a partir de Lepecki (2012) e Ranciére

(1996). Visto desse modo, e voltando à dimensão psicanalítica do estranho a partir de Kehl

(2018) e Freud (1969), a aparição desenvergonhada de movimentos que concretizam desejos

desviantes sobre a rua, produz a sensação de estranheza naqueles que, ao longo de suas vidas,

tiveram castrados seus desejos não normativos em favor da segurança de fazer o que deve ser

feito. A esses, só lhes resta bradar gritos ressentidos contra nossas coreografias desviantes.

41 Entrevista concedida por Marcéli Torquato a mim no dia 12 de dezembro de 2018. 42 Entrevista concedida por Camila Costa a mim no dia 12 de dezembro de 2018.

87

Foto: Carolina Calcavecchia

A presença do público, por isso mesmo, era fundamental para o acontecimento do espetáculo.

Logo nas primeiras vezes em que assisti a peça, entendi que só podíamos fazer Amazona

porque estávamos juntos, entre espectadores e equipe. Discutíamos com frequência a

importância da divulgação do espetáculo – não pela bilheteria em si, já que a colaboração era

consciente e voluntária, mas porque ter a “casa” cheia significava um corpo mais numeroso e

portanto mais forte na rua, o que servia como uma garantia de segurança. Algumas vezes, me

perguntei se era ético fazer o que estávamos fazendo. Afinal, comparando o projeto a um

espetáculo tradicional, seria nosso dever garantir a segurança de todos, a exemplo do que

fazem os vigias e brigadistas nas salas teatro convencionais? Qual era o limite de nossa

responsabilidade pela plateia itinerante na rua?

Em 1991, um grupo de ex-alunos de artes cênicas da Escola de Comunicação e Artes

da Universidade de São Paulo cria um grupo de estudos para investigar como os princípios da

mecânica clássica poderiam influenciar o movimento dos atores em cena. Apesar de a

princípio recusarem a ideia de que a pesquisa pudesse resultar na montagem de um

espetáculo, o processo acabou desaguando na criação de “O paraíso perdido”, que estrearia no

ano seguinte como a primeira montagem do Teatro da Vertigem. O espetáculo ocupava o

espaço da Igreja de Santa Ifigênia, em São Paulo, onde os espectadores acompanhavam a

88

trajetória do anjo caído numa espécie de circuito de estações, que discutia a descrença do

homem contemporâneo a partir da ideia da perda do paraíso. Perto da estreia, grupos de

católicos fervorosos tentaram impedir as apresentações e os atores recebiam ameaças

anônimas de morte e atentados, incluindo falsas denúncias de bomba nas premissas da igreja.

O espetáculo enfim conseguiu estrear, graças a uma militância católica progressista

capitaneada pelo então cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.

Ao longo dos trinta anos subsequentes, o grupo desenvolveria uma trajetória marcante,

conhecida por provocar de forma aguda os limites entre cena e não-cena, tanto pela

interpretação vertiginosa dos atores, como pelas pesquisas em espaços não convencionais. “O

livro de Jó”, segundo espetáculo, de 1995, se passava no ambiente real de um hospital

desativado, o Humberto I. Completando então o que ficou conhecido como a trilogia bíblica,

o Vertigem estreou em 2000 “Apocalipse 1,11”, que se desenrolava no antigo presídio do

Hipódromo, também na cidade de São Paulo. Para Sílvia Fernandes, colega de Araújo e

estudiosa do grupo, as escolhas são sempre por “espaços urbanos de alta densidade política e

simbólica” (2018, 61), provocando os limites que separam teatro de ato público. “Quando

você me chamou, era pra fazer uma peça de teatro, e não isso.” Esse isso na fala de Marcéli

daquela tarde de novembro diz respeito justamente a essa porção de ato público em Amazona

que já não podia separar-se do que seria “apenas” teatro, num contexto em que a radicalidade

da guerrilha na ficção tinha se misturado à radicalidade da ação teatral na cidade.

Para Fernandes, esse movimento inaugurado pelo Vertigem “faz parte da luta do teatro

para voltar a ocupar uma posição central na discussão performativa dos problemas do país”

(2018, 113). Jacques Rancière entende que as práticas artísticas de forma geral intervêm na

em nossos modos de fazer, de ser e em suas formas de visibilidade. Se, como disse Platão, os

artesãos “não podem participar das coisas comuns porque eles não têm tempo para se dedicar

a outra coisa que não seja o seu trabalho” (2005, 16), o artista seria um ser duplo, na medida

em que “confere ao princípio ‘privado’ do trabalho uma cena pública. Ele constitui uma cena

do comum [justamente] com o que deveria determinar o confinamento de cada um ao seu

lugar” (2005, 64).

À luz de Rancière e Fernandes, gosto de pensar que artistas na rua podem conferir ao

princípio privado do trabalho uma instância pública – isto é, do comum – que se desenrola no

próprio espaço público, embaralhando talvez triplamente os princípios de uma sociedade bem

organizada. De um lado, as atrizes fazem teatro para o público, seja ele formado por quem

veio assistir à peça ou por passantes desavisados que acabam seguindo o espetáculo. Por

89

outro, público e atrizes realizam juntos uma ação que provoca os modos de fazer com a cidade

– afinal, estejam conscientes ou não, os espectadores provocam eles mesmos uma perturbação

das coreografias urbanas ao experimentar, a convite do espetáculo, movimentos dissonantes

com as ruas da cidade.

3.3 Notas sobre a circulação do espetáculo

Na temporada da Candelária, além do contexto político singular que atravessávamos,

ocupávamos uma região predominantemente comercial e praticamente deserta no horário em

que fazíamos a peça, o que fazia com que a atmosfera de clandestinidade da guerrilha se

instalasse com facilidade. Com o fim da temporada, a circulação do espetáculo inaugurou

então uma fase nova da pesquisa, em que os deslocamentos pelos diferentes sites em que

apresentamos a peça (a Vila Autódromo, a praça do Comércio em Lisboa, o centro de Belo

Horizonte, a prefeitura e o Pátio dos Trilhos em Jacareí e a praça da Cinelândia no Rio de

Janeiro) de um lado nos empurrou para a aventura performativa e de outro nos obrigou a

assumir de vez o tensionamento da ficcionalização na paisagem da cidade.

Foto: André Mantelli

90

Foto: André Mantelli

91

Na apresentação da Vila Autódromo, a primeira depois da Candelária, éramos quase

cinquenta pessoas apertadas dentro da sala da casa de dona Penha. Foi uma sessão trabalhosa,

porque retomávamos a peça depois de cinco meses sem fazer o espetáculo, num lugar

completamente novo e com um número de espectadores que nunca tínhamos tido até então.

Foi emocionante confabular a guerrilha na casa de dona Penha e logo depois sair pelas ruas

performando a guerrilha ao lado das moradoras e moradores que de fato exercem hoje um

front guerrilheiro altamente propositivo na política habitacional e urbana do Rio de Janeiro.

Plantamos juntos, no megaestacionamento praticamente vazio que tomou conta do que era a

antiga vila. Você sente a aridez daquela placa de concreto duro por cima do que um dia já foi

casa, praça e comércio. A forte densidade simbólica do lugar dava a sensação de que

precisávamos fazer o mínimo – apenas abrir espaço para que o espaço pudesse falar por ele

mesmo.

Foto: André Mantelli

Três dias depois, embarcamos para o Festival Feminista de Lisboa. Lá, pela primeira vez, o

aparelho da guerrilha seria uma sala de teatro, no auditório da Evoé Escola de Actores. A

92

região, no entorno da praça do Comércio, é conhecida por ser um ponto de encontro frequente

de manifestações e passou nos últimos anos por um processo de modernização e gentrificação

muito similar ao do porto do Rio de Janeiro, o que trazia certa experiência comum entre o site

brasileiro e o português. Novamente, éramos um grupo numeroso, de quase 60 pessoas, e à

diferença das experiências anteriores fazíamos a peça numa região central e agitada da cidade.

Nesse contexto, o movimento coletivo chamava muita atenção, e só o ato de atravessar a rua

em grupo já era um grande acontecimento. Quando, então, atravessamos juntos o Arco do

Triunfo e nos abaixamos ao mesmo tempo para plantar entre as pedras portuguesas da rua

Augusta, os passantes da região ficaram atônitos diante de uma coreografia urbana

extraordinária. Como se não bastasse, a ação foi embalada por uma versão de Bella Ciao,

canção hino da resistência italiana contra o fascismo de Benito Mussolini, executada ao vivo

no acordeão por uma artista de rua vestida de noiva fantasma.

Foto: Raquel Pimentel

Em Lisboa, tivemos a oportunidade de endereçar de forma mais precisa o processo de

adaptação da peça, depois da primeira experiência da Vila Autódromo. Se há sempre algo do

real que resiste à representação, nossa estratégia foi acentuar a performatividade das atrizes,

chegando a abrir mão da própria ideia de marca em algumas cenas em favor da radicalização

93

da noção de jogo. Por outro lado, numa virada que a princípio pode parecer contraditória,

assumimos que estávamos realmente fazendo teatro na rua. Pedi então às atrizes que

empostassem a voz sem medo e que acentuassem as marcas e desenhos de outras cenas, que

passaram a se destacar mais fortemente do cotidiano da rua. No que diz respeito ao texto,

cortamos vários penduricalhos de processo que ainda resistiam às sete versões da dramaturgia

e a história passou a centrar-se mais na realização da ação do plantio. Assim, cada cena ou

contribuía ou se opunha a ela, delimitando mais claramente o desenvolvimento da ação

dramática da peça.

Foto: Raquel Pimentel

Acredito que esse movimento duplo, e aparentemente paradoxal, nos ajudou a endereçar de

forma mais estratégica a interface entre real e ficção que sempre se preserva na relação cena-

rua. Ricardo Fabbrini, ao comentar as montagens do Teatro da Vertigem, diz que os trabalhos

do grupo não buscam nem a “superação da forma artística visando à estetização da vida no

sentido das vanguardas artísticas do século passado” (2018, 164) nem tampouco “a

substituição da forma artística pelas formas das relações sociais, na direção do teatro do real

ou da estética relacional das últimas décadas” (2018, 164), o que me parece uma escolha

generosa tanto com o público como com o espaço, na medida em que preserva certo

94

tensionamento entre arte e vida sem borrar por completo seus respectivos limites. Assim,

acredito que possamos evitar a dualidade arte ou vida em favor do par arte e vida, real e

ficcional.

No contexto sufocante que atravessamos, aposto que a combinação entre vida e arte

possa brindar ao público, a partir da segurança de estar diante de uma obra de teatro em que

ele não esquece que é espectador antes de tudo, a oportunidade e a liberdade de experimentar

gestos e deslocamentos inventivos do corpo com a cidade. Subitamente, descobrimos que

movimentos que não imaginávamos serem possíveis – bradar sua revolta bem alto pela janela

para toda a cidade, confabular uma revolução no meio do passeio público, encontrar um

morador de rua, plantar sementes para que a natureza tome um dia toda a cidade, ou mesmo

caminhar pelas ruas do centro de sua cidade à noite – são sim possíveis. Ou melhor, são

possíveis porque estamos juntos, num processo coletivo que resvala ora na experiência com a

obra, ora na experiência com a vida. “A revolução não é uma ideia”, diz Iaci à certa altura da

peça. “É uma ação a muitas mãos.”

Foto: Raquel Pimentel

Claire Bishop, em sua extensa análise histórica, estética, ética e política sobre a arte

participativa, que vai dos futuristas italianos da década de 10 aos projetos site-specific da

95

década de 90, sinaliza que a virada participativa está intimamente ligada a um desejo de

misturar arte e vida e de aproximar as práticas artísticas de um engajamento sociopolítico pela

ação.

Para muitos artistas e curadores à esquerda, (...) ela [a participação] reumaniza uma

sociedade que foi deixada dormente e fragmentada pela instrumentalização

repressora da produção capitalista. Dada a saturação quase total de nosso repertório

de imagens no mercado, (...) a prática artística não pode mais girar em torno da

construção de objetos para serem consumidos diante de um observador passivo. Em

vez disso, é preciso que exista uma arte da ação, interagindo com a realidade, dando

passos – mesmo que pequenos – para o reparo do vínculo social. (...) Em vez de

suprir o mercado com commodities, a arte participativa é percebida como

canalizadora do capital simbólico da arte em direção a uma mudança social

construtiva (20012, 11-13, grifo nosso).43

Não se trata, com bem adverte Rancière (2008), de colocar público e elenco em ação na

tentativa de recuperar um sentido comunitário original que teria sido perdido pelo teatro – um

argumento que não compreende a dimensão de ação que escutar e assistir uma peça na

imobilidade física da plateia já implica. O que queremos, como aposta estética e política, é

experimentar um movimento de “redistribuição dos lugares (...), a invenção de novas

aventuras” (RANCIÈRE, 2008, 21-22)44, numa ação conjunta entre corpos e cidade. A cada

sessão, público e elenco tensionam linhas de poder tangíveis e intangíveis desenhadas por

arquitetura e por lei, numa coreografia dissonante que provoca as camadas de saber sobre a

rua. A cada apresentação, experimentamos e praticamos, pelo movimento, gestos

guerrilheiros, aventureiros, estranhos, utópicos e coletivos.

No texto de abertura do livro-catálogo “Living as form: socially engaged art from

1991-2011”, Nato Thompson recupera a sociedade do espetáculo de Guy Debord e aponta que

o campo das artes e as práticas artísticas socialmente engajadas compreendem um conjunto de

habilidades e modos-de-fazer que parecem indispensáveis para o pensamento e a prática

política nos dias de hoje.

Em um mundo com vasta produção cultural, as artes se tornaram um espaço

instrutivo para a conquista de um conjunto valioso de habilidades em técnicas de

performatividade, representação, estética e criação de afetos. Esse conjunto de

43 Tradução do autor. No original: “For many artists and curators on the left, Debord’s critique strikes to the

heart of why participation is important as a project: it rehumanises a society rendered numb and fragmented by

the repressive instrumentality of capitalist production. Given the market’s near total saturation of our image

repertoire, so the argument goes, artistic practice can no longer revolve around the construction of objects to be

consumed by a passive bystander. Instead, there must be an art of action, interfacing with reality, taking steps –

however small – to repair the social bond. (…) Instead of supplying the market with commodities, participatory

art is perceived to channel art’s symbolic capital towards constructive social change.” 44 Tradução do autor. No original: “redistribution des places (...), l’invention de nouvelles aventures”.

96

habilidades não é secundário na paisagem da produção política mas, na verdade,

necessário para sua manifestação. Se o mundo é um palco (como adiantaram tanto

Shakespeare como Guy Debord), então toda pessoa no planeta deve aprender o

conjunto de habilidades do teatro. O campo do político talvez possa ser o lugar mais

apropriado para as artes, afinal (2012, 22).45

Partindo de Thompson, e pensando no regime estético das artes proposto por Rancière (2005),

em vez de compreender que o campo do político seja o lugar mais apropriado para as artes,

desejo apontar que pode já não haver mais diferença substancial entre enunciados políticos e

artísticos. Para Rancière, o regime estético das artes – que se inaugura mais ou menos no

período que a história da arte convencionou chamar de modernismo – borra as fronteiras entre

a razão dos fatos e a razão das ficções. Arte e política, assim, se relacionam intimamente na

contemporaneidade na medida em que ambas operam intervenções no visível, no dizível e no

sensível partilhado. Tanto os enunciados políticos como os enunciados literários produzem

efeito no real e, nesse sentido, “recolocam em causa a partilha já dada do sensível” (2005, 60).

Quando plantamos em Amazona, importa o próprio concreto enquanto concreto; a própria

semente enquanto semente. Mas isso não quer dizer que semente e concreto não possam,

também, significar outras coisas.

De volta ao Rio para uma temporada na Cinelândia, o espetáculo deixou os seguranças

da Câmara de Vereadores desconcertados quando, na primeira noite de apresentação, quarenta

pessoas avançaram numa onda sobre as escadarias do prédio. Enquanto caminhávamos juntos,

os três homens vestidos de preto não sabiam o que fazer diante daquela multidão que, apesar

de ameaçadora, estava “apenas” fazendo teatro. Durante cinco noites seguidas, plantamos nas

escadarias da Câmara e era impossível não lembrar da vereadora carioca Marielle Franco,

executada dez dias antes do início de todo o processo. Estaríamos ali, mais de um ano e meio

depois, não fosse aquele crime tão brutal? Eu pensava no mandante de sua morte –

imaginava-o cruzando aquela mesma praça, subindo e descendo aquelas mesmas escadas.

Estávamos ali, em seu antigo local de trabalho, literalizando enfim a sina de Marielle. Em vez

de morrer, tornou-se semente.

Dias depois do fim da primeira temporada, quando voltamos à salinha para

desproduzir o espetáculo, percebemos, à luz do dia, que as sementes tinham brotado e que os

45 Tradução do autor. No original: “In a world of vast cultural production, the arts have become an instructive

space to gain valuable skill sets in the techniques of performativity, representation, aesthetics, and the creation

of affect. These skill sets are not secondary to the landscape of political production but, in fact, necessary for its

manifestation. If the world is a stage (as both Shakespeare and Guy Debord foretold), then every person on the

planet must learn the skill sets of theatre. The realm of the political may perhaps be the most appropriate place

for the arts, after all.”

97

pés de abóbora estavam de fato crescendo pelo concreto. Até hoje eu penso neles. A cada

chuva, me pergunto se ainda seguem vivos.

Eles estavam crescendo.

Crescendo.

Salve a força das matas. Salve o povo da floresta. Salve o povo da rua.

Salve o caboclo Raoni. Salve o caboclo Tupiara. Salve dona Joana Dark.

Salve as crianças. Salve os espíritos mirins.

Agradeço por, mais uma vez, poder contar esta história.

Foto: Marcéli Torquato

98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À medida que crio uma sequência e ligo um evento ao outro, oferecendo motivações

para iluminar as pontes entre eles, criando padrões claros, identificando

determinados eventos ou momentos de reconhecimento como centrais, até mesmo

assinalando certos padrões recorrentes como fundamentais, não comunico

meramente algo sobre meu passado, embora não haja dúvidas de que parte do que

faço consiste nisso. Eu também enceno o si-mesmo que tento descrever; o “eu”

narrativo reconstitui-se a cada momento que é evocado na própria narrativa.

Paradoxalmente, essa evocação é um ato performativo e não narrativo, mesmo

quando funciona como ponto de apoio para a narrativa (BUTLER, 2017, 88-89).

O trabalho que você tem em mãos é uma tentativa de articular um percurso de pesquisa ao

mesmo tempo teórico e prático. Para dar conta dessa tarefa, optei pela reconstrução narrativa

de diversos acontecimentos que vivemos ao longo da realização do projeto, geralmente

baseada em memórias pessoais. Se, como vimos no segundo capítulo, a escritura do texto da

peça se deu a partir da costura de materiais reunidos durante as aventuras estranhas, esta

dissertação repete o procedimento, aplicando agora esse mesmo princípio compositivo de

recorte e colagem à escrita deste texto, numa recombinação múltipla a partir de cadernos e

diários de processo, arquivos do projeto e textos teóricos de vários autores e autoras com

quem dialogamos ao longo dessas últimas páginas.

As palavras, no entanto, jamais poderão dar conta da experiência do real. Como vimos

em Butler (2017), haverá sempre uma opacidade com a qual teremos que nos deparar

enquanto tentamos recuperar e relatar o passado. Certo grau de fabulação, portanto, é sempre

inevitável. A narração em primeira pessoa, então, surge nesse cenário como resposta

performativa a esse dilema, ao mesmo tempo em que também investiga as especificidades do

que possa ser uma pesquisa no campo das artes. Afinal, como nos lembra Ericsson Pires, “há

sempre construções de função poética no seio da elaboração teórica. (...) Poesia é pensamento

e vice-versa” (2007, 81). Por isso mesmo, talvez valha relembrar o óbvio: apesar das

múltiplas vozes evocadas ao longo desta dissertação (artistas da equipe, pessoas da rua,

teóricos etc.), esta é, inevitavelmente, uma visão pessoal e implicada. Voltando à perspectiva

cartográfica de que tratamos no primeiro capítulo, trata-se de uma forma de produção de

conhecimento que não pode admitir qualquer separação estanque entre sujeito e objeto.

Para além disso, algumas considerações acerca do processo de escrita da dissertação

também se fazem necessárias. O primeiro capítulo, que versa sobre as aventuras estranhas, foi

concebido pari passu com a realização das respectivas experimentações práticas que o

99

acompanham. Foi ainda durante as rodas que tive contato pela primeira vez com a cartografia

em Suely Rolnik (2016) e com as noções de política em Arendt (1998) e Rancière (1996), que

levei ao grupo para que fossem discutidas coletivamente por nós. Foi dessas discussões que

me surgiu a indicação de leitura de “Metafísicas Canibais”, de Viveiros de Castro (2015), que

comprei numa livraria no Centro da cidade logo depois da última roda. Nos meses seguinte,

enquanto começávamos a experimentar nossas primeiras aventuras, eu lia “Cidade ocupada”

de Ericsson Pires (2007) e “O estranho”, de Freud (1969). As leituras, nesse sentido, eram

tentativas de encontrar respostas para as perguntas que surgiam ao longo das experimentações

práticas. E, via de regra, em seguida faziam deslanchar novas investigações práticas. A ética

em Butler (2017), por exemplo, surgiu da necessidade de encontrar estratégias claras para a

dificuldade que as mulheres do grupo enfrentavam na hora de se aproximarem de figuras

tradicionalmente opressoras, como homens mais velhos. Em meio a tudo isso, eu já começava

a esboçar os artigos que, mais tarde, viriam a ser o esqueleto do texto do primeiro capítulo. A

relação entre teoria e prática, portanto, era indissociável.

Com o avanço do processo artístico, no entanto, e as consequentes altas cargas de

trabalho demandadas não só pela escritura e encenação do texto, mas especialmente pela

produção da estreia da peça, os dois capítulos seguintes foram escritos a posteriori – e o

mesmo vale para o grosso das leituras que trazemos para o debate em cada um deles. Isso

significa que só tive contato com algumas das bibliografias, a exemplo das experiências da

cena em espaços não convencionais no teatro de invasão de Carreira (2008), no Teatro de

Concreto dirigido por Wilker (2014) e no Teatro da Vertigem a partir do livro organizado por

Fernandes (2018), depois de já realizadas mais de vinte apresentações da peça. Olhando em

retrospectiva, sinto que se eu tivesse tido contato com suas ideias antes, talvez experimentasse

um sistema de ensaio diferente, que desse às atrizes uma estrutura de trabalho mais porosa.

Hoje, depois de estudar diferentes modos de aproximação do trabalho com a rua, percebo que

a forma como optei por levantar as cenas, conforme descrevi ao longo do segundo capítulo,

acabou criando partituras demasiadamente rígidas, que precisavam ser cumpridas e

executadas, com pouco espaço de flexibilização e adaptabilidade para o momento do encontro

entre elenco, público e cidade no momento de cada apresentação. Não é à toa, portanto, que

Amazona se transformou tanto ao longo da circulação, conforme apontei no final da pesquisa,

depois que passei a ter contato com a experiência de trabalho desses artistas pesquisadores, o

que me levou a aprofundar a performatividade de um lado e o próprio teatro de outro, me

fazendo enfim perceber que não se tratava de suprimir um dos dois em favor do outro.

100

Ao ler este trabalho, é importante também ter em mente que sempre fomos uma

maioria quase absoluta de corpos brancos perturbando as coreografias da cidade. Se entre os

artistas que atravessaram o período das aventuras estranhas só Elmir Mateus e Mauricio Lima

se autodeclaravam negros, mais tarde, na ficha técnica do espetáculo em si, a branquitude era

generalizada. Esse dado certamente remete à limitação de nossos próprios círculos pessoais e

profissionais, revelando as marcas superficiais de um racismo profundo que inevitavelmente

carregamos. Ao mesmo tempo, porém, essa situação indica também uma marca de nosso

privilégio. Afinal, eu mesmo só posso me dar ao luxo de ser um artista hoje no Brasil, apesar

das péssimas condições de trabalho em termos de retorno financeiro, porque sei que posso

eventualmente contar com um suporte financeiro familiar branco que se faça necessário.

Importa dizer que, quando realizamos aventuras estranhas, nossos corpos são

inevitavelmente privilegiados por sua branquitude. Assim, tensionam as linhas de força da

coreopolícia urbana apenas até certa medida. Na temporada da Cinelândia, recebemos em

nossa equipe Faed Breno, aluno de artes cênicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro, que cumpriu conosco seu estágio curricular, acompanhando e trabalhando nos

ensaios e nas apresentações do espetáculo. Faed é negro e mora no Jacarezinho. Em seu

relatório final, ele menciona ter se perguntado “como seria se no elenco houvesse um corpo

negro ou alguém que morasse nas favelas do Rio, como mudaria ou tensionaria mais os

significados da peça. É claro que existe um campo de atravessamento sobre esse lugar na peça

mas ele não é presente fisicamente” (2019, online).

Por isso mesmo, gosto de me perguntar o que seria de nós e de nossas aventuras se

fôssemos corpos negros que estivessem desenhando com giz branco no asfalto preto da

Presidente Vargas, saindo em disparada pela rua, cumprimentando um desconhecido e

insistindo que nos conhecemos, ou mesmo regando o chão da praça. Todas as vezes que,

durante os ensaios, as atrizes passavam correndo na frente de um mesmo bar que ficava na

esquina da rua da Candelária com a Teófilo Otoni, elas invariavelmente tinham seus corpos

objetificados por gritos machistas e sexistas de um grupo de homens que frequentavam dia

após dia aquele mesmo lugar. Eles não se cansavam, e ver aquilo me fazia sentir vergonha de

ser homem. Quando a peça estreou, muitas vezes coube ao próprio público repreendê-los, o

que começou a inibi-los. E se fossem corpos de mulheres negras correndo?

A esse respeito, é importante também falar de meu trabalho de homem condutor de um

projeto que conta uma história de luta de mulheres. Quando começamos a trabalhar, era

impossível imaginar seria esse o enredo ao qual chegaríamos ao final do processo. A ideia

101

apareceu pela primeira vez quando propus que levássemos para a dramaturgia da peça a

história que já estávamos performando em processo. Na época, antes da chegada de Victor

Seixas, Gunnar Borges era o único homem do elenco, e a guerrilha tornou-se primeiro

feminina para depois tornar-se também uma vingança da terra. Atento a meu lugar enquanto

homem, tentei conduzir um processo com escuta e amplamente aberto à colaboração. Mesmo

assim, percebo hoje, terminei conferindo à figura masculina de Gilmar o personagem mais

complexo e encantador da peça, o que me parece jogar contra o protagonismo feminino

pretendido pela própria ação da peça.

Dito isso, é importante realçar ainda que este trabalho claramente não esgota os

campos de pesquisa abertos por Amazona. A ida a Portugal, por exemplo, foi um ponto

marcante da história do espetáculo. Para chegar até lá, contraímos uma dívida de 24 mil reais,

porque o Festival Feminista de Lisboa cobria as despesas internas (como alojamento,

translados e alimentação), mas não as passagens aéreas. Coletivamente, entendemos que

aceitar o convite seria um passo importante para o amadurecimento do projeto e do grupo.

Lançamos então uma campanha de financiamento coletivo e arrecadamos quase 15 mil reais

em diversas ações. Foi um processo complicado, em que eu centralizei muitas funções e,

sobrecarregado, conduzi mal algumas tomadas de decisão. Além disso, vínhamos acumulando

tensões entre nós, que acabavam sufocadas diante do fluxo gigantesco de trabalho. Estávamos

sempre correndo atrás de resolver os problemas, e nunca adiantados a eles. Era difícil dar

conta da campanha, dos ensaios, da dramaturgia nova, da produção da viagem e das

apresentações em si, tudo isso sem nenhum recurso financeiro. Era também a primeira vez

que Camila Costa e Marcéli Torquato, as duas mães do grupo, passariam tanto tempo longe

das filhas Serena e Rosa, o que abriu um debate relevante em nossas discussões sobre trabalho

e maternidade, que não tivemos espaço de compartilhar aqui.

Em meio a esse processo turbulento, recebemos dois apoios externos essenciais, que

vieram como contribuições não-financeiras para nossa campanha de crowdfunding. O

primeiro veio de Luiza Toschi, amiga e facilitadora em comunicação não-violenta, que nos

ofereceu uma sessão de mediação em que pudemos abrir um espaço de troca clara e sincera

sobre o que estávamos vivendo desde o dia em que havíamos aceitado o convite do festival. O

segundo foi uma sessão de constelação familiar, facilitada por Mariana Ferreira, em que

tivemos a oportunidade de nos conectar de forma corporal com as questões afetivas e

emocionais que nos atravessavam no meio daquele turbilhão. Os dois encontros, além de nos

realinhar coletivamente, trouxeram dois resultados especialmente importantes: um protocolo

102

de comunicação para tomadas de decisão e um passo a passo com etapas de produção para

apresentações futuras, que também não tivemos oportunidade de compartilhar aqui.

As cinco sessões da Cinelândia, em setembro de 2019, vieram então como

contraexemplo da produção da viagem de Lisboa. Era uma oportunidade de colocar em

prática tudo o que tínhamos aprendido. Dividimos tarefas claras entre nós e convidamos

outros cinco profissionais para trabalhar na produção e na comunicação da temporada. Ao

todo, éramos uma equipe de onze pessoas. À diferença do sistema de bilheteria da Candelária,

em que a contribuição era consciente e voluntária, optamos por experimentar três faixas de

valor: um mínimo de 20 reais, um valor sugerido de 30 reais e um ingresso abundante a 40

reais. Com isso, o valor médio das entradas passou de 20 para 31 reais por pessoa, um

aumento bastante significativo, de quase 50 por cento, que ao final dos cinco dias de

apresentação pagou os profissionais convidados e ainda reverteu 3 mil reais para a dívida de

Portugal, que seguíamos pagando parcelada em diferentes cartões de crédito. Enquanto

escrevo, ainda nos faltam outros 3 mil reais para quitar por completo a ida para Lisboa.

Partilho tudo isso aqui para dizer que também interessa a este projeto uma

investigação sobre modos de produção alternativos, frente ao cenário desastroso em que se

encontra a economia da cultura carioca. Especialmente no município do Rio de Janeiro,

vivemos uma asfixia tripla, diante da atual inexistência de políticas culturais nos níveis

municipal, estadual e federal. Urge, portanto, que investiguemos formas de fazer cultura e

pesquisar arte que sejam sustentáveis, o que deixa outra porta aberta ao futuro

desenvolvimento desta pesquisa. A formação do artista da cena tradicionalmente dedica muito

pouco ou quase nenhum tempo a questões como administração financeira e gestão de pessoas,

saberes que são imprescindíveis para a sustentabilidade da economia da cultura hoje. Como

investir? Como cobrar? Como repartir? Essas foram algumas das questões que nos

atravessaram de forma contundente ao longo do processo e que ainda precisam ser melhor

estudadas e compartilhadas.

Em Belo Horizonte, por exemplo, o cachê que recebíamos não era suficiente para

pagar passagens, estadias e ainda injetar algum dinheiro no fundo da dívida. Adotamos então

mais uma vez o esquema de hospedagem solidária e fomos recebidos na casa de Márcio

Murari, estudante de artes cênicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Ele esteve

conosco durante os ensaios, nos levou para caminhar pela cidade e deu-nos um panorama de

sua visão sobre os acontecimentos políticos, sociais e econômicos da Belo Horizonte daqueles

últimos anos. Foi uma parceria fundamental no processo de adaptação da peça. Uma das

103

coisas que ele nos contou, por exemplo, foi que havia um rio soterrado sob o percurso que

fazíamos, o que evidentemente acabou entrando numa das falas da peça. Também por

sugestão dele, a plantação aconteceu ao lado da sede local da Fundação Nacional das Artes, a

Funarte, numa rua em que um guardador de carros cultiva há anos por sua própria conta

diversas árvores frutíferas nos canteiros das calçadas.

O encontro com Murari fez com que entendêssemos a importância de costurar sempre

parcerias locais para adaptar o espetáculo a cada novo espaço de apresentação. Replicamos a

ideia na apresentação de Jacareí, no interior de São Paulo, e tivemos conosco Monique

Ramos, aluna de um curso livre de teatro de São José dos Campos, e Felipe Gomes, músico e

contador de histórias da cidade. Para a temporada relâmpago da Cinelândia, como mencionei

mais acima, tivemos o apoio de Faed Breno. Como estávamos no Rio, nossa cidade de

origem, é verdade que não precisávamos dele para adaptar a peça, mas entendemos que

Amazona podia continuar sendo essa produção de pororoca, ou seja, uma plataforma para

encontrar gente que, de outra forma, talvez não chegássemos a conhecer.

Outra parte da pesquisa que não pudemos tratar aqui foi o Lab Aventura, um

laboratório do processo de criação da peça ministrado por mim e pela atriz Chris Igreja, que

nasceu originalmente como uma das ações para arrecadar fundos para as passagens de Lisboa.

Trata-se de um espaço de compartilhamento de ferramentas que tensionam os usos do espaço

urbano. No Rio, no último dos quatro dias de laboratório, o ator Zane Harari deitou embaixo

da Pira Olímpica, que fica entre a Presidente Vargas e a Baía de Guanabara. Não passou

muito tempo até que uma jovem se juntasse a ele, e logo nós que estávamos de fora

observando também nos juntamos aos dois. Outro casal que passava por ali também se deitou

e ficamos todos ali, sobre o chão azul e seco do chafariz desativado, olhando o céu do fim de

tarde. Mais cedo, naquele mesmo dia, o artista João Rios tinha tomado café com whisky na

parada São Bento da linha do VLT, com as calças arregaçadas até os pés, a cueca à vista

cobrindo seu sexo. O Lab Aventura também aconteceu em Jacareí, contratado pela fundação

cultural do município. As duas experiências, ao fim, demonstraram a necessidade de dedicar

pensamento ao que pode vir a ser uma pedagogia estranho-aventureira.

Termino de escrever esta dissertação nos primeiros dias de fevereiro de 2020 e, quase

dois anos depois do início de tudo, retorno à pergunta-mote do projeto. Como então responder

propositivamente, e não reativamente, diante de tudo o que estamos vivendo? De lá pra cá, a

onda conservadora se aprofundou e o cenário político se tornou ainda mais complexo.

Olhando para o que é Amazona hoje e pensando no desenvolvimento desta pesquisa, sinto

104

desejo de radicalizar ainda mais a propositividade da ação. Sebastiana, Moema, Tuãni e Iaci

ainda lutam contra alguma coisa. Plantam como forma de reagir a um estado sociopolítico

calamitoso para que a floresta então destrua o concreto e tome de volta toda a cidade. A peça

aponta para um outro modo de ver as coisas da rua e lembra a porção de terra que

inevitavelmente contém a Terra. Faz ver no concreto uma possibilidade ao mesmo tempo

anterior e futura, a natureza que lhe constitui e que sempre pode voltar a ser.

No entanto, pensando no conceito de utopia em Bloch (2005) de que tratamos no

primeiro capítulo, para quem o sentido utópico não é espacial mas imagético (menos portanto

um lugar a se chegar e mais um expansor de nosso imaginário de possíveis), me interessaria

hoje encenar não mais a luta contra este mundo em favor de um outro, que queremos um dia

vir a construir; mas, em vez disso, a própria concretização de nosso desejo de futuro. Como

seria, afinal, se o espetáculo pudesse materializar uma cidade já tomada pelas plantas? Ou

ainda: como poderíamos materializar um mundo em que, conforme aponta a sabedoria

ancestral da cosmologia ameríndia, já não exista mais essa separação destrutiva e ignorante

entre humanidade de um lado e natureza de outro, aquela enquanto sujeito e esta enquanto

objeto, marca tão fundamental ao Antropoceno46?

Política, portanto, não pode mais significar apenas o que acontece entre os homens,

conforme apontou Arendt (1998), mas algo que acontece entre diversos entes naturais – o que,

por um acaso, também inclui a nós, humanos. Para Viveiros de Castro, é preciso reverter o

quadro urgentemente. Está claro que a compreensão de Sociedade que carregamos até aqui é

suicida e nos promete um futuro desastroso. “‘Nós, civilizações’, somos mortíferas, e

mortíferas não apenas para nós, mas para um número incalculável de espécies vivas”, ele diz

(2011, online). Ailton Krenak, líder do povo indígena Krenak, numa conferência ministrada

em Portugal, fez questão de relembrar aos europeus que “o simples contato entre humanos

daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois

se chamou epidemia (...). Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava

um rasto de morte por onde passava” (2019, 71).

46 A noção de Antropoceno vem sendo disputada internamente na comunidade científica para designar uma nova

era geológica do planeta, que teria começado entre os séculos XIX e XX, quando os impactos da atividade

humana passam a influenciar de modo significativo a paisagem, os ecossistemas e a geologia terrestre,

principalmente em função da aceleração industrial e do uso de produtos químicos na agricultura, entre diversos

outros fatores. A proposta ainda não foi validada pelo International Commission on Stratigraphy (ICS), entidade

científica cujo congresso tem jurisprudência sobre o tema, mas desde 2015 a ideia vem ganhando cada vez mais

força nas subcomissões da congregação. Em 2021, a proposta voltará a ser votada pela reunião da ICS. Cf.

SUBRAMANIAN, M. Anthropocene now: influential panel votes to recognize Earth’s new epoch Meera

Subramanian. 2019. Nature. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/d41586-019-01641-5>. Acesso

em 07 fev 2020.

105

Torna-se fundamental, então, recusar certas partilhas do sensível que fundamentam

uma epistemologia ocidental que, no fim das contas, é assassina. Elas são “um abuso do que

chamam de razão”, conforme denuncia Krenak (2009, 19). Entre elas, está a concepção de

que a natureza seja algo que está fora de nós. “Não há fora nem dentro: o fora é nosso centro,

e o cosmos é um denso tecido de dentros”, prossegue Viveiros de Castro. “Somos natureza,

ou não seremos” (2011, online). Assim, não poderá existir fato social que não seja ao mesmo

tempo um fato ambiental, o que vai ao encontro da fala de Krenak, que é categórico ao

afirmar que “tudo em que eu consigo pensar é natureza” (2019, 17).

Diante desse cenário, acredito, torna-se imperativo que nós humanos reconheçamos de

vez nossa compreensão de mundo limitada para enfim aceitarmos nossa subordinação, e

mesmo nossa pequenez, diante de uma totalidade que nos engloba e determina. Trata-se,

como sugere Viveiros de Castro (2011), de uma busca pela transcendência não mais por meio

do divino cristão, mas pela natureza imanente da terra.

Volto, então, mais uma vez à pergunta: como responder propositivamente diante do

atual estado das coisas? Seguindo o pensamento dos dois, só me resta arriscar que não haverá

saída propositiva que não passe pelo abandono radical do paradigma racional e cientificista

ocidental que nos trouxe até aqui. Deparemo-nos de uma vez por todas com o fato de que o

Antropoceno fracassou e sejamos nós mesmos os sujeitos de nossa própria transformação,

antes de que sejamos extintos de uma vez por todas. Trata-se de uma transformação radical,

que temos que enfrentar “ainda que isso signifique mudar muito daquilo que muitos

considerariam como a essência mesma de nossa civilização” (VIVEIROS DE CASTRO,

2011, online). Ironicamente, Krenak aponta que o fim do mundo eminente que nos apavora

tanto (agora que finalmente percebemos que estamos em colapso) já é uma realidade para seu

povo há mais de cinco séculos, quando da invasão portuguesa às terras que habitavam. “Eu

fico imaginando como era isso tudo aqui antes deles chegarem”, Gilmar conta à Moema em

Amazona. Desde então, eles tiveram que lutar incansavelmente pela manutenção e pela

legitimação de seu modo de vida, porque perceberam que o “programa” que lhes estava sendo

proposto era um erro (KRENAK, 2019, 29). Minha pergunta, então, altamente implicada na

mobilização de uma imagem de utopia propositiva que possa abalar nosso horizonte de

possíveis, passa a ser: como podemos des-programar o Antropoceno?

Krenak nos dá uma pista de que a resposta possa estar em nossa capacidade de sonhar.

Comumente, no entanto, sonhar significa descomprometer-se da realidade e do sentido prático

e objetivo das coisas ou, no mais das vezes, aparece na fala cotidianas como um sinônimo

106

para desejo. Krenak, por sua vez, aponta que para diversas sociedades indígenas americanas

sonhar é antes de tudo uma instituição de formação de cosmovisão e de abertura de

possibilidades. Trata-se, ele diz, de uma prática regular, isto é, um exercício disciplinado para

“uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras

visões da vida não limitada” (2019, 66).

Para mim, uma resposta propositiva hoje passa, necessariamente, por sonhar acordado.

Sonhar em espaços públicos, sonhar nas salas de aula, sonhar nas salas de teatro, nos

shopping centers, nas galerias de arte, no alto do Cristo Redentor e até mesmo em Brasília, na

Esplanada dos Ministérios. Experimentar qualquer ação nesse sentido, porém, poderá ser visto

como loucura – ou melhor, como delírio. Do latim delirare, delirar significa literalmente a

ação do arado que sai para fora de seu sulco. Delirar parece ser a potencialização do estranho

e de sua capacidade de promover dissensos; da aventura e de sua capacidade de agenciar

encontros. Delirar é praticar o real expandindo o campo do possível e aderindo a uma outra

ética, ainda por inventar. Delirar é comprometer-se com uma potência de vida que implode

compreensões estanques e limitantes do que seja a própria vida. É resposta propositiva ao

estreitamento dos horizontes, à crise do real, às fake news. Delirar é justamente o que nós,

artistas, melhor sabemos fazer – e talvez o que de melhor tenhamos a oferecer a esse mundo

tão desgastado. Deliremos, pois.

107

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111

ANEXO: A DRAMATURGIA DE AMAZONA

CENA 1 SEBASTIANA

SEBASTIANA

Vocês não sabem como fico feliz de poder falar pra vocês. Mesmo que eu não possa gritar, eu

ainda posso falar. Eu não sei quantas notícias boas eu tenho pra contar, não tem tanta notícia

boa assim. Não dá pra dizer que as coisas vão bem mas a gente tá vivo aqui agora. E o agora

acontece no corpo. O problema é que o corpo, eu não sei se vocês também sentem isso, o

problema é que o corpo anda desgastado. Mas isso não é desculpa pra se resignar, isso é

justamente pra gente se perceber no jogo, entende? O embate tá aí, sempre teve, mas agora a

coisa é diferente, agora a luta é correr por dentro. Fazer daquilo que não pode ser um grande

PODE SER SIM, PODE SER SE A GENTE TIVER JUNTO – ou melhor, TEM QUE SER

AGORA. Não é mais sobre perder. Eu tô falando de um lugar perto de onde vocês já tão.

Vocês tão muito mais próximas do que vocês imaginam. Na hora certa, vocês vão saber de

tudo. De todo o plano. Todo mundo entendeu?

Coloca o público pra dentro do aparelho. A cena vai em looping, até todo público chegar e

entrar. Sebastiana espera.

CENA 2 SEBASTIANA, MOEMA

Chega Moema.

MOEMA

Eu vim assim que eu vi.

Moema acende a luz.

SEBASTIANA

Apaga. (Tempo.) Esse fogo. Quando a gente pensa que as coisas não podiam piorar.

112

MOEMA

Sempre pode piorar. Eu vi um guarda municipal sorrir.

Tempo.

SEBASTIANA

É uma armadilha.

MOEMA

Como assim?

SEBASTIANA

É a desculpa perfeita. Quando o caos toma conta, o que que as pessoas querem? Ordem. Elas

sentem medo.

MOEMA

Você acha mesmo que eles?

SEBASTIANA (interrompe)

Pensa nos lugares que queimaram. Nenhuma resposta do bombeiro, imprensa, nada.

MOEMA

Cadê elas?

SEBASTIANA

Ainda não chegaram. Só eu. E elas.

Tempo.

SEBASTIANA

Eu vi que você me escreveu. A última vez que a gente se viu, me desculpa.

113

MOEMA

Eu quis dizer que eu não quero mais ser testada. Eu não tenho que provar pra vocês que eu tô

com vocês.

SEBASTIANA

Eu sei.

MOEMA

Eu tô aqui.

SEBASTIANA

Eu confio em você.

MOEMA

A Tuãni não.

SEBASTIANA

É difícil pra ela.

MOEMA

Difícil? As pessoas não sabem como é difícil quando você tem que trabalhar de capacete dia e

noite. Dia e noite. Aquele troço apertado espremendo a cabeça, não dá pra pensar usando

aquilo. A Tuãni faz questão de não entender.

SEBASTIANA

Você sabe que é difícil pra ela.

Tempo.

MOEMA

Foi como se vocês não pudessem confiar em mim.

114

SEBASTIANA

Aquele dia foi confuso, eu não tava bem. Eu tinha decido tomar o remédio logo depois da

nossa roda. Eu tava ali com ele no bolso e por mais que eu tivesse dizendo pra mim mesma

que tava tudo bem, que eu tava calma, zen, eu fiquei nervosa.

MOEMA

Você tomou?

Tempo.

SEBASTIANA

Deu tudo certo. Foi menos forte que da outra vez. Eu ainda tô sangrando, cólica, mas tá tudo

bem.

MOEMA

Você tá bem pra tá aqui hoje?

SEBASTIANA

Não era com você aquele dia, era escolher não ter um filho agora. Outra vez. Moema. A Tuãni

quer devolver com explosão.

MOEMA

...

SEBASTIANA

Botar fogo em tudo aqui. Na cidade.

MOEMA

Que?

SEBASTIANA

Ela acha que pode ser uma oportunidade.

115

MOEMA

Você tá louca?

SEBASTIANA

De contra-atacar, pegar eles de surpresa.

MOEMA

Vocês tão loucas.

SEBASTIANA

Moema.

MOEMA

Isso não é o combinado, eu não acredito que você

SEBASTIANA

Eu acho que a gente precisa conversar, acolher o desejo dela.

MOEMA

Eu tô fora. Onde ela tá?

SEBASTIANA

Chegando.

Tempo.

MOEMA

E a Iaci? A Joana?

SEBASTIANA

Tão na rua, plantando a lua. Eu não tô dizendo que eu tô de acordo, eu só acho que a gente

precisa decidir junto.

116

MOEMA

Não tem decisão, Sebastiana. O que foi que você me falou no dia que você me chamou? A

gente sentada no meio-fio na frente da minha casa completamente destruída e você disse: não

tem nada mais parecido com uma casa em ruína que uma casa em construção. Desde quando

explosão é proposição, Sebastiana?

Tempo.

SEBASTIANA

Eu tava vindo pra cá hoje e passou um cara numa van xingando um cara: seu merda. E o

outro: seu merda. Não, você que é um merda. Você que é um merda. Depois um casal, a

menina chorando. Uma moradora de rua dormindo num cobertor. Ela acordou, abriu o olho e

veio uma figura saltitando de casaco rosa mandando beijo pra todo mundo. (Verifica a

entrada.) Você sabe o que fizeram? Passou uma viatura, os caras desceram, prenderam e

levaram o do casaco rosa. Eu tô com você, explodir não me convida mas chega uma hora que

eu não sei mais

CENA 3 SEBASTIANA, MOEMA, TUÃNI

Batem à porta. Sebastiana abre. Entra Tuãni.

TUÃNI

A Iaci e a Joana?

SEBASTIANA

Ainda não chegaram, tão

TUÃNI

Os vinte e três foram presos.

MOEMA

Presos?

117

TUÃNI

Hoje. E depois sumiram. Ninguém sabe deles, nem os advogados.

SEBASTIANA

Eu preciso fazer cocô.

Sebastiana entra no banheiro.

MOEMA

E essa história de explosão?

TUÃNI

Que explosão?

MOEMA

Essa história de você querer explodir coisa por aí. Que a gente exploda.

TUÃNI

Por que você falou pra ela antes de todo mundo chegar?

SEBASTIANA (de dentro do banheiro)

A gente falou sobre isso.

TUÃNI

Aqui não neva, não tem furacão, não tem tempestade, não tem terremoto. A gente podia tá

melhor? Podia. Só tem homem branco, aí vem uma mulher preta tenta mudar as coisas e eles

fazem o que? Matam. Matam. A gente tem que parar tudo, explodir tudo mesmo. Se todo

mundo resolve explodir uma parte, pronto, aí eles fazem alguma coisa.

MOEMA

E qual o limite? Da violência.

118

TUÃNI

Eles não têm limite. E a gente sempre tem, a gente sempre joga limpo. E do que que adianta?

Eu quero explodir essa cidade.

MOEMA

E se pegar em gente?

TUÃNI

A gente ganha uma boa manchete. Uma explosão é crime. Dez explosões é ato político.

MOEMA

A gente vai criar um monstro que a gente não vai ser capaz de bancar.

TUÃNI (para o público)

E você não fala nada?

MOEMA

Ela acabou de chegar, elas nem sabem de tudo ainda. Tuãni, sem conversar antes no coletivo,

não tem mudança. Foram meses pra construir esse plano. A gente continua com ele essa noite.

TUÃNI

Pensa, Moema. Se são eles mesmos que tão por trás desse fogo. Eles tocam o terror, todo

mundo desorientado, o povo pede intervenção, eles têm a receita pronta e saem da história

como se fossem os salvadores da pátria. Você entende que se a coisa pegar fogo não tem volta

atrás? Que lei marcial dá toque de recolher, proíbe as pessoas de ficarem na rua. Eles

acabaram de prender vinte e três pessoas que não se conheciam por formação de quadrilha.

Você já pensou o que eles podem fazer com a gente?

MOEMA

A gente não sabe se são eles mesmo que tão por trás desse fogo.

TUÃNI

A gente conseguiu um áudio de uma reunião do governador.

119

SEBASTIANA (ainda do banheiro)

Deu certo?

MOEMA

Do que vocês tão falando?

TUÃNI

A gente colocou gente nossa dentro de uma reunião a portas fechadas do governador com os

figurões todos e eles dizem tudo. São eles que tão por trás do fogo. A gente tem que fazer uma

virada, o plano não tá mais faz mais sentido pra mim. A gente precisa responder hoje, agora.

Se a gente sai botando fogo em tudo eles não vão saber o que fazer, eles não tão esperando, é

a nossa chance.

MOEMA

Gente nossa dentro da reunião? Que reunião? Por que a gente não falou disso na última roda?

(Tuãni não responde.) Sebastiana?

SEBASTIANA (saindo do banheiro)

A gente falou você já tinha ido embora.

Tempo.

MOEMA (para Tuãni)

Você esperou eu ir embora. (Tempo.) Vai ter um dia que eu vou perder a vontade e sabe o que

é pior? Isso é repetir a mesma coisa que eles fazem, a mesma falta de confiança. É que nem

explodir, é responder na mesma moeda.

SEBASTIANA

Ela tem razão, é sobre confiança.

Toca o celular de Tuãni. Ela atende.

120

SEBASTIANA

Desliga o celular. (Para o público:) Desliga o celular. (Tempo.) Nada delas.

MOEMA

A gente começa a se preocupar?

SEBASTIANA

Elas devem ter se atrasado, daqui a pouco

TUÃNI

A gente tem que procurar.

SEBASTIANA

Então vamos. Moema vem comigo pela Senador Dantas e Tuãni procura pelos becos.

TUÃNI

Eu não quero ir sozinha.

SEBASTIANA

A gente precisa se dividir.

TUÃNI

Eu não quero ir sozinha hoje.

MOEMA

Eu vou sozinha.

TUÃNI

Obrigada.

SEBASTIANA (antes de sair, para Moema)

As coisas tão saindo do controle, Moema. A gente precisa conversar, pelo menos conversar,

sobre a força da violência.

121

MOEMA

Depois, outro dia. Hoje a gente tem um plano, Sebastiana.

Buscam os envelopes nos esconderijos e distribuem ao público.

SEBASTIANA/MOEMA/TUÃNI

Não abre e não perde.

TUÃNI

Alguém não recebeu envelope? A gente vai sair para a rua agora. Em grupos.

MOEMA

Quem topa descer de escada? São seis andares. Quanto mais gente melhor, porque são só dois

elevadores.

SEBASTIANA

Quem precisar descer de elevador, fica.

MOEMA

Quem vem comigo aqui fora no corredor. Vem.

Moema desce primeiro com o público pelas escadas. Tuãni e Sebastiana em seguida de

elevador.

CENA 4 SEBASTIANA/MOEMA/TUÃNI

No caminho.

SEBASTIANA/MOEMA/TUÃNI

Os inimigos chegaram pela baía. Eles entraram pelos dutos de esgoto, pelos encanamentos e

tomaram a cidade. A gente não sabia nada deles, não sabia nem sequer por que eles tinham

vindo. A gente construiu a cidade toda de costas pro mar e nem viu eles chegando.

122

CENA 5 SEBASTIANA, TUÃNI

SEBASTIANA

Se alguém perguntar alguma coisa, a gente diz que tá fazendo uma peça de teatro.

TUÃNI

Ninguém fica pra trás, todo mundo cuida de todo mundo.

Saem para a rua. Sebastiana para.

TUÃNI

Você tá bem?

SEBASTIANA

É um vai e vem de vida e morte dentro do corpo, o sangue. Por mais que você saiba que não

tem nada a ver, você pensa que tem vida pedindo pra vir e eu não tô deixando. Eu contei pro

Raul e ele me disse que quando ele chegou no mundo já tinha tudo: roupa, árvore, chão. Ele

disse que tinha ganhado o mundo de presente da mãe, que ele era agradecido por isso. E eu só

conseguia pensar: esse mundo de presente?

Se abraçam.

TUÃNI

A gente precisa continuar.

Um canto.

SEBASTIANA

Iaci.

123

CENA 6 SEBASTIANA, TUÃNI, IACI

Uma planta. Iaci canta.

IACI

Ninguém sabe das coisas de Deus. E se esse Deus for a Lua? Não é sobre iluminar, fazer

germinar, abrir o mar? E se Jesus for um grande pseudônimo pra Lua?

SEBASTIANA

Vocês não apareceram, a gente saiu pra procurar vocês. Cadê a Joana?

IACI

Foi embora.

Sebastiana e Tuãni ao mesmo tempo:

SEBASTIANA

A Joana?

TUÃNI

Agora?

IACI

...

SEBASTIANA

O que que aconteceu, Iaci?

IACI

A polícia veio atrás da gente

TUÃNI

A polícia?

124

IACI

Não foram as câmeras, eu não dei esse mole, alguém contou alguma coisa. Alguém tem que

ter falado alguma coisa. Eles apareceram de repente, as luzes, a sirene. A gente saiu correndo

e eles caçando a gente de bicicleta, eram uns doze pelo menos. A minha mãe sem fôlego

ficando pra trás, eu não sabia o que fazer. A gente subiu numa árvore. Subiu até o topo e eu

me dei conta de que a gente não tinha mais pra onde fugir. A minha mãe gritando, eles

chegando, aquele mar de bicicleta, os apitos, lanterna. A única coisa que a gente podia fazer

era se jogar lá do alto. Daí eu comecei a agitar os braços, desesperada, pedindo ajuda (se

interrompe)

TUÃNI

Iaci?

IACI

E os meus braços se transformaram em asas, que nem uma arara vermelha gigante. A minha

mãe se agarrou em mim e eu voei, saí voando. A gente via o topo dos prédios, como se tivesse

num avião. Planava em círculo lá no alto, e eles olhando pra gente lá de baixo, agora eles

desesperados sem conseguir alcançar.

SEBASTIANA

E a Joana?

IACI

Não aguentou, esse fogo depois isso, foi demais.

SEBASTIANA

Você acha que ela conta da gente?

IACI

Eu acho que as deusas criaram isso aqui num surto, só um surto mesmo pra criar tudo isso.

TUÃNI

Você acha que ela conta da gente?

125

IACI

Ela não vai falar nada, claro que não, ela se esgotou. Me dá um cigarro? Tuãni?

TUÃNI

Eu parei.

IACI

Agora?

TUÃNI

Medo é bem melhor que cigarro.

IACI

Tuãni

TUÃNI

Sério. Imagina você numa situação que te dá medo, que te deixa morrendo de medo. Primeiro

vem o pânico. Daí o sistema de autopreservação do corpo é acionado. E aí a gente faz coisa

que nunca imaginou. Uma força que você nem sabia que tinha, você supera os limites, você é

capaz de tudo. E tudo por causa do medo.

IACI

Tem vezes que dá vontade de fazer uma besteira. A vida não tá fazendo sentido.

TUÃNI

Não faz sentido. Mas não é porque deixa de fazer sentido que eu vou lá e me mato. Ninguém

sabe o que tá fazendo. Tá fazendo algum sentido pra alguém?

CENA 7 TUÃNI, IACI, SEBASTIANA, MOEMA

Moema aparece.

126

TUÃNI

Moema!

MOEMA

Cadê a Joana?

SEBASTIANA

Ela desistiu.

MOEMA

Desistiu?

IACI

A polícia veio atrás da gente.

MOEMA

A polícia sabe da gente?

IACI

Eu não sei. A gente tem que começar. Enquanto a gente tá aqui, tá tudo lá pegando fogo.

MOEMA

Eu vou pegar a terra.

TUÃNI (para o público)

Vocês vão com a Moema buscar a terra. A gente se encontra na Câmara.

Dispersam. Público segue Moema.

127

CENA 8 MOEMA

MOEMA (com o público)

Você ouve esse barulho que não para nunca? Tá escutando? A cidade tá doente, isso é ela

gritando. É sério. É um pranto, isso é um pedido de ajuda. Eu trabalho com construção de casa

– trabalhava. Todo mundo sabe que o melhor cimento é o Mauá. Só que se não tem dinheiro

pra comprar muito cimento, bota pouco cimento mas não bota outro cimento. Entendeu qual é

o problema? Olha ali. Tá tudo torto. Igual a gente: caindo, caindo. Vai cair.

CENA 9 MOEMA, GILMAR

MOEMA

A gente se conhece?

GILMAR

AI QUE ISSO

MOEMA

Que isso o que?

GILMAR

A gente não se conhece não, que isso.

MOEMA

Por que você tá regando?

GILMAR

Por que você acha que eu tô regando?

MOEMA

Se eu soubesse eu não perguntava.

128

Rega.

MOEMA

Você pode regar o quanto quiser que não vai nascer nada.

GILMAR

A terra aqui é muito boa. Você joga uma coisa nela, dá.

MOEMA

Não tem como nascer, não tem terra. Pode até ter, mas muito lá embaixo. Eles botaram esse

concreto todo aqui foi justamente pra não nascer nada.

GILMAR

Eu fico imaginando como era isso aqui antes deles chegarem. Eu não tava lá, mas eu gosto de

me imaginar lá. Quando era tudo terra, tudo mato. As pessoas tão muito malucas. Esquisitas.

Apáticas.

MOEMA

Gente sem terra.

GILMAR

Não come uma banana, um mamão. Toma água de coco de caixinha.

MOEMA

Isso é pra nascer chão? Vai nascer o que? Pirâmide?

GILMAR

Eu tenho um pé de maracujá. A minha vizinha me deu umas sementes, a gente não sabia do

que era e pum, deu maracujá. Você já viu maracujá? Ele é todo amarelão, todo enrugadinho.

Parece uma compota, as sementes ficam do lado de dentro e tem uns tentáculos brancos.

MOEMA

Saudade. Hoje em dia só pozinho.

129

GILMAR

Teve um dia que apareceu uma lagarta. Aí eu fiquei na dúvida se eu matava a lagarta ou

deixava ela lá, o maracujá em perigo. O que eu queria mesmo era que ela virasse uma

borboleta.

MOEMA

Que foi?

GILMAR

Um dia ele não tava mais aqui.

MOEMA

Quem?

GILMAR

O maracujá, a lagarta. Quer dizer, eles tavam. Tão. Mas tinha uma coisa em cima deles. Tem.

Essa igreja. Eles simplesmente vieram e colocaram como se eu não cuidasse da planta. Quer

dizer, você tem a sua terra, você acha que ela é sua, vem alguém e tira a terra de você. Pra

construir essas coisas enormes. A tragédia começou quando eles começaram a cobrir terra

com coisa. Ou quando abriram a terra pra arrancar coisa dela. Quando um imbecil veio e

colocou essa coisa em cima do pé de maracujá que eu regava todo dia. Esse imbecil agora

toma maracujá em pó e diz que é igualzinho. Que imbecil. Você não entende o que eu tô

falando.

MOEMA

Você não me conhece.

GILMAR

Nem você.

130

MOEMA

Isso aqui é o que sobrou lá de casa. Faz menos de uma semana que eu fui embora, hoje se eu

voltar lá não acho nem minha rua. Construíram um estacionamento. Grande assim. Tiraram

todo mundo de lá, agora só concreto, sobrou ninguém.

GILMAR

Ele tá aí.

MOEMA

Quem?

GILMAR

O maracujá. A lagarta eu não sei se já virou borboleta ou o que. Vai ter um dia que ele vai

rasgar esse concreto todo e crescer enorme, tomar a igreja pelas janelas, árvore, uns galhos

enormes vazando pelas portas, as pessoas loucas, cheio de macaco pulando, jogando laptop na

cara das pessoas. Você aceita um biscoito?

MOEMA

Eu sinto muito pelo seu pé de maracujá. Mesmo. A terra não é de ninguém, a terra é a deusa.

GILMAR

Ele deve andar um pouco espremido, é verdade, mas ele tá encontrando um caminho bom,

juntando força pra sair. Bonito isso. A terra é a deusa.

MOEMA

Você tá esperando ele sair?

GILMAR

Qualquer hora dessas ele pum, sai.

MOEMA

Você não acha realmente que

131

GILMAR

Tem certeza que você não quer um biscoito?

MOEMA

Qual é o seu nome?

GILMAR

Gilmar. Você me desculpa, eu ainda tenho que regar todo aquele lado de lá. (Indo embora.)

Eu rego tudo porque confesso que não sei pra onde ele foi crescendo então...

MOEMA (indo atrás dele)

Gilmar.

GILMAR (se desvencilha)

A vida era muito boa. Ainda é, né.

MOEMA

Gilmar, por favor.

GILMAR (se desvencilha outra vez)

Eu não te conheço.

MOEMA

Você não pode mesmo acreditar que esse maracujá ainda tá aí.

GILMAR

Você nunca cuidou de planta não, menina? Nunca te aconteceu da sua planta ser dada como

morta e você segue regando, regando, regando aquele caule podre até que na primavera

seguinte ela vem e pum, brota com tudo outra vez?

MOEMA

Isso é uma igreja inteira, Gilmar.

132

GILMAR

Me deixa em paz.

MOEMA

Quando explodiram a minha casa também não sobrou nada. Cada árvore que eles explodiam a

gente sentia na alma, era horrível, você olhava praquele monte de pó morto e pensava que até

ontem era uma árvore, dava fruta. Gilmar. Você sabe que ele não tá mais aí, não sabe? Você

sabe que ele foi soterrado, não sabe?

GILMAR

Imbecil! No fundo, no fundo, a gente tá aqui só por causa do dinheiro. Chega alguém e diz

que a terra que era sua não é mais, é dele. E se você diz que não, te batem – você, sua família,

comem sua filha, batem no seu pai, entram na sua casa, roubam tudo, levam tudo. Cadê as

flores dessa cidade?

MOEMA

Sabe qual é a parte boa de chegar no fundo do poço? Tem uma cama elástica lá embaixo. O

primeiro passo é reconhecer a injustiça, o segundo é agir.

GILMAR

Como?

MOEMA

Você dá o primeiro passo sozinho. E encontra aliada pro segundo.

GILMAR

Onde?

MOEMA

Eu tô aqui. Dá o primeiro passo, fala comigo.

GILMAR

Você não me disse seu nome.

133

MOEMA

Moema.

GILMAR

Eu acho que foi.

MOEMA

O que?

GILMAR

O primeiro passo, eu quero me vingar.

MOEMA

Você quer plantar?

GILMAR

Plantar?

MOEMA

Plantar. Imagina. Mil, dois mil, três mil pés de maracujá. Uma ebulição de maracujá.

GILMAR

Um zilhão de pés maracujá crescendo selvagem pela cidade, tomando tudo que é prédio, tudo

que é poste, tudo que é placa. Macaco jogando laptop na cara das pessoas.

MOEMA

Então vamos. A gente tem que ir.

GILMAR

Pra onde?

MOEMA

Você quer ou não quer se vingar?

134

Moema vê Tuãni, Iaci e Sebastiana se aproximando.

CENA 10 MOEMA, GILMAR, TUÃNI, IACI, SEBASTIANA

IACI

Pegou a terra?

MOEMA

Eu conheci um homem. Ele me contou que acabaram com a plantação dele. Ele tinha um pé

de maracujá, chegou um dia e não tava mais lá, colocaram essa igreja em cima.

O nome dele é Gilmar. Ele quer se vingar, plantar maracujá pela cidade. Eu quero trazer ele

pra gente.

IACI

Maracujá é planta forte trepadeira.

SEBASTIANA

E se for gente deles?

MOEMA

Ele não é gente deles.

TUÃNI

Você não tem como saber.

MOEMA

Ele tá aqui. Gilmar.

IACI

Cadê o maracujá?

135

TUÃNI

Você tá louca?

SEBASTIANA

Moema, isso é nossa casa.

TUÃNI

Moema, você não podia ter trazido um estranho assim pra

GILMAR

Olha, eu prefiro não falar minha opinião política. Dá muita briga, as pessoas tão muito

radicais. (Saindo.)

MOEMA

Porra, Gilmar.

TUÃNI

Esse menino tá brincando? Você tá jogando comigo? (Corre atrás dele.) Escuta só, eu tô te

vendo, eu quebro todos esses seus dedos. Fica de graça pra você ver.

SEBASTIANA

Moema, você tinha que ter avisado.

MOEMA

Ele sabe que a terra é a deusa.

IACI

Nós vamos deixar ele falar.

GILMAR

Eu vim pra cá pedalando. 64 dias. Depois que você anda 600 quilômetros de bicicleta você

aprende que o corpo esquenta, que o corpo precisa de água.

136

IACI

Água tem gosto, não tem, Gilmar?

GILMAR

Ô. Você toma aquele gole e pum! Com o maracujá foi assim. A terra tava lá, toda gasta, cheia

de entulho, ressecada, pedindo arrego. Mas você colocava a mão assim e sentia. Vida. Eu e

minha vizinha limpamos, aramos, bolha na mão, tiramos capim, plantamos as sementes. E

depois a gente molhou. Até que nasceu.

TUÃNI

Você entendeu agora, Moema? Entendeu por que é que você é a última a ficar sabendo das

rodas, da reunião do prefeito, de tudo?

SEBASTIANA

Tuãni.

TUÃNI

Porque não dá pra confiar em alguém que até ontem carimbava a porta da casa das pessoas

pra marcar...

SEBASTIANA

Tuãni.

MOEMA

Era o meu trabalho. Quando você tá sem emprego você fica desmoralizada.

TUÃNI

...PRA MARCAR AS CASAS QUE IAM SER EXPLODIDAS.

MOEMA

ELES EXPLODIRAM A MINHA CASA TAMBÉM, INFERNO.

137

SEBASTIANA

Tuãni.

TUÃNI

É burrice. Escolhe errado, não tá vendo o que tá aí.

SEBASTIANA

A gente levou meses pra chegar até aqui. A gente levou meses pra chegar até aqui. MESES

PRA CHEGAR ATÉ AQUI. Pra tudo acabar assim, em pó?

IACI (para o público)

Se vocês não ajudarem daí, isso aqui não vai acontecer

Iaci cuida Sebastiana. Depois cuida Tuãni. Elas se juntam.

MOEMA

Conhecer o Gilmar foi fazer o contrário de tudo o que me disseram a vida inteira pra fazer:

não falar com estranho na rua. Tuãni, a gente é mais forte juntas e ele tá com a gente. Eu

preciso que você confie em mim, eu preciso que você confie nele.

TUÃNI

Quando eu era pequena eu morava na frente dum rio. A minha mãe tinha que me deixar

sozinha pra trabalhar e um dia ela me disse que dentro do rio morava uma sereia e que se

alguma coisa muito séria acontecesse eu podia chamar por ela.

IACI

E quando você chamou?

TUÃNI

Ela disse que eu só podia chamar uma vez, que a sereia só vinha uma vez em toda a vida.

Então quando eu tinha medo eu pensava: eu ainda posso segurar mais um pouquinho, só mais

um pouquinho. Eu pensava que no dia seguinte eu podia ficar com mais medo, me sentir mais

sozinha. E aí sim precisar chamar de verdade.

138

SEBASTIANA

Eu tinha chamado no primeiro dia. Sereia!

GILMAR

Vocês não vão me contar o que é que vocês tão fazendo?

IACI

Você tá vendo essa coisa enorme? A gente vê montanha mas ela é a casa das protetoras da

cidade. Ou do que sobrou delas. São elas as responsáveis pelos alagamentos quando chove, ou

pelos desabamentos dos prédios. Elas tão gritando: vocês cruzaram a linha, mas a gente não tá

escutando.

TUÃNI

Tem um rio na China chamado Yangtzé. Na foz do rio tem uma ilha pequena, uma ilhota

assim, chamada Gouqi, era uma vila de pescador lá pelos anos 50. Eram poucas casas, só

famílias que passavam o dia pescando e vendiam os peixes no mercado central. Até que o

governo chinês investiu pesado na pesca industrial, os pescadores não tinham como competir

e tiveram que migrar pras cidades grandes. Eles abandonaram as casas, abandonaram tudo, a

cidade ficou completamente vazia. Ano passado uma equipe visitou a ilha e descobriu que a

mata tinha tomado conta de toda a vila.

MOEMA

As plantas cresceram por cima das casas, engoliram as paredes, os telhados. Quase não dá pra

ver o que tem embaixo.

IACI

Daí um grupo de pesquisadores, cientistas, urbanistas, calculou quanto tempo a natureza

demorava pra tomar de volta as principais metrópoles do mundo se elas fossem abandonadas.

O Rio de Janeiro no meio da floresta e desse monte de pedra-montanha só perde pra Hong

Kong. Em dez anos vira tudo mato outra vez. Dez anos.

GILMAR

É uma ação direta que vocês tão propondo?

139

IACI

A cidade tá um caos e quem reage alto acaba explodido. Nós vamos lentas, subterrâneas. A

gente abre mato em cima de concreto

TUÃNI

E quando eles se derem conta, a floresta já rasgou o chão e devorou a cidade.

GILMAR

É a vingança da terra.

IACI

Tudo pode parecer perdido, mas ainda tem terra.

SEBASTIANA

A gente planta em fresta, buraco, fenda, entre pedra portuguesa, no meio do concreto. Abram

os envelopes que vocês receberam.

Público abre os envelopes. Cada um tem uma semente. Moema, Tuãni e Iaci distribuem

punhados de terra.

SEBASTIANA

Cada uma tem uma semente e vai receber um punhado de terra. Semente na mão direita,

punhado de terra na mão esquerda. Se todo mundo aqui plantar uma, são mais de cinquenta só

essa noite. A gente vai plantar aqui, nesse prédio, na Câmara dos Vereadores. Em fresta,

buraco, fenda, entre pedra portuguesa, no meio do concreto. Ninguém fica pra trás, todo

mundo cuida de todo mundo. Preparadas? Foi.

Plantam com o público.

IACI

Lá onde o céu encontra a terra tem uma corrente de árvores muito muito grande. São uns

troncos largos à beça, uma copa que cresce e quase fura as nuvens e umas raízes que brotam

pra fora da terra parecendo umas cobras gigantes, cheias duma penugem branca. Esses troncos

140

são cobertos de dezenas de lábios que se movem sem parar, assim, um por cima dos outros.

Dessas bocas loucas saem cantos infinitos. Você já ouviu falar: árvore da vida, da sabedoria,

do conhecimento. O que ninguém te contou é que são dezenas, centenas delas cantando sem

parar. Quando um canto lá da lonjura atravessa o mar, todo o oceano, e chega no seu ouvido,

uma ideia brota na sua cabeça que nem uma semente. Vez ou outra, num dia mais silencioso,

a gente consegue ouvir elas daqui. É por isso que não importa o que aconteça o que eles

trabalham todo dia pra manter encoberto acaba vindo à tona. O desespero, não deixar que ele

tome conta. O medo protege mas não pode conduzir o que vai vir. A insurreição não é uma

ideia, é uma ação a muitas mãos.

Sebastiana entra com música final. Ebó.