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ISSN 1984-1728
Fae - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Curitiba 2012
SãoBoaventuraRevista Filosófica
São Boaventura, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 1-211
janeiro/junho 2012
Copyright © 2008 by autores
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
FAE - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)R. 24 de maio, 135 – 80230-080 – Curitiba PR
http://www.saoboaventura.edu.br/E-mail: [email protected]
Reitor: Fr. Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos
Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão
Diretor do IFSB: Dr. Jairo Ferrandin
Editores: Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini
Comissão editorial:Dr. Roberto H. PichMs. Vicente KellerDr. Jaime SpenglerDr. João Mannes
Dr. Marcelo Perine
Conselho editorial:Dr. Osmar Ponchirolli
Dr. Mauro SimõesDr. Antônio Joaquim Pinto
Dr. Écio Elvis PizzetaDr. Leonardo Mees
Ms. Solange Aparecida de Campos CostaDr. Renato Kirchner
Revisão: Editoria
Diagramação: Sheila Roque
Capa: Roland Cirilo
Catalogação na fonte
Revista filosófica São Boaventura/ FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.
v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23
SemestralISSN 1984-17281. Filosofia – Periódicos. I. FAE - Centro Universitário. Instituto deFilosofia São Boaventura.
CDD - 105
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“I disbelieve in specialization and in experts.By paying too much respect to the specialist, we are
destroying the commonwealth of learning, the rationalist tradition, and science itself” (Karl Popper).
Introdução
Em certa ocasião, Popper registrou sua concordância
com Russell no que concerne à existência de consequ-
ências práticas da epistemologia para os campos da
própria ciência, da ética e também da política. Ambos,
Popper e Russell, se põem em acordo ao aproximar tanto
o relativismo epistemológico como o pragmatismo epis-
temológico de ideias totalitárias e autoritárias (POPPER,
2008 [1963], p. 35-36). Instigados por esta asserção e
assumindo-a como potencialmente legítima, propomos
acercar-nos da reflexão em filosofia da ciência de Popper
para elucidarmos do modo mais preciso possível quais
consequências práticas poderiam ser extraídas de suas
contribuições em epistemologia.
De fato, tendo em consideração a realidade do atual
contexto de desenvolvimento científico e tecnológico
alcançado pela espécie humana, quiçá fosse mais coe-
rente substituirmos o “poderiam” da frase anterior por
“deveriam”.
A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética em (bio)tecnociência*
Márcio Rojas da Cruz, Ministério da Ciência
e Tecnologia e Universidade de Brasília**
Gabriele Cornelli, Universidade de Brasília***
* Versão inicial desta refl exão
foi apresentada por ocasião
do II Colóquio Internacional
“Biotecnologias e Regulações”
do Núcleo de Estudos do Pen-
samento Contemporâneo do
Instituto de Estudos Avançados
Transdisciplinares da Universi-
dade Federal de Minas Gerais,
realizado em abril de 2011.
** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. Coordenação-Geral de Biotec-nologia e Saúde. Ministério da Ciência e Tecnologia. Esplanada dos Ministérios, Bloco E, Sala 256, 70067-900, Brasília, DF, Bra-sil. E-mail: [email protected]
*** Professor dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Bioética da Universidade de Brasília. UnB, Instituto de Ciências Humanas, Departa-mento de Filosofia. Campus Universitário Darcy Ribeiro – ICC Ala Norte, Caixa-Postal: 04661. 70910-900, Brasília, DF, Brasil. E-mail: [email protected]
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...54
Acompanhamos inclusive por meio de mídia não especializada em divulgação
acadêmica os notáveis avanços científicos recentes, particularmente os que se referem
ao paradigma biotecnocientífico. Tornado possível por meio da teoria da evolução de
Darwin e da teoria genética de Mendel e conquistado em definitivo pela elucidação
da estrutura do DNA por Watson e Crick e o desenvolvimento posterior de protocolos
de engenharia genética (com enzimas de restrição, DNA ligases, reações em cadeia de
DNA polimerases etc.), o paradigma biotecnocientífico representa nossa competência
técnica em “transformar e reprogramar o ambiente natural, os outros seres vivos e
a si mesmo em função de seus projetos e desejos” (SCHRAMM, 1998, p. 217), nos
habilitando em teoria a nos tornarmos de certa forma imunes aos mecanismos de
seleção natural e influenciadores significativos do processo de evolução das espécies
vivas (SCHRAMM, 1996, p. 114-115).
Interessante notarmos que este potencial por vezes surpreendente já havia sido
notado pelo próprio Popper quando, ao refletir sobre o progresso científico, percebeu
a partir de um ponto de vista biológico e evolutivo a ciência como um “instrumento
usado pela espécie humana para se adaptar ao ambiente, para invadir novos nichos
ambientais e até para inventar novos nichos ambientais” (POPPER, 2004, p. 51).
Nesse cenário, nos deparamos com a seguinte situação: o paradigma biotecnocien-
tífico nos confere uma competência a priori exclusivamente técnica, não necessaria-
mente também uma competência ética. A propósito, parcela importante dos processos
ou produtos que guardam estreita aderência ao paradigma biotecnocientífico suscitam
dilemas no campo da ética, cujas soluções, para que se apresentem minimamente
satisfatórias (ou até mesmo o menos insatisfatórias possível), demandam hercúleos
estudos e discussões.
Infelizmente a concepção de que o investimento no progresso científico gera
espontaneamente e em igual proporção progresso moral já foi devidamente mitifi-
cada, não nos sendo permitido manter a ingenuidade dos pretéritos. Novamente, o
próprio Popper já havia percebido o risco de se aceitar o mito do progresso, decla-
rando que
nada sob o sol existe que não possa ser usado mal e que não tenha sido mal usado.
Mesmo o amor pode se mudar em instrumento de assassínio e o pacifismo pode-se
transformar numa arma que favoreça uma guerra agressiva (POPPER, 1998b [1945],
p. 252).
Assim, não podemos nos furtar da responsabilidade de avaliar as consequências
éticas e morais das biotecnologias modernas.
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É digno de nota que, com o avanço do conhecimento na área da biologia do
desenvolvimento evolutivo, ou “evo-devo” (CARROLL, 2008) – mais especificamente,
com o avanço do conhecimento acerca da tradução da informação genotípica em
características fenotípicas dentro de um contexto filogenético – em termos de evo-
lução, há casos em que ganhos são alcançados somente após perdas serem sofridas.
Ilustrando, artigo recente publicado na Nature apresentou a tese de que uma perda
em informação genômica (próxima a um gene supressor de tumor ativado por dano
ao DNA e responsável por cessar o ciclo celular) estava relacionada com o fato de
seres humanos serem dotados de cérebros maiores quando comparados com chim-
panzés (McLean et al., 2011). Ou seja, em que pese o fato de o senso comum e boa
parte de biólogos associarem a perda de informações genômicas com perda no grau
de complexidade de um organismo qualquer, este estudo trabalha com a hipótese
contrária, o aumento no grau de complexidade de um organismo e em alguns casos
uma aceleração no processo evolutivo por vezes se dá por meio de um deletar de
informações genômicas.
Essas descobertas em biologia do desenvolvimento evolutivo podem ser tidas
como mais uma sinalização hodierna da necessidade de nos dedicarmos seriamente
às questões bioéticas levantadas pelo paradigma biotecnocientífico. Isto porque se
prosseguirmos com a comparação entre o avanço da fronteira do conhecimento,
viabilizado pelo paradigma biotecnocientífico, e o processo evolutivo sob a perspec-
tiva biológica, nos é permitido suspeitar se não seria o caso de o desenvolvimento
acelerado das modernas biotecnologias estarem se dando às custas de perdas ou
deleções quiçá no que tange aos princípios e valores morais.
Na perspectiva biológica, eventualmente, para que haja um ganho no fenótipo,
há a necessidade de uma perda no genótipo. É possível que na perspectiva tecnocien-
tífica, eventualmente, a situação se assemelhe à perspectiva biológica: para que haja
um ganho na técnica, há a necessidade de uma perda na ética. Cabe-nos decidir se
preferimos priorizar a técnica em detrimento da ética ou, do contrário, se preferimos
priorizar a ética em detrimento da técnica.
Essa suspeita se torna ainda mais preocupante e a reflexão em bioética se torna
ainda mais impostergável quando contemplamos os próprios objetos de estudo dos
laboratórios em instituições públicas e privadas distribuídas pelo mapa mundial. É
público e notório que cada vez mais os cientistas se dedicam a pesquisas científicas e
desenvolvimentos tecnológicos envolvidos com manipulação da vida, não só de repre-
sentantes de espécies vegetais e animais inferiores, mas igualmente da própria vida
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humana. O investimento em plataformas biomiméticas para o estudo de células-tronco
humanas, com microambientes controlados que simulam as condições humanas in
vivo para investigações de desenvolvimento, regeneração e patologia tecidual, expe-
rimentações estas nas interfaces entre a biologia, a engenharia e as ciências médicas
(VUNJAK-NOVAKOVIC, 2011) é apenas um exemplo de muitos disponíveis.
Por conseguinte, tendo sido apresentada uma breve justificativa para a reformu-
lação, acerquemo-nos da reflexão em filosofia da ciência de Popper para elucidarmos
do modo mais preciso possível quais consequências práticas deveriam ser extraídas
de suas contribuições em epistemologia.
O filósofo da ciência
Durante décadas, a ciência tem sido vista como consistindo em um sistema de
conhecimento dotado da característica da verdade, sendo o procedimento lógico da
indução o principal responsável pela base de confiança na verdade do conhecimento
reunido pelo sistema científico (POPPER, 2007 [1934], p. 347). Após ter sido realizada,
registrada e analisada uma sequência de observações, descobrem-se determinadas
regularidades aparentemente sem exceções quanto aos enunciados observacionais.
Com base nas repetições de evidências empíricas singulares, procede-se com a gene-
ralização para um enunciado empírico universal. Este passo transparece a confiança
que se deposita na expectativa de que observações futuras ocorrerão exatamente
do mesmo modo que as observações já realizadas, registradas e analisadas, como se
eventos repetidos pudessem configurar como justificação para que uma lei universal
seja aceita (o que Popper chama de “doutrina da primazia das repetições”; POPPER,
2007 [1934], p. 480).
Neste cenário, no entanto, Popper introduz o “problema da indução”. Trata-se
da consequência natural que surge do dualismo entre um critério empírico básico (o
de que apenas a experiência é capaz de atestar a veracidade ou a falsidade de um
enunciado científico) e a impossibilidade lógica de decisões indutivas (enunciados
universais não podem contar com justificações empíricas), previamente aventada
por Hume (POPPER, 2009 [1979], p. 357). Assim, ao invocar o questionamento da
admissibilidade da indução por Hume, Popper considera que enunciados empíricos
singulares são passíveis, em princípio, de verificação ou falsificação, uma vez que não
há empecilhos lógicos para se comprovar a veracidade ou a falsidade de enunciados
empíricos singulares. Contudo, a situação é distinta para os enunciados empíricos
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universais, uma vez que, em princípio, estes só são passíveis de falsificação. Isto ocorre
porque experiências científicas, por razões lógicas, só são capazes de determinar se
um particular enunciado empírico universal é falso, e nunca são capazes de determinar
se um particular enunciado empírico universal é verdadeiro (POPPER, 2009 [1979],
p. 330-331). Enquanto a tarefa de se verificar (no sentido de corroborar) uma teoria
científica em teste é impossível do ponto de vista da lógica, falsificar (no sentido de
falsear) uma teoria científica em teste irá, no pior dos casos, se deparar com impossi-
bilidades apenas práticas. Isto porque ao considerarmos os procedimentos indutivos
(partindo de enunciados singulares em direção a enunciados universais), o modus
tollens funciona como uma inferência estritamente lógica, e não há nesta direção
modus ponens (POPPER, 2009 [1979], p. 433). A partir do ponto de vista da lógica,
toda vez que se procede com uma indução, seja ela tácita ou explícita, assumem-se
certas suposições como sendo verdadeiras sem, contudo, se ter justificativa para tal
(POPPER, 2009 [1979], p. 36-37).
Avança-se da segurança do singular observado para o duvidoso do geral ainda
não observado, sobre o qual nada investigamos ainda.
Uma inferência indutiva pura não pode ser logicamente justificada, dado que enuncia-
dos universais não podem nunca ser derivados de observações singulares; em resumo,
afirma algo que (pelo menos para cada empirista) é autoevidente: que nós não podemos
saber mais do que sabemos (Tradução nossa) (POPPER, 2009 [1979], p. 42).
Uma breve nota sobre relações de causa e efeito. Diante da impossibilidade de
observarmos um evento causando outro evento como efeito (por exemplo, uma
infecção por papilomavírus humano do tipo 16 ou 18 causando carcinoma cervical
invasivo), devemos ter em mente que a causalidade deve ser tida por regularidade
ou comportamento de sequências de eventos semelhante a uma lei, uma vez que
nossa observação se restringe ao registro de que um evento de um determinado tipo
(desenvolvimento de carcinoma cervical invasivo em pacientes não tratadas) tem até
o momento se sucedido regularmente a um outro evento de outro determinado tipo
(infecção por papilomavírus humano do tipo 16 ou 18). Assim, como a observação
apenas nos informa da sequência dos eventos, observações isoladas não nos podem
informar sobre relações causais (POPPER, 2009 [1979], p. 112-113).
Considerando o fato de que teorias científicas são, via de regra, essencialmente
generalizações de conjuntos de enunciados empíricos singulares com potencial para
exercer o papel de lei da natureza (gozando de poder explicativo, poder preditivo,
entre tantos outros valores cognitivos), o conflito surgido entre o “princípio da in-
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validade da indução” e o “princípio do empirismo” conduz Popper ao “princípio do
racionalismo crítico”, pelo qual certa teoria científica em julgamento só receberá o
veredicto de aceitação ou rejeição após um processo de crítica racional e levando em
consideração os resultados de observações e experimentações (POPPER, 2000 [1983],
p. 32-33).
Elucidando este tópico da epistemologia popperiana, o “princípio do raciona-
lismo crítico” nada mais é do que a lógica dedutiva, levando em consideração suas
características de “transmissão da verdade” (assumindo inferências dedutivas válidas,
se trabalharmos exclusivamente com premissas verdadeiras, a conclusão deverá ser
necessariamente verdadeira) e de “retransmissão da falsidade” (assumindo inferências
dedutivas válidas, caso a conclusão seja falsa, pelo menos uma entre as premissas
deverá ser necessariamente falsa), com ênfase para esta última característica (POPPER,
2004, p. 26-27).
Agora, se o cerne do empreendimento científico consiste no falibilismo (“fallibi-
lism”, ou falseacionismo, “falsificationism”), como se daria a dinâmica do progresso
científico? Segundo Popper, a observação e a experimentação científicas são sempre
precedidas pela formulação de uma teoria (uma expectativa) a ser testada. E sendo
esta a única forma da qual dispomos para começar a tarefa de interpretação da na-
tureza, faz-se necessário o investimento na proliferação de possíveis teorias científicas
que expliquem determinadas questões do mundo físico, por meio de especulações
injustificadas e arriscadas (POPPER, 2007 [1934], p. 307). E como a teoria, por sua vez,
é invariavelmente precedida por um problema específico que motivou sua formula-
ção inicial, pode-se afirmar que o conhecimento tem por origem não as percepções
sensoriais mas sim os problemas. Esta constatação torna visível a tensão que subsiste
entre conhecimento e ignorância, uma vez que ambos concorrem para a geração de
problemas. Não há problema sem conhecimento da exata mesma forma que não há
problema sem ignorância (Popper, 2004, 14-16). Prosseguindo, a dinâmica científi-
ca se daria de acordo com o esquematicamente exposto pela figura 1, sendo “P” o
problema original em determinada fase do desenvolvimento científico, “TT” a teoria
tentativa para o problema alvo da investigação científica e “EE” a eliminação de erro
que se dá pela crítica racional falibilista (POPPER, 1999 [1973], p. 159-160). Uma
estimativa da medida do progresso científico pode ser obtida por meio da aferição
da distância entre dois problemas (POPPER, 2009 [1996], p. 230-231). Já neste ponto
transparece a insignificância do contexto de descoberta frente ao mérito do contexto
de justificação.
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Figura 1. Modelo básico para dinâmica científica segundo Karl Popper
Incorporando ao esquema algumas características adicionais para que se tenha
uma visão mais próxima da realidade complexa, chegamos à figura 2, onde se des-
tacam: i) que a dinâmica científica não é cíclica, ou seja, novos problemas emergem
dos distintos processos de eliminação de erros (POPPER, 1999 [1973], p. 223); e ii)
que a dinâmica científica tem uma tendência a ser convergente, ou seja, os distin-
tos processos de eliminação de erros apontam em princípio para uma única teoria
tentativa final (POPPER, 1999 [1973], p. 239-240) capaz de supostamente oferecer
conhecimento científico definitivo dotado de uma componente teórica (uma explica-
ção), bem como dotado de uma componente prática (uma predição, uma aplicação
técnica) (POPPER, 1999 [1973], p. 321).
Figura 2. Modelo para dinâmica científica segundo Karl Popper
Considerando a ciência como sendo um fenômeno biológico, que tem por origem
o conhecimento do senso comum (pré-científico) que, por sua vez, tem por origem o
conhecimento animal (POPPER, 2001 [1994], p. 20), a dinâmica do desenvolvimento
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científico pode ser comparada, grosso modo, à dinâmica do desenvolvimento de popu-
lações biológicas. O método pelo qual uma espécie biológica alcança a sobrevivência ao
longo do processo evolutivo é fundamentalmente o mesmo pelo qual devemos buscar
alcançar a solução de determinados problemas por meio da ciência, o “método das
tentativas, dos erros e dos acertos”. E da mesma forma que a diversidade de genes é
crucial para que uma população seja exitosa, assim também o sucesso do empreen-
dimento científico é dependente da diversidade de teorias científicas. Quanto mais
amplas forem as possibilidades de tentativas de avanço do conhecimento científico,
maiores serão as chances de encontrarmos conjecturas resistentes ao falseamento.
E para que cada teoria científica goze de uma possibilidade concreta de resistir ao
falseamento, é imprescindível que ela seja “dogmaticamente” defendida pelo maior
espaço de tempo possível, ainda que sofra com dificuldades internas ou mesmo que
tenha de lidar com aparentes refutações empíricas. Neste cenário, exercem papeis
igualmente importantes o “applied scientist”, cientista vítima de uma doutrinação em
sua fase de capacitação que o induz a realizar suas pesquisas imbuído de um espírito
dogmático e o “pure scientist”, cientista que em sua formação foi treinado e encora-
jado no método crítico (POPPER, 1970, p. 53). O monopólio de uma teoria científica
inquestionavelmente comprometeria a manutenção do progresso científico (POPPER,
2000 [1983], p. 70; 2004, p. 73-74 e 2008 [1963], p. 343). Igualmente, considerando
a possibilidade de os pesquisadores individuais se tornarem todos “imparciais e frios”,
tal situação também representaria um “obstáculo intransponível” para a manutenção
deste progresso (POPPER, 2009 [1996], p. 65). Não obstante, em que pese o fato de
ambos, o dogma e a crítica, terem sido reconhecidos como componentes vitais para
o empreendimento científico, o compromisso duradouro com a importância do papel
exercido pela crítica impediu que Popper desenvolvesse em mais detalhes a reflexão
que trataria da contribuição do dogmatismo para o empreendimento científico (RO-
WBOTTOM, 2011, p. 122).
Seguindo esta linha de raciocínio, a de que a dinâmica do desenvolvimento
científico pode ser comparada à dinâmica do desenvolvimento de populações bioló-
gicas, o que distingue crucialmente Einstein de uma ameba é a disposição perante o
falibilismo. Enquanto a ameba evita com todas as forças a eliminação das tentativas
de soluções para os seus problemas e assume o papel de participante passiva desse
processo, Einstein busca ativamente a eliminação das tentativas de soluções para os
seus problemas. Este cenário é possível uma vez que em ciência podemos submeter
nossas hipóteses a um processo que potencialmente culminará com sua eliminação
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sem implicar necessariamente na nossa própria eliminação, ao passo que para a
ameba a situação é diferente. Caso o ambiente elimine uma tentativa particular da
ameba de solucionar um problema específico, o resultado final pode ser a eliminação
da existência da própria ameba (POPPER, 2001 [1994], p. 25).
A dinâmica popperiana para o progresso científico também apresenta uma estreita
semelhança com a teoria para a formação de anticorpos, tal qual trabalhada pela
imunologia atual. Da mesma forma que a instrução para a produção de anticorpos
por um organismo é inata, assim também as teorias científicas são idealizadas com
base em pré-conceitos e da mesma forma que a exposição a distintos antígenos
favorecerá a produção de determinados anticorpos em detrimento de outros, assim
também a experimentação favorecerá a manutenção (e talvez o desenvolvimento
subsequente) de determinadas teorias científicas em detrimento de outras (POPPER,
2009 [1996], p. 36-37). E ainda, da mesma forma que novos anticorpos produzidos
por um organismo apresentam um dualismo entre um caráter inovador (regiões va-
riáveis para reconhecimento dos epitopos dos antígenos) e um caráter conservador
(regiões constantes nas cadeias pesada e leve), assim também o progresso na ciên-
cia apresenta um dualismo entre um caráter inovador e um caráter conservador. O
caráter inovador é conferido pelo fato de que uma teoria científica deve, do ponto
de vista lógico, entrar em algum conflito com a teoria científica à qual ela sucedeu,
apontando para uma explicação que não só desconsidera como também contradiz a
sua antecessora. Já o caráter conservador, por sua vez, é conferido pelo fato de que,
para ser considerada uma boa nova opção, a teoria científica mais recente deve ser
capaz de oferecer uma explicação aos fatos da realidade pelo menos tão adequada
quanto à teoria científica anterior. Se possível, a nova explicação deve ser ainda mais
completa, acrescentando melhores resultados que os apresentados pela explicação
em substituição. “A teoria predecessora deve parecer uma boa aproximação à teoria
nova” (POPPER, 2004, p. 67-68).
Uma vez que o refutar de uma teoria por meio da análise de suas consequências
dedutivas inspira-se em uma inferência dedutiva do tipo modus tollens, surge na-
turalmente a necessidade de reconhecimento de que as teorias científicas, por mais
importantes que possam ser para a sociedade que temos hoje, e ainda por mais tempo
que resistam às tentativas de falseamento, jamais podem ser vistas como tendo a
veracidade definitivamente assegurada (POPPER, 1992 [1976], p. 88).
O status de verdade no sentido objetivo, entendida como correspondência com os
fatos, e sua função como princípio regulador podem ser comparados à situação de
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...62
um pico montanhoso, usualmente envolto em nuvens. Um alpinista não só terá difi-
culdade em alcançá-lo mas também não saberá quando o alcançou, pela dificuldade
em distinguir o pico principal dos subsidiários, no meio das nuvens. Mas isso não afeta
a existência objetiva do pico. Se o alpinista disser: “tenho dúvida sobre se cheguei
ao pico principal”, estará reconhecendo, por implicação, sua existência objetiva. A
própria ideia do erro, ou da dúvida (no sentido normal e corrente) implica a ideia de
uma verdade objetiva que podemos deixar de alcançar.
Embora o alpinista possa não ter a possibilidade de certificar-se de que atingiu real-
mente o pico, quase sempre poderá perceber que ainda não o alcançou: por exem-
plo, quando depara um paredão que se prolonga verticalmente. Da mesma forma,
há caso em que temos a certeza de que não chegamos à verdade. Assim, enquanto
a coerência, ou consistência, não é um critério de veracidade, simplesmente porque
mesmos sistemas provadamente consistentes podem ser de fato falsos, a incoerência
ou inconsistência demonstram a falsidade. Portanto, se tivermos sorte poderemos
descobrir a falsidade de alguma das nossas teorias (POPPER, 2008 [1963], p. 252).
Assim sendo, a visão epistemológica popperiana equilibra o extremo pessimismo
epistemológico (a ideia de que a razão não é capaz de prover conhecimento objetivo,
sendo este resultado de convenções em uma comunidade particular em um tempo
particular) e o extremo otimismo epistemológico (defesa exagerada da razão, como se
esta alcançasse mais do que de fato alcança ou operasse de forma infalível no mundo)
(PARVIN, 2010, p. 4-5). E o elemento “sorte” relacionado à descoberta da falsidade de
alguma teoria emerge porque sendo as refutações pontos onde a realidade é tocada
(POPPER, 2008 [1963], p. 144), longe de representarem a constatação de fracasso de
uma teoria científica ou do cientista que a propôs, elas devem ser enxergadas como
sucessos da empreitada científica, sucessos esses compartilhados entre o cientista que
refutou uma teoria específica e o cientista autor da teoria alvo da refutação, por ter
contribuído, ainda que indiretamente, para o desenho experimental que propiciou
esse toque à realidade (POPPER, 2008 [1963], p. 268).
Considerando que, a priori, enunciados empíricos universais estão logicamente
impedidos de ter a veracidade demonstrada pela experiência, as teorias científicas
deixam de figurar como afirmações verdadeiras e inquestionáveis a respeito da natu-
reza e do mundo e passam a ser encaradas ao longo de toda a sua existência como
sendo apenas suposições, hipóteses ou até mesmo palpites a respeito da natureza
e do mundo – “hypotheticalism”. Consequentemente, a ciência se ocupa mais de
“doxa” (conjecturas) do que propriamente de “epistēmē” (conhecimento indubitável)
(POPPER, 2000 [1983], p. 259; 2006 [1984], p. 71; 2008 [1963], p. 84 e 131; e 2009
[1979], p. 8).
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Mais uma vez recorrendo à comparação entre o contexto evolutivo e o contexto
epistemológico, o conhecimento científico conjectural teria por equivalente no reino
animal a expectativa (POPPER, 2001 [1994], p. 60). E ainda, da mesma forma que o
sucesso evolutivo atual de uma dada espécie não garante que a espécie permanecerá
tendo sucesso no futuro, assim também o êxito atual de uma teoria científica em resistir
às tentativas de refutações de forma alguma garante que a teoria científica permanecerá
resistindo às tentativas futuras de refutações (POPPER, 1999 [1973], p. 74).
Desse modo, deve-se ter clara a distinção entre verdade e certeza. Considerando
o fato de que todo o conhecimento humano é falível, a busca incessante pela verdade
por meio do empreendimento científico não pode nunca nos induzir ao pensamento
de que alcançamos a certeza com as nossas experimentações e observações (POPPER,
2006 [1984], p. 14). O processo de formação de uma opinião, quando da busca pela
verdade, o caminho que se percorre para se aproximar o máximo que as circunstâncias
permitem da verdade, sofrem sempre a influência de “elementos de livre decisão”
(POPPER, 2006 [1984], p. 266). E esta abertura à influência de idiossincrasias faz com
que a aceitação de um enunciado básico esteja condicionada a uma convenção, a
uma decisão conjunta por parte dos especialistas ou grupo de especialistas afetos a
determinado tema (POPPER, 2007 [1934], p. 113 e 301). Com isso, as experimentações
científicas vêem de certa forma comprometida a importância que o senso comum
lhes confere. Neste sentido, Popper defende a ideia de que
[a]s experiências podem motivar uma decisão e, consequentemente, a aceitação ou
rejeição de um enunciado, mas um enunciado básico não pode ver-se justificado por
elas – não mais do que por um murro na mesa (POPPER, 2007 [1934], p. 113).
Neste ponto, há que se proceder com esclarecimentos a respeito da noção de re-
lativismo, dado que estas colocações podem instigar argumentos em prol de “um dos
muitos crimes dos intelectuais”, “uma traição à humanidade” (POPPER, 2006 [1984],
p. 16). Para Popper, o relativismo destituiu a verdade de qualquer importância ou
significado, propiciando a possibilidade de se poder afirmar absolutamente qualquer
coisa e, por equivalência, não se afirmar rigorosamente nada. Uma vez que à verdade
deve ser conferido papel crucial para o exercício da atividade científica, o conceito de
relativismo deve ceder posição para o conceito de pluralismo crítico, que é dotado da
capacidade de alcançar a busca pela verdade por meio da discussão racional quando
da avaliação de teorias científicas competidoras (POPPER, 2006 [1984], p. 246).
Neste contexto, engana-se quem supõe que o afastamento do método da indução
comprometa o “critério de demarcação” entre as ciências empíricas e a metafísica,
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...64
ou como originalmente pensado por Popper, “critério de demarcação” entre a ciên-
cia e a pseudociência. A comprovação pela experiência permanece exercendo papel
crucial para que um determinado sistema seja tido como científico, mas não mais no
sentido positivo, e sim no sentido negativo. Para que um sistema possa ser conside-
rado científico, passa-se a exigir que ele seja passível de refutação pela experiência. A
verificabilidade (“verifiability”) de um sistema deixa de ser o critério de demarcação,
sendo substituído pela falseabilidade (POPPER, 2007 [1934], p. 42). Registre-se que o
critério historicamente prevalente de verificabilidade para a demarcação não é capaz
de agir como excludente no que tange a proposições marcadamente metafísicas e
tampouco é capaz de agir satisfatoriamente como includente no que tange a propo-
sições marcadamente científicas, em que pese a intenção diametralmente oposta de
seus defensores (POPPER, 2008 [1963], p. 209). Nas palavras de Popper, extraídas de
sua obra mais lida, a proposta é de que:
uma teoria será chamada de “empírica” ou “falseável” sempre que, sem ambigui-
dade, dividir a classe de todos os possíveis enunciados básicos nas seguintes duas
subclasses não vazias: primeiro, a classe de todos os enunciados básicos com os quais
é incompatível (ou que rejeita, ou proíbe): – a essa classe chamamos de classe dos
falseadores potenciais da teoria; e segundo, a classe de enunciados básicos que ela
não contradiz (ou que ela “permite”). Mais resumidamente, poderíamos apresentar o
ponto dizendo: uma teoria é falseável se não estiver vazia a classe de seus falseadores
potenciais (POPPER, 2007 [1934], p. 90-91).
De certa forma, a questão da falseabilidade se confunde e se identifica com a
questão da testabilidade (“testability”), visto que o critério de demarcação proposto
filtra as teorias científicas com afirmativas que podem se chocar com as observações
das teorias pretensamente científicas com afirmativas de certa forma imunes ao choque
com as observações (POPPER, 2008 [1963], p. 284), seja por não tratarem de fatos
observáveis, seja por aceitarem toda a gama de possibilidades de fatos observáveis.
O fato de que sempre será possível se investir em procedimentos que afastem um
sistema teórico da falseabilidade não necessariamente nos encaminha para o descarte
do falseacionismo como critério de demarcação. Uma vez que procedimentos que
afastam um sistema teórico em particular da falseabilidade são acompanhados pari
passu em teoria por procedimentos que aproximam um sistema teórico em particular
da falseabilidade (seus opostos), o critério de demarcação deve ser imbuído de um
caráter metodológico, além da questão lógica (POPPER, 2009 [1979], p. 392). Tendo
isso em mente, Popper propõe o “princípio do encerramento do sistema”, pelo qual
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o sistema axiomático de uma teoria empírica deve ser considerado como concluído
em definitivo. Em consequência, o cientista, ao introduzir um novo axioma teórico
que não seja dedutível a partir do sistema já encerrado – uma hipótese auxiliar ou ad
hoc – está procedendo com o falseamento do sistema teórico em questão (POPPER,
2009 [1979], p. 418). Hipóteses auxiliares só devem ser admitidas nos casos em que
suas características singulares, não-universais, possam ser demonstradas, ou seja, nos
casos em que suas generalizações diretas possíveis sejam falseáveis (POPPER, 2009
[1979], p. 420). Em outras palavras, para que a introdução de uma hipótese auxiliar
seja admitida, é imprescindível que este passo não comprometa o grau de testabilidade
(ou o grau de falseabilidade) do sistema teórico (POPPER, 2007 [1934], 87 e 274).
Agora, se a verdade desempenha um papel fundamental para o desenvolvimen-
to científico e tecnológico, conforme sinalizado inicialmente no primeiro parágrafo
desta seção, não seria paradoxal defender a orientação metodológica de concentrar
esforços na busca pelo falseamento das candidatas à teoria científica vigente? Além
da já discutida impossibilidade lógica de se verificar uma teoria científica, poderíamos
acrescentar também a constatação prática da relativa facilidade em se corroborar
teorias científicas. Caso seja a intenção do pesquisador alcançar evidências que con-
firmem uma teoria científica específica, basta que ele seja minimamente habilidoso
em seus desenhos experimentais e ele encontrará evidências confirmatórias em um
grau de diversidade considerável. Esta constatação torna a irrefutabilidade de uma
teoria científica não uma virtude, mas sim um vício, transformando a teoria científica
irrefutável digna de suspeitas, antes de digna de admiração (POPPER, 2009 [1994],
p. 159). Daí a necessidade de se promover os testes mais rigorosos possíveis, tor-
nando o ambiente no qual as teorias científicas se encontram o mais hostil possível
(POPPER, 2005 [1957], 123-124). A impossibilidade de atestarmos com segurança a
veracidade de uma teoria científica nos impõe a restrição de como sendo o máximo
objetivo alcançável uma teoria científica ainda não falseada, ou válida apenas provi-
soriamente para fins práticos. Destaque-se neste ponto que o conteúdo informativo
de uma teoria científica é dado pelo conjunto de enunciados que são incompatíveis
com a teoria (POPPER, 1992 [1976], p. 24). Ainda que possa parecer paradoxal, quanto
mais a teoria científica declara a impossibilidade de existência, mais ela nos informa
a respeito da realidade.
Não obstante a significativa contribuição que o falseacionismo proporciona para
a epistemologia e para o exercício da atividade científica, o próprio Popper nos alerta
para a não desejabilidade de sermos absolutamente rigorosos quanto ao critério de
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...66
demarcação, dado que mitos, ao longo da história, têm sido fontes fecundas de ins-
piração para grande parte das teorias científicas existentes. Bem ilustra esta situação
a questão do sistema heliocêntrico copernicano, tendo sido estimulado criativamente
por uma “adoração neoplatônica da luz solar, que precisava ocupar o ‘centro’ do
universo devido à sua nobreza” (POPPER, 2008 [1963], p. 285).
Tais constatações de certa forma entram em conflito com a teoria do senso co-
mum do conhecimento, conhecida na filosofia por teoria da tábula rasa e tratada por
Popper como “teoria do balde mental”, pelo fato de a mente humana ser análoga a
um balde que inicialmente se encontra vazio. Para que o balde seja preenchido – para
que a nossa mente adquira conhecimento – há a necessidade de preenchimento da
forma adequada – no caso de conhecimento, a forma adequada consiste na experi-
ência registrada pelos sistemas sensoriais (POPPER, 1999 [1973], 66-67). Pela teoria
do balde mental, as percepções (as experiências dos sentidos) devem necessariamente
preceder qualquer pronunciamento acerca do mundo (POPPER, 1999 [1973], 313). O
problema da teoria do balde mental é que ela aceita a suposição de que percepções
(observações no geral) são possíveis de serem registradas sem que haja qualquer tipo
de expectativa, suposição esta, segundo Popper, absolutamente equivocada, uma vez
que sempre há um sistema de expectativas orientando (ainda que minimamente) o
procedimento da observação (POPPER, 1999 [1973], 316). No processo de observação,
concomitante aos estímulos visuais propriamente ditos, também são considerados
“nossos problemas, nossos temores e esperanças, nossas necessidades e satisfações,
nossos gostos e nossos desgostos” (Tradução nossa) (POPPER, 2000 [1983], p. 45).
Tratando desta questão, Popper assume que todos os homens (incluindo, na-
turalmente, os homens dedicados à ciência) são parciais e subjetivos, uma vez que
todos consideram determinadas coisas como “evidentes por si mesmas”, aceitando
“sistemas de preconceitos” com “convicção ingênua e arrogante de que a crítica é
completamente supérflua” (POPPER, 1998b [1945], p. 224). E apesar de se dedicarem
com devoção ao racionalismo, os que defendem a racionalidade científica pecam por
não ter em consideração a insustentabilidade lógica desta espécie de “racionalismo
não-crítico”, que ignora toda e qualquer ideia que não possa ser defendida com o
uso da argumentação ou por meio da experiência. Por ser análogo ao paradoxo do
mentiroso, o racionalismo não-crítico induz à situação de que:
quem quer que adote a atitude racionalista o faz por haver adotado, sem raciocinar,
alguma proposta, ou decisão, ou crença, ou hábito, ou comportamento que, portanto,
por sua vez, pode ser chamado irracional. Seja como for, poderemos descrevê-lo como
uma irracional fé na razão (POPPER, 1998b [1945], p. 238).
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Uma vez que a racionalidade científica é costumeiramente associada à existência
de uma metodologia científica bem estabelecida, capaz de conferir aos cientistas
seguras racionalidade e objetividade quando nos exercícios de suas atribuições em
desempenho de pesquisas, faz-se necessário um alerta. Segundo Popper, devemos
ter o cuidado de não exagerarmos ao ponto de crermos que a ciência é tão irracional
quanto “práticas mágicas primitivas” (POPPER, 2008 [1963], p. 87). Isto porque se
trata de um equívoco completo associar a racionalidade e a objetividade da ciência
como tendo uma relação de exclusiva dependência para com a racionalidade e a ob-
jetividade do cientista. Não há em princípio nada no cientista – seja ele representante
das ciências naturais, seja ele representante das ciências sociais – que o torne menos
parcial do que qualquer outro ser humano (POPPER, 2004, p. 22-23). A racionalidade e
a objetividade surgem a partir do momento em que ocorre a abertura ao aprendizado
pelo erro, buscado naturalmente de uma forma consciente (POPPER, 2009 [1994],
p. 194) e são conferidas pela “tradição crítica” da ciência, sendo a coletividade das
contribuições de cientistas individuais a responsável pela sua sustentação (POPPER,
2006 [1984], p. 103). Neste sentido, o termo “objetividade” no empreendimento
científico deve configurar como equivalente a “testabilidade inter-subjetiva” (“inter-
subjective testability”) (POPPER, 2009 [1979], p. 73). Popper associa a objetividade
da ciência ao “aspecto social do método científico”, uma vez que é dependente do
esforço cooperativo de diversos cientistas. Desta forma, a definição de objetividade
científica passa a ser a “inter-subjetividade do método científico” (POPPER, 1998b
[1945], p. 225), aonde à inter-subjetividade se conferiria a potencialidade e a ca-
pacidade de, por meio do escrutínio racional, objetivar sentimentos ou impressões
subjetivas (DORIA, 2009, p. 120). Tal entendimento de racionalidade apresenta uma
afinidade considerável com o entendimento de anti-irracionalismo de Ajdukiewicz,
para o qual toda proposição racionalmente aceita deve ser comunicável e testável
inter-subjetivamente (NARANIECKI, 2010, p. 518).
Neste ponto, antes de procedermos com comentários adicionais que tratam de
metodologia científica, esclareçamos três pontos relevantes da epistemologia po-
pperiana: i) não existe método para se descobrir uma teoria científica; ii) não existe
método que assegure a veracidade de uma hipótese científica; e iii) não existe método
que estime a probabilidade de uma hipótese científica, no sentido de cálculo proba-
bilístico. Neste sentido, as teorias científicas e os mitos se diferenciam pelo fato de as
teorias científicas serem passíveis de críticas e de estarem sujeitas às alterações tendo
por base as críticas recebidas (POPPER, 2000 [1983], p. 6-7).
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...68
Em oposição à “teoria do balde mental”, Popper apresenta sua reflexão que trata
da “teoria do holofote”: assim como do escuro só revelamos o ponto para o qual
direcionamos o holofote, assim também da realidade só alcançamos o ponto sobre
o qual pesquisamos cientificamente. E da mesma forma que uma série de interesses
influencia o posicionamento, a intensidade, a cor etc., da fonte luminosa do holofote
(impactando naturalmente no que revelaremos do escuro), assim também uma série
de interesses influencia as linhas de pesquisa, os protocolos, os investimentos etc.
(impactando igualmente naturalmente no que alcançamos da realidade) (POPPER,
1998b [1945], p. 268). Dado que o percurso que transcorremos no presente é deter-
minado pelo percurso que transcorremos no passado, ou nas palavras de Popper, “a
ciência de hoje se edifica sobre a ciência de ontem (e assim é o resultado do holofote
de ontem)” (POPPER, 1999 [1973], p. 318), o futuro do desenvolvimento científico
pode ser visto como sendo pelo menos pontualmente caminho-dependente.
Por fim, concluindo essa seção, aos que acreditam que a discussão relativa à
incomensurabilidade (referida pelo epistemólogo como o “mito do contexto”) com-
prometeria a estratégia de crítica racional, uma vez que o processo de crítica racional é
dependente da linguagem, Popper declara que as crenças, as teorias e as expectativas
que estão vinculadas à estrutura básica de um sistema linguístico podem perfeita-
mente ser também alvos da estratégia de crítica racional pelo emprego de dois ou
mais sistemas linguísticos (POPPER, 2000 [1983], p. 156-157). A aceitação da ideia
de que as observações estão contaminadas por teorias as mais diversas não implica
necessariamente a incomensurabilidade entre observações ou mesmo entre teorias
(POPPER, 2009 [1996], p. 108). Não obstante a possibilidade de nos libertarmos da
“prisão intelectual” à qual estamos invariavelmente submetidos pela nossa linguagem,
ao procedermos com a formulação linguística de forma clara e objetiva das crenças,
teorias e expectativas e a consequente crítica racional (POPPER, 2009 [1996], p. 100),
o resultado final ainda não seria a liberdade completa, mas apenas uma “prisão in-
telectual” maior (POPPER, 2000 [1983], p. 16-17). Interessante notarmos que Popper
considera o mito do contexto como sendo “um dos grandes malefícios intelectuais do
nosso tempo”, visto que “afirma dogmaticamente que, em regra, o debate racional ou
crítico só pode acontecer entre pessoas com opiniões quase idênticas”, favorecendo
o relativismo e comprometendo a esperança de consensos maduros entre distintas
sociedades (POPPER, 2009 [1994], p. 198).
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O bioeticista em ciência
Tratemos agora de elucidar do modo mais preciso possível as consequências prá-
ticas no âmbito da bioética das contribuições em filosofia da ciência de Popper. E para
que a compaginação entre a contribuição em filosofia da ciência e a as consequências
práticas no âmbito da bioética se dê de forma solidamente embasada, mas também
harmônica, partamos gradualmente da reflexão popperiana que mais se aproxima de
uma discussão na região limítrofe acerca de questões epistêmicas e não-epistêmicas
até alcançarmos um ponto além do que tem por autor o próprio Popper, identificando
consequências práticas as quais não foram trabalhadas originalmente.
O primeiro ponto que se suscita é o que trata dos princípios éticos como a busca
da verdade e as ideias de honestidade intelectual e de falibilidade, princípios estes
que se encontram na própria base da ciência (POPPER, 2006 [1984], p. 258). Sem
querer desmerecer a importância desses princípios, nota-se com clareza que estão
longe de serem suficientes para que o cientista receba de forma clara e transparente
um conselho “da física” sobre as opções de se construir “um arado, um avião ou uma
bomba atômica” (POPPER, 2008 [1963], p. 391). Por conseguinte, reconhecendo que
o cientista sofre a influência de uma série de fatores não só da esfera profissional, mas
também da esfera pessoal, ao propor uma “nova ética profissional” Popper coloca
como primeiro princípio o reconhecimento de que “não há autoridade”, visto que
“nosso conhecimento conjectural objetivo excede, cada vez mais, o que uma pessoa
pode dominar” (destaque como no original) (POPPER, 2006 [1984], p. 260).
Ainda tratando de uma suposta autoridade científica, a constatação de nossa
inescapável ignorância nos apresenta o natural corolário ético da tolerância para com
concepções divergentes das nossas. Os únicos alvos legítimos para a nossa intolerância
devem ser a própria intolerância, a violência e a crueldade (POPPER, 2006 [1984], p.
247). Ainda que no campo das elucubrações teóricas seja possível distinguir o cien-
tista que apenas se interessa pela verdade e o político que apenas se interessa pelo
poder (POPPER, 2009 [1996], p. 311), no mundo real nos deparamos com incontáveis
cientistas-políticos, ávidos não só pela verdade mas igualmente pelo poder.
O segundo é o que trata do “problema da indução”, pelo qual os enunciados
empíricos universais são impedidos logicamente de serem declarado verdadeiros, in-
dependente da quantidade e da qualidade de evidências confirmatórias. A expressão
“verdade científica” perde completamente o sentido de sua existência, visto que os
acertos provenientes do “método das tentativas, dos erros e dos acertos” não garante
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...70
a acronicidade de determinada teoria científica. Não se pode abstrair o fator tempo
de absolutamente nenhuma fração do conhecimento científico, por mais sólido que
inicialmente possa parecer, ainda que permaneça irrefutável por décadas ou até mesmo
por séculos. O caso da física newtoniana, ainda hoje aplicada em numerosas situações,
mesmo tendo sido superada pela física einsteiniana, é um bom exemplo de como
um elevado grau de solidez empírica não basta para que se declare a veracidade de
uma teoria científica. A concepção leiga de que teorias científicas são hipóteses que
foram confirmadas pela experimentação rigorosamente ajustada a uma metodologia
praticamente infalível deve ser substituída pela mixórdia entre hipóteses e teorias
científicas. O que temos hoje por teorias científicas são de fato conjecturas, hipóteses,
presunções, suposições, possibilidades que permanecem dignas de consideração até
o momento presente das circunstâncias da esfera científica, não havendo nada que
garanta a permanência desta dignidade de consideração no futuro.
O ponto seguinte que se suscita é o que diz respeito à origem das teorias cientí-
ficas e ao impacto desta origem para o progresso da ciência. Como vimos, segundo
Popper, percepções sensoriais puras e imparciais não estão na base das teorias cien-
tíficas, descartando-se a “teoria do balde mental”. Os “dados” não devem ocupar
espaço no altar da ciência, uma vez que “não são base nem garantia para as teorias:
não são mais seguros do que qualquer de nossas teorias ou ‘preconceitos’, mas bem
menos, se alguma coisa forem” (POPPER, 1999 [1973], 144). Este papel, o de base
para as teorias científicas, é exercido por problemas que a comunidade científica
elege como importantes e por teorias que a comunidade científica não só formula
influenciada por especulações as mais diversas como também por vezes defende de
forma dogmática, ignorando eventuais refutações empíricas, como sinaliza a “teoria
do holofote”. Naturalmente que em cada uma dessas etapas – priorização dos proble-
mas a serem resolvidos, formulação das teorias científicas a serem testadas, defesas
dogmáticas de determinadas teorias científicas – são incontáveis as oportunidades
para que idiossincrasias influenciem o pensar e o agir do cientista. Popper mesmo
declara que “nada jamais se realiza sem uma dose de paixão” (POPPER, 1999 [1973],
23), reconhecendo a parcialidade e a subjetividade dos homens da ciência que se
deixam levar por medos, necessidades e gostos. Ao afirmar que a objetividade e a
racionalidade de todos os cientistas obstaculizariam o progresso científico, abre-se
precedentes para que seja questionada a ideia da neutralidade científica, e por con-
sequência, da própria autonomia científica.
É digno de nota que, ainda que a ciência pudesse ser considerada seguramente
neutra e merecidamente autônoma, não seria o caso de transferirmos automatica-
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mente tais adjetivos para cientistas individuais ou grupos de pesquisa organizados.
Suas atividades deveriam ainda assim ser submetidas a minuciosos exames de ordem
ética, de forma a minimizar o risco de abusos cometidos “em nome da ciência”.
Neste sentido, o epistemólogo argumenta que a racionalidade e a objetividade
científicas não são dependentes da racionalidade e da objetividade pessoais de cada
um dos cientistas envolvidos em determinada área de atuação, mas surge como uma
propriedade do aspecto social do método científico, mais especificamente pela tra-
dição crítica que atinge o empreendimento científico, impelindo seus atores à busca
consciente do aprendizado pela procura e detecção de erros.
Seria este argumento suficiente para que a ciência fosse tida por racional e obje-
tiva? Sem sombra de dúvidas que a inter-subjetividade do método científico é capaz
de contribuir positivamente para a racionalidade e a objetividade da ciência. Contudo,
esta contribuição não é absoluta, por não ser capaz de esgotar todas as possibilidades
de eliminação de influências irracionais e subjetivas. Consideremos a possibilidade de
determinados interesses (não necessariamente escusos) serem compartilhados de for-
ma consensuada por um número significativo de pesquisadores de uma área específica,
ou mesmo, consideremos a possibilidade de determinados interesses (novamente, não
necessariamente escusos) serem compartilhados de forma consensuada pela grande
maioria de representantes de uma nacionalidade específica. Desafortunadamente,
na prática, não há garantias de que este grupo de pesquisadores ou que esta nação
se furte a envidar esforços por meio do exercício do poder político, ideológico ou
econômico (e consequentemente, científico e tecnológico) no sentido de “direcionar
o holofote” para determinados pontos de possível realidade, favorecendo a ascen-
são de uma teoria científica em particular, ao mesmo tempo em que priva outros
determinados pontos de possível realidade de serem iluminadas pelo holofote, com-
prometendo o surgimento de teorias científicas concorrentes. Resgatando a alegoria
do alpinista no pico montanhoso envolto por nuvens, a situação ora aventada seria
como se os responsáveis legais pela gestão do parque ambiental no qual se encontra
o pico montanhoso, hipoteticamente alegando questões de segurança, restringissem
os inícios das escaladas a apenas algumas das faces da montanha, impedindo que se
empreendam tentativas com início em outras faces da montanha.
Tal cenário não só de certa forma comprometeria a racionalidade e a objetividade
da ciência como comprometeria igualmente a concepção convergentista da racionali-
dade e objetividade científicas. O evidente conflito que surge na dinâmica científica tal
qual pensada por Popper entre a característica de a ciência se desenvolver de forma
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...72
caminho-dependente e a tendência à convergência final pode ser resolvida apenas
parcialmente ao se escalar a questão da crítica racional como a responsável pela
capacidade de aproximação a uma verdade única, superando também as restrições
impostas pelo debate acerca da incomensurabilidade, ou pelo “mito do contexto”.
Uma vez que, para todos os efeitos, a base da montanha é de proporções incon-
cebíveis, ainda que os responsáveis legais pelo parque ambiental não coloquem abso-
lutamente nenhuma restrição quanto ao ponto de início das mais diversas tentativas
de escalada, também não há garantias de que tenhamos iniciado a nossa escalada
do exato ponto de partida que nos dará acesso ao cume mais alto, lembrando que as
nuvens nos impedem de conferir pela observação, ou seja, não há garantias de que
tenhamos partido do problema correto ou não há garantias de que tenhamos inves-
tido na teoria tentativa correta. Ainda que a crítica racional seja capaz de, de certa
forma, aumentar nossa visibilidade a tal ponto que sintamos segurança em abandonar
determinadas rotas de investimento em pesquisas científicas para fortalecer outras
teorias tentativas, sempre restará a dúvida sobre se de fato esgotamos os pontos de
partida ou os problemas cruciais para que alcançássemos o ponto mais próximo da
verdade que nos é acessível.
Levando em consideração que o cientista está envolvido em um empreendimento
que se ocupa mais de “doxa” do que de “epistēmē” – impossibilitado de garantir a
veracidade do conhecimento que tem por referência –, quando de aplicações de suas
recomendações, especialmente quando essas recomendações de certa forma entra-
rem em conflito com recomendações oriundas de outros segmentos da sociedade,
segmentos propriamente não-científicos, ao parecer do cientista não deve a priori ser
conferido peso maior do que ao parecer do não-cientista, simplesmente pela condição
de representante do meio científico.
Cabe a esta altura esclarecermos que o “princípio da objetividade de enunciados
básicos”, válido para todas as ciências, implica não necessariamente na negação ou no
falseamento de enunciados que não sejam testáveis inter-subjetivamente. Tais enun-
ciados devem ser ignorados pela ciência, no sentido de a ciência ser intrinsecamente
limitada quanto à sua capacidade de avaliação fora da esfera empírica (POPPER, 2009
[1979], p. 132). Assim, determinadas linhas de pensamento em psicologia, ou em teo-
logia, por exemplo, pelo simples fato de não se submeterem aos mecanismos de testes
inter-subjetivos conforme propõe o falseacionismo, não são necessariamente falsos.
Enunciados imunes aos testes inter-subjetivos tem teoricamente o mesmo potencial
inicial de serem verdadeiros que os enunciados científicos antes de se submeterem aos
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testes inter-subjetivos. Naturalmente que lhes falta a possibilidade de apresentarem
tentativas frustradas de falseamento, impedindo-os de receberem o rótulo de “cientí-
ficos” ou de “provisoriamente verdadeiros”, mas não demandando a necessidade de
serem rotulados como “falsos”. O “princípio da objetividade de enunciados básicos”,
intimamente relacionado ao critério de demarcação popperiano, implica no fato de
os cientistas não poderem de forma justificada se manifestarem sobre questões extra-
científicas ou não-científicas, pelo menos gozando de algum status especial por serem
cientistas. O conhecimento científico não confere legitimidade para pronunciamentos
acerca de enunciados que escapam à sua esfera de atuação. Fundamentalmente, no
que concerne à verdade ou à certeza – conhecimento objetivo – a ciência exerce o
importante papel de nos informar aonde nós não devemos procurá-las, aonde elas
não se encontram, exclusivamente tratando-se da esfera científica.
Conclusão
A introdução deste texto trazia a consideração de que havia consequências práticas
da filosofia da ciência para o campo da ética. Agora, na conclusão, é oportuno registrar
que situação análoga ocorre entre as reflexões no campo da ética, que a seu modo
expõe consequências práticas para o campo da ciência. Hoje em dia, considerando
os avanços recentes na fronteira do conhecimento científico e tecnológico, está claro
que praticamente todas as atividades de pesquisa suscitam questões éticas relevantes.
Particularmente no caso de pesquisas médicas envolvendo voluntários humanos, é
justificável que se considere toda e qualquer intervenção como sendo inicialmente
eticamente sensível e, por consequência, legitimamente sujeita a uma avaliação ética
(BORTOLOTTI; HEINRICHS, 2007, p. 173-174).
Assumindo que a ciência experimental, ou mais especificamente determinadas
práticas científicas colocam por vezes questões éticas problemáticas e refletindo
sobre se tais questões éticas problemáticas seriam intrínsecas à ciência experimental
ou se seriam acidentais e ainda tendo presente que a observação de determinadas
regras morais são perfeitamente capazes de gerar consequências na construção do
conhecimento – consequências epistêmicas oriundas de restrições éticas – chega-se
ao conflito entre o cientificismo (ou “dogmatismo progressista”, que considera ilegí-
tima qualquer restrição à ciência) e o moralismo (ou “ceticismo obscurantista”, que
considera legítima toda e qualquer restrição à ciência) (LAVELLE, 2005, p. 221). Por
inspiração do critério de demarcação proposto por Popper, Lavelle apresenta para
apreciação o “critério de rejeição moral”: assim como as propostas de teorias cien-
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tíficas precisam ser falseáveis, ao menos teoricamente, assim também as pesquisas
científicas precisam fazer referência a condições as quais pelo menos um indivíduo
poderia se recusar a se envolver, dadas determinadas condições morais. Caso não
seja possível descrever uma situação particular na qual determinado projeto científico
não deveria ser implementado, tendo em vista uma rejeição baseada em argumen-
tos éticos, este mesmo projeto não deverá ser considerado eticamente aceitável ou
desejável (LAVELLE, 2005, p. 231).
Levando a termo a aproximação algorítmica entre a perspectiva evolutiva e a pers-
pectiva epistemológica iniciada na introdução, Popper compara as teorias científicas
com as adaptações anatômicas e comportamentais de organismos vivos, teorias cientí-
ficas estas, por conseguinte, capazes de nos conferir melhores chances de sobrevivên-
cia no meio ambiente no qual estamos inseridos. Neste sentido, as teorias científicas
podem ser tidas por órgãos endossomáticos que nos viabilizam não só a descoberta
de novos nichos ecológicos virtuais mas também nos viabilizam transformá-los em
nichos ecológicos efetivos (POPPER, 1999 [1973], 143). Esta constatação permite-nos
proceder com a distinção entre duas correntes (duas teorias em metodologia) para a
geração do conhecimento e o estabelecimento de teorias científicas. A primeira cor-
rente, identificada como “lamarckista” e aceita pela epistemologia clássica, defende a
ideia de que o estudo criterioso dos fatos conduz à teoria ampla e geral. Esta corrente
assume como possível a pureza da percepção e da linguagem, como se estas não
estivessem de forma alguma impregnadas por diversos mitos e por diversas teorias,
e elege a indução como mecanismo para geração do conhecimento, se dedicando
à verificação e corroboração das teorias científicas, como se houvesse “instrução
pelo ambiente”. Já a segunda corrente, por sua vez, identificada como “darwinista”
e defendida por Popper, rejeita a indução, por considerar que dados de observação
são como “reações adaptativas e, portanto, interpretações que incorporam teorias e
preconceitos e que, como teorias, estão impregnadas de expectativas conjecturais”,
sustentando a ideia de que a geração do conhecimento deve se dar por meio de críticas
racionais visando o falseamento das teorias científicas, como se houvesse “seleção
pelo ambiente” (POPPER, 1992 [1976], p. 97; 1999 [1973], p. 143-144 e 2009 [1996],
p. 22-25). Registre-se que da mesma forma em que Darwin “colaborou” para a obra
de Popper, assim também Popper vem “colaborando” com a obra de Darwin, como
exemplifica a discussão em torno do papel da corroboração na sistemática molecular
moderna, de modo particular no que diz respeito às discussões que tem por alvo a
arquitetura da Árvore da Vida (KLUGE, 2001; FAITH e TRUEMAN, 2001; FAITH, 2004;
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go
s
KLUGE, 2009; LIENAU e DeSalle, 2009). Naturalmente que as afinidades não se limi-
tam ao estudo da evolução. A “medicina baseada em evidências” (outro exemplo)
também apresenta um processo consistente com a filosofia da ciência popperiana,
sendo os cinco passos da medicina baseada em evidências absolutamente próximos
aos três passos da abordagem popperiana para se alcançar o conhecimento objetivo
– reconhecimento do problema, geração de soluções e seleção da melhor solução
(SESTINI, 2010, p. 304).
Não obstante o modo que se dá o progresso científico, o senso comum já incor-
porou, possivelmente seguindo a reflexão de Russell, a ideia de que a origem dos
nossos problemas está em sermos inteligentes, porém maus. Dominamos a ciência
e a tecnologia, mas a empregamos de modo equivocado, influenciados mais pelos
contra-valores do que pelos valores propriamente ditos (POPPER, 2008 [1963], p. 398).
Em oposição ao senso comum, Popper defende a ideia de que a humanidade não
é má, mas boa, contudo não é inteligente, mas estúpida. A origem dos problemas
mais relevantes de nosso tempo está em uma pressa em promover ações que visem
melhoras para nossas sociedades, mas que acabam por gerar muitas vezes resulta-
dos práticos desagradáveis (POPPER, 2008 [1963], p. 399). Independentemente de
sermos inteligentes maus ou bons estúpidos, o fato é que o criador do neologismo
“bioética”, há quarenta anos, já havia desenvolvido o conceito de “conhecimento
perigoso” ao contemplar a incompatibilidade entre nossa elevada velocidade em
provocar o avanço da fronteira do conhecimento e nossa diminuta velocidade em
amadurecer a sabedoria necessária para bem manejar todo o conhecimento alcançado
(POTTER, 1971, p. 76-77). E a periculosidade do conhecimento possivelmente tenha
origem na corruptibilidade humana, visto que a um homem não se pode conferir
poder sobre outro homem, ou sobre a natureza, sem ao mesmo tempo instigá-lo a se
aproveitar deste poder e exercitá-lo de forma abusiva (POPPER, 2005 [1957], p. 57).
E ainda, considerando que a tentação é diretamente proporcional ao poder, ou seja,
quanto maior for o poder, maior será a tentação em abusar dele, e acrescentando
que a biotecnociência está nos permitindo um elevadíssimo grau de manipulação
do fenômeno vida, percebe-se que em teoria poucos são os que pessoalmente tem
condições de não sucumbir.
Ainda que houvesse comprovações da superioridade pessoal por parte de um sele-
to grupo de integrantes de nossa sociedade (superioridade intelectual, por exemplo),
estas comprovações jamais deveriam servir de base para uma possível reivindicação de
vantagens ou privilégios na esfera política. Ao invés de direitos especiais, representan-
CRUZ, Márcio Rojas da & CORNELLI, Gabriele. A “doxa-logia” popperiana e suas implicações para a (bio)ética...76
tes da nossa sociedade que sejam intelectualmente ou educacionalmente superiores
deveriam ser imbuídos de responsabilidades morais adicionais, ainda que alguns se
pronunciem em sentido oposto, por farisaísmo (POPPER, 1998a [1945], p. 63).
A possibilidade teórica, ou mesmo a constatação prática de conflitos entre prin-
cípios morais – por exemplo, o conflito entre autonomia da atividade científica e o
controle social da atividade científica – não necessariamente nos encaminha para a
aceitação de uma visão relativista no campo da moral. Não são todos os princípios
morais que podem ser legitimamente defendidos e seguidos. Em casos complexos
de conflitos entre princípios morais, as diversas opções de encaminhamento devem
ser consideradas, refletidas e criticadas, a fim de que se alcance, após um processo
tão plural quanto possível, a solução que satisfaça os atores envolvidos. Ainda que
a solução final não contemple o posicionamento inicial de absolutamente todos
os partícipes, é imperativo que todos estejam de acordo com os mecanismos que
foram implementados para a resolução de um conflito específico. O processo de
negociação deve ter a capacidade de filtrar as influências e os interesses desejáveis
dos indesejáveis.
Daí emerge a proeminente necessidade de investirmos em formas de controle
que independam da esfera individual, abrindo oportunidade para que a sociedade
participe da forma mais adequada possível com interferências positivas no Sistema
Nacional de Ciência e Tecnologia, por meio de instrumentos e mecanismos institucio-
nais devidamente negociados.
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