RUÍDO E DETERMINISMO: DIÁLOGOS ESPINOSISTAS · PDF fileNascido em 1931, na Argélia, Henri Atlan é médico, biólogo e professor de biofísica, com numerosos trabalhos na área

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  • Este misto de entrevista e conferncia

    que aqui publicamos teve lugar em uma

    aula do curso Gregory Bateson e a

    Antropologia, ministrado por Otvio

    Velho no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.

    Os editores agradecem a colaborao de

    Ana Maria Coutinho Aleksandrowicz

    (Escola Nacional de Sade Pblica/Fiocruz),

    que preparou esta apresentao e

    a edio do texto.

    Apresentao

    Nascido em 1931, na Arglia, HenriAtlan mdico, bilogo e professor debiofsica, com numerosos trabalhos narea de biologia celular, imunologia einteligncia artificial. Notabilizou-sepor ter criado a assim chamada teoriade auto-organizao dos seres vivos apartir do rudo (publicada em 1972),que utiliza conhecimentos de biologia,ciberntica e termodinmica, tendo par-ticipado do surgimento e da recente re-novao das teorias da complexidade (o editor-geral da revista internacionalComplexus, lanada em 2002 na Sua).As teorias da complexidade, herdeirasda ciberntica em que nomes como ode Gregory Bateson se destacam , socorrelatas aos desenvolvimentos da fsi-ca dos sistemas dinmicos (aqui inclu-das as teorias do caos) e da assim cha-mada nova cincia, orientao interdis-ciplinar que, emparelhando a impor-tncia das regularidades e do acaso nacompreenso dos fenmenos e aproxi-

    mando por este vis as novas fsica-qu-mica-biologia das humanidades, te-ve seus pressupostos sintetizados no li-vro A Nova Aliana, de 1984, do qumi-co Ilya Prigogine e da filsofa IsabelleStengers. Nessas fronteiras, Atlan tem-se dedicado indagao dos funda-mentos que interligam as cincias natu-rais e as humanas e sociais, permitindo,sob este aspecto, traar alguns parale-los com a vertente em antropologia que,de Gregory Bateson a Tim Ingold (verOtvio Velho, De Bateson a Ingold:Passos na Constituio de um Paradig-ma Ecolgico, Mana, 7(2):133-140) eBruno Latour, vem tentando superar aciso entre o lado sociocultural e o ladobiolgico da disciplina. Um dos marcosda contribuio de Atlan a propostade intercrtica entre cincias naturais ehumanas/sociais, resguardando a espe-cificidade dos vrios saberes e buscan-do suas sintonias a partir de um substra-to ontolgico e epistemolgico comuma todos eles, em conformidade com umareleitura atlaniana da filosofia espi-nosista, segundo a qual se hierarquiza,em nveis sucessivos de auto-organiza-o, uma unidade que se expressa subs-tancialmente em diferenas.

    Em termos metodolgicos, Atlan in-daga acerca da antropologia e da filo-sofia da cincia contempornea atravsde um vis bem peculiar, pois continuaa exercer atividade cientfica em labo-ratrio. Em Jerusalm, fundou e dirigeo Centro de Pesquisa em Biologia Hu-mana e chefia o Departamento de Bio-

    CONFERNCIA/ENTREVISTA

    RUDO E DETERMINISMO: DILOGOS

    ESPINOSISTAS ENTRE ANTROPOLOGIA E BIOLOGIA

    Henri Atlan

    MANA 9(1):123-137, 2003

  • fsica Mdica e Medicina Nuclear, noHospital Universitrio Hadassah. Atlanposiciona-se a favor da hiptese de es-tar surgindo um novo paradigma (nosentido kuhniano) em biologia, que va-loriza o papel da emergncia e da com-plexidade nos mecanismos de auto-or-ganizao biolgica. A partir da, desen-volveu um modelo pioneiro, aplicandoo formalismo das redes neurais imu-nologia, de subdeterminao das teoriasem relao aos fatos, que faculta con-sistentes (e cuidadosas) analogias comos mecanismos que permitem a com-preenso intersubjetiva e interculturalapesar e por causa da impossibilidadede controle total das mltiplas es-truturas e dinmicas envoltas no pro-cesso. Dividindo seu tempo entre Jeru-salm e Paris, diretor de pesquisas nacole des Hautes tudes en SciencesSociales, onde criou uma cadeira de Fi-losofia e tica da Biologia. Uma de suasreas de investigao concentra-se naanlise da linguagem dos discursos so-bre o ser vivo e sobre as assim chama-das cincias da vida termo ambguoque agrega biologia questes de fun-o e significao a princpio de com-petncia das cincias sociais e humanas, a ressaltando a forma e o estatuto dasexplicaes causais em biologia. Rev opolmico tema da finalidade e da inten-cionalidade na natureza e na cultura,considerando a viso de mundo de ori-gem kantiana que postula uma bar-reira absoluta entre corpos puramentemateriais, de um lado, e corpos vivos ecapazes de conhecer e tomar deciseslivremente, animados por uma almano-material, do outro inadequadaaos conhecimentos atuais acerca do con-tinuum corpo e mente. Prope, com ba-se na filosofia natural de Espinosa, umaretomada contempornea da noo denecessidade, de maneira a sugerir umareconceitualizao de liberdade e res-

    ponsabilidade de possveis amplas re-percusses nas cincias humanas e so-ciais tambm aqui nos propiciandoconvergncias de suas idias com a eta-pa final da obra de Gregory Bateson.

    Atlan recebeu inmeros prmios edistines honorficas, em especial naFrana (Legio de Honra), Itlia e Ca-nad. Tem livros traduzidos em ingls,portugus, espanhol, italiano, dinamar-qus, hebraico, japons e chins. Foimembro do Comit Consultivo Nacio-nal para as Cincias da Vida e Sade,em Paris (1983-2000). Tem-se dedicado filosofia espinosista desde 1986 demaneira a estar inserido hoje na ricatradio acadmica francesa que estu-da esse autor. Por outro lado, estudio-so do Talmude e apresenta hipteses ar-rojadas acerca da cultura do povo ju-deu, a partir de uma investigao dosprincpios da identidade judaica, paraalm de seus determinismos histricosrecentes.

    CONFERNCIA/ENTREVISTA124

  • CONFERNCIA/ENTREVISTA 125

    O. VelhoEu estava pensando em como podera-mos tentar estabelecer conexes entreo trabalho do professor Atlan e o nossocurso. O que de mais geral vem men-te aquilo que estivemos discutindo es-ta manh, a respeito da forte rupturaque tem vigorado entre a biologia e osestudos socioculturais. Esta parte denossa tradio nestes ltimos... no sei...setenta ou oitenta anos. No mantemosmuito contato com bilogos e, em certosentido, isto se justifica com muito bonsmotivos: a preocupao com o biologis-mo e o racismo, e todas as questes as-sociadas. No entanto, parece haver,atualmente, um interesse renovado pe-lo dilogo com a biologia, colocado emnovas bases. Pergunto, ento, se vocpoderia nos dizer algo sobre sua visodessa conexo entre biologia, estudossocioculturais e antropologia.

    AtlanEu cheguei a esse limiar atravs domeu trabalho sobre sistemas auto-or-ganizados. Tentarei explicar.

    Os sistemas auto-organizados, paramim, foram um modo de descreveraquelas que eram tidas como as mais in-trigantes e desafiadoras propriedadesdos organismos vivos: sua capacidadede se auto-organizarem. Como vocs sa-bem, os anos 60 foram a poca das gran-des descobertas em biologia molecular.A estrutura do DNA e o papel deste nareproduo foram desvendados; verifi-cou-se que os genes so, de fato, mol-culas de DNA, e foi observado o proces-so pelo qual elas se duplicam e de quemodo a informao que carregam transmitida, tanto s novas geraes co-mo no interior das clulas e do prprioorganismo. Ento, naquele tempo, ha-via duas direes possveis em biologia.Uma era o caminho mais fcil e triunfan-te, que recorria a metforas frouxas, po-

    rm muito poderosas, emprestadas teoria da informao e ciberntica.Afirmava que, uma vez que lidamoscom molculas portadoras de informa-o, como DNA e protenas, podemospor conseqncia comparar o funciona-mento da clula viva ou do organismocom o de um computador. O DNA seriao programa do computador. Esse o as-sim chamado programa gentico.

    E ns, os que seguiam a segunda di-reo, ramos minoria. Na poca, pen-svamos que a analogia da programa-o no passava de metfora, uma me-tfora muito frouxa. De fato, quando ob-servamos o DNA, no encontramos ne-nhum sinal de linguagem computacio-nal. O cdigo gentico, tal como des-vendado, uma projeo das estruturaslineares do DNA nas estruturas linearesdas protenas. No entanto, codificaono deve ser confundido com progra-mao. Portanto, pensvamos que nodevamos nos satisfazer com aquele ti-po de descrio metafrica, e procur-vamos outras alternativas. Verificou-seposteriormente que os mecanismos deauto-organizao constituam a alterna-tiva procurada.

    J ento podamos comear a obser-var a auto-organizao em alguns mo-delos da fsica e da qumica. H situa-es em que vrias substncias qumi-cas reagem entre si e, como resultadoda reao, acaba por observar-se algu-ma estrutura, como, por exemplo, on-das ou outras estruturas espao-tempo-rais macroscpicas. Em tais casos, po-de-se compreender como se d a auto-organizao. No uma coisa misterio-sa, pois todas as substncias e reaesso conhecidas. Baseando-nos nisso,tentvamos elaborar algumas teorias emodelos que nos permitissem conceberde que modo a matria capaz de or-ganizar-se a si prpria sem nenhum ti-po de mecanismo misterioso.

  • Minha contribuio a esse trabalhofoi mostrar que uma condio necess-ria para a auto-organizao no sufi-ciente, porm necessria era que hou-vesse um meio de integrar ao sistemaalgum grau de aleatoriedade, de acaso.Por ter empregado o formalismo da teo-ria da informao nela, o aleatrio uma fonte de erros na transmisso, quechamamos rudo , chamei essa teo-ria de complexidade a partir do rudo.

    Bem, devo dizer que, na poca, essaidia no encantou a maioria dos bilo-gos. Mas as coisas mudaram ao longodos ltimos anos e hoje, com o projetodo genoma humano quase concludo ecom outras novas descobertas em biolo-gia, idias desse tipo entraram na mo-da. Naquela ocasio, elas no atraammuitos bilogos, pois todos se atiravam engenharia gentica e assimilavam demodo literal a metfora da programa-o. Por outro lado, no entanto, esse ti-po de mecanismo de auto-organizaoatraiu algumas pessoas das cincias hu-manas, e por vrias razes por vezesboas razes, por vezes ms. Entre osproponentes mais ativos da auto-orga-nizao em sociologia estava EdgarMorin. Alguns outros tambm se senti-ram atrados pela idia, e surgiu a ques-to quanto ao grau e extenso em quemodelos desse tipo inspirados de fatopela observao de fenmenos biolgi-cos so