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SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. “Transformações do corpo: controle de si e uso dos prazeres”. In: RAGO,
M.; ORLANDI, L. B. L.; VEIGA-NETO, A. (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias
nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 99-110.
Transformações do corpo
controle de si e uso dos prazeres
Denise Bernuzzi de Sant' Anna
É uma grande satisfação participar deste evento sobre Gilles Deleuze e Michel Foucault,
dois filósofos transformados em referências importantes a diferentes pesquisadores da
época contemporânea. É pensando a partir deles que eu farei, a seguir, uma rápida reflexão
sobre a questão que organiza este evento "o que estamos fazendo de nós mesmos?",
tratando, em particular, de indagar "o que estamos fazendo de nossos corpos?"
Tenho como pressuposto inicial o fato de que as inúmeras exigências feitas ao corpo,
coagindo-o a ser cada vez mais saudável, jovem e um produtor infatigável de prazer,
acabam provocando uma vontade crescente de resgatar esse corpo, adulá-lo e protegê-lo,
fornecendo-lhe quase a mesma importância e os mesmos cuidados outrora concedidos à
alma. No limite, cuidar do corpo significaria, portanto, o melhor meio de cuidar de si
mesmo, de afirmar a própria personalidade e de se sentir feliz. É quando, no lugar de um
controle-repressão, o investimento sobre o corpo adquire, como havia sugerido Foucault, o
perfil de um controle-estimulação.
Para entender melhor isto que parece um paradoxo capaz de reunir controle e
estimulação, exploração do corpo e sua valorização, nada mais sugestivo que os trabalhos
de Foucault sobre o biopoder e as reflexões de Deleuze sobre a sociedade de controle. É
possível encontrar neles subsídios para perceber as novas configurações da dominação
capitalista em relação ao corpo e à vida, cujas bases se situam na passagem de uma ordem
político-jurídica para uma ordem tecnocientífica-empresarial. É sobre esta passagem, capaz
de modificar sensivelmente as relações do ser humano com o seu corpo e com a sociedade,
de que tratarei a [p.100] seguir. Pois é, em certa medida, por meio dela que algumas das
principais transformações dos cuidados de si e, em particular, dos usos dos prazeres,
podem ser percebidas e problematizadas.
Esta passagem foi acelerada a partir da década de 1970, quando o desenvolvimento
da genética "casou-se" com aquele da informática e com a massificação global do consumo
de bens industrializados. Desde então, ela vem suscitando dois movimentos concomitantes:
o primeiro é um movimento de expansão externa - impelindo cada corpo a se conectar
direta e cotidianamente com as necessidades do mercado global; o segundo, é de expansão
interna, incitando cada um a voltar-se para seu corpo e a querer o controle e o aumento dos
seus níveis de prazer. Ou seja, no primeiro caso, o corpo aparece intimamente conectado
com interesses que em muito ultrapassam a esfera de ação e de compreensão de cada um. É
quando o corpo, com suas singularidades e potências, tende a desaparecer. Já, no segundo
caso, o corpo ganha uma importância exagerada, porque são multiplicadas as exigências e
as sensibilidades que cada indivíduo tem em relação a si mesmo.
Em resumo, se, por um lado, as singularidades de cada corpo são preteridas em favor
das necessidades da economia de mercado, por outro, e para compensar um tal disparate,
cada um tende a inflacionar o espaço dedicado aos cuidados de si com preocupações e
ações totalmente voltadas para esse "si"; como se para cuidar desse "si" fosse preciso
separá-lo do mundo, isolá-lo num spa ou num lugar que, como diria a publicidade, "tem a
sua cara e o seu jeito de ser".
Ora, com Deleuze e Foucault é possível politizar de maneira radical as reflexões
sobre estes dois movimentos que incidem sobre os corpos atualmente. Eles analisaram,
cada qual à sua maneira, a importância das ações do sistema capitalista sobre os corpos e
deixaram indicações preciosas sobre como questionar verdades e valores há muito
considerados naturais e inquestionáveis.
Detenho-me principalmente em Foucault, pois, em minha trajetória de historiadora,
foi mais com os trabalhos de Foucault que dialoguei, foram eles que, em certos momentos,
tiraram-me da história e noutros me fizeram reencontrá-la (assim, se sou [p.101]
historiadora, devo isto, em grande medida, aos trabalhos de Foucault, mas também devo a
eles se, de algum modo, não sou historiadora). Suas análises sobre a emergência de
sentimentos e, sobretudo, de vontades e receios, ao longo da história, ensinam o historiador
a questionar todo a priori do conhecimento, assim como os componentes de segurança e de
prazer produzidos para cada corpo e em cada relação social. Graças a elas é possível
perceber não apenas a historicidade da antiga vontade de dominar o próprio corpo e de se
livrar definitivamente dos sofrimentos físicos mas, também, a historicidade da própria
"forma homem" inventada no século XIX, diante da qual muitos se apressam em forjar
instrumentos de salvação ou meios de destruição. Foucault, ao contrário do que por vezes é
dito a seu respeito, não estava interessado nem em salvar, nem em destruir esta forma.
Mesmo se ele revela os começos mesquinhos de sua fabricação e a perenidade histórica de
suas verdades, Foucault busca apenas - e isto já é muito - problematizá-la, transformá-la
em questão.
Ao fazê-lo, primeiro a partir da invenção de saberes, depois, da criação e do
exercício de poderes e, a seguir, por meio dos modos de subjetivação, este autor fornece
inúmeras pistas para perceber o quanto aquela "forma homem" não é nem melhor nem pior
que as suas antecessoras. Pois, com efeito, esta forma, tal como havia sido a "forma Deus",
é específica em relação à sua época, comprometida com os anseios, limites e
potencialidades que a caracterizam. Não se trata, portanto, de destruir o homem, mas,
talvez, de nele reconhecer a escala histórica, evitando com isso, que relativistas o
subestimem ou que seus oponentes o superestimem. Por isso, ler Foucault pode até mesmo
funcionar como uma espécie de antídoto contra qualquer hipertrofismo da importância da
"forma homem" criada com a contribuição de cientistas, industriais e políticos do século
XIX.
Esta "forma homem" passa, atualmente, por um processo de transformação acelerada,
capaz de desencadear duas atitudes opostas, e que, de fato, são os dois lados de uma mesma
moeda: salvar o que resta de humano ou descartar a humanidade em favor de uma nova via
de evolução biológica. Isto ocorre, principalmente, [p.102] porque vivemos em meio ao
desenvolvimento de uma ordem tecnocientífica-empresarial que, diferentemente da ordem
jurídico-política fala em nome de, no mínimo, oito ações sobre os corpos, sucintamente
descritas aqui, da seguinte maneira:
1ª. Na primeira delas, o corpo tende a ser considerado o lugar privilegiado da
subjetividade de cada um. Se, durante séculos, a humanidade destinou à alma o lugar da
identidade humana, na ordem tecnocientífica é o corpo que exercerá esta função. Por
conseguinte, conhecê-lo completamente, salvá-lo diariamente, controlá-lo continuamente
são deveres e direitos atribuídos com insistência a todos os que aspiram o sucesso, a
dignidade e a felicidade.
Contudo, se existe uma incitação em transformar o corpo num lugar tão radioso,
importante e sensível como outrora havia sido a alma, é preciso lembrar que esta nova
ordem se insere numa economia de mercado globalizada, na qual tudo tende a ser visto e
tratado como se fosse mercadoria de rápida liquidez. Assim, esse corpo-alma não poderia
escapar ao circuito do marketing e transformar-se num material totalmente disponível às
metamorfoses sonhadas por cada um. Por isso, também, se no passado, a ascese implicava
o constrangimento do corpo para salvar a alma, hoje, as asceses para a saúde do corpo
constrangem o mundo, e, no limite, transformam este último num mero pedaço da própria
fisiologia. Pois, estas novas asceses são dispositivos cada vez mais comprometidos com o
mercado da saúde. Graças à sua importância na atualidade, incluindo o desenvolvimento
acelerado de tecnologias que prometem estender a juventude, combater a velhice e
inúmeras doenças, tudo se passa como se a vida se tornasse crônica e o corpo uma
relíquia... mas uma relíquia comum!
Diferente de um monstro, uma relíquia comum é uma quimera. Os corpos dessa nova
ordem se aproximam das quimeras na medida em que devem estar constantemente
disponíveis às inusitadas manipulações da ciência que, por sua vez, reivindica, com
freqüência, o estatuto e o tratamento das artes. O primeiro estágio dessa tendência é a
adoção progressiva de intervenções no corpo que se assemelham a "novos upgrades" para
a melhoria da aparência física. Mas, entre esse primeiro momento e aquele da [p.103]
criação de quimeras, o espaço não cessa de encurtar. Sua redução está articulada à
transformação da pressa num modo de vida normalizado: principalmente quando o corpo
adquire o valor e o estatuto semelhantes ao da alma, é preciso conquistá-lo e controlá-lo
rapidamente, pois, diferente daquela, sabe-se que o corpo não possui vida eterna.
Todavia, Foucault já havia mostrado o quanto, a partir de Bichat, a vida havia
incluído a morte. Ora, com esta nova ordem, a vida inclui, também, a noção de prazo de
validade. Desde então, cuidar do corpo é aumentar os prazos de validade de suas várias
partes, dilatá-los em direções diversas, para, a seguir, reconfigurá-los; mesmo que, para
isso, seja preciso modificar radicalmente a natureza de cada elemento vivo, criando
novas vias para a evolução.
2º. Para que tais manipulações do corpo se tornem possíveis, esta nova ordem prega
uma liberação quase absoluta dos seres vivos em relação à terra, ao território e à fisiologia
humana: assim, se a ordem político-jurídica necessitava de corpos dóceis e humanos,
buscando a mais-valia vinda da exploração da mão-de-obra, a nova ordem interessa-se
pelo humano e pelo não-humano, pois, além da força de trabalho, ela quer a sua carne,
suas células, seus genes. Aqui, continuando a buscar inspiração em Deleuze e Foucault,
poder-se-ia dizer que o corpo tornou-se um conjunto finito de materiais - órgãos, células,
genes - cujas possibilidades de combinação são ilimitadas e, portanto, capazes de gerar
formas de vida inovadoras. Agora, mais do que nunca, a figura do vampiro, evocada por
Karl Marx para definir o sistema capitalista, precisaria perder os traços de nobreza que a
caracterizaram no século XIX: não se trata apenas de sugar o sangue, a força de trabalho
dos humanos, mas, também, de capturar a sua carne, o seu espírito e, ainda, de ser
alimentado de todos os seres vivos, sem luxo, nem desperdício. O valor do requinte foi
substituído pelo da eficácia. Os vampiros querem músculos e não temem mais os
espelhos. A "vampirização" aburguesou-se e já faz tempo. Tornou-se menos espetacular e
mais ordinária, defende o conforto e não se limita a antigos luxos: não dorme de dia nem
tem preferência pela noite. Sua insônia é sua força. Está nas praia, nos shoppings, [p.104]
nos laboratórios, nas cidades e nas florestas. Parece, enfim, plugada a todo ser vivo, como
uma larva banal, explorando não apenas realidades e fatos, mas, também, virtualidades e
processos.
Por isso, o hipercapitalismo atual necessita de corpos liberados não apenas dos
antigos principias morais e religiosos, nem somente libertados das seculares fronteiras de
gênero e de espécie. Ele carece, igualmente, de corpos desvinculados de seu patrimônio
genético e dos conhecidos limites fisiológicos humanos. No lugar do corpo sem órgãos,
abre-se a possibilidade para fabricar, aqui, órgãos e células sem corpo. E, ainda, órgãos,
células e corpos liberados da "forma homem". As lutas de resistência tentam, por vezes,
inverter essa situação ou minimizar o seu impacto social.
3º. Além do enfoque da liberação corporal, a ordem tecnocientífica reunida à
economia de mercado aposta na transformação de todas as práticas em experiências de
busca de prazeres ilimitados. Esta busca defende que é preciso viver em meio a prazeres
constantes e acumular prazeres suplementares: por conseguinte, se no tempo de nossos avós
nós nos arrependíamos dos prazeres furtivamente experimentados sem o consentimento da
bíblia ou da igreja, há, hoje, a tendência em se arrepender dos prazeres eventualmente não
vividos: o passado continua a perseguir cada um mas com outras exigências. Por vezes, o
uso dos prazeres deve, inclusive, ter a capacidade de transformar a alegria numa euforia
perpétua: não basta ser alegre, é preciso ser eufórico. Ou ainda, de destituir a alegria da sua
natureza afetiva e fazê-la funcionar somente como uma palavra de ordem. Nesse caso, o
poder que investe no controle e na estimulação constantes do corpo torna o próprio prazer
uma ordem sem exceção. Entretanto, os fantasmas do par "controle-estimulação" não
poderiam deixar de ser, justamente, a ameaça do descontrole e o pavor diante da
desestimulação.
4º. Juntamente com a busca dos prazeres ilimitados, a nova ordem, que vive sob o
poderio inacreditável da megaindústria constituída pela reunião entre beleza, nutrição e
saúde, prega que tudo pode e deve funcionar como um remédio: a publicidade não cessa de
anunciar alimentos que previnem doenças, superenriquecidos, diante dos quais os demais
alimentos não passam de seus [p.105] primos pobres; ou, ainda, cosméticos com função
terapêutica e alimentos-cosméticos - tais como os iogurtes anti-rugas da Sisheido - que
sugerem o apagamento das fronteiras entre beleza, saúde e bem-estar. Por conseguinte,
nunca tivemos tanto medo das doenças e tanta aversão ao mal-estar como agora; quando
isto ocorre, queremos relações de amizade e amor somente sob a garantia de que o outro
não provoque estresse, procuramos estar em lugares somente quando acreditamos que esses
lugares não fazem mal à saúde, queremos estar junto de nós mesmos unicamente quando
estamos nos sentindo supersaudáveis e bem-dispostos.
Com a criação dos novos remédios com funções polivalentes, as fronteiras entre bem-
estar, saúde e dependência tendem a desaparecer: como se fosse desnecessário ou mesmo
impossível distinguir um remédio destinado a restaurar o bem-estar de um outro capaz de
alterar a personalidade. O fim destas fronteiras é paralelo à dificuldade crescente em
separar aquilo que está fora do corpo daquilo que seria o seu interior. Há muito se sabe, que
o interior do corpo se transformou em terreno de conquistas científicas. Todavia, é a partir
do século XX que este interior pôde ser recriado digitalmente, passando a ser concebido
como superfície passível de decodificação finita, mas cujas possibilidades de combinação
são ilimitadas.
5º. Em certos casos, esta nova ordem aspira não apenas a purificação biológica
definitiva, pautada pela regeneração de uma raça, mas, também, a medicalização e a
prevenção absolutas por meio da aceleração do processo de "endocolonização" dos corpos
com os produtos fabricados pela indústria biotecnológica atual. O terreno da limpeza social
atinge, assim, não apenas uma raça ou uma classe, mas, sobretudo, os genes, os órgãos e as
células de todos os seres vivos, especialmente aqueles sem acesso ao uso de serviços para a
alteração industrial e científica de suas fisiologias (seja em cirurgias plásticas, em
transplantes de órgãos, terapias gênicas, técnicas reprodutivas, implantação de próteses,
chips, etc.). Somente dentro desta tendência é possível compreender, de fato, o quanto a
vontade de saber sobre o sexo, por exemplo, vem cedendo espaço para a imensa avalanche
provocada pela vontade de manter o corpo sexualizado, jovem, potente e no controle de
todas [p.106] as situações. Vontade de controle que coage a lei a organizar diferentemente
os ilegalismos: se com as sociedades disciplinares as infrações incidiam sobre o corpo
indisciplinado, naquelas de controle elas incidem muito mais sobre os corpos que não
sabem se manter no comando das situações, o que, muitas vezes, se traduz pela falta de
habilidade e de recursos para obter os serviços que prometem, justamente, resgatar ao ser
humano um controle sobre si, mesmo que, para isso, seja preciso se desvincular dos
parâmetros que definem a escala humana. Grande parte da indústria da auto-ajuda se insere,
aliás, nesta busca angustiada pelo resgate do controle sobre si, a partir do qual se promete a
potencialização da própria saúde e da inteligência emocional.
Aqui, podemos, ainda, encontrar outros aspectos da passagem de uma sociedade
disciplinar para aquela do controle, anunciada por Deleuze: se, para a primeira, por
exemplo, os ilegalismos da lei incidiam sobre o roubo da propriedade, nas sociedades de
controle eles incidem, também, sobre o acesso a seus usos. Se a disciplina ocorria dentro
dos imóveis e instituições, o controle - que é contínuo e ilimitado - incide dentro e fora
deles porque privilegia o corpo cm trânsito, a passagem de um local a outro e a constante
meditação sobre si mesmo: daí a quantidade de senhas necessárias para a sobrevivência
cotidiana, não apenas senhas bancárias e de entrada e saída de imóveis ou sites, mas
senhas de acesso à comunicação consigo mesmo, transformadas, segundo alguns magos
das seitas e receitas de auto-ajuda, em fórmulas de aquisição do sucesso pessoal.
6º. Nesta nova ordem aprofunda-se uma tendência existente na ordem político-
jurídica que é a de transformar todas as partes do corpo em imagens de marca e num
marketing privilegiado do eu. Por conseguinte, o desejo de investir nas imagens corporais
torna-se proporcional à vontade de criar para si um corpo inteiramente pronto para ser
filmado, fotografado, em suma, visto e admirado. Como Deleuze já havia escrito, o
marketing é o instrumento de controle social da época atual. Por conseguinte, [p.107] há,
aqui, uma espécie de totalitarismo fotogênico banalizado:1 exige-se que tudo no corpo
seja preparado para ser visto, exposto, colocado em pose: até mesmo o que é considerado
avesso à toda a pose e à toda exposição começa a ser coagido a aparecer e a sofrer um
processo de "rostificação" acelerado. A imposição das imagens rostificadas, tal qual havia
sublinhado Deleuze e Guattari, somada à banalização assustadora de imagens de corpos
que parecem impermeáveis às marcas do tempo e aos problemas cotidianos, pode
transformar em certeza a impressão de que é impossível passar despercebido. E pode,
sobretudo, tornar indesejável o devir clandestino e fazer do marketing da rostificação uma
solução inevitável.
1 Esta idéia foi desenvolvida em meu livro Corpos de Passagem (SANT'ANNA,2001).
7º. Como fator intimamente relacionado a este totalitarismo fotogênico, temos uma
espécie de esvaziamento da política e uma inflação da publicidade: a política é percebida
como sendo o lugar do roubo e da sujeira... a publicidade o lugar do exercício da cidadania
e da limpeza. Não por acaso, McDonald's, Du Pont, Sony e centenas de marcas aparecem
em seus anúncios intimamente comprometidas com os valores da cidadania, da ecologia,
promovendo a reciclagem do lixo, prometendo cuidar de cada um de nós, tal como os
antigos políticos prometiam cuidar dos antigos cidadãos. Enquanto a política é vista como
o espaço da mentira, o da publicidade é encarado como o lugar da descoberta das verdades:
assim, Benetton denunciou problemas sociais com crueza, Body Shop militou pela
conservação da natureza, centenas de empresas não cessam de fornecer a democracia ao
vivo e em kits. Como se os valores da cidadania, democracia e ecologia se tornassem
forçosamente conseqüências do ato de consumir individualmente e não mais frutos de um
exercício de politização coletiva. Pois, ao mesmo tempo, os direitos sociais e coletivos não
cessam de ser obliterados em favor dos direitos individuais e privados. No lugar de uma
correlação entre estes dois níveis de direito, ou de uma aliança estratégica entre combates,
ocorre uma substituição passiva de um por outro, ou mesmo a sua oposição [p.108] furiosa:
como se as lutas por questões coletivas contrariassem violentamente as conquistas por
saúde e bem-estar no âmbito pessoal e no domínio privado e vice-versa.
8º. Por fim, e na melhor das hipóteses, essa nova ordem torna opaca e mesmo
invisível as verdadeiras redes que nos conectam com as potências do mundo; e, na melhor
das hipóteses, revela ao olhar apenas as redes constituídas por poderes. Ou seja, um novo
arranjo das visibilidades e dos enunciados se estabelece na medida em que as referências
jurídicas e políticas cedem terreno para os parâmetros da tecnociência. E, neste novo
arranjo, a comunicação transforma-se num imperativo inquestionável e os comunicantes,
seres incertos, questionáveis e rapidamente substituíveis. A acelerada substituição dos seres
é solidária à tendência atual, do mercado financeiro, mas, também, dos usos de prazeres
individuais que investem mais na eficácia que na ética, mais no risco que na prudência. Dai
a facilidade publicitária em postular a idade emoção/risco/eficácia como modelo para a
aquisição da juventude, da riqueza e do prazer. Mas dai, também, a retomada da ética e da
prudência como modos de resistência atuais.
Estas oito grandes tendências suscitam a necessidade de relançar questões, na
verdade, seculares: como fazer com que o uso dos prazeres fortaleça as potências de cada
corpo e o afeto por si sem degradar as potências dos demais corpos? Ou, ainda, como
constituir coletivos destituídos do espírito de rebanho e, ao mesmo tempo, fortificar o afeto
por si? E como cuidar do próprio corpo sem fazer dele um exílio confortável, macio e
perfumado, um templo no qual amigos e inimigos são dispensáveis?
Pois, a nova ordem aprofunda a antiga necessidade de fazer do corpo um veículo
capaz de passar pelo tempo e acessar muitos lugares, ao invés de fazer dele mesmo uma
passagem. Ela instiga todos a utilizar o próprio corpo apenas como um móvel que se acessa
por toda parte e que se modifica e se configura como se quer, mas raramente o encoraja a
funcionar como um elo entre as potências dos demais corpos, criando, com eles, de fato, o
desenho de uma rede aberta a configurações relacionadas à cada situação na qual cada
corpo é nada mais e, também, nada menos que um dos nós. [p.109]
Foucault se perguntou porque não poderíamos fazer da vida uma obra de arte,
não exatamente para expô-la nos museus e galerias, pois, se a intenção é ser um corpo-
elo (e não mais um corpo substância similar à imagem de um veiculo blindado), não se
trata de expô-lo, nem de colocá-lo acima ou abaixo do curso ordinário da vida. Trata-
se, muito mais, de reinseri-lo nos acontecimentos ordinários, transformando-o num
território de ressonâncias destituído de todo autismo. Afinal, nada mais constrangedor
que substituir o pavor do descarte e o medo de sombrear na insignificância pela
vontade de durar eternamente.
Daí a importância de lutar contra a tentação de ser uma substância que remete o
próprio brilho apenas para si. Trata-se de não reconhecer sedução alguma na avidez
que busca colocar o próprio corpo no começo e no fim dos processos e, em suma, de
fugir para o meio onde se dão as lutas, as disputas, a criatividade. Fugir para o meio, já
havia escrito Deleuze, sem adiar o real para amanhã.
Por isso, também, a estratégia desta luta parece ser menos a de construir casamatas
e outros equipamentos de segurança para os corpos ou de se munir, unicamente, de novas
informações e de novas máquinas de comunicar e de transitar. Pois, lutar nesta nova ordem,
que investe no "finito ilimitado", não poderia deixar de ser um trabalho mais próximo da
reciclagem e da recombinação daquilo que já existe que um trabalho de invenção
totalmente original. Ele também é menos uma criação solitária e extraordinária que uma
ação correlacionada, (metaestável, para utilizar um termo de Gilbert Simondon), ordinária
e comezinha, que aproveita o que existe a nossa volta porque, de fato, baseia-se na atenção.
Trata-se, assim, de uma ação que exige retomar, logo de início e o mais rápido possível, o
sentido positivo da palavra atenção. Infelizmente, no Ocidente, a atenção foi muito mais
explorada em seu aspecto coercitivo disciplinar. Pouco foi feito para fazê-la funcionar
menos como barragem de fluxos e mais como um seletor. Em várias civilizações não
ocidentais, a atenção foi e é um instrumento de seleção dos encontros, por meio do qual os
seres distinguem, em cada corpo e em cada ação, a potência do poder, a diversidade da
diferença, a mobilidade do nomadismo, [p.110] o prazer do desejo. Além disso, a atenção
aprendida em sua positividade talvez seja uma maneira, entre outras, de detectar, em cada
corpo e em muitas de suas imagens, a presença do clichê e, com ela, a ambição de criar
corpos cuja forma já conhecemos de antemão, ou de fazer com que o marketing se antecipe
ao nascimento da vida.
Ora, a atenção não se aprende necessariamente com novos meios tecnológicos. Por
mais tautológico e simples que possa parecer, atenção só se aprende com atenção. E, nessa
nova ordem, que chega ao ponto de criar a desatenção como parâmetro de eficácia, parece-
me que tentar manter-se atento é um primeiro gesto para inviabilizar as ações que deletam
tanto as nossas singularidades quanto aquelas dos que nos rodeiam. Ela é um primeiro
passo para tornar completamente inviável, impossível e indesejável desconectar a questão
"o que estamos fazendo de nós mesmos" da questão "o que estamos fazendo dos outros".