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Ano 7 - edição 22 | Segundo Semestre 2016 www.modulo.edu.br/antenado rosas marcadas Especial sobre a Violência Contra a Mulher Todos os dias mulheres são vítimas da violência e até perdem a vida, simplesmente por serem quem são. No mês de novembro é lembrado o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher e o jornal Antenado aborda as várias faces desse tipo de violência que precisa ser enfrentada. Jornal Laboratório do curso de Jornalismo - Centro Universitário Módulo

rosas marcadas...Precisamos falar sobre a o modo como a mesma tem se desenvol - vido ao longo do tempo. Contra fatos, não existem argumen-tos, por isso, precisamos falar sobre violência

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Ano 7 - edição 22 | Segundo Semestre 2016www.modulo.edu.br/antenado

rosasmarcadasEspecial sobre a Violência Contra a Mulher

Todos os dias mulheres são vítimas da violência e até perdem a vida, simplesmente por serem quem são. No mês de novembro é lembrado o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher e o jornal Antenado aborda as várias faces desse tipo de violência que precisa ser enfrentada.

Jornal Laboratório do curso de Jornalismo - Centro Universitário Módulo

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O Antenado é um Jornal Laboratório produzido por alunos do curso de

Jornalismo do Centro Universitário Módulo

Coordenador do Curso: Prof. Dr. Gerson Moreira Lima

Professor Orientador: Prof. Ricardo Hiar (Jornalista Responsável: MTB 47857 )

Repórteres: Ana Carolina Assunção da Silva, Bruna Carla Rodrigues de Oliveira, Conrado Ba-laut, Izamara Compertino Valentim, Luciana Go-mes Máximo Torres, Luiz Henrique Brener, Luiza Ribeiro Manson, Matheus Almeida, Patricia Da-nelli Santos Giorgetto, Valéria Andrade Santos.

Foto Capa: Matheus de Freitas Almeida

Projeto Gráfico: Prof. Ms. Paulo Rogério de Arruda - MTB 36577

Diagramação: Luiza Ribeiro Marson/ Matheus de Freitas Almeida/ Prof. Paulo Arruda

Tiragem: 2 mil exemplares (Gráfica Lance!)

Distribuição: Dentro da Universidade, em ban-cas de jornais de Caraguatatuba e de outras cidades do Litoral Norte, além de pontos estratégicos de Caraguá.

CENTRO UNIVERSITÁRIO MÓDULO – CAMPUS MARTIM DE SÁ

Av. Mal. Castelo Branco, s/nº CEP 11.662-700 Caraguatatuba/SP.Tel. (12) 3897-2008

www.modulo.edu.br/antenado / [email protected]

2 CARAGUATATUBA, 2º SEMESTRE DE 2016

editorial>>>

01 02 03

04 05

06

07

08

09

Primeira Lei de Educação da Mulher - Surgiram escolas destinadas à educação da mulher, mas ainda voltadas a traba-lhos manuais, domésticos, cânticos e ensino brasileiro de instrução primária. Mantinha-se a proibição da frequência de mulheres em escolas masculinas.

1824 De 1890 a 1940

Legítima defesa de honra - O Artigo 27 da antiga Constituição previa que o homem que matasse sua esposa se safaria da cadeia caso alegasse o fato como legítima defesa, já que na lei havia uma brecha para quem cometesse um assassinato movido pela emoção.

A mulher tem direito a voto – Getúlio Vargas promulga o novo Código Eleitoral que garante o voto feminino nas eleições.

Anos 30

Reconhecida a igualdade de gêne-ros – A igualdade é reconhecida através da Carta das Nações Unidas.

Anos 40

Aprovada pela Organização Interna-cional do Trabalho - A igualdade de remuneração entre trabalho masculino e feminino.

Anos 50

Anos 60

Anos 70 e 80

Metade dos relatos ao Ligue 180 tratou de violência física. Três em cada cinco mulheres jovens

já sofreram agressões em relacionamen-tos. Além disso, 56% dos homens admi-tem que já cometeram alguma forma de abuso.

Apesar de serem números, atrás deles estão milhares de pessoas: de um lado as que sofrem violência, muitas vezes cala-das; do outro, agressores. Muitos desses casos são apenas reflexo da sociedade e

Violência Contra a MulherPrecisamos falar sobre a

o modo como a mesma tem se desenvol-vido ao longo do tempo.

Contra fatos, não existem argumen-tos, por isso, precisamos falar sobre violência contra a mulher.

Com esse in-tuito, os alunos do 6º semestre do curso de jornalismo do Centro Universitário Módulo, prepa-raram uma edição especial do Jornal An-

tenado, que reúne matérias, depoimentos e histórias que mostram perfeitamente o porquê de o Brasil estar no quinto lu-

gar do ranking de países com a maior taxa de feminicídio do mundo, segundo a ONU.

A edição tam-bém apresenta uma linha do tempo que mostra os avanços e as conquistas da luta das mulheres através dos anos, trazendo

Anos 90

Anos 2000

Estatuto da Mulher Casada – Com a Lei 6.121 em 1962, a mulher passa a não pre-cisar da autorização do marido para tra-balhar fora. Ela passa então a contribuir financeiramente dentro de casa e o seu cônjuge não pode mais tomar os bens ad-quiridos por ela.

Lei do Divórcio – A Lei do Divórcio, além de introduzir o Divórcio no Direito Bra-sileiro, também alterou a terminologia de desquite para separação judicial. Anos 80 - É criada a primeira Delegacia Especializada da Mulher em São Paulo.

Discussão sobre violência de gêne-ro - Na Conferência Mundial de Direi-tos Humanos - Direitos das mulheres e a questão da violência contra o gênero recebem destaque, gerando assim a declaração sobre a eliminação da violên-cia contra a mulher.

Sancionada a Lei Maria da Penha – A Lei preza por um aumento no rigor nas punições das agressões contra mulher.

luz a uma importante questão social. O principal objetivo é propor uma re-

flexão, para que você que está lendo esse material, possa não só refletir, mas agir para coibir esse tipo de crime, que não deveria existir na sociedade.

Homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, brancos, amarelos, negros, são todos, antes de tudo, seres humanos, li-vres e com direitos iguais, que devem ser respeitados e preservados.

Boa leitura!

Três em cada cinco mulheres jovens já sofreram agressões em relacionamentos

linha do tempo>>>

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Toda vez que se abre uma discussão sobre violência contra a mulher sur-ge algum comentário que coloca a

vítima como culpada da agressão. Quem nunca ouviu falar de “mulher de malan-dro”? Tal expressão serve para definir aquela mulher que decide manter um relacionamento no qual é agredida pelo seu parceiro.

Embora seja um tanto complexo e di-fícil de aceitar que uma pessoa resolva ficar mesmo com todo sofrimento, será que é plausível mesmo assim o argu-mento de que “ela gosta de apanhar”?

Desde pequenas somos ensinadas a nos calar diante da violência por parte dos nossos coleguinhas do sexo mascu-lino. Lembro-me bem de uma cena que aconteceu na minha infância quando um

colega me chamou de “baleia” por eu ser um pouco acima do peso; Reclamei para a professora, ela apenas disse que ele gostava de mim e não sabia como se ex-pressar. Isso ecoou na minha mente du-rante anos de minha vida e imagino que na de outras mulheres também, porque pode parecer algo bobo, só que a partir de situações como essas nós aprende-mos que amor e maltrato andam juntos.

Criadas num universo onde existem príncipes encantados superprotetores que salvam princesas belas e indefesas, crescemos procurando por essa proteção em qualquer homem. Veja bem, não há nada de errado em querer se sentir prote-

Valéria Andrade

Aluna do 6º semestre de Jornalismo.

3 CARAGUATATUBA, 2º SEMESTRE DE 2016

artigo>>> Elas sempre voltam (ou não)

Pequeno DicionárioFeminicídio – Acontece quando

uma mulher é morta por ser mulher. Normalmente, o que leva alguém a cometer esse crime é o ódio, despre-zo, sentir que não exerce mais con-trole sobre a companheira.

Gaslighting - Forma de abuso psicológico, no qual o abusador faz com que a vítima duvide de sua pró-pria memória, percepção e sanidade mental.

Stalking – Quando o uma pessoa

passa a seguir ou assediar a vítima seja no mundo virtual ou fora dele.

Coação sexual – Quando um dos parceiros tenta convencer o outro a praticar o sexo. Pode ser oferecendo bebidas para a companheira ficar mais

“soltinha”, fazendo chantagem emo-cional, ou tentando convencê-la por-que deu algum presente a ela.

Sexting – Pressão para mandar fotos íntimas ou mensagens de con-teúdo sexual.

gida, só que existe uma diferença entre ter sua liberdade podada e ter prote-ção.

É por essa confusão que algu-mas mulheres escolhem permane-cer em relacionamentos abusivos, pois muitas delas depois de anos convivendo com um parceiro que tirou a autonomia para fazer até pequenas escolhas, não conse-guem mais se imaginar sozinhas. E a sociedade machista impõe que precisamos de um homem para sermos felizes e completas, mesmo parecendo um pensamento antiqua-do.

Muitas vezes além da depen-dência emocional, acontece também a dependência financeira. Algumas mulheres depois de anos fora do mer-cado de trabalho por vontade própria ou até mesmo por proibição de seus parceiros, acabam sem saber o que fazer com as finanças que não eram antes de sua responsabilidade. Dentro do senso comum é muito fácil a gente pensar “é só trabalhar”, mas e nos casos em que as mulheres não têm qualquer formação ou nunca fizeram nada além do que cuidar dos filhos e da casa? Eis aí mais um fa-tor para a permanência mesmo nos dias atuais.

Além dessa série de fatores, muitas mulheres se sentem presas em um rela-cionamento abusivo por causa dos filhos. Talvez esse seja o fato mais complicado de se lidar, porque elas titubeiam entre continuar ali com os filhos ou ir embora e acabar com o sofrimento.

Mesmo com a grande conquista da Lei Maria da Penha em 2006, pouca coi-sa mudou e o motivo principal é o modo como fomos todos criados dentro da so-

cieda-de ma-c h i s t a . Não será uma lei que melho-rará a situação das mulheres, mas sim o nosso modo de agir e pen-sar. Por trás de uma mulher que sempre volta para os seus par-ceiros, existe uma mulher emocio-nalmente ferida, educada para aguen-tar calada.

Não será uma lei que melhorará a situação das mulheres, mas sim, o nosso modo de agir e pensar

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Cicatrizes no corpo e na almaMulher sofreu tentativa de homicídio pelo ex-companheiro e hoje carrega consigo marcas que não a deixam esquecer de um passado violento

“Ninguém imaginava que ele te-ria uma atitude assim, porque sempre foi uma pessoa cal-

ma. Quem se exaltava durante as discus-sões era eu”. Com essa frase, Isa Maria Rodrigues, 37 anos, começa a relembrar o episódio em que se viu entre a vida e a morte, após ser vítima de violência do-méstica.

O caso aconteceu no dia 20 de se-tembro de 2007, quando o ex-marido, Rogério Gaspar, tentou matá-la por não aceitar o fim do relacionamento.

Segundo contou, Rogério nunca teve uma atitude violenta e era bom pai. O marido costumava consumir com fre-quência bebidas alcoólicas, mas quan-do exagerava, dormia ou ficava fora de casa. “Ele chegava a ficar três dias fora e nunca me importei com isso”, afirmou.

Mas a relação se desgastou e a es-posa resolveu dar um fim ao relaciona-

mento. Gaspar saiu de casa, mas voltava com frequência ao imóvel para visitar os filhos. Numa dessas visitas, enquanto conversava com a ex-mulher, Rogério começou a insistir para reatar o casa-mento.

Mesmo com as recusas, não demons-

trou alteração no seu comportamento e se manteve aparentemente calmo. Po-rém, bastou um momento de distração de Isa Maria para ele agir. “Inesperada-mente eu me virei e o Rogerio enfiou um espeto de churrasco na minha barriga”, contou a mulher, em meio a lagrimas.

Ela contou que sua primeira atitude na hora foi retirar o espeto que a perfu-rara e correr. “Não saberia o que poderia acontecer se continuasse ali, fui socorri-

da por amigos e encaminhada ao hospi-tal”, completou.

O espeto perfurou diversos órgãos, parando perto de sua coluna. Durante o trajeto até o hospital, Isa Maria disse que só pensava em seus filhos. Depois que passou pela cirurgia o médico que a atendeu disse que ela só sobreviveu por sorte. Conforme explicou, a mulher não poderia ter retirado o espeto do corpo, ação esta que comprometeu ainda mais seu estado de saúde.

Depois de uma semana do ocorrido ela registrou a denúncia na Delegacia da Mulher de Ubatuba. Como não houve flagrante o processo está em andamento. Rogerio foi intimado, mas responde em liberdade até hoje.

Ela, em contrapartida, carrega as ci-catrizes da agressão, ainda sente dores provenientes do ato criminoso e tem medo. De acordo com seu relato, esse episódio abalou completamente sua vida, tanto até hoje não conseguiu man-ter outros relacionamentos desde então.

Após violência, mulheres têm dificuldades em recomeçar a vida.

Bruna Carla Rodrigues

Apesar de poucos casos registrados, Ilhabela também sofre com a violência contra as mulheres

“Tinha medo que ele me matasse”, diz vítima de violência doméstica

Carol Assunção

Rogério enfiou um espeto de churraso na minha barriga

Com pouco mais de 32 mil habitantes, Ilhabela possui, segundo a Polícia Militar, sete

ocorrências de violência doméstica no ano de 2015 e, até agosto de 2016, outros três. Maria Silva está nesta estatística do município: ela foi agredida pelo seu ex-marido, Paulo Santos.

Hoje com 30 anos, voltou à cidade depois de passar seis meses na Europa tratando-se de uma depressão. “Ele chegou na minha vida como um raio de sol”, conta a vítima que depois de iniciar um relacionamento com o acusado descobriu que ele era traficante.

Por conta disso, resolveu terminar o relacionamento e foi para São Paulo, onde engatou uma nova união que durou três anos. No entanto, não esqueceu o ex-namorado.

Foram anos sem contato, até que eles voltaram a conversar e acabaram reatando em 2009. Assim que terminou a faculdade de Psicologia em 2011, Maria estava grávida e decidiu voltar para Ilhabela para morar com o companheiro e pai da criança.

As coisas começaram a piorar para Maria após o nascimento da criança. O agressor não ficava mais em casa, chegava sempre durante as madrugadas, brigava na rua e, quando retornava, fazia barulho e não a deixava dormir, além furtar objetos pessoais da vítima. “Nunca acreditei que pudesse ser ele”, comentou.

Após mais um dia que passou na rua, o acusado chegou em casa transtornado, quebrando objetos da

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Apesar de poucos casos registrados, Ilhabela também sofre com a violência contra as mulheres

“Tinha medo que ele me matasse”, diz vítima de violência doméstica

casa e gritando com a vítima, até que pegou um isqueiro e começou a colocar fogo em um dos colchões. Maria conseguiu sair com o filho e chamou a Polícia Militar que não retirou o acusado por não haver um processo. “Tive que ouvir que enquanto não houvesse um processo, seria a minha palavra contra a dele”, lembrou.

Cinco anos correram e a situação continuava piorando. O acusado, sob efeito de drogas e álcool, permaneceu fazendo as mesmas coisas, sem nunca a agredir fisicamente. Foi assim até a última briga. “Eu precisava dar fim nisto, mas tinha medo que ele perdesse a cabeça e me matasse”.

Enquanto voltavam de carro após a comemoração do seu aniversário de 30 anos, Maria pediu que o ex-marido fizesse silêncio para que ela recebesse uma ligação. Ele correspondeu ao pedido com três socos no rosto. O agressor saiu correndo do veículo e Maria dirigiu-se imediatamente à PM, onde registrou o Boletim de Ocorrência. Os policiais a acompanharam até sua casa, onde o acusado a aguardava com uma faca na cintura. Ele, que já estava com vários cortes na perna por ter quebrado portas de vidro, foi preso em flagrante.

Apesar de preso, o acusado foi solto no dia seguinte e tentou por várias vezes reatar o relacionamento com Maria: “tive sorte, depois disso ele tentou voltar comigo, achava que eu perdoaria como tantas outras vezes”, afirma. Desde o acontecido passaram-se oito meses e o processo ainda não foi finalizado.

Em mais de 70% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem a vítima possuía vínculo afetivo

Mulher sofre aborto após ser agredida pelo maridoA história de Damares ocorreu há 25 anos, quando a Lei Maria da Penha sequer existia

“Foi covarde, cruel e humilhante”. Esse é o desabafo de Damares de

Oliveira Pinto, que passou cerca de cinco anos, dos 46 de vida que tem hoje, sofrendo violência doméstica pelo seu ex-marido.

O fato aconteceu há 25 anos, quando ainda não existia qualquer lei de proteção às mulheres, como a Maria da Penha.

Damares casou aos 18 anos e, logo no terceiro dia após as cerimônias civil e religiosa, foi agredida. Esta

(O nome da vítima e do agressor foram alterados por motivo de preservação da fonte).

equivaleu como a primeira dentre as muitas agressões físicas que a vítima sofreu ao longo dos anos de convivência com seu ex-companheiro, que consumia álcool com frequência.

“Eu me separava e voltava, porque ele demonstrava arrependimento e fazia novas juras”, falou a vítima. Além da violência física que sofria, Damares também era mantida em cárcere privado, onde apenas seu ex-marido podia abrir a porta de casa quando chegava do trabalho. A desculpa para isso era que ao lado de sua residência

havia uma construção com muitos homens trabalhando.

Enquanto a vítima não podia sair de casa, nem ao menos para lavar as roupas, elas mofavam. Em um feriado, os trabalhadores da obra estavam de folga e Damares pulou a janela do seu quarto para lavá-las. Ao chegar, seu ex-companheiro a viu fora de casa e usou os mesmos fios de cobre que usava para pendurar as roupas, para agredi-la.

“Depois de tanto bater, ele me mandou tomar um banho e, no chuveiro, apertava os meus seios, batia no meu rosto e puxava meus cabelos”, relata. Após mais essa surra, Damares sofreu aborto de uma gravidez de três meses.

Entre torturas de diversas formas: física, psicológica e moral, ela ainda teve dois filhos com o agressor, hoje com 25 e 23 anos. Damares relata que tudo passou a mudar na sua vida quando o acusado começou a usar as crianças contra ela, ensinando-as a agredir verbalmente.

“Eu estava doente: era estressada, chorava muito, não era feliz, não possuía objetivos e nem perspectivas na vida”, desabafa.

“Um dia, depois de mais uma surra, peguei umas roupas, coloquei na mala e saí arrastando meus dois filhos para nunca mais voltar”. O acusado nunca foi preso, não respondeu a qualquer processo e também não ajudou na criação dos filhos, que na época da separação tinham três e dois anos, respectivamente.

Damares recebeu ajuda de sua família e passou a morar em uma pequena casa feita pelo pai, com a missão de criar dois filhos sozinha. (C.A.)

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6 CARAGUATATUBA, 2º SEMESTRE DE 2016

“De repente eu me vi sem nada” conta filha de vítima da violência domésticaNão só as vítimas sofrem o impacto da violência, os filhos também são afetados em grande parte dos casos

Aos 15 anos, a vida de Bárbara mu-dou do dia para a noite: ela rece-beu a notícia de que a mãe havia

sido assassinada pelo pai. “Eu não en-tendi o que ele fez, até hoje é uma in-terrogação”.

Mesmo tendo acompanhado alguns episódios em que a mãe foi vítima de violência doméstica, ela não imaginava que a história teria esse desfecho. “De repente eu me vi sem nada, sem famí-lia”.

Segundo o relato da vendedora, hoje, aos 22 anos, casada e esperando o primeiro filho, os pais tinham uma relação que ela considerava tradicio-nal. “Antes sempre teve conversa e diá-logo. A amizade entre os dois era muito forte e eu nunca havia escutado discussões fortes”, comentou.

Apesar disso, essa situação mudou quando a família se deslocou de São Paulo para Caraguatatuba. De acordo com a jovem, a amizade e o diálogo do casal foram sumindo devido a uma simples decisão da esposa, de voltar a trabalhar fora.

As brigas começaram a ser mais constantes e por pequenas coisas. A re-lação foi sendo abalada e logo a mulher pensou em pedir o divórcio. Ao contar a decisão para a filha e o marido, ele não aceitou e prometeu mudar.

No entanto, a história começou a se agravar e a violência aumentou. “No meio da noite ela pegou meu pai em pé com uma faca na mão”, conta Bárbara, ao relembrar de um dos episódios vivi-dos pela mãe. Na ocasião, a mulher pre-cisou se esconder no quarto da filha com

medo do que poderia acontecer.No dia do crime, a adolescente não

queria ir à escola. Ela acordou não se sentindo bem e pensou em ficar em casa, mas acabou seguindo para os es-tudos por insistência do pai.

“Fui buscar um remédio com a mi-nha mãe, fiquei conversando um pouco com ela. Eu disse que a amava, me des-pedi e segui para a escola”. É assim que a vendedora lembra do último contato que teve com a mãe.

Depois da aula, diferentemente do que costumava acontecer, o pai de uma amiga da escola as esperava na saída e as levou para tomar açaí. Após isso ele convenceu a jovem a não voltar para

casa. Bárbara recebeu a notícia através da mãe de sua colega: sua mãe havia sido assas-sinada a facadas den-tro de casa, pelo seu próprio pai, que tentou se matar após cometer

o crime.

A consequênciaA partir da morte da mãe, Bárba-

ra passou a viver com seu irmão mais velho que já era casado. Ela entrou em depressão e não confiava em mais nin-guém. “Eu não tinha um sonho, vivia cada dia por viver”, diz a jovem, que chegou a receber acompanhamento psi-cológico.

Esse quadro só foi revertido cerca de dois anos depois, quando resolveu participar de um retiro espiritual. “Não era justo eu também estragar a minha vida por alguém que estragou a dela”. Ela diz que aceitou ajuda e passou a ver sua vida com outros olhos depois dessa experiência no retiro, momento em que toda esperança voltou.

O perdão

A violência doméstica vai além da agressão física.

Izamara CompertinoLuciana Máximo

De repente eu me vi sem nada, sem família

Hoje, passados sete anos do crime, ela afirma que conseguiu perdoar o pai e que está o conhecendo novamente. “Ele vai conhecendo um pouco de mim, eu vou conhecendo um pouco dele e a gente está aí nessa amizade”.

Além de seu irmão que também o perdoou, ela conta que buscam lembrar das coisas boas que os pais passaram para eles e não vivem do passado.

A jovem conta que busca focar no que seus pais lhe ensinaram, e o que pretende repassar ao filho. “Apesar do que aconteceu, a educação que os meus pais me deram não foi roubada de mim”, concluiu.

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7 CARAGUATATUBA, 2º SEMESTRE DE 2016

Estupro e as marcas de uma violência que vão além das agressões físicas

Existem marcas que nem mesmo o tempo é capaz de cicatrizar. Falar de abuso também não é uma tarefa fá-

cil, ainda mais quando a situação ocorre na infância e foi praticada por uma pes-soa que deveria cuidar, passar segurança e ensinamentos para a vida.

Mas esse problema que atinge muitas mulheres no mundo faz parte da história de Karoline Santos (nome fictício), de 27 anos. Ela lembra com muito pesar o abuso que sofreu de um professor, quan-do ainda tinha 11 anos.

Ela diz que era uma criança “boba e inocente” e que em determinado dia, foi a um passeio de escuna promovido pela escola. O grupo foi para uma ilha e, che-gando ao local, todos desceram do barco e foram brincar na água.

“Como não sei nadar, fiquei sozinha no barco. Foi então, que o professor, também conhecido de minha família, disse que eu poderia ir brincar de pular com os colegas, pois ele iria me prote-ger”, conta. Ele a levou em um barco para pular na água com a turma.

“Quando pulei, ele me segurou. Já na água, ele orientou as meninas que boias-sem para relaxarem. Nesse momento, ele também sugeriu que eu fizesse o mesmo e respondi que não sabia e que não ia fazer nada daquilo. Ele me segu-rou e acabou por abusar de mim. Mesmo não sabendo o que estava acontecendo, senti que havia algo errado. De imedia-to, me afastei dele e fui brincar na areia da praia com os colegas de classe. Não quis mais chegar perto dele”, relembrou.

“Até hoje me sinto culpada, pensando como eu pude deixar isso acontecer”

Depois do episódio, Karolina con-versou sobre o ocorrido com uma amiga na hora do intervalo, e o relato caiu nos

Em alguns casos a violência começa na infância

Patricia Danelli ouvidos de uma professora, que passou o caso para a diretoria. “Dias depois, a minha história estava na boca de toda a escola”.

Segundo diz, foi um período difícil. “As pessoas que não gostavam de mim, ficaram me julgando até eu terminar a es cola. Falaram pra mim que eu era res-ponsável por tudo isso, que não sabia me defender. Até hoje me sinto culpa-da, pensando como eu pude deixar isso acontecer”, contou.

O caso foi levado à justiça, mas de nada adiantou. A jovem vítima teve que dar o depoimento ao lado do professor, o que a deixou aterrorizada. O pouco que falou foi baseado no que outras vítimas também contaram sobre ele.

“Meus pais ficaram revoltados na época, pois ele era amigo da família e vivia em casa. Meu pai se sentiu impo-tente e minha mãe até hoje tem uma pro-teção extrema comigo”, disse.

“É uma dor eterna”Mesmo passados mais de dez anos

do episódio, a jovem diz que ainda sofre com depressão e problemas com a auto-estima. “É uma dor eterna”.

Para Karolina, muitas pessoas a jul-garam desde o crime. Ela relatou que inúmeras vezes teve que ouvir que se estivesse em casa, nada disso teria acon-tecido. “Isso não tem lógica alguma, pois estava sob a proteção da escola e isso não impediu que a violência acon-tecesse”.

A fim de amenizar a dor, Karolina buscou inspiração na literatura. Passou a ler livros de superação, sobre histórias que registram a vida de personagens que sofreram e no fim deram a volta por cima.

Atualmente, Karol ainda faz trata-mento com psicólogo. “Encontrei ajuda na terapia. Também coloquei na minha vida que ajudar outras pessoas é um modo de eu me sentir melhor”, conclui.

Após sofrer abuso de professor, vítima carrega a responsabilidade da violência como se fosse sua

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