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AS ID ´ EIAS DE POPPER Bryan Magee

As Ideias de Popper

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Page 1: As Ideias de Popper

AS IDEIAS DE POPPER

Bryan Magee

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Sumario

Capıtulo 1. INTRODUCAO 1

Capıtulo 2. METODO CIENTIFICO – A CONCEPCAO TRADICIONAL E ACONCEPCAO DE POPPER 6

Capıtulo 3. O CRITERIO DE DEMARCACAO ENTRE O QUE E CIENCIA E OQUE NAO E CIENCIA 15

Capıtulo 4. O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA DOMUNDO 3 26

Capıtulo 5. CONHECIMENTO OBJETIVO 31

Capıtulo 6. A SOCIEDADE ABERTA 36

Capıtulo 7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 43

POS-ESCRITO 54

BIBLIOGRAFIA 55

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CAPıTULO 1

INTRODUCAO

Karl Popper nao e, por ora, pelo menos, um nome familiar entre pessoas educadas – e essefato requer explicacao. Com efeito, Isaiah Berlin, em sua biografia de Karl Marx (terceiraedicao, 1963) assevera que o livro The Open Society and Its Enemies, de Popper, contem “amais escrupulosa e terrıvel crıtica das doutrinas historicas e filosoficas do marxismo jamaisescrita por qualquer autor vivo”; ora, se esta afirmacao e correta, Popper nao pode deixarde ser figura de importancia mundial – pois um terco do planeta e de pessoas que vivemgovernadas por autoridades que se dizem marxistas. De outra parte, Popper e considerado,por muitos autores, como o mais notavel filosofo da ciencia, em nossa epoca; Sir PeterMedawar, que recebeu o premio Nobel de medicina, declarou, em programa da BBC, em28 de julho de 1972, “Penso que Popper e, sem duvida, o maior filosofo da ciencia que jaexistiu”. Outros ganhadores do premio Nobel que anunciaram publicamente a influenciaque receberam das obras de Popper sao Jacques Monod e Sir John Eccles. Este ultimo, emseu livro Facing Reality (1970), escreveu: “· · · minha vida cientıfica deve tanto a minhaconversao, se assim posso denomina-la, abracando os ensinamentos de Popper acerca daconduta da investigacao cientıfica · · · que me empenhei em seguir Popper na formulacao e nainvestigacao de problemas fundamentais da neurobiologia.” O conselho de Eccles aos demaiscientistas e no sentido de que “leiam e meditem acerca do que Popper escreve a proposito defilosofia da ciencia, adotando suas ideias como base de operacao na atividade cientıfica”.Naosao apenas os cientistas de ındole experimentalista que assumem essa posicao. O ilustrematematico e astronomo Sir Herman Bondi, com singeleza, declarou: “Nao ha ciencia paraalem do metodo e nao ha mais, no metodo, do que aquilo que Popper referiu.” A influenciaintelectual de Popper – que nao encontra rival na exercida por qualquer outro pensador vivode lıngua inglesa – atinge elementos das esferas governamentais e historiadores da arte. NoPrefacio de Art and Illusion (considerado por Kenneth Clark como “um dos mais brilhanteslivros de crıtica de arte que li”), Sir Ernest Gombrich declara: “Eu ficaria orgulhoso se ainfluencia de Popper estivesse patente em todas as partes deste livro.” Ministros de Estadoprogressistas, filiados a ambos os principais partidos polıticos da Gra-Bretanha – como, porexemplo, Anthony Crosland e Sir Edward Boyle – sofreram a influencia de Popper em seusmodos de compreender a atividade polıtica.

Esses exemplos ilustram, de maneira direta, alguns pontos importantes para alem doextraordinario ambito de aplicacao da obra de Popper. Mostram que – diferentemente doocorrido com tantos filosofos contemporaneos – aquela obra exerce notavel efeito praticosobre as pessoas por ela influenciadas: altera a maneira de essas pessoas executarem oproprio trabalho e, sob esse e outros aspectos, modifica-lhes as vidas. Trata-se, em resumo,de uma filosofia de acao. E exerce ela uma influencia semelhante sobre muitas pessoasque sao lıderes em seus proprios campos de atividades. Dificilmente se poderia dizer, porconseguinte, que Popper e ignorado. E isso acentua ainda mais o fato surpreendente de elenao ser melhor conhecido – pensadores de menor envergadura sao mais famosos. Deve-seisso, em parte, ao acaso, em parte a uma nao deliberada ma interpretacao de sua obra e, emparte, a um aspecto de seu metodo, que torna facil ser ele mal compreendido pelos que naoleram a obra.

Karl Popper nasceu em Viena em 1902. Na primeira juventude, foi marxista, trans-formando-se, em seguida, num social-democrata entusiasta. Alem de dedicar-se a estudos

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de ciencia e filosofia, interessou-se nao apenas pela polıtica de esquerda e por questoes deassistencia social, relativas a crianca, segundo as concepcoes de Adler, mas tambem pelaSociedade de Concertos Privados fundada por Schoenberg. Para ele, como para muitosoutros, a Viena daquele tempo foi um lugar em que era estimulante ser jovem. Depois decompletar seus estudos, passou a ganhar a vida como professor secundario de matematicae fısica; entretanto, seus interesses maiores continuaram a ser as obras sociais, a polıticade esquerda e a musica – e, naturalmente, a filosofia. Na filosofia se encontrou e a ela sededica ate hoje, tendo-se afastado, entretanto, da posicao dominante aquela epoca – a dopositivismo logico do Cırculo de Viena. Otto Neurath, membro daquele Cırculo, apelidouPopper de “oposicao oficial”. Isso o transformou numa figura singular, apartada. Foi-lheimpossıvel ver os primeiros livros publicados na forma em que os havia escrito. Sua primeiraobra continua inedita; e o primeiro e importante trabalho publicado, Logik der Forschung,publicado no outono de 1934 e datado de 1935, foi uma versao violentamente reduzida deum livro que era duas vezes mais longo. Contem a substancia daquilo que desde tal epocapassou a ser visto como os argumentos geralmente aceitos contra o positivismo logico.

Sob a violencia de que se revestia o quadro polıtico da Viena dos anos 1930, a oposicaoesquerdista ao fascismo se estava esfacelando. Posteriormente, em The Open Society andIts Enemies, volume ii, pp. 164-165, Popper caracterizou a posicao marxista radical nostermos seguintes: “Como a revolucao certamente viria, o fascismo so poderia correspondera um dos meios de provoca-la; e tanto mais isso era verdade, dada a circunstancia de quea revolucao vinha com grande atraso. A Russia ja havia realizado, a despeito de suasmas condicoes economicas. Somente as vas esperancas geradas pela democracia estavamdetendo a revolucao nos paıses mais adiantados. Dessa forma, a destruicao da democraciapelos fascistas so poderia facilitar a revolucao, levando os trabalhadores a desilusao ultimacom respeito aos metodos democraticos. Dessa maneira, a ala radical do marxismo julgouque havia descoberto a ‘essencia’ e o ‘verdadeiro papel historico’ do fascismo. O fascismoseria, fundamentalmente, o ultimo bastiao da burguesia. Assim pensando, os comunistas naolutaram quando o fascismo se apossou do poder. (Ninguem esperava que os social-democrataslutassem.) Com efeito, os comunistas estavam seguros de que a revolucao proletaria viriae que o interludio fascista, necessario para apressa-la, nao poderia prolongar-se por maisque uns poucos meses. Dessa forma, nao cabia aos comunistas qualquer acao. Eles eraminofensivos. Nunca houve um ‘perigo comunista’ a ameacar a conquista do poder pelofascismo.”

Presentes, na realidade historica subjacente a esse texto, estavam profundos debatesacerca de estrategia e moralidade polıtica, nos quais Popper se envolveu e que constituırama sementeira de grande parte de sua posterior obra polıtica. Ele anteviu, com dolorosa acui-dade, a anexacao da Austria pela Alemanha nazista e subsequente guerra europeia na quala sua terra se colocaria do lado errado; decidiu abandonar a Austria antes que isso aconte-cesse. (Essa decisao salvou-lhe a vida, pois, embora houvesse tido uma infancia protestante,e fossem batizados ambos os seus pais, Hitler o teria classificado como um judeu.) De 1937a 1945, ensinou filosofia na Universidade da Nova Zelandia. Na parte inicial desse perıodo,empenhou-se em aprender grego por conta propria, a fim de se capacitar para estudar osfilosofos gregos, especialmente Platao. Em seguida, escreveu, em ingles, The Open Societyand Its Enemies – “uma obra”, como diz Isaiah Berlin, no trabalho anteriormente citado,“de excepcional originalidade e forca”. Popper encarou-a como seu trabalho de guerra. De-cisao final no sentido de escreve-la foi tomada no dia em que ele recebeu a notıcia, ha tantotemida, da invasao da Austria por Hitler. Esse fato e a circunstancia de que o resultado dasegunda guerra mundial era ainda incerto em 1943, ocasiao em que o livro foi terminado,aumentaram a profundidade de paixao que inspirou essa defesa da liberdade e ataque aototalitarismo, tendo Popper tentado explicar, ainda, a atracao que este movimento exerceu

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e sua evolucao. O livro apareceu em dois volumes, em 1945, e foi motivo da primeira realprojecao do nome de Popper no mundo de fala inglesa.

Em 1946, Popper viajou para a Inglaterra, onde ate hoje vive. Ao chegar, encontrou,como ortodoxia prevalecente no campo filosofico, na medida em que uma ortodoxia se mani-festava, o positivismo logico que havia conhecido em Viena, antes da guerra. Esse movimentohavia sido trazido para a Inglaterra na Language Truth and Logic, de A. J. Ayer, publicadaem janeiro de 1936. A Logik der Forschung, de Popper, nao havia sido traduzida e eravirtualmente desconhecida; na medida em que da obra se tinha noticia, tinha-se erroneainformacao acerca de seu conteudo. O livro so apareceu em ingles no outono de 1959, umquarto de seculo apos a primeira publicacao, recebendo o tıtulo: Logic of Scientific Disco-very. A traducao inclui um Prefacio especial, no qual Popper se desvinculava da (por aquelaepoca, filosofia da linguagem que entrava em moda, porem Mind, a principal revista de filo-sofia da linguagem, recenseou o livro desfavoravelmente e sem fazer referencia ao Prefacio.Na maturidade, Popper encontrava-se como figura singular e apartada, na Inglaterra, talcomo se havia encontrado na Austria de sua juventude. Nao obstante, a reputacao inter-nacional que, de ha muito, comecara a adquirir, continuou a crescer, e foi reconhecida naInglaterra (que o fez cavalheiro em 1965). Contudo, nem Oxford nem Cambridge o quiseramcomo professor. Passou os ultimos 23 anos de sua carreira universitaria na London Schoolof Economics, onde foi professor de logica e metodologia da ciencia.

Durante esses anos, publicou ele dois outros livros, ambos colecoes de artigos, a maioriados quais ja anteriormente divulgada. Quando, em 1957, surgiu The Poverty of Historicism,Arthur Koestler escreveu no Sunday Times que se tratava, “provavelmente, do unico livropublicado no corrente ano que sobrevivera ao seculo atual”. (O conjunto de antigos queconstitui o livro havia sido rejeitado pelo periodico Mind.) Esta obra pode ser encaradacomo um adendo ao The Open Society and Its Enemies. Analogamente, Conjectures andRefutations, coletanea de artigos, publicada em 1963, pode ser dada como um adendo aoThe Logic of Scientific Discovery. Desde a sua aposentadoria, que ocorreu em 1969, Popperpublicou mais um livro – outra colecao de ensaios, com o tıtulo Objective Knowledge: AnEvolutionary Approach, que veio a lume em 1972. E provavel que novas obras sejam aindapublicadas. De fato, alguns livros ja se acham preparados e, ao lado de mais de uma centenade artigos divulgados em varios periodicos especializados, Popper conserva um numero aindamaior de ensaios e conferencias escritas, que permanecem ineditos. Popper sempre se mostrouum pouco relutante em remeter seus escritos para as graficas: sempre ha espaco – e tempo– para alguns acrescimos, para as correcoes, para melhor apresentacao de certos topicos.

Ao iniciar sua carreira, Popper foi encarado pelos positivistas logicos como alguem quese debrucava sobre os mesmos problemas que interessavam aos adeptos daquela corrente; ospositivistas interpretaram, pois, os escritos de Popper a luz desse pressuposto. Os filosofosda linguagem, por sua vez, fizeram praticamente o mesmo, um pouco mais tarde. Positivis-tas logicos e filosofos da linguagem acreditaram e afirmaram, com toda sinceridade, que aobra de Popper, contrariamente ao que ele proprio tem procurado acentuar, nao difere dasobras produzidas pelos adeptos daquelas correntes. A negativa de Popper, insistentementerepetida, parece fatigante aos olhos dos positivistas e filosofos da linguagem. Procurarei ana-lisar mais adiante as causas dos mal-entendidos. Neste ponto, meu desejo e o de realcar queexiste, na obra de Popper, uma caracterıstica – inevitavel, quando corretamente entendida– que se tem transformado em obstaculo a separa-lo de seus leitores potenciais – leitoresque, exatamente por serem potenciais, ainda nao estao em condicoes de entender aquelacaracterıstica. Popper acredita (num sentido que se tornara mais explıcito adiante, que oconhecimento so pode progredir gracas a crıtica. Isso o leva a apresentar a maior parte desuas ideias como fruto de crıticas dirigidas a outros autores. E o que se da, digamos, comThe Open Society and Its Enemies cujos principais argumentos defluem de crıticas dirigidasa Platao e Marx. Em consequencia, geracoes de estudantes examinaram a obra, em busca

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de tais comentarios, deixando, todavia, de examina-la na ıntegra. Ela passou, mesmo, a serencarada como sendo, efetivamente, uma crıtica a Platao e a Marx e inumeras pessoas quedela ouviram falar, sem te-la consultado mais de perto, guardam erronea impressao acercado que ali se escreve. Muitos chegam a admitir, em virtude dos ataques enderecados contraMarx, que a obra revela tendencias direitistas. Numerosas controversias, surgidas nos meiosacademicos, nao tomam por base os argumentos positivos de Popper, mas concentram-se emtorno da legitimidade da opiniao que ele tem de outros autores. Essas controversias deramorigem a varios livros, cabendo lembrar In Defense of Plato, de Ronald B. Levinson, e TheOpen Philosophy and The Open Society, de Maurice Cornforth. A discussao propagou-separa as revistas especializadas, debatendo-se, por exemplo, a fidelidade com que Poppertraduziu esta ou aquela passagem de Platao. Contudo, a defesa da democracia, que se achana obra de Popper, nao recebeu a mesma atencao. Mesmo que se pudesse mostrar ser ina-dequado o tratamento dado a Platao e a Marx, aqueles argumentos de Popper em favorda democracia sao dos mais poderosos de que se tem notıcia. Qualquer crıtica academicamais seria de The Open Society and Its Enemies deveria ter em conta os argumentos dePopper, nao a sua erudicao – embora esta, como tentarei mostrar adiante, tambem deva serrespeitada.

Relacionado a este obstaculo referido, que se poe entre Popper e seus leitores, ha outro,de importancia menor, mas que tambem merece mencao. Popper sustenta que a filosofiae uma atividade necessaria porque nos – todos! – admitimos uma serie de coisas e variosdesses pressupostos sao de cunho filosofico. Agimos em funcao deles, na vida privada, napolıtica, em nosso trabalho e em qualquer outra esfera. Embora alguns de tais pressupostossejam indubitavelmente verdadeiros, e provavel que outros sejam falsos e que terceiros sejamperniciosos. Deflui daı que o exame crıtico dos pressupostos – que e uma atividade de ordemfilosofica – e moralmente e intelectualmente importante. De acordo com essa maneira dever, a filosofia e algo vivido e de relevo para todos, nao uma atividade academica ou umaespecializacao – e certamente nao e algo que consista primacialmente do estudo dos escritosde filosofos profissionais. Sem embargo, os trabalhos de Popper consistem de exames crıticosde teorias e, consequentemente, enfeixam muitas discussoes em torno de “ismos” e muitasalusoes aos pensadores do passado – o que se percebe, em especial, nas primeiras obrasescritas em ingles, quando ele ainda se achava sob a influencia da tradicao academica alema.

Raros, porem, sao os pensadores que se deram ao trabalho, como Popper, de escreverde maneira clara. As ideias sao tao claramente apresentadas que chegam a mascarar suaprofundidade. Alguns leitores foram a ponto de admitir que os escritos de Popper eramsimples, talvez ate um pouco obvios. Nao perceberam a emocao e a excitacao que delespodem ser retiradas. A prosa de Popper e peculiar: magnanima e humana, com um mistode carga intelectual e emocional que nos recorda o proprio Marx. Sob os argumentos esconde-se uma forca orientadora, a mesma grandiosidade e autoconfianca que se acha em Marx, amesma penetracao e o mesmo alcance – mas um rigor logico mais intenso. Quando o leitorse habitua a terminologia, os trabalhos de Popper sao estimulantes e de grande poder depersuasao. Acima de tudo, entretanto, e esta e uma das notaveis caracterısticas da obra dePopper, esses trabalhos sao abundantemente ricos em argumentos.

A filosofia de Popper e sistematica e se coloca na grande corrente central que vivificaa disciplina. Contudo, so aos estudiosos mais esforcados, de mentalidade aberta, e que sedescortina o panorama global do pensamento de Popper (disseminado em varias conferenciase publicacoes que foram impressas em varias decadas, em diferentes idiomas, em muitos paısese em numerosas revistas); so a esses estudiosos, que podem ter lido toda a vasta obra dePopper, e dado ver que as partes em que se desdobra se interligam entre si e constituemporcoes de um unico sistema explicativo que se aplica a toda a experiencia humana. Tomandoum exemplo particular: Popper e um indeterminista, na fısica e na polıtica. Sua maneirade ver, onde se retrata a impossibilidade logica de fazer previsoes acerca do curso futuro

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dos acontecimentos historicos, apareceu pela primeira vez num artigo estampado no BritishJournal for the Philosophy of Science: “Indeterminism in Quantum Physics and in ClassicalPhysics.” Essa maneira de ver bifurcou-se. Em uma direcao, transformou-se em sua defesa daliberdade polıtica e em seu ataque ao marxismo; em outra direcao, conduziu aos seus estudosde teoria da probabilidade, em termos de propensao – estudos que, levados ao domınio dafısica quantica, representam solucao para certos problemas da teoria da materia que serelacionam a historica separacao entre Einstein, de Broglie e Schrodinger, de um lado, eHeisenberg, Niels Bohr e Max Bom, de outro. So uns poucos estudiosos, em dedicacao plena,contando com o necessario conhecimento tecnico, sao capazes de perceber estas ligacoes entreos trabalhos e analisa-los em profundidade.

O que eu procurei fazer neste livro foi dar uma visao geral e clara do pensamento dePopper, pondo em destaque sua sistematica unidade. Isso me obrigou, por motivos que setornarao obvios logo a seguir, a tomar como ponto de partida a teoria do conhecimento ea filosofia da ciencia de Popper. Aos leitores que folhearem este livro e que nao se inte-ressam por tais assuntos, preocupando-se mais com as teorias polıticas e sociais, peco quenao omitam a leitura desses temas iniciais; Popper aplicou as ciencias sociais muitas ideiasprimeiramente discutidas no ambito das ciencias naturais, e um conhecimento previo de suasobservacoes acerca das ciencias naturais e indispensavel para o bom entendimento do queele tem a dizer a respeito das ciencias sociais. Alem disso, eu procurarei mostrar que ambassao partes de uma unica filosofia, que abarca tanto o mundo natural como o social. Espero,ainda, deixar claro porque essa filosofia tem a especial influencia que se lhe outorga e porque,de outro lado, ela se contrapoe as demais filosofias de nosso tempo – embora nao me sejapossıvel, num livro destas proporcoes, abordar controversias especıficas. Tambem nao mesera possıvel discutir aspectos tecnicos de fısica, de teoria da probabilidade e de logica, demodo que nao procurarei investigar como Popper se serve dessas disciplinas em apoio deseus argumentos. Estarei preocupado, precisamente, com estes argumentos.

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CAPıTULO 2

METODO CIENTIFICO – A CONCEPCAO TRADICIONAL EA CONCEPCAO DE POPPER

A palavra “lei” e ambıgua e qualquer pessoa que fale de “violacao” de uma lei naturalou cientıfica confunde os dois modos principais de empregar aquela palavra. Uma lei socialprescreve o que podemos e o que nao podemos fazer. Ela pode ser violada; em verdade, senao pudesse, ela seria desnecessaria: a sociedade nao formula normas para impedir que umapessoa esteja simultaneamente em dois lugares diversos. A lei da natureza, por outro lado,nao e prescritiva, mas descritiva. Diz-nos o que ocorre – por exemplo, que a agua ferve a100 graus centıgrados. Como tal, nao pretende ser mais do que afirmacao do que acontece –dentro de certas condicoes, como, para exemplificar a de que existe uma porcao de agua e queela e aquecida. A lei pode ser verdadeira ou falsa, mas nao pode ser “violada”, pois nao setrata de um comando: nao se ordena a agua que ferva a 100 graus centıgrados. A crenca pre-cientıfica de que a lei seria um comando (emitido por alguma divindade) provoca a indesejadaambiguidade; as leis em encaradas como ordens emanadas dos deuses. Hoje, todavia, ascontroversias desapareceram. As leis nao sao comandos de qualquer tipo, que devam ser“seguidos”, “obedecidos” e nao “violados”, mas assercoes explicativas de carater geral, quepretendem ser factuais e que, em vista disso, devem ser modificadas ou abandonadas, umavez que se verifique serem inadequadas.

A formulacao de leis naturais tem sido encarada, desde ha muito, pelo menos desde New-ton, como uma das tarefas mais importantes da ciencia. Todavia, a descricao sistematica doprocedimento a adotar, na busca das leis, so foi feita por Francis Bacon. Embora suas ideiastenham sido ampliadas, depuradas, hajam sido restringidas e tornadas mais sofisticadas,alguma coisa da tradicao que Bacon inaugurou foi aceita pela quase totalidade das pessoasde ındole cientıfica, do seculo dezessete ao seculo vinte. Em linhas genericas, a situacao e aseguinte. O cientista principia efetuando alguns experimentos, cujo objetivo e o de permitirobservacoes cuidadosamente controladas e meticulosamente medidas – em algum ponto dafronteira entre nosso conhecimento e nossa ignorancia. O cientista registra sistematicamenteseus achados, divulga-os, talvez, e, com o correr do tempo, ele e outros pesquisadores quetrabalham na mesma area chegam a acumular uma porcao de dados comuns e dignos decredito. Crescendo o numero de dados, tracos de ordem geral principiam a emergir e ospesquisadores comecam a formular hipoteses gerais – enunciados de carater legaloide que seajustam a todos os fatos conhecidos e explicam de que modo eles se relacionam causalmenteentre si. O cientista procura confirmar sua hipotese, encontrando evidencia que lhe de apoio.Bem sucedido nesta tentativa de verificacao, o cientista descobre mais uma lei cientıfica –lei que lhe permitira desvendar mais alguns segredos da natureza. Trabalha-se, entao, nessanova linha: a descoberta e aplicada em todos os casos que, segundo se imagina permitamcoleta de informacoes adicionais. O conhecimento cientıfico amplia-se, dessa maneira, e afronteira de nossa ignorancia e levada para adiante. O processo se repete, num ponto dafronteira nova.

O metodo que permite assentar enunciados gerais sobre observacoes acumuladas de casosespecıficos e conhecido como inducao e e considerado como traco distintivo da ciencia. Emoutras palavras, o uso do metodo indutivo e considerado como criterio de demarcacao entreciencia e nao-ciencia. Enunciados cientıficos sao os unicos que conduzem a conhecimentoseguro e certo, porque estao assentados em evidencia observacional e experimental – porque

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estao, em suma, assentados sobre os fatos; poem-se, portanto, em contraste com enunciadosde todos os outros tipos, que se baseiam na autoridade, na emocao na tradicao, na conjectura,no preconceito, no habito ou em qualquer outro alicerce. A ciencia e o corpus de taisconhecimentos seguros e certos e o desenvolvimento da ciencia consiste no exterminavelprocesso de adicionar certezas novas ao conjunto de certezas existentes.

Hume colocou algumas duvidas em tudo isso. Assinalou que nenhum numero de enun-ciados de observacao singular, por mais amplo que seja, pode acarretar logicamente umenunciado geral irrestrito. Se eu noto que o acontecimento A vem acompanhado, em certaocasiao, pelo acontecimento B nao se segue logicamente que A volte a ser acompanhado porB em outra ocasiao. Isso nao decorre logicamente de duas observacoes, nem de vinte ou deduas mil. Se os acontecimentos vem juntos um numero suficientemente grande de vezes, euposso, notando que A ocorreu, manifestar certa expectativa no sentido de que B ocorra –mas isso e um fato psicologico, nao logico. O Sol pode ter surgido a cada dia, todos os diasde que tenhamos conhecimento, mas isso nao acarreta que deva surgir amanha. A alguemque nos diz, “Ah, sim, mas nos podemos predizer, de fato, o momento preciso em que o Solvoltara a raiar amanha, com base nas estabelecidas leis da fısica, aplicadas as condicoes quevigem neste momento”, e possıvel retrucar com duas objecoes. Em primeiro lugar, o fato deque as leis fısicas vigoraram no passado nao acarreta logicamente que continuem vigorandono futuro. Em segundo lugar, as leis da fısica sao, elas mesmas, enunciados gerais que naodecorrem logicamente dos casos observados aduzidos em seu favor, nao importa quao nu-merosos possam ser. Assim, essa tentativa de justificar a inducao e viciosa, porque da porassente a validade da propria inducao. A ciencia admite que haja regularidade da natureza,admite que o futuro. se assemelhara ao passado em todos os aspectos em que as leis operam.Todavia, nao ha meio que permita legitimar esse pressuposto. Ele nao pode ser estabelecidopela observacao, pois que nos e impossıvel observar acontecimentos futuros. E nao podeser estabelecido com base em argumentos logicos, pois que do fato de futuros passados seterem assemelhado a passados passados nao deflui que todos os futuros futuros venham aassemelhar-se aos passados futuros. A conclusao a que Hume chegou foi a de que, emboranao exista meio de demonstrar a validade dos procedimentos indutivos, a constituicao psi-cologica dos homens e tal que nao lhes resta outra alternativa senao a de pensar em termos detais procedimentos indutivos. Como esses procedimentos parecem ter legitimidade pratica,o homem os adota. Sem embargo, isso nao quer dizer que falte fundamentacao racional paraas leis cientıficas, que elas nao se apoiem na logica e na experiencia, embora ultrapassemtanto uma como outra, dado seu carater de generalidade irrestrita.

O problema da inducao, que tem sido denominado “problema de Hume”, vem pertur-bando os filosofos, desde o tempo de Hume ate os nossos dias. C. D. Broad, de maneira jocosa,descreve-o como o esqueleto que se acha no armario da filosofia. Por sua vez, Bertrand Rus-sell, em seu History of Western Philosophy (pp. 699-700), relata: “Hume demonstrou queo empirismo puro nao e base suficiente para a ciencia. Contudo, se este unico princıpio (dainducao) e admitido, tudo o mais pode caminhar em consonancia com a teoria de que todonosso conhecimento se assenta na experiencia. Deve-se admitir que aı esta um afastamentoimportante em relacao ao empirismo puro e que os pensadores que nao abracam o empirismoestao no direito de indagar porque outros afastamentos nao sao permitidos, se este o e. Es-tas questoes, porem, nao surgem em conexao direta com os argumentos de Hume. O que osargumentos humeanos demonstram – e eu nao penso que a demonstracao seja controvertida– e que a inducao se converte em princıpio logico independente, incapaz de ser inferido daexperiencia ou de outros princıpios logicos, e que a ciencia se torna impossıvel sem ele.”

E extremamente embaracoso que justamente a ciencia deva apoiar-se em alicerces cujavalidade nao pode ser demonstrada. Esse fato levou numerosos empiristas ao ceticismo, aoirracionalismo ou ao misticismo. Alguns chegaram mesmo a encaminhar-se para a religiao.Praticamente todos os empiristas sentiram-se inclinados a afirmar: “Precisamos admitir que,

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estritamente falando, as leis cientıficas nao podem ser demonstradas e, portanto, que nao saocertas. Ainda assim, cada caso confirmador eleva o seu grau de probabilidade; alem disso,ao conjunto do passado conhecido, cada momento de permanencia do mundo acrescentaincontaveis bilhoes de exemplos confirmadores – e nenhum contra-exemplo. Assim, emboranao certas, as leis cientıficas sao provaveis, no mais alto grau que e possıvel conceber; e,na pratica, senao em teoria, isso nao se distingue da certeza.” Quase todos os cientistas,quando refletem acerca dos fundamentos logicos do que estao fazendo, aceitam essa maneirade ver. Para eles, a coisa verdadeiramente importante e que a ciencia desempenha seupapel – opera, produz uma corrente infindavel de resultados praticos. Assim, em vez decontinuarem a lutar com um problema logico aparentemente insoluvel, preferem prosseguircom a atividade cientıfica e alcancar maior numero de resultados. Nao obstante, os cientistasmais inclinados a reflexao filosofica tem-se sentido profundamente perturbados. Para elese para os filosofos, de modo geral, a inducao se tem apresentado como um problema naoresolvido e relativo aos fundamentos mesmos do conhecimento humano e, ate que possa sersolucionado, o conjunto da ciencia, conquanto intrinsecamente coerente e extrinsecamenteutil, deve ser visto como algo que flutua no ar, nao ligado a terra firma.

A mais fecunda contribuicao trazida por Popper consistiu em oferecer solucao aceitavelpara o problema da inducao. Para faze-lo, rejeitou a visao ortodoxa global do metodocientıfico, tal como ate agora apresentada neste capıtulo, e substituiu-a por outra. E issoque pulsa nas citacoes de Medawar, Eccles e Bondi, referidas na introducao do presentelivro. E, como seria de esperar, a solucao de Popper, dado o seu carater basilar, mostrou-se fecunda em areas outras alem daquela em que surgiu, contribuindo para a solucao denumerosos outros problemas.

A solucao de Popper principia apontando para a assimetria logica existente entre a veri-ficacao e o falseamento. Pondo o ponto em termos da logica sentencial: embora nao existanumero de enunciados de observacao relatando a observacao de cisnes brancos que permitaderivar o enunciado universal “Todos os cisnes sao brancos”, um so enunciado de observacao,relatando uma unica observacao de cisne preto, e suficiente para permitir a deducao logicado enunciado “Nem todos os cisnes sao brancos”.Neste importante sentido logico, as ge-neralizacoes empıricas, embora nao verificaveis, sao falseaveis. Isto significa serem as leissuscetıveis de teste, ainda que nao sejam demonstraveis: podem as leis cientıficas ser sub-metidas a teste mediante sistematico esforco dirigido para a sua refutacao.

Desde o comeco, Popper tracou a diferenca entre a logica desta situacao e a metodologiaimplıcita nela. A logica e extraordinariamente simples: se um so cisne preto foi observado,entao nao se pode dar que todos os cisnes sejam brancos. No ambito da logica, portanto,ou seja, se considerarmos a relacao entre enunciados, uma lei cientıfica podera ser conclu-sivamente falseada, embora nao possa ser conclusivamente verificada. Metodologicamente,porem, a situacao e diversa, ja que sempre se torna possıvel duvidar de um enunciado, naesfera pratica: pode ter havido um engano na observacao relatada; o passaro pode ter sidoerroneamente identificado; ou se delibera, porque o animal e preto, dar-lhe outro nome, semincluı-lo na categoria dos cisnes. E possıvel, pois, recusa, sem contradicao, da validade dequalquer enunciado de observacao. Seria viavel, portanto, rejeitar quaisquer experienciasfalseadoras. Todavia, seria erroneo pedir conclusivo falseamento ao nıvel metodologico, poisque ele nao se alcanca nesse nıvel. Nosso enfoque se tornaria absurdamente anticientıfico seexigıssemos conclusivo falseamento enquanto a evidencia fosse reinterpretada para se manterde acordo com os nossos enunciados. Em consequencia, Popper propoe, como elemento dometodo, que nao se procure sistematicamente contornar a refutacao – seja pela introducaode hipoteses ad hoc, seja pela apresentacao de definicoes ad hoc, seja pela pratica de re-jeitar a confiabilidade de resultados experimentais inconvenientes, seja por qualquer outroprocedimento desse genero. Propoe, ainda, como parte do metodo, que as teorias sejam for-muladas da maneira menos ambıgua possıvel, de modo a se tornarem francamente abertas

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a refutacao. De outra parte, Popper sustenta que nao devemos abandonar levianamente asteorias, pois isso representaria adocao de atitude excessivamente acrıtica em relacao aos tes-tes e equivaleria a admitir que as teorias nao foram submetidas aos testes rigorosos a que sedeveriam ter submetido. Popper coloca-se, em consequencia, como uma especie de ingenuorefutacionista, ao nıvel da logica, mas como um adepto altamente crıtico do falseamento, aonıvel da metodologia. Muitas controversias em torno da obra de Popper se devem a um mauentendimento dessa distincao.

Consideremos, agora, um exemplo concreto. Comecemos por admitir que acreditamos –por forca dos ensinamentos recebidos na escola – que a agua ferve a 100 graus centıgradose que isso traduz uma lei cientıfica. Nenhum numero de casos confirmadores demonstraraque assim e, mas nos podemos submeter a teste a lei, procurando circunstancias em que eladeixe de vigorar. Essa busca nos lanca um repto: desafia-nos a pensar em coisas que, ateonde sabemos, a ninguem preocuparam. Com pequeno esforco de imaginacao descobriremosque a agua nao ferve a 100 graus centıgrados em vasos fechados. Aquilo que supunhamosfosse uma lei cientıfica deixa, pois, de se-lo. Nesse ponto, podemos enveredar por caminhoserroneos. Podemos manter o enunciado original, restringindo seu conteudo empırico, paraafirmar: “A agua ferve a 100 graus centıgrados em vasos abertos.” Passarıamos, em seguida,a buscar sistematicamente situacoes refutadoras do novo enunciado. Com mais um poucode imaginacao, a refutacao poderia ser encontrada a grandes altitudes. Para salvaguardaro segundo enunciado, restringirıamos o seu conteudo empırico, afirmando: “A agua ferve a100 graus centıgrados, em vasos abertos, sob pressao atmosferica igual a que se constata aonıvel do mar.” Passarıamos, a seguir, a buscar casos refutadores do terceiro enunciado –e assim por diante. Podemos imaginar que, ao agir dessa forma, estamos delimitando comprecisao crescente o nosso conhecimento acerca do ponto de ebulicao da agua.

Todavia, proceder dessa maneira, atraves de uma serie de enunciados de conteudo empıricodecrescente, equivaleria a perder de vista as caracterısticas mais notaveis da situacao. Comefeito, ao constatarmos que a agua nao fervia a 100 graus centıgrados em vasos fechados,tınhamos atingido o limiar de uma descoberta importante, ou seja, a descoberta de um pro-blema novo: “Por que nao?”. Somos compelidos, agora, a formular uma hipotese, mais ricado que a primitiva, demasiado simples, ou seja uma hipotese capaz de explicar porque aagua ferve a 100 graus centıgrados em vasos abertos e, simultaneamente, capaz de explicarporque nao ferve a essa temperatura em vasos fechados. Quanto mais rica a hipotese, tantomais informativa sera, esclarecendo-nos acerca das relacoes que se estabelecem entre as duassituacoes e permitindo-nos o calculo preciso da diferenca que existe entre os dois pontosde ebulicao. Em outras palavras, teremos uma segunda formulacao que nao tem menorconteudo empırico do que a primeira, mas, ao contrario, um conteudo consideravelmentemaior. Caberia, em seguida, procurar sistematicamente uma refutacao para esta segundahipotese. Se descobrıssemos que ela nos daria resultados corretos para vasos abertos e fecha-dos, sob pressao equivalente a pressao atmosferica ao nıvel do mar, sem nos dar, contudo,resultados corretos a grandes altitudes, passarıamos a buscar uma terceira hipotese, aindamais rica do que a segunda, capaz de explicar porque as hipoteses iniciais eram legitimas,ate o ponto em que o eram, deixando de se-lo nas condicoes novas; e capaz ainda, e claro,de dar conta da situacao nova. Em seguida, submeterıamos a teste a terceira hipotese. Decada uma das hipoteses sucessivas, seriam deduzidas consequencias que abrangeriam muitomais do que a evidencia existente: a teoria – verdadeira ou falsa – nos diria mais acerca domundo do que era antes conhecido. E uma das formas de submeter a teste a teoria consistiriaem conceber confrontos entre as suas consequencias e novas experiencias de ordem observa-cional. Constatando que algumas assercoes da teoria nao se manifestam realmente, tem-sedescoberta nova: o conhecimento seria ampliado e se imporia a repeticao do procedimento,em busca da teoria mais satisfatoria.

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Aı esta, em resumo, o que Popper pensa acerca de como o conhecimento progride. Havarios pontos que precisam ser enfatizados. Se procurassemos “verificar” o enunciado pri-mitivo, de que a agua ferve a 100 graus centıgrados, acumulando casos confirmadores, naoterıamos dificuldades para reunir bilhoes de exemplos. Isso, porem, nao garantiria a verdadedo enunciado e nem aumentaria a probabilidade de ele ser verdadeiro – o que pode parecerchocante, uma vez que se compreenda o ponto. O aspecto mais negativo, todavia, esta emque, ao acumular evidencia favoravel, nao se lanca duvida sobre o enunciado original, demodo que nao surgem motivos para substituı-lo por outro – e o conhecimento fica estagnadonaquele estagio. Nosso conhecimento nao teria progredido como progrediu se, ao lado doscasos confirmadores, nao tivessem, por acidente, surgido alguns contra-exemplos. Acidentesdesse tipo sao o que de melhor nos pode acontecer. (E em tal sentido que muitas famosasdescobertas cientıficas foram “acidentais”.) Porque, em realidade, o aumento de conheci-mento se deve aos problemas e as nossas tentativas de resolve-los. Essas tentativas requerema colocacao de teorias que – almejando resolver a dificuldade – precisam ir para alem doconhecimento existente e, portanto, exigem esforco de imaginacao. Quanto mais ousada ateoria, tanto mais ela nos diz – e mais atrevido o ato imaginativo. (Simultaneamente, con-tudo, torna-se maior a probabilidade de ser falso o que a teoria afirma e e preciso submete-laa testes rigorosos para verifica-lo.) A maior parte das grandes revolucoes cientıficas deveu-sea teorias temerarias, que exigiram imaginacao criativa, profundidade de visao, independenciade espırito e um pensamento desejoso de aventurar-se em regioes inseguras.

Estamos agora em condicoes de entender porque o conhecimento, ao ver de Popper, ede natureza provisoria – e permanentemente de natureza provisoria. Em nenhum momentoha condicoes para demonstrar que aquilo que “sabemos” e verdadeiro e e sempre possıvelque o sabido se revele falso. E um fato elementar da historia intelectual da humanidadeeste de que o “conhecido” em certa epoca se revelou, posteriormente, incompatıvel com oconstatado. Em consequencia, e um erro grave tentar o que muitos cientistas e filosofostentaram fazer, isto e, demonstrar a verdade de uma teoria ou justificar nossa crenca emcerta teoria –, pois isso e logicamente impossıvel. O que se pode fazer, porem, e isto, sim,e de grande importancia, e justificar nossa preferencia por uma teoria, em detrimento deoutra. Nos exemplos sucessivos acerca da ebulicao da agua, nunca nos foi possıvel mostrarque a teoria em vigor era verdadeira, mas sempre nos foi possıvel esclarecer os motivos quea tornavam preferıvel, suplantando a teoria anterior. Esta e a situacao caracterıstica emqualquer circunstancia, a qualquer tempo. Inteiramente erronea ’e a concepcao popular deque a ciencia engloba corpos de fatos estabelecidos. Nada na ciencia esta permanentementeestabelecido, coisa alguma, nela, e inalteravel. Em verdade, a ciencia esta claramente emconstante modificacao – e esta modificacao nao se processa por simples acrescimo de novascertezas. Se agimos racionalmente, baseamos nossas decisoes e expectativas no “que demelhor sabemos” – “ate onde me e dado saber”, como acentua a frase popular, de maneiratao sabia. Admitimos a “verdade” dos nossos conhecimentos para efeito pratico, pois queeles sao a menos insegura base disponıvel. Sem embargo, nao se pode perder de vista ofato de que a experiencia pode atestar, a qualquer momento, que aqueles conhecimentos saoerroneos e necessitam de revisao.

Segundo essa concepcao, a verdade de um enunciado (que Popper, seguindo o enfoquede Tarski, entende como sua correspondencia com os fatos) e uma ideia reguladora. Umaanalogia com o vocabulo ”acuidade”permitira melhor compreensao do que significa isso.Todas as medidas, de tempo ou de espaco, so podem ser realizadas com certo grau deacuidade. Solicitando-se um pedaco de ferro de6 milımetros de comprimento, sera possıvelobte-lo dentro da margem de erro que os melhores instrumentos existentes permitem – fracoesde um milionesimo de milımetro. Mas onde, nessa margem, se situa exatamente o pontocorrespondente aos 6 milımetros e algo que, pela natureza das coisas, nao sabemos. Epossıvel que o pedaco de ferro tenha exatamente 6 milımetros de comprimento, mas nao o

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podemos saber. O que se pode saber e que o comprimento tem a acuidade levada ate talou qual fracao de milımetro – e que esta mais proximo do comprimento desejado do quede qualquer outro comprimento mensuravelmente maior ou mensuravelmente menor. Como advento de instrumentos de precisao ainda maior, pode-se obter um pedaco de ferro cujocomprimento e mais acurado, dentro de margens ainda mais restritas. Outros instrumentospoderao reduzir, em seguida, a margem de erro para limites ainda menores. Todavia, anocao correspondente a “exatamente 6 milımetros” (ou exatamente qualquer outra medida)nao e passıvel de ser encontrada na experiencia. uma nocao metafısica. Daı nao se segue,entretanto, que a humanidade nao possa fazer valioso e prodigioso emprego da medida;nem deflui que a acuidade, por ser inatingıvel, nao seja de interesse; nem decorre que sejaimpraticavel chegar a graus cada vez maiores de acuidade.

A nocao de “verdade”, para Popper, guarda semelhanca com o que foi dito acerca de“acuidade”. Nosso objetivo, na busca de conhecimento, e o de chegar mais e mais perto daverdade; podemos estar em condicoes de perceber que realizamos algum progresso, emboranunca saibamos que o alvo tenha sido alcancado. “Nao podemos identificar ciencia e verdade,ja que admitimos que as teorias de Newton e de Einstein pertencem ao ambito da cienciae sabemos que nao podem ser ambas verdadeiras – e que as duas podem perfeitamente serfalsas”1. Uma das citacoes favoritas de Popper e retirada de Xenofanes e ele assim a traduz:

Os deuses nao revelaram, no inıcio,todas as coisas para nos; com o correr do tempo, entretanto, pela pesquisa,

podemos saber mais acerca das coisas. Contudo, a verdade certa, ne-nhum homem a conheceu,

nem chegara a conhecer, nem os deuses,nem mesmo acerca das coisas que menciono.Pois ainda que, por acaso, viesse a dizera verdade final, ele proprio nao o saberia:pois tudo nao passa de teia urdida de pressupostos.

A concepcao que Popper tem da ciencia adapta-se, com naturalidade, a historia daciencia. Todavia, o acontecimento particular que lhe deu a inspiracao para formular a ideiado carater permanentemente conjectural do conhecimento cientıfico foi o desafio que Einsteinlancou a Newton. A fısica newtoniana foi a mais importante e bem sucedida teoria cientıficaja formulada e acolhida. Tudo que ocorria no mundo observavel parecia confirma-la. Pormais de dois seculos, suas leis foram corroboradas pela observacao e pelo uso criativo e ateoria transformou-se no fundamento da ciencia e da tecnologia do Ocidente, conduzindo aprevisoes maravilhosamente precisas em todas as areas – desde a existencia de novos plane-tas ate o movimento das mares e o funcionamento das maquinas. Se havia conhecimento, aıestava ele: o mais seguro e certo conhecimento a respeito da circunstancia fısica jamais al-cancado pelo homem. Se leis cientıficas haviam chegado, pela verificacao indutiva, ao statusde Leis da Natureza, as leis da fısica newtoniana, com maior razao, dados os bilhoes de expe-rimentos e observacoes, podiam almejar o mesmo status. No Ocidente, geracao apos geracaoaprendeu que as leis newtonianas eram um fato definitivo e nao passıvel de correcoes. Semembargo, no inıcio deste seculo, Einstein apresentou uma teoria diferente da newtoniana. Asopinioes acerca da verdade das ideias de Einstein variaram amplamente, mas nao se negouque ela merecia atencao, nem se negou que seu alcance era maior do que o da teoria de New-ton, no que dizia respeito as aplicacoes. E aqui esta o ponto importante. Toda a evidenciaobservacional que se mostrava concorde com a teoria de Newton mostrava-se igualmenteconcorde com a de Einstein, abrangendo esta alguns aspectos a que a teoria de Newton naofazia alusao. (Convem lembrar que e possıvel demonstrar, como Leibniz ja o fez, ha muito

1Popper, pg. 78 de Modern British Philosophy, editado por Bryan Magee.

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tempo, que qualquer numero finito de observacoes pode ajustar-se a uma infinidade de ex-plicacoes diferentes.) A comunidade cientıfica simplesmente errara ao acreditar que toda aevidencia nao mencionada demonstrava a teoria de Newton. Nao obstante, toda uma epocada historia se havia baseado nessa teoria, obtendo exitos materiais sem precedentes. Se essaquantidade de verificacoes e o apoio indutivo nao demonstravam a verdade da teoria, quefatores poderiam demonstra-la? E Popper compreendeu que nao havia como demonstra-la.Percebeu que nenhuma teoria poderia ser encarada como verdade final. O maximo que sepode asseverar e que a teoria encontra apoio em cada observacao feita ate o momento e quefornece previsoes mais precisas do que qualquer outra teoria alternativa conhecida. Aindaassim, pode ser substituıda por uma teoria melhor.

Se a teoria de Newton nao e um corpo de verdades, inerente ao mundo, derivado pelohomem da observacao do real, como chegou a nascer? A resposta e: nasceu de Newton2.Foi uma hipotese levantada pelo homem, hipotese que se ajustava a todos os fatos conheci-dos aquela epoca e da qual os fısicos poderiam prosseguir deduzindo consequencias de usopratico, confiantemente, ate que viessem a esbarrar com dificuldades intoleraveis – emboraa teoria nova tivesse surgido antes disso acontecer e conquanto a teoria newtoniana sempretivesse apresentado algumas anomalias. Uma teoria pode, perfeitamente, como se deu com ageometria de Euclides ou a logica de Aristoteles, ser aceita como conhecimento objetivo pormais de dois milenios, pode ser quase infinitamente frutıfera e util durante todo esse lapsode tempo – e, ainda assim, mostrar-se, afinal, deficiente, sob algum aspecto imprevisto, ever-se substituıda por teoria mais adequada. Dispomos, hoje, de uma teoria que a maioriados fısicos encara como alternativa melhor, que pode substituir a teoria de Newton. Aindaassim, ela nao e a verdade final. O proprio Einstein considerava a sua teoria como insa-tisfatoria, passando a segunda metade de sua vida em busca de algo melhor. Talvez caibaesperar que o futuro nos apresente uma teoria mais avancada que englobe e explique a deEinstein, assim como esta englobava e explicava a de Newton.

O fato de que tais teorias nao sao corpos de fatos impessoais a respeito do mundo, masprodutos do espırito humano, transforma-as em conquistas individuais surpreendentes. Acriacao cientıfica nao pode ser dada como tao livre quanto a criacao artıstica, pois precisasofrer um minucioso confronto com a experiencia. Ainda assim, a tentativa de compreendero mundo e uma tarefa aberta – e genios criativos como os de Galileu, Newton e Einsteinpodem ser colocados ao lado de genios criativos como Michelangelo, Shakespeare e Beethoven.Consciencia disso e admiracao pelos frutos da ,atividade de tais genios e uma nota constantena obra de Popper. Isso torna ainda mais relevante a necessidade de esclarecer que a teoriade Popper e uma explanacao da logica e da historia da ciencia e nao uma visao da psicologiade seus cultores. Popper nao sustenta – ninguem o faria – que os cientistas, de modo geral,encararam a si mesmos como pessoas que agiam como ele as descreve agindo. Mas o ponto eeste: encarando-se a si mesmos daquela maneira ou nao, a teoria de Popper e o fundamentoracional da acao dos cientistas, e uma teoria que explica de que modo se desenvolve oconhecimento humano. O que se passa na mente de um cientista pode ser de interesse paraele mesmo, para os seus conhecidos, para os seus eventuais biografos ou para certas pessoaspreocupadas com algumas facetas da psicologia – mas nao tem interesse para o julgamentoda obra desse cientista. Se eu fosse um cientista e divulgasse uma teoria, a comunidadecientıfica nao se mostraria interessada pelo meu eu subjetivo, mas revelaria interesse pelateoria objetiva proposta. Que diz a teoria? Ela e internamente coerente? Na hipoteseafirmativa, e genuinamente empırica, ou nao passa de tautologia? Como se compara comoutras teorias existentes, ja submetidas a testes? Diz-nos mais do que estas outras teorias?Como sera ela submetida a teste? Eis as perguntas que poderiam surgir. As pessoas (eu e

2Ou melhor, segundo as teorias de Popper que serao examinadas adiante, no capıtulo 4, nasceu da in-teracao entre Newton e o Mundo 3. O significado dessa afirmacao pode ficar em suspenso, ate que cheguemosa questao.

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outras) poderiam aplicar a teoria, em condicoes particulares, e derivar dela, por um processodedutivo, as suas consequencias logicas – que assumiriam a forma de enunciados singularespassıveis de teste pela observacao e pela experimentacao. A teoria sera considerada tantomais corroborada quanto melhor se sair em tais testes e quanto melhor puder suportar oconfronto com outras teorias rivais.

Acerca desse processo, encarado como um todo, tres sao os aspectos que merecem particu-lar atencao. Em primeiro lugar, note-se que a maneira pela qual eu cheguei a teoria nao temrelacao com seu status logico ou cientıfico. Em segundo lugar, note-se que as observacoes eos experimentos em pauta, longe de darem origem a teoria, sao parcialmente derivados dela,e planejados para submete-la a teste. Em terceiro lugar, note-se que a inducao nao esta emcausa, em qualquer ponto. A concepcao tradicional acerca da maneira pela qual pensamos eacerca do metodo cientıfico dava lugar ao problema da inducao; essa concepcao, entretanto,estava radicalmente errada e pode ser substituıda – como aconteceu aqui – por concepcaomais satisfatoria, em que o problema da inducao nao se apresenta. Consequentemente, ainducao, segundo Popper, e conceito dispensavel – um mito. Nao existe. Nao ha inducao.

Os crıticos poderiam objetar, lembrando que Popper deixou de considerar o processo emque a inducao comparece efetivamente, isto e, o processo de formacao de teorias. Admitimos.diriam esses crıticos, que as observacoes singulares nao podem acarretar uma teoria geral; naoobstante, podem sugeri-la, particularmente no caso de cientistas de visao, dotados de fertilimaginacao. Dessa forma, as teorias podem ser e efetivamente sao obtidas generalizando apartir de casos observados. Admitimos, continuariam os crıticos, que ha sempre um “salto”nesta passagem do particular para o geral; mas o procedimento nao e sumariamente aleatorioou irracional: ha um tipo de logica em pauta – e e isso que denominamos inducao.

A resposta de Popper e mais ou menos a seguinte. Considerando que o modo peloqual se chega a uma teoria nao tem significacao especial, logica ou cientıfica, inexistindo,pois, maneiras ilegıtimas de formular teorias, e perfeitamente admissıvel que boas teoriassejam obtidas pelo processo descrito pelos crıticos. Sem embargo, essa descricao e de cunhopsicologico, nao logico. E o problema da inducao tem suas raızes no fato de nao se estabelecera adequada distincao entre processos psicologicos e processos logicos. Relatos pessoais decientistas nos informam acerca da maneira pela qual chegaram a elaborar suas teorias: emsonhos ou estados semelhantes ao do sonho; por forca de um lampejo de inspiracao; e atemesmo em virtude, de mal-entendidos ou enganos. Aprofundando o estudo da historia daciencia pode-se concluir que a maior parte das teorias nao foi obtida por qualquer dessesprocedimentos ou pela generalizacao a partir de observacoes experimentais, mas por meioda alteracao de teorias ja existentes. Nao ha em ciencia, como nao ha em artes, uma logicada criacao. “Acontece que meus argumentos neste livro (The Logic of Scientific Discovery,pg. 32) independem desse problema. Entretanto, minha posicao, relativamente ao assunto,se tem algum interesse, e a de que nao existe algo que se possa denominar metodo logicopara ter novas ideias, que nao existe uma reconstrucao logica desse processo. Minha posicaopode ser aclarada dizendo-se que cada descoberta encerra um ‘elemento irracional’ ou ‘umaintuicao criativa’, no sentido bergsoniano. De modo analogo, Einstein fala da ‘busca de leisde ampla universalidade · · · de que um retrato do mundo pode ser obtido, pela simplesdeducao. Nao ha caminho logico’, afirma ele, ‘que conduza a tais · · · leis.

Elas so podem ser alcancadas pela intuicao, que se apoia em algo parecido com a paixaointelectual (Einfuhlung) pelos objetos da experiencia’.” Em carta dirigida a Popper, quese acha na versao inglesa de Logik der Forschung, Einstein declara explicitamente que con-corda com Popper quando se diz que “uma teoria nao pode ser fabricada com os dados daobservacao; ela so pode ser inventada”.

Acresce que a observacao, como tal, nao pode preceder a teoria, como tal, ja que todaobservacao pressupoe uma teoria. Nao reconhece-lo, segundo Popper, e o erro basico datradicao empırica. “A crenca de que a ciencia caminha da observacao para a teoria e tao

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arraigada que minha recusa em aceita-la e muitas vezes recebida com incredulidade · · ·Mas a crenca de que e possıvel principiar com observacoes puras, sem que elas se facamacompanhar por algo que tenha a natureza de uma teoria, e uma crenca absurda. Issopode ser ilustrado pela anedota relativa ao cidadao que devotou sua vida a ciencia natural,registrou tudo aquilo que lhe foi possıvel observar e legou sua valiosa colecao de observacoesa Royal Society, para que fosse utilizada como evidencia indutiva · · · Ha vinte e cincoanos passados procurei realcar o mesmo ponto para um grupo de estudantes de fısica, emViena, iniciando uma aula com as seguintes instrucoes: ‘Apanhem um lapis e algumas folhasde papel; observem cuidadosamente e anotem tudo aquilo que tiverem observado.’ Elesme perguntaram, muito naturalmente, o que eu desejava que observassem. E claro que ainstrucao ‘Observem!’ nao tem sentido. A observacao e sempre seletiva. Para que se efetivenecessita de um objeto escolhido, de uma tarefa definida, de um interesse, de um ponto devista, de um problema. A descricao pressupoe a existencia de uma linguagem descritiva, compalavras relativas a propriedades; pressupoe, ainda, similaridades e classificacoes, o que, porseu turno, pressupoe interesses, pontos de vista, problemas.”3 Isto significa que “observacoese, a fortiori enunciados relativos a observacao, sao sempre interpretacoes de fatos observados– interpretacoes a luz de uma teoria”.4

“O problema ‘O que vem antes, a hipotese (H) ou a observacao (O)?’ e um problemaque admite solucao – exatamente como o problema ‘o que vem antes, a galinha (H) ouo ovo (O)?’. A resposta para esta ultima questao seria: ‘Um outro tipo de ovo’; para a

primeira: ‘Um tipo anterior de hipotese’. E bem verdade que qualquer hipotese particularque possamos escolher tera sido precedida por observacoes – as observacoes, por exemplo,que a hipotese devia explicar, ao ser concebida. Entretanto, estas observacoes, por seu turno,adotaram como pressuposto algum sistema de referencia, um sistema de expectativas, umsistema de teorias. Se as observacoes tinham alguma importancia, se geraram a necessidadede explicacoes e originaram, dessa maneira, a invencao de hipoteses, isso se deveu ao fatode que aquelas observacoes nao se acomodavam no seio do antigo sistema teorico, no seiodo antigo horizonte de expectativas. Convem observar que nao existe, aqui, o perigo de umregresso infinito. Retornando a teorias mais e mais primitivas e a mitos, nossa caminhadaesbarrara, em ultima instancia, em expectativas inatas.”5

Ha de se notar, neste ponto, que a teoria do conhecimento, elaborada por Popper, mer-gulha em uma teoria da evolucao. A conexao entre esses elementos sera objeto de atencaono capıtulo 4.

3Conjectures and Refutations, pg. 46.4The Logic of Scientific Discovery, pg. 107, nota.5Conjectures and Refutations, pg. 47.

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CAPıTULO 3

O CRITERIO DE DEMARCACAO ENTRE O QUE E CIENCIAE O QUE NAO E CIENCIA

Nos termos do que denominei concepcao tradicional, aquilo que distingue a ciencia danao-ciencia e a utilizacao do metodo indutivo. Contudo, se nao existe inducao, nao podeser aquele o criterio de demarcacao. Qual sera? Uma forma de chegar a resposta quePopper oferece para esse problema e aprofundar o contraste com a concepcao que ele procurasubstituir.

Segundo a concepcao tradicional, concepcao indutivista, os cientistas buscam, acerca domundo, enunciados que encerrem o maximo grau de probabilidade, em termos da evidenciadisponıvel. Popper contradiz essa posicao. Qualquer tolo, assinala ele, pode oferecer enormenumero de previsoes que tenham probabilidade quase igual a 1 – proposicoes a semelhancade “Chovera”, que traduzem uma ocorrencia praticamente inevitavel e que jamais podemser demonstradas falsas; jamais, porque, embora se passem milhoes de anos sem cair umagota de agua, continua verdadeira a afirmativa de que, um dia, podera chover. A proba-bilidade encerrada por enunciados dessa especie e maxima porque o conteudo informativoneles presente e mınimo. Com efeito, ha enunciados verdadeiros cuja probabilidade e iguala um e cujo conteudo informativo e nulo, a saber, as tautologias, que nada nos dizem acercado mundo, porque sempre se mostram necessariamente verdadeiras, independentemente decomo sejam as coisas.

Se, no exemplo acima, tornarmos o enunciado falseavel, restringindo-o a um lapso finitode tempo – “Chovera no ano proximo” – ele continuara virtualmente verdadeiro, emborapossa vir a ser demonstrado falso. De qualquer maneira, continuara sendo de pequena valia.Se acrescentarmos algo mais, fazendo com que o enunciado se refira a uma particular area– “Chovera na Inglaterra no proximo ano” – estaremos, por fim, comecando a dizer algo,pois ha numerosos lugares da superfıcie da Terra em que nao chovera no proximo ano. Pelaprimeira vez, alguma informacao util e veiculada. E quanto mais especıfico tornarmos nossoenunciado, – podemos restringi-lo para dizer “Chovera na Inglaterra, na semana proxima”e passar a “Chovera em, Londres, na semana proxima”, e assim por diante – mais provavelsera que ele se mostre erroneo mas ao mesmo tempo, mais informativo e, se verdadeiro, maisutil ele sera – ate que cheguemos a enunciados como “Chovera hoje a tarde na area centralde Londres”, que podem estar muito longe do obvio (as doze horas de um dia sem nuvens)e que sao de real utilidade pratica.

Estamos, portanto, interessados em enunciados que encerrem alto conteudo informativo,consistindo esse conteudo de todas as proposicoes nao tautologicas suscetıveis de seremdele deduzidas. Contudo, quanto maior o conteudo informativo menor a probabilidade,segundo o que nos diz o calculo de probabilidades, pois quanto mais informacao um enunciadocontenha maior o numero de maneiras segundo as quais ele podera mostrar-se falso. Talcomo qualquer tolo podera formular enunciados de alta probabilidade e que praticamentenada digam, assim tambem qualquer tolo podera formular enunciados que encerrem altoconteudo informativo, caso nao se preocupe com o serem eles falsos. O que desejamos saoenunciados de alto conteudo informativo e, consequentemente, de baixa probabilidade, osquais, nao obstante, se aproximem da verdade. Sao precisamente esses os enunciados pelosquais se interessam os cientistas. O fato de esses enunciados serem altamente falseaveistorna-os tambem altamente suscetıveis de serem submetidos a teste: o conteudo informativo

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que esta em proporcao inversa a probabilidade, esta em proporcao direta a possibilidade deteste. O enunciado verdadeiro com o mais alto conteudo informativo possıvel corresponderaa completa, especıfica e precisa descricao do mundo e toda observacao ou experiencia possıvelconstituiria, para essa descricao, um teste ou uma potencial falsificacao. A probabilidade deser verdadeiro aquele enunciado de alto grau de conteudo informativo seria muito proximade zero – pois e muito elevado o numero de modos de os fatos se arranjarem diferentemente.“A ciencia nao desvela truısmos. Ao contrario, faz parte da grandeza e da beleza da cienciao fato de podermos aprender, atraves de investigacoes conduzidas com espırito crıtico, que omundo e inteiramente diverso daquilo que chegamos a imaginar – ate que a nossa imaginacaoseja estimulada pela refutacao de teorias anteriores”.1

Um sentimento de respeitoso temor pela ciencia e pelo mundo que ela desvenda podeser encontrado nos escritos polıticos de Popper. Em The Poverty of Historicism (pg. 56),ele afirma: “A ciencia ganha significancia como uma das maiores aventuras espirituais queo homem conheceu.” O sentimento parece ter um fundo religioso, embora Popper nao sejao que comumente se entende por pessoa religiosa. Com efeito, ponto basico da maioriadas religioes e o de que existe uma realidade de ordem peculiar por tras do mundo dasaparencias, isto e, o mundo comum do bom senso e da observacao e da experiencia humanaordinaria – realidade que, afinal, sustenta esse mundo e o poe diante de nossos sentidos. Ora,e precisamente uma realidade desse genero que a ciencia revela, um mundo de entidades naoobservaveis, de forcas invisıveis, de celulas, de partıculas e de ondas que se interpenetram,organizam e estruturam para atingir um nıvel mais profundo do que os nıveis a que somoscapazes de chegar em condicoes normais. O homem, presumivelmente, sempre contemplou asflores e se comoveu diante de seu perfume e de sua beleza. Sem embargo, foi somente a partirdo ultimo seculo que se tornou possıvel ter nas maos uma flor e saber que o objeto preso entreos dedos e uma complexa associacao de compostos organicos contendo carbono, hidrogenio,oxigenio, nitrogenio, fosforo, enxofre, calcio, ferro, sodio, magnesio, potassio, cloro e variosoutros elementos, em uma complexa estrutura celular que se desenvolveu a partir de umacelula unica; e saber alguma coisa da estrutura interna de tais celulas e dos processos quepermitiram sua evolucao e saber dos processos geneticos que conduziram a esta flor e queproduzirao outras flores; conhecer em pormenores de que modo a luz se reflete na flor e atingea retina; conhecer os pormenores de funcionamento do sistema visual e do sistema olfativoe do sistema neurofisiologico – sistemas que capacitam o homem a tocar na flor e sentir seuperfume e contempla-la. Essas realidades quase incrıveis que se encontram ao nosso redor edentro de nos sao descobertas recentes, que ainda estao sendo exploradas, enquanto novasdescobertas similares continuam a ser feitas. Descortina-se diante de nos um panorama semfim de novas possibilidades, que se projetam para o futuro e que ficavam para alem dossonhos mais atrevidos que o homem podia conceber ate quase os nossos dias. A permanentee vıvida sensacao da verdade de tudo isso e o fato de que cada nova descoberta nos traz umaserie de problemas insuspeitados sao notas que caracterizam a metodologia teorica defendidapor Popper. Ele compreende que a nossa ignorancia cresce com o nosso saber e que, porconseguinte, o numero de questoes sera sempre maior do que o numero de respostas. Ele sabeque a verdade interessante consiste de proposicoes extremamente improvaveis, que so podemser fruto de imaginacao ousada. Sabe que tais hipoteses temerarias sao usualmente erronease nao devem ser aceitas, nem mesmo em carater provisorio, sem que se haja realizado umatentativa seria de constatar em que pontos podem estar erradas. Popper tambem sabe,todavia, que se admitirmos a hipotese mais plausıvel, toda vez que esbarramos com umadificuldade, essa hipotese sera a explicacao ad hoc que menos se afasta da evidencia disponıvele que, portanto, menos longe nos conduz. Teorizacao destemida (conquanto nos leve mais

1The Logic of Scientific Discovery, pg. 431.

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longe, quando correta) e mais facil de mostrar-se erronea. Isso, porem, nao deve ser causade temores. “A concepcao errada da ciencia trai-se no seu anseio pela certeza”.2

Compreender que a situacao pode ser como foi descrita gera uma sensacao de libertacaono pesquisador – que foi magnificamente descrita por Sir John Eccles. “A crenca erroneade que a ciencia conduz, em ultima instancia, a certeza das explicacoes definitivas traz con-sigo a ideia de que e grave delito a divulgacao de alguma hipotese que pode vir a ser falsa.Consequentemente, os cientistas relutaram muitas vezes em admitir a refutacao de umahipotese, gastando suas vidas na tentativa de defenderem o que nao pode ter defesa. Toda-via, segundo Popper, o falseamento total ou parcial e o destino que podemos antecipar paratodas as hipoteses; deverıamos, inclusive, alegrar-nos com o falseamento de uma hipoteseque acalentamos como um filho intelectual. Dessa forma, livramo-nos de temores e remorso,tornando-se a ciencia uma aventura excitante em que a imaginacao e a intuicao conduzem adesenvolvimentos conceituais que transcendem, em generalidade e alcance, a evidencia expe-rimental. A concretizacao dessas visoes imaginativas em hipoteses abre caminho para o maisrigoroso teste experimental, antecipando-se sempre que a hipotese possa ser contestada, paraser substituıda total ou parcialmente por uma outra hipotese de maior poder explicativo”.3

Dessa maneira sentem-se libertados nao apenas os cientistas, mas todos nos, em nossasatividades, gracas as nocoes de que podemos aperfeicoar nossos procedimentos, identificandoo que pode ser melhorado e melhorando-o. Consequentemente, as falhas devem ser ativa-mente procuradas e nao ocultadas ou contornadas. O comentario crıtico de terceiros, longede causar ressentimento, deve ser olhado como auxılio valiosıssimo e bem-vindo, pois exerce,em notavel grau, papel liberador. Talvez seja difıcil conseguir que as pessoas – condicionadasa receberem de mau grado as crıticas e esperando que as crıticas sejam por outros mal rece-bidas e tendendo, portanto, a manter silencio acerca dos proprios erros e dos erros alheios –formulem as crıticas de que o aperfeicoamento depende; nao obstante, pessoa alguma podeprestar-nos maior servico do que mostrando o que e erroneo na forma de pensarmos ouagirmos. Quanto maior a falha, maior o aperfeicoamento que sua exposicao torna possıvel.O homem que acolhe a crıtica e age em funcao dela a prezara a ponto de coloca-la acimada amizade; o homem que repele a crıtica, preocupado em manter a propria posicao, estafadado a estagnar. Algo que, em nossa sociedade, lembrasse ampla alteracao, no sentido deacolhimento das atitudes popperianas em face da crıtica, representaria uma revolucao nasrelacoes sociais e interpessoais – para nao falar das praticas ela organizacao da sociedade,ponto a que aludiremos adiante.

Tornemos, entretanto, ao cientista. A pesquisa orientada pela crıtica a que ele se entrega,em busca de teorias mais e mais aperfeicoadas exige muito de qualquer teoria que ele seproponha a sustentar. Uma teoria deve, antes de tudo, propiciar solucao para um problemaque nos interesse. Contudo, deve, ainda, mostrar-se compatıvel com todas as observacoesfeitas e incluir como primeiras aproximacoes, as teorias anteriores – embora deva, ao mesmotempo, contradita-las em pontos onde se mostraram falhas e explicar a razao dessas falhas.(Aqui, incidentalmente, esta a explicacao da continuidade da ciencia.) Se, diante de umadeterminada situacao-problema for adiantada mais de uma teoria que preencha todos osrequisitos mencionados deveremos optar por uma delas. O fato de que sejam diferentessignifica que pelo menos de uma delas sera viavel deduzir proposicoes possıveis de testee nao deduzıveis de uma outra das teorias; e isso permite que a opcao se faca com baseempırica. Caso haja igualdade sob todos os demais aspectos, nossa preferencia sempre seinclinara, apos os testes, pela teoria que apresente maior conteudo informativo, tanto porquefoi melhor ensaiada como porque nos diz mais: a teoria foi melhor corroborada e e mais util.“Por grau de corroboracao de uma teoria pretendo significar um relato conciso que avalie oestado (num determinado tempo t) em que se encontra o debate crıtico acerca da teoria, no

2The Logic of Scientific Discovery, pg. 281.3J. C. Eccles: Facing Reality, pg. 107.

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que respeita a sua maneira de resolver os problemas, a seu grau de suscetibilidade a testes, aseveridade dos testes a que foi submetida e a maneira como se comportou diante desses testes.A corroboracao (ou grau de corroboracao) e, assim, um relato avaliador de desempenhopassado. Analogamente a preferencia, tem carater essencialmente comparativo: em geral, sose pode dizer que a teoria A tem grau maior (ou menor) de corroboracao que a teoria rival B)a luz da discussao crıtica que inclui a realizacao de testes, ate determinado tempo t.”4 Dessamaneira, a determinado tempo, entre teorias rivais, os melhores resultados sao os produzidospela teoria melhor corroborada e de mais alto conteudo informativo; consequentemente, eou deve ser ela a prevalecente.

Acentue-se o ponto de que, em determinado tempo, a maioria esmagadora dos cientistasnao se encontra empenhada em derrubar a ortodoxia dominante, mas, ao contrario, trabalhaalegremente dentro de suas linhas. Nao estao os cientistas inovando e raramente tem deescolher entre teorias conflitantes: o que fazem, de modo geral, e colocar em acao ns teoriasaceitas. Isso e o que veio a ser conhecido como “ciencia normal”, com base no uso de umafrase de Thomas S. Kuhn, em The Structure of Scientific Revolutions (2a. ed., 1970). A

observacao e valida, segundo penso, mas nao se levanta contra Popper. E verdade que osescritos de Popper sao, de alguma forma, exclusivistas nas referencias que fazem aos grandesgenios inovadores da ciencia, a cujas atividades suas teorias mais diretamente se ajustam. Ee tambem verdadeiro que a maioria dos cientistas aceita, para resolver problemas em nıvelinferior, teorias que apenas uns poucos, entre seus colegas, estao contestando. Contudo,a esse nıvel inferior, suas atividades se expoem a analise popperiana, que e, em essencia,uma logica da solucao de problemas. Popper sempre se mostrou preocupado, antes de tudo,com a descoberta e a inovacao e, por conseguinte, com o teste de teorias e com a expansaodo conhecimento; Kuhn preocupa-se com a maneira como os que aplicam essas teorias eesse conhecimento orientam seu trabalho. Popper sempre se mostrou cauteloso no acentuara distincao, ja feita neste livro, entre a logica das atividades cientıficas e sua psicologia,sociologia e assim por diante; a teoria de Kuhn e, em verdade, uma teoria sociologica acercadas atividades do cientista em nossa sociedade. Essa teoria nao e incompatıvel com asideias de Popper e, mais ainda, Kuhn modificou-a sensivelmente na direcao do pensamentopopperiano, desde que, pela primeira vez, a apresentou. Aos leitores que desejem aprofundaresse ponto podemos lembrar o simposio Criticism and the Growth of Knowledge.5

O fato de estarmos nos referindo agora as utilizacoes dadas as teorias leva-nos a indagacaoacerca de seu conteudo-verdade, sendo essa a expressao que Popper usa para denominar aclasse de enunciados verdadeiros que decorrem de uma teoria. Importante e nos darmos contade que todos os enunciados empıricos, inclusive os falsos, encerram um conteudo-verdade.Suponhamos, por exemplo, que hoje seja segunda-feira. Nesse caso, o enunciado “Hoje eterca-feira” sera falso. Contudo, desse falso enunciado decorre que “Hoje nao e quarta-feira”,“Hoje nao e quinta-feira” e muitos outros enunciados que sao verdadeiros. E verdadeiro, comefeito, um indefinido numero de outros enunciados que decorrem daquele falso enunciado;por exemplo, “O nome frances desse dia da semana contem cinco letras” ou “Hoje nao edia de um so perıodo de trabalho em Oxford”. Todo enunciado falso tem indefinido numerode consequencias verdadeiras – razao porque, num argumento, contestar as premissas dooponente nao leva a refutar-lhe as conclusoes. E, ponto que mais nos importa, e a razaoporque uma teoria cientıfica nao verdadeira pode conduzir-nos a numerosıssimas conclusoesverdadeiras – em maior numero, talvez, do que qualquer das teorias anteriores – e mostrar-se,portanto, de alta valia e utilidade. Naturalmente, a maior porcao do conteudo-verdade dequalquer teoria sera trivial ou sera irrelevante para os propositos que tenhamos em vista; oque, obviamente, objetivamos e o conteudo-verdade que se mostre relevante ou util. Aindaassim, esse tipo de conteudo-verdade podera decorrer em maior escala de um enunciado

4Objective Knowledge, pg. 18.5Ed. Lakatos e Musgrave, Cambridge University Press, 1970.

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falso do que de um enunciado verdadeiro. Suponhamos que agora falte um minuto parao meio dia; assim sendo, o enunciado “E meio dia em ponto” e falso. Contudo, para amaioria dos propositos que se possa imaginar, esse enunciado falso tem conteudo-verdademais relevante e util do que o enunciado verdadeiro “Estamos entre as 10 da manha e as 4da tarde”. Analogamente, em ciencia — para a maioria dos objetivos, um enunciado diretoque pouco se desvia da verdade tem maior utilidade do que outro que, sendo verdadeiro, evago. Nao estou, naturalmente, sugerindo que devamos contentar-nos com enunciados falsos.Nao obstante, os cientistas veem-se comumente compelidos a utilizar uma teoria que sabemerronea porque ate o momento nao surgiu teoria melhor.

Tal como antes acentuei, Popper recomenda que formulemos as teorias de maneira taoclara quanto possıvel, de modo a expo-las, sem ambiguidades, a refutacao. E, ao nıvelmetodologico, nao devemos, diz ele, fugir sistematicamente a refutacao, atraves de umareformulacao contınua da teoria ou da evidencia, com o objetivo de mante-las concordes. Issoe o que fazem muitos marxistas e muitos psicanalistas. Assim, estao substituindo a cienciapelo dogmatismo, enquanto proclamam proceder cientificamente. Uma teoria cientıfica naoexplica tudo quanto possa ocorrer: ao contrario, afasta muito do que poderia acontecer e,consequentemente, se ve afastada, se ocorre aquilo que ela afastou. Dessa forma, uma teoriagenuinamente cientıfica se coloca permanentemente em risco. E chegamos, assim, a respostaque Popper oferece para a questao proposta ao inıcio deste capıtulo. A refutabilidade e ocriterio de demarcacao entre a ciencia e a nao-ciencia. O ponto central a acentuar e o deque, se todos os possıveis estados de coisas se acomodarem a uma teoria, nao havera estadode coisas ou observacao ou resultado experimental que possa ser oferecido como evidenciaconfirmadora da teoria. Nao havera diferenca observavel entre o ela ser verdadeira e o elaser falsa. Nesses termos, a teoria nao veicula informacao cientıfica. Por outro lado, somentese houver alguma observacao concebıvel capaz de refuta-la, sera a teoria suscetıvel de teste.E somente se for suscetıvel de teste sera cientıfica.

Mencionei o marxismo e a psicanalise ao ocupar-me deste assunto porque foi o exame des-sas, entre outras teorias, que levou o jovem Popper ·a elaborar o seu criterio de demarcacao.Sentiu-se ele intrigado e impressionado pela maneira como a teoria da relatividade, de Eins-tein, parecia expor-se abertamente a refutacao, prevendo efeitos observaveis que ninguemsonharia esperar. A Teoria Geral (e, de passagem, frisemos que o progresso de Einstein, dateoria especial para a geral, e o tema de um livro de Popper ainda incompleto) conduzia aconclusao de que a luz deve ser atraıda por corpos pesados. Einstein percebeu que se issofosse correto, a luz que vem de uma estrela para a Terra, passando proxima ao Sol, deveriadefletir-se, em razao da atracao gravitacional do Sol. Durante o dia, normalmente, nao pode-mos ver essas estrelas devido ao brilho do Sol. Mas, se fosse possıvel ve-las, a deflexao de seusraios luminosos faria parecer que ocupassem posicoes diferentes daquelas que sabemos queocupam. E a diferenca prevista poderia ser determinada fotografando, em tais circunstanciasuma estrela fixa de dia e posteriormente, a noite, na ausencia do Sol. Eddington submeteua teste essa previsao atraves de uma das mais famosas observacoes cientıficas deste seculo.Em 1919, chefiou uma expedicao para certo ponto da Africa, do qual, segundo calculou,um esperado eclipse do Sol tornaria essas estrelas visıveis e, consequentemente, possıveis defotografar durante o dia. As observacoes foram feitas no dia 29 de maio. E corroborarama teoria de Einstein. Outras teorias que se proclamavam cientıficas e dominavam a modaintelectual na Viena em que Popper viveu sua juventude – as teorias de Freud e Adler, porexemplo – nao foram e nao podiam ser aferidas dessa maneira. Nao havia como conceberobservacoes que pudessem contradita-las. Elas explicariam tudo quanto ocorresse (emborade diferentes formas). Popper deu-se conta de que a possibilidade que tinham de explicartudo, possibilidade que tanto impressionava e excitava seus adeptos, era precisamente o quenelas havia de mais errado.

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A unica, outra teoria. que tinha popularidade na epoca, pretensoes cientıficas e exerciatambem grande fascınio, o marxismo, situava-se em posicao diferente. Dele eram deduzıveis,sem duvida, previsoes falseaveis. O problema estava em que numerosas dessas previsoes jase haviam mostrado falsas. Contudo, os marxistas se recusavam a admitir a refutacao ereformulavam incessantemente a teoria (e a evidencia), para afastar a refutacao. Para eles,na pratica, tal como se dava com os psicanalistas na teoria, as ideias tinham a incontestavelcerteza de uma fe religiosa e a insistencia em que revestissem carater cientıfico era emborasincera, improcedente.

Popper nunca duvidou de que o segredo da enorme atracao psicologica exercida por essasvarias teorias residisse no fato de se mostrarem capazes de tudo explicar. Saber antecipada-mente que havera possibilidade de compreender tudo quanto aconteca, concede nao apenasum sentimento de domınio intelectual, mas, o que e mais importante, traz sensacao emotivade segura orientacao no mundo. A aceitacao de uma dessas teorias exercia segundo Popperobservou, “o efeito de uma conversao ou revelacao intelectual, abrindo os olhos para umaverdade nova, oculta aos ainda nao iniciados. Uma vez que os olhos se abrissem dessa forma,veriam em tudo instancias confirmadoras: o mundo estava cheio de verificacoes da teoria.Tudo quanto ocorresse iria sempre confirma-la. Assim, sua verdade mostrava-se manifesta;e os descrentes eram, sem duvida, pessoas que nao queriam ver a verdade manifesta, que serecusavam a enxerga-la, seja porque ela ia contra seus interesses de classe, seja por padece-rem de repressoes ainda ‘nao analisadas’ e clamando por tratamento. · · · Um marxista naopodia abrir um jornal sem descobrir em todas as paginas evidencias confirmadoras da inter-pretacao que emprestava a historia; nao apenas nas notıcias mesmas, porem ainda na formacomo eram apresentadas – e que revelava a tendenciosidade da classe a que se filiava o jornal– e, especialmente, naquilo que o jornal nao dizia. Os analistas freudianos acentuavam quesuas teorias eram constantemente confirmadas por ‘observacoes clınicas’. No que respeitaa Adler, muito me impressionou uma experiencia pessoal. Certa vez, em 1919, relatei-lheum caso que nao me parecia particularmente adleriano, mas que ele analisou facilmente emtermos de sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nunca houvesse visto a criancaa que eu me referia. Ligeiramente chocado, perguntei-lhe como podia ter tanta certeza. ‘Porcausa de minha experiencia de mil angulos’, retrucou Adler; ao que nao pude impedir-me dedizer: e com este novo caso, segundo suponho, sua experiencia adquirira o milesimo primeiroangulo”’6

Popper jamais – e isso nao pode ser exageradamente sublinhado – afastou essas teoriascomo destituıdas de valor e, menos ainda, como absurdas. Desde o comeco, muitas pessoasque o ligavam aos positivistas logicos, supuseram que Popper repelia aquelas teorias e, emconsequencia, entenderam mal o que ele dizia. “Nao quer isso dizer que Freud e Adler dei-xassem de perceber corretamente certas coisas; pessoalmente, nao duvido de que muitas dasafirmativas por eles feitas sejam de importancia consideravel e de que venham a desempenharpapel relevante numa ciencia psicologica suscetıvel de ser submetida a testes. Contudo, naosignifica isso que as ‘observacoes clınicas’ que os analistas ingenuamente acreditam confirmara teoria possam faze-lo em nıvel mais alto do que as confirmacoes diarias que os astrologosencontram nas atividades a que se dedicam.

Quanto a Freud e sua grandiosa concepcao de ego, id e superego, nao pode ela invocarstatus cientıfico substancialmente mais fundamentado que o das estorias que Homero coligiudo Olimpo. Essas teorias descrevem alguns fatos, mas a maneira de mitos. Encerramsugestoes psicologicas interessantıssimas, sem as apresentarem sob forma suscetıvel de teste.

“Ao mesmo tempo, dei-me conta de que esses mitos podem ser desenvolvidos para setornarem suscetıveis de teste; que, falando de um ponto de vista historico, todas – ou quasetodas – as teorias cientıficas se originam de mitos e que um mito pode incluir importantesantecipacoes de teorias cientıficas. Sao exemplos a teoria da evolucao por tentativa e erro,

6Conjectures and Refutations, pp. 34-35.

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devida a Empedocles ou o mito do universo uno e imutavel de Parmenides no qual nadajamais acontece e o qual, se lhe acrescentarmos uma nova dimensao, se transforma no universouno de Einstein (no qual, tambem, nada jamais acontece, pois tudo esta, falando de um pontode vista da quarta dimensao, determinado e estabelecido desde o princıpio). Pareceu-me,assim, que se uma teoria e considerada nao cientıfica ou ‘metafısica’ (tal como se poderiadizer), nem por isso deve ser tida como privada de importancia, insignificante, ‘sem sentido’ou ‘absurda’. Nao obstante, e improcedente que essa teoria proclame estar sustentada porevidencia empırica, no sentido cientıfico – embora possa facilmente ocorrer que, em algumsentido genetico, seja ela resultado de observacao’7

A primeira interpretacao erronea dada a obra de Popper, propagada amplamente e aindahoje objeto de divulgacao, consistiu em ve-la como propositora da falseabilidade como criteriode demarcacao nao, como ela pretendia ser, entre a ciencia e a nao-ciencia, mas entre o sig-nificativo e o destituıdo de significado. A partir daı (e porque os proprios maus interpretesacreditassem que o nao cientıfico era destituıdo de sentido), insistiram os crıticos em res-ponder ao protesto de Popper dizendo que, afinal, tudo resultava no mesmo. Com efeito,os positivistas logicos, determinados a afastar o palavreado metafısico de que se impregnaraa filosofia, tinham como preocupacao central a de encontrar um princıpio de demarcacaoentre enunciados que realmente dissessem algo e enunciados que nada encerrassem. Con-cluıram que as proposicoes significativas se distribuıam por duas classes. Havia enunciadosem logica e matematica, nao orientados pelo objetivo de propiciar informacao acerca domundo empırico, os quais, consequentemente, poderiam ser considerados verdadeiros ou fal-sos sem se verem referidos a experiencia – os verdadeiros eram tautologias e os falsos eramcontradicoes. A par deles, havia enunciados que pretendiam transmitir informacao acercado mundo empırico, enunciados cuja verdade ou falsidade deve deixar patente alguma di-ferenca observavel, podendo, assim, ser colocados numa ou noutra categoria, por forca daobservacao. Todo enunciado que nao fosse proposicao formal de matematica ou logica (oque Bertrand Russell havia procurado mostrar constituırem a mesma coisa) e que nao fosse,ainda, suscetıvel de verificacao empırica, haveria de ser despido de significado. A possibi-lidade de verificacao era, portanto, considerada o criterio de demarcacao entre enunciadossignificativos e nao significativos, acerca do mundo.

Popper, desde o inıcio, contestou essa posicao, por motivos varios. Em primeiro lu-gar, fossem ou nao fossem verificaveis empiricamente os enunciados singulares, a verdadee que nao o eram enunciados universais como as leis cientıficas e assim, o princıpio da ve-rificacao eliminava nao apenas a metafısica, mas todo o edifıcio da ciencia natural. Emsegundo lugar, o princıpio da verificacao afirmava ser destituıda de significado toda a me-tafısica e, nao obstante, historicamente, foi da metafısica – de concepcoes mıticas, religiosas,penetradas de supersticao – que brotou a ciencia. Uma ideia que em determinada epocae insuscetıvel de teste, revestindo, portanto, carater metafısico, pode, com a transformacaodas circunstancias, tornar-se passıvel de teste e, consequentemente, pode tornar-se cientıfica.“Exemplos de ideias tais sao o atomismo; a ideia de um ‘princıpio fısico’ unico ou ,elementoultimo (do qual derivam os demais); a teoria do movimento da Terra (a que Bacon se opos,dando-o como fictıcio); a antiga teoria corpuscular da luz; a teoria da eletricidade como umfluido (rediviva como hipotese do eletron-gas aplicavel a condutibilidade dos metais).”8 Naoocorre apenas que uma teoria metafısica possa ser significativa; podera ser efetivamente ver-dadeira. Contudo, se nao dispusermos de meios para submete-la a testes, nao havera para elaevidencia empırica e, portanto, nao havera como proclama-la cientıfica. Teorias insuscetıveisde serem empiricamente submetidas a teste podem, nao obstante, constituir-se em objeto dediscussao crıtica, tendo comparados os argumentos pro e contra e daı resultando que umadelas seja preferıvel a outra. Assim, longe de ver a metafısica em termos de absurdo, Popper

7Conjectures and Refutations, pp. 37-37.8The Logic of Scientific Discovery, pg. 278.

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sempre afirmou ter crencas metafısicas acerca, por exemplo, da existencia de regularidadesno campo da natureza. Terceiro e devastador ataque por ele dirigido contra os positivistaslogicos consistiu em afirmar que, se tao-somente as assercoes suscetıveis de verificacao e astautologicas sao significativas, entao todo debate acerca do conceito de ‘significado’ conteraenunciados destituıdos de significado.

A prolongada incapacidade revelada pelos positivistas logicos de responderem a argu-mentos como os referidos levou a decadencia o positivismo logico. Entretanto, de inıcio,e por um longo prazo, os positivistas interpretaram mal Popper, porque o entendiam nostermos em que eles proprios se colocavam. Em virtude de Popper discutir topicos de cen-tral importancia para eles, consideraram-no um filosofo de orientacao semelhante; e comotinham por objetivo principal definir um criterio de demarcacao entre o significativo e o naosignificativo, e estivessem dando-se conta, cada vez mais, da forca de alguns dos argumentosdirigidos contra o padrao da verificabilidade, os positivistas logicos acreditaram que Pop-per estivesse engenhosamente substituindo aquele padrao pelo da falseabilidade. Muitos dosargumentos que contra Popper dirigem tem como apoio essa falsa presuncao. Tal como jaanteriormente acentuei, em razao da obsessao pelo significado e devido a concepcao intran-sigente de que as teorias nao cientıficas sao desprovidas de significado, os positivistas logicosresponderam a asseveracao de Popper, segundo a qual ele estava propondo algo totalmentediverso, afirmando que, em realidade, no fim, as posicoes convergiam para o mesmo ponto.A verdade e que Popper jamais foi um positivista de qualquer matiz; ao contrario, foi umantipositivista decidido, o homem que desde o princıpio adiantou os argumentos que pro-duziram (depois de um tempo excessivamente longo) o esfacelamento do positivismo logico.O fato de Popper abordar os problemas de maneira inteiramente diversa da adotada pelospositivistas logicos pode ser ilustrado pelo mais simples dos exemplos: estes teriam dito que“Deus existe” nao passa de ruıdo destituıdo de significado, de algo vazio; Popper teria ditoque e um enunciado no qual esta presente significado e que poderia ser verdadeiro, nao sendoum enunciado cientıfico por nao haver maneira concebıvel de mostra-lo falso.

Ocorria que Popper nao estava apenas deixando de propor um criterio de apreciacaode significado; em verdade, ele sempre sustentou que pretender isso constituiria grave errofilosofico. Acreditava ainda que a discussao continuada acerca do significado das palavrasnao e apenas entediante, mas prejudicial. Pode-se demonstrar, assevera Popper, que anocao segundo a qual importa definir os termos antes de iniciar uma discussao proveitosa eincoerente, pois, toda vez que um termo e definido, torna-se necessaria a introducao de novostermos na definicao (de outra forma, a definicao se tornaria viciosa) e necessaria a definicaodesses novos termos. Assim, nunca poderıamos chegar efetivamente a discussao, pois nuncaestariam completas as tarefas preliminares necessarias. A discussao tem, portanto, de fazeruso de termos nao definidos. De modo analogo, e possıvel demonstrar ser erronea a nocaode que o conhecimento rigoroso exige definicoes rigorosas. Os fısicos nao tem o habito dediscutir em torno do significado de termos como “energia”, “luz” e de outros que se aplicama conceitos por eles empregados. Analise e definicao precisas de tais termos apresentariamdificuldades infindaveis e os fısicos nao se preocupam com discutir a maioria deles. Contudo,o conhecimento mais preciso e mais amplo de que dispomos e o das ciencias fısicas. Outroponto a assinalar, no que diz respeito a definicoes aceitaveis em ciencia, e o de que elas, comoPopper diz, devem ser lidas da direita para a esquerda e nao da esquerda para a direita,para que a leitura seja adequada. A sentenca “Um di-neutron e um sistema que abrangedois neutrons” e a resposta do cientista para a pergunta “Como deveremos denominar umsistema instavel que abrange dois neutrons?” e nao uma resposta para a pergunta “Que eum di-neutron?”. A expressao “di-neutron” e o substituto comodo de uma longa descricao– e nada mais. Analisando-a, nao se colhe informacao alguma a proposito da fısica. Semessa expressao, a fısica permanece exatamente a mesma – apenas a comunicacao se tornariaum pouco mais difıcil. “A ideia de que a precisao da ciencia e a da linguagem cientıfica

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dependem da precisao dos termos empregados e certamente muito plausıvel, mas nao passa,creio eu, de mero preconceito. A precisao de uma linguagem depende antes e tao-somente dofato de ela acautelar-se para nao sobrecarregar os termos de que se vale com o onus de seremprecisos. Uma expressao como “duna-areia”, ou “vento”, e, por certo, muito vaga. (Quantoscentımetros de altura deve ter um monte de areia para merecer o nome de duna-de-areia?Com que velocidade deve o ar mover-se para merecer o nome de vento?) Sem embargo, paramuitos dos propositos que os geologos possam ter em vista, esses termos sao suficientementeprecisos; e, para outros propositos, que requeiram grau maior de diferenciacao, sempre sepode dizer “dunas entre um metro e dez metros de altura”, ou “vento com uma velocidadesentre 20 e 40 quilometros por hora”. A situacao, no que concerne as ciencias exatas, eanaloga. No que respeita a medidas fısicas, por exemplo, sempre tomamos cuidado paraestabelecer a amplitude dentro da qual pode ocorrer um erro; e a precisao nao consiste emtentar reduzir essa amplitude a nada ou em pretender que nao exista essa margem de erro,mas antes em reconhece-la explicitamente”.9

Se alguem desejasse assumir uma atitude provocante, poderia asseverar que a quantidadede conhecimento util que emerge de qualquer campo de investigacao (exceto, naturalmente,o dos estudos linguısticos), tende a estar em proporcao inversa para com a quantidade dediscussao em torno de significados de palavras que, neste mesmo campo, ocorrem. Discussaodesse tipo, longe de se fazer necessaria para esclarecer o pensamento e tornar preciso oconhecimento, obscurece um e outro e tende a conduzir a controversias interminaveis aproposito de palavras, em vez de fazer com que as controversias girem em torno de questoesde substancia. A linguagem e um instrumento e importante e o que se faz com ela – no casoque nos ocupa, seu uso para formular e discutir teorias a proposito do mundo. Um filosofoque devota a vida a preocupacao com o instrumento lembra um carpinteiro que devota todasas suas horas de trabalho ao afiar as ferramentas, nunca chegando a usa-las, a nao ser umacontra a outra. Os filosofos, como todos, tem o dever de falar de maneira clara e direta; mas,a semelhanca dos fısicos, devem executar o trabalho que lhes cabe de forma tal que nadaque se revista de importancia dependa do modo como utilizem as palavras.

A partir desse ponto de vista, Popper, coerentemente, contestou ambas as filosofias pro-postas por Wittgenstein – o positivismo logico que emergiu do atomismo logico e dominouuma geracao e a analise linguıstica, pela qual foi dominada a geracao seguinte. “Os analistasda linguagem acreditam que nao ha problemas filosoficos genuınos ou que os problemas defilosofia, se e que existem, sao problemas relativos ao uso da linguagem ou concernentes aosignificado das palavras. De minha parte, porem, acredito que ha pelo menos um problemafilosofico pelo qual todos os homens de pensamento hao de estar interessados. E o pro-blema da cosmologia: o problema da compreensao do mundo – no qual estamos incluıdosnos proprios e nosso conhecimento, como parte do mundo. Toda ciencia e cosmologia, se-gundo creio, e, para mim, o interesse da filosofia, nao menos que o da ciencia, se resume nascontribuicoes que podem oferecer para esclarece-lo”.10

Muitas distincoes dicotomicas surgiram ao longo da historia da filosofia (e. g., nomina-lismo/realismo; empirismo/transcendentalismo; materialismo/idealismo) e nenhuma delasdeve ser tomada em termos demasiado estritos: o que pode faze-las particularmente deso-rientadoras e o fato de que, seja qual for a dicotomia aplicada, muita coisa geralmente seacumula na linha de fronteira. Contudo, um dos dualismos que esta presente ao longo damaior parte da historia da disciplina e aquele que distingue entre uma concepcao de filosofiaque a encara como tentativa de compreender o uso que fazemos dos conceitos e uma concepcaode filosofia que a ve como tentativa de compreensao do mundo. E obviamente impossıvelchegar a compreensao do mundo sem a utilizacao de conceitos e, consequentemente, adeptosde ambas as posicoes admitirao, geralmente, e com alguma procedencia, estarem levando a

9The Open Society and Its Enemies, vol. ii, pp. 19-20.10Prefacio para a edicao de 1959 da Logic of Scientific Discovery.

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cabo as duas tentativas. Todavia, a diferenca de enfase e, com frequencia, acentuadıssima.E o que se deu com a famosa distincao que, na Idade Media, se tracou entre nominalistas erealistas. Os realistas (termo que para nos tem hoje um significado equıvoco) filiavam-se aprimeira corrente acima referida (“os conceitos sao entidades reais em si mesmas e precedemos particulares: estes ultimos derivam dos primeiros e deles dependem”). Os nominalistaspertenciam a segunda corrente (“os conceitos operam como nomes para as coisas, que sao,portanto, anteriores: os rotulos podem ser alterados sem alteracao da realidade”). Durantea maior parte do seculo atual, a filosofia desenvolvida no mundo de fala inglesa inclinou-sefortemente no sentido da elucidacao dos conceitos. Popper e, decididamente, um filosofo daoutra especie (embora ele seja um realista, no sentido moderno da palavra, no sentido deacreditar que um mundo material existe independente da experiencia).

Nas primeiras paginas de My Philosophical Development, Bertrand Russell nos diz como,ate aquela data, 1917, – quando ele tinha 45 anos e havia elaborado quase toda a obrafilosofica em razao da qual e hoje famoso – ele “havia considerado a linguagem como trans-parente, equivalendo isso a dizer que a entendia como um meio capaz de ser utilizado maisou menos despreocupadamente”. Wittgenstein, de outra parte, sofreu durante toda a vidaa obsessao da linguagem e, em particular, a obsessao do significado. Seu primeiro livro,Tractatus Logico-philosoficus, publicado em 1921, foi o texto que maior influencia exerceusobre o Cırculo de Viena. Wittgenstein veio, posteriormente, a repudiar aquela obra e a re-pudia-la precisamente porque nela se incorporava uma falsa teoria do significado. Propos-se,consequentemente, a investigar as diferentes especies de caminhos pelos quais podemos nosperder, em razao do uso que facamos da linguagem; ele proprio, em verdade, se havia per-dido e aquela investigacao alimentou uma nova escola de filosofia, habitualmente denominada“Analise linguıstica”. A principal obra de Wittgenstein, ao longo das novas linhas, Philo-sophical Investigations, publicada postumamente, em 1953, provavelmente exerceu sobre afilosofia inglesa, posterior a Segunda Guerra Mundial influencia maior que a de qualqueroutro livro. (O livro que se colocou imediatamente apos, The concept of mind, de GilbertRyle, foi profundamente influenciado pelo Wittgenstein de sua segunda fase.)

Em seu My Philosophical Development, Russell escreveu: “A partir do perıodo inici-ado em 1914, tres orientacoes dominaram sucessivamente o mundo filosofico britanico: emprimeiro lugar a filosofia de Wittgenstein, exposta no Tractatus ; depois, a filosofia dos posi-tivistas logicos; e, em terceiro lugar, a filosofia exposta por Wittgenstein nas Investigations.Dentre elas, a primeira teve consideravel influencia sobre meu proprio pensamento, emboraeu agora julgue que essa influencia nao foi inteiramente boa. A segunda escola, a dos po-sitivistas logicos, contava, de modo geral, com minha simpatia, embora eu discordasse dealgumas de suas doutrinas mais caracterısticas. A terceira escola, que, por comodidade,chamarei W II, para distingui-la da doutrina do Tractatus, que denominarei W I, continuaa ser, a meus olhos, inteiramente ininteligıvel. Seus pontos positivos parecem-me triviais;e os pontos negativos, infundados. Nao descobri, nas Investigations, de Wittgenstein, coisaalguma que me parecesse interessante e nao chego a compreender como toda uma escoladescubra sabedoria naquelas paginas.” Russell afastou-se cada vez mais de seus colegas,na medida em que envelhecia. Ainda em My Philosophical Development, deixou registrado:“Wittgenstein, por quem fui superado, na opiniao de muitos filosofos britanicos· · · nao eexperiencia por qualquer tıtulo agradavel ver-se olhado como ultrapassado, depois de terestado, por algum tempo, na moda. E difıcil de aceitar airosamente esse estado de coisas.”Pelo menos, entretanto, Russell havia construıdo sua grande obra e adquirido grande re-putacao antes de Wittgenstein se tornar conhecido. Popper, que explicitamente partilha damaneira de Russell ver a obra final de Wittgenstein11, nao teve a mesma possibilidade. Suapeculiar desventura, tanto na Austria como na Inglaterra, foi ter vivido a maior parte de sua

11Ver British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 131 e ss.

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vida profissional em lugares e tempos dominados pela figura de Wittgenstein. Esta e a ex-plicacao para a pouca estima, que seria, sob outros prismas, incompreensıvel, a ele devotadapor seus colegas de profissao, especialmente quando posta em contraste com a influenciaexercida sobre outras areas e tantas pessoas altamente qualificadas. Tal como Geoffrey War-nock assinalou: “Os filosofos tendem muito a tomar o assunto no estado em que o encontrame a nadar alegremente a favor da corrente”.12 Sob certo aspecto, porem, a experiencia dePopper surge como oposta a de Russell: numa epoca avancada de sua vida, agora que se tor-nou impossıvel ignorar a falha das filosofias wittgensteinianas no corresponder as esperancasde seus seguidores, comeca ele a projetar-se.

Antes de encerrarmos as referencias a esses mal-entendidos passados e presentes, impor-tara acentuar ainda um ponto. Traco tıpico da hegemonia analıtica, nas decadas recentes,tem sido a genuına crenca dos filosofos no sentido de sustentarem que a filosofia e elucidacaode conceitos e de esquemas conceituais, o que raramente fizeram os grandes filosofos, ti-vessem ou nao consciencia disso. Geracoes de estudantes passaram a dominar modernastecnicas de analise aprendendo a usa-las com relacao aos escritos dos grandes mortos; emuitos livros foram compostos a proposito de gigantes do passado para apresenta-los comofilosofos analıticos. Como disse Alasdair MacIntyre: “Quando os filosofos britanicos escre-vem acerca de historia da filosofia, tratam costumeiramente a figura historica em termostao contemporaneos quanto possıveis, discutindo com ela como com um colega da Aristo-telian Society”.13 Isso tem ocorrido ha tanto tempo que a incompreensao radical, emborasincera, incorporada nessa posicao, espalhou-lhe amplamente, tanto na literatura de nossosdias, como no ensino universitario. Assim, nao se trata de uma injustica especial, feita aPopper, dizer que sua obra nao difere muito da de ilustres contemporaneos seus, ou dizerque o jovem Popper nao se afastava muito dos positivistas logicos. Essa atitude teve muitasvıtimas ilustres, alem de Popper.

12Em British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 88.13Em British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 193.

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CAPıTULO 4

O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCADO MUNDO 3

Segundo a concepcao tradicional, o metodo cientıfico abrangia as seguintes fases, nestaordem, cada qual dando origem a fase seguinte: 1. observacao e experimentacao; 2. genera-lizacao indutiva; 3. hipotese; 4. tentativa de verificacao da hipotese; 5. prova ou contraprova;6. conhecimento. Popper substituiu essa concepcao tradicional por outra: 1. problema (emgeral, conflitos face a expectativas ou teorias existentes); 2. solucao proposta, ou seja, emoutras palavras, nova teoria; 3. deducao, a partir da teoria, de consequencias, na forma deproposicoes passıveis de teste; 4. testes, ou seja, tentativas de refutacao, obtidas, entre outrasmaneiras (mas apenas entre outras maneiras) por meio da observacao e da experimentacao;5. escolha entre teorias rivais.

A pergunta a respeito de como surgiu, na fase 1, a teoria ou a expectativa, cuja falhagerou nosso problema, admite como resposta breve e mais comum: surgiu do estagio 5 de umprocesso anterior. Caminhando para tras, em busca de tais processos anteriores, chegamos acertas expectativas inatas – nao so no homem, como nos animais. “A teoria das ideias inatas eabsurda, segundo imagino; contudo, cada organismo tem certas reacoes, ou respostas inatas;entre elas, respostas adaptadas aos acontecimentos iminentes. Tais respostas podem serdescritas como “expectativas” – sem que haja necessidade de imagina-las conscientes. O beberecem-nascido “espera”, em tal sentido, receber alimento (e ate mesmo, segundo se poderiasustentar, “espera” ser amado e protegido). Em vista da estreita conexao que se manifestaentre expectativa e conhecimento, pode-se falar ate, com boa base, em “conhecimento inato”.Todavia, esse “conhecimento” nao e valido a priori : uma expectativa inata, nao importaquao forte ou especıfica, pode ser erronea. (O bebe recem-nascido pode ser abandonado emorrer de fome.) Nascemos, pois, com certas expectativas; com um “conhecimento” que,embora nao seja valido a priori, e psicologicamente ou geneticamente a priori, isto e, anteriora todas as experiencias observacionais.”1

A teoria do conhecimento defendida por Popper esta, pois, intimamente associada a umateoria da evolucao. A resolucao de problemas e a atividade basica e o problema fundamentale o da sobrevivencia. “Todos os organismos estao, dia e noite, constantemente, empenhadosna resolucao de problemas; e isso acontece com todas as sequencias de organismos, na escalaevolutiva – sub-reino, ou phyla, que principia com as mais rudimentares formas e de que osatuais organismos vivos sao os elementos mais recentes.”2 Nos organismos e animais que seencontram abaixo do nıvel humano, a solucao provisoria dos problemas se revela em formade novas reacoes, novas expectativas, novos modos de comportamento. Tais reacoes, expec-tativas e modos de comportamento, quando persistentemente bem sucedidos, permitindo asuperacao das dificuldades que se antepoem aos organismos, podem provocar a modificacaode orgaos da criatura ou a modificacao de uma de suas formas, incorporando-se (atraves daselecao) a anatomia do organismo. (Um dos motivos que leva Popper a rejeitar a epistemo-logia empirista, insistindo em que todas as observacoes se fazem no seio de uma teoria, estaem que os proprios orgaos dos sentidos – representando, como de fato representam, sofisti-cadas tentativas de adaptacao ao ambiente – incorporam teorias.) A eliminacao dos erros

1Conjectures and Refutations, pg. 47.2Objective Knowledge, pg. 242.

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pode redundar, ou na chamada selecao natural – que e a incapacidade de um organismo so-breviver, face a ausencia de uma transformacao necessaria, ou em virtude de transformacaoinadequada – ou no desenvolvimento, no interior do organismo, de controles que modificamou suprimem transformacoes inadequadas.

Tal como acontece com a teoria de Darwin, a de Popper nao nos oferece uma explicacaopara a origem da vida, relacionando-se apenas ao seu desenvolvimento. Em verdade, Poppersustenta que a origem, seja da vida, seja das teorias, seja das obras de arte, nao e suscetıvelde explanacao racional. Eis o que diz em varias partes de The Poverty of Historicism: “Nomundo que e descrito pela fısica, nada ocorre de verdadeira e intrinsecamente novo. Umanova maquina pode ser inventada, mas ela se analisa em termos de componentes que nadatem de novo. Novidade, na fısica, e simplesmente novidade de arranjos ou combinacoes. Emoposicao direta, a novidade biologica e uma especie intrınseca de novidade · · · O novo naopode ser explicado causalmente ou racionalmente, mas pode apenas ser entendido em termosintuitivos · · · Na medida em que a novidade e passıvel de analise racional e de previsao, eladeixa de ser ‘intrınseca’.” A questao da emergencia, a emergencia do genuinamente novo,preocupa-o bastante e e um dos temas aos quais Popper podera prestar contribuicao deinteresse, no futuro.

No processo biologico de evolucao, encarado como historia da resolucao de problemas,um aspecto e de particular importancia, colocando-se em destaque: o do desenvolvimentoda linguagem. Os animais emitem sons, que admitem funcoes expressiva e sinalizante. Aessas funcoes, que virtualmente sempre comparecem na fala humana, o homem adicionoupelo menos outras duas: as funcoes descritiva e argumentativa (cabendo frisar que algumasformas sofisticadas de comunicacao animal, como a danca das abelhas, por exemplo, jaenfeixam formas rudimentares de mensagens descritivas). A linguagem tornou possıvel –entre tantas outras coisas – a formulacao de descricoes do mundo, abrindo margem para acompreensao. A linguagem se deve o surgimento de conceitos como os de verdade e falsidade.Em outras palavras, a linguagem tornou viavel o desenvolvimento da razao – melhor dizendo,foi parte integrante do desenvolvimento da razao – e permitiu a emergencia do homem noseio do reino animal. (Incidentalmente, o fato de que o homem surgiu do reino animal comosurgiu, passando lentamente por certas fases, significa ter ele vivido em grupos ao longo devastos perıodos; recordando esse fato, deve ser erronea a ideia, muito disseminada, de quetodos os fenomenos sociais podem ser, em ultima analise, explicados em termos de naturezahumana – com efeito, o homem foi um ser social muito antes de se transformar em serhumano.) Segundo Popper, e a linguagem – no sentido de forma estruturada de contato,de comunicacao, de descricao e de argumentacao, por meio de sımbolos – que nos tornahumanos, nao apenas como especie, mas como indivıduos; a aquisicao de uma linguagem eque torna possıvel a consciencia completa do homem, a consciencia do eu. (Em surpreendentenumero de casos, a obra de Popper antecipa as ideias de Chomsky.)

As primeiras descricoes do mundo parecem ter sido animistas, magicas, cheias de ele-mentos vindos da supersticao. Por em duvida essas descricoes ou qualquer outro fator queassegurava a coesao da tribo era tabu – e podia acarretar a morte dos dissidentes. O homemprimitivo veio ao mundo, portanto, dominado pelas abstracoes – relacoes de parentesco, for-mas de organizacao social, formas de governo, leis, costumes, convencoes, tradicoes, aliancase antipatias, rituais, religioes, mitos, supersticoes, linguagens – abstracoes feitas pelo homem,mas nao pelo indivıduo particular, que se via impossibilitado de modifica-las ou mesmo decoloca-las em questao. As abstracoes punham-se, pois, diante de cada homem, como umaespecie de realidade objetiva que o dominava desde seu nascimento, tornando-o humano,determinando – de maneira quase autonoma – todos os aspectos de sua vida. Ao ver dePopper, a maioria dessas condicoes nunca foi planejada ou tencionada. “De que maneirasurge a trilha seguida pelo animal nas florestas? Um animal abre caminho por entre a ve-getacao rasteira para alcancar a agua. Outros animais acham mais facil seguir a mesma

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trilha. Dessa maneira, o uso a alarga e melhora. Nao houve plano, trata-se de consequencianao intencional da necessidade de movimentacao mais rapida. E assim que surge a trilha –talvez aberta pelo homem – e e assim que podem surgir a linguagem e outras instituicoesuteis, cuja existencia e desenvolvimento podem dever-se a sua utilidade. Nao ha plano ouintencao e talvez nao houvesse necessidade de tais instituicoes antes de elas surgirem efetiva-mente. Contudo, elas podem gerar novas necessidades, ou um conjunto de novos objetivos: aestrutura-de-objetivos dos animais (e do homem, em particular) nao e algo ‘dado’, mas algoque se desenvolve, com auxılio de algum mecanismo que opera por meio de realimentacao, apartir de objetivos anteriores e a partir de resultados que podem ou nao ter sido buscados.Dessa maneira, todo um novo universo de possibilidades e potencialidades vem a abrir-se:um mundo que e, em boa medida, autonomo.”3

Nesta sua analise da evolucao da vida e da emergencia do homem e do desenvolvimento dacivilizacao, Popper vale-se da nocao nao apenas de um mundo objetivo, de coisas materiais(que ele denomina ‘Mundo 1’) e de um mundo subjetivo das mentes (Mundo 2), comoda nocao de um terceiro mundo – mundo de estruturas objetivas que sao o produto, naoobrigatoriamente intencional, da acao dos espıritos de criaturas vivas e que, uma vez surgido,existe independentemente desses espıritos. Precursores disto, no mundo animal, sao as casasconstruıdas por passaros, formigas ou vespas, colmeias, teias das aranhas ou diques doscastores, – todas elas estruturas altamente complicadas, e edificadas pelo animal fora de seuproprio corpo, com o fito de resolver seus problemas. As proprias estruturas se transformamno centro do meio-ambiente do animal, para o qual se orienta a parte mais importante deseu comportamento. Em verdade, o animal, muitas vezes, nasce em uma de tais estruturase elas constituem sua primeira experiencia do ambiente fısico, no momento em que deixao corpo materno. Acresca-se que em alguns casos as estruturas sao abstratas: formas deorganizacao social, por exemplo, ou padroes de comunicacao. No caso do homem, certostracos caracterısticos se desenvolveram para que lhe fosse possıvel enfrentar o ambientee acabaram por introduzir modificacoes espetaculares nesse mesmo ambiente. A mao dohomem e apenas um dos muitos exemplos a ser lembrado. E as estruturas abstratas criadaspelo homem – a linguagem, a etica, a religiao, a filosofia, as ciencias, as artes, as instituicoes– sempre rivalizaram, em escopo e grau de elaboracao, com as transformacoes que ele imposao ambiente fısico. Tal como acontece com as criacoes de outros animais (mas em escalaainda maior), as criacoes humanas adquiriram importancia nuclear no ambiente ao qual eleprecisou, em seguida, ajustar-se – modelando-o, por assim dizer. A existencia objetiva detais criacoes significava que o homem tinha condicoes de examina-las, avalia-las e critica-las,explora-las, amplia-las, reve-las ou reforma-las e ate de efetuar, com seu auxılio, descobertasinteiramente inesperadas. E isso se verifica ate com a mais abstrata de todas as criacoes,como, digamos, a matematica. “Estou de acordo com Brouwer quando ele afirma que asequencia dos numeros naturais e uma criacao humana. Sem embargo, embora criemos asequencia, ela, por sua vez, gera, de modo autonomo, seus proprios problemas. A distincaoentre numeros pares e ımpares nao e criada por nos: trata-se de consequencia inevitavel enao intencional de nossa criacao. Os numeros primos tambem sao, e claro, fatos objetivos eautonomos, que, analogamente, nao foram intencionais; e, acerca de tais numeros, e obvio queeles colocam muitos problemas, muitos fatos que aı estao para serem descobertos – aı esta aconjectura de Goldbach entre tais fatos.4 Tais conjecturas, embora se refiram indiretamenteaos objetos de nossa criacao, referem-se de modo direto a fatos e problemas que emergiram denossa criacao e sobre os quais nao podemos exercer influencia ou controle: sao fatos difıceise a verdade acerca deles tambem e, muitas vezes, difıcil de descobrir. Aı esta um exemplo

3Objective Knowledge, pg. 117-118.4Goldbach lancou a conjectura segundo a qual cada numero par e a soma de dois numeros primos.

Ninguem conseguiu, ate hoje, demonstrar esse resultado, embora ele seja legıtimo para todos os casos aosquais chegou a ser aplicado. (N. do A.)

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do que pretendo dizer ao afirmar que o terceiro mundo e amplamente autonomo, emboracriado por nos.”5

O Mundo 3, por conseguinte, e o mundo das ideias, da arte, da ciencia, da linguagem, daetica, das instituicoes – em suma, de toda a nossa heranca cultural – na medida em que essaheranca esta codificada e preservada em objetos do Mundo 1, como os cerebros, os livros, asmaquinas, os filmes, os computadores, os quadros, os registros de toda especie. Conquantotodas as entidades do Mundo 3 sejam produtos do espırito humano, elas podem ter existenciaindependente de qualquer sujeito (a escrita Linear B, da civilizacao minoica, so foi decifradarecentemente), desde que codificadas e preservadas em alguma forma acessıvel – pelo menospotencialmente acessıvel – do Mundo 1. (Daı deflui a diferenca crucial entre o conhecimentoque esta no espırito humano e o conhecimento que se acha nas bibliotecas – sendo este, semcomparacao, muito mais importante.) No seu livro Facing Reality, Sir John Eccles endossaas conclusoes (pg. 170) de Popper, dizendo que “somente o homem possui uma linguagemde proposicoes e essa linguagem so pode ser utilizada por quem seja capaz de pensamentoconceitual, que e, em essencia, pensamento associado aos componentes do Mundo 3. Essepensamento transcende o presente perceptual. · · · Em contraste, o comportamento dosanimais deriva de seu presente perceptual e de seu condicionamento passado. · · · Nao haevidencias em favor da ideia de que os animais participem, ainda que em reduzido grau,desse Mundo. Sob esse aspecto fundamental, os homens diferem radicalmente dos outrosanimais”.

Esta concepcao de Popper, de um terceiro mundo, produzido pelo homem, mas que deleindepende, e uma das mais promissoras na filosofia popperiana. A aplicacao dessa concepcaoao problema da dualidade corpo-mente e objeto de atencao em um dos livros ineditos dePopper. (A ideia de que e atraves da interacao com o Mundo 3 que nos transformamos empessoas permite considerar ramificacoes incontaveis.) Mas sem entrar em tais conjecturas, ateoria do Mundo 3 permite perceber porque as duas faccoes que discutem o eterno problemada subjetividade ou objetividade de padroes morais e esteticos tem apresentado argumentossem resposta. A teoria nos da, ainda, uma analise de outro problema de capital importanciapara a filosofia ocidental, o problema das mudancas sociais. Com efeito, as ideias, as insti-tuicoes, a linguagem, a etica, as artes, as ciencias e todos os demais elementos ja lembradospossuem uma historia em virtude do carater objetivo do Mundo 3 das criacoes humanas edas permutas que se estabelecem entre o homem e essas criacoes. Nao ha, obrigatoriamente,um progresso em tais criacoes, mas elas sao, por natureza, abertas para as alteracoes e,de fato, sofrem alteracoes contınuas, na maior parte das vezes. A teoria de Popper tem omerito indiscutıvel de explicar de que maneira um processo evolutivo pode admitir um fun-damento logico, sem ser preciso apelar (como se deu com Marx, digamos) para um plano ouuma trama geral, e sem ser preciso considerar (como no caso de Hegel, por exemplo) algumespırito ou alguma forca vital a movimentar o processo, por assim dizer, de seu interior. Ateoria e profundamente esclarecedora e devera mostrar-se muito rica em suas aplicacoes. Ouso que dela fez Ernst Gombrich, levando-a para a historia e a crıtica da arte, resultou emobra que muitos autores consideram genial. O proprio Popper vale-se da teoria que elabo-rou, discutindo e apresentando solucoes para certos problemas das mudancas sociais – queabsorveram os grandes filosofos polıticos, de Platao a Marx – e das mudancas intelectuais eartısticas – sobre as quais se debrucaram muitos filosofos, desde Hegel ou mesmo antes dele.

Na historia do Mundo 3, encarado como um todo, o momento mais notavel, desde aemergencia da linguagem, foi o da emergencia da crıtica e (em seguida) o da sua aceitabili-dade. Como ja tive ocasiao de notar acima, todas ou quase todas as sociedades de que temosconhecimento parecem ter dado uma interpretacao ao mundo, consolidada em algum mitoou em ma religiao; alem disso, qualquer duvida acerca de tal interpretacao podia ser punidacom a morte. A verdade devia ser preservada intacta e transmitida imaculada de geracao em

5Objective Knowledge, pg. 118.

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geracao. Com esse objetivo e que surgem e se desenvolvem muitas instituicoes – misterios,sacerdocios e, em estagios mais avancados, escolas. “Uma escola desse genero jamais admiteuma ideia nova. Ideias novas sao heresias e levam a cismas; se um elemento da escola procuraalterar as doutrinas, ele e expulso como heretico. O heretico, porem, assevera, de habito, quee ele quem conserva os verdadeiros ensinamentos do fundador da escola. Assim, nem mesmoo inventor admite haver criado; acredita, em vez disso, que esta voltando para a verdadeiraortodoxia que foi, de algum modo, pervertida.”6

Popper sustenta, como questao de fato historico, que as primeiras escolas, onde a crıticanao se via apenas permitida, mas encorajada, foram as dos filosofos pre-socraticos, na GreciaAntiga, iniciando-se com a de Tales e seu discıpulo Anaximandro e com a do discıpulo deste,Anaxımenes7. Aı se encerrou a tradicao dogmatica de passar adiante uma verdade imaculada,iniciando-se a nova tradicao racional de submeter a discussao crıtica todas as reflexoes. O errocomecou a ser encarado sob outro prisma: em vez de ser um desastre, era uma vitoria ou umavantagem. O homem dogmatico, como os animais e os organismos inferiores, permaneceude pe ou caiu com suas teorias. “Ao nıvel pre-cientıfico, somos muitas vezes destruıdos oueliminados com nossas teorias falsas; perecemos com nossas teorias falsas. Ao nıvel cientıfico,procuramos sistematicamente eliminar nossas falsas teorias; tentamos fazer com que nossasteorias falsas perecam a fim de que continuemos vivos.”8 Quando o homem deixou departilhar o destino de suas teorias, perecendo com elas, sentiu coragem para arriscar-se emnovos empreendimentos. Antes, todo o peso da tradicao intelectual impunha uma posicaodefensiva e se prestava para a preservacao das doutrinas existentes; agora, pela primeiravez, essa tradicao era enfrentada com espırito de crıtica e se transformava em forca capazde impor mudancas. Os pre-socraticos preocuparam-se com questoes relativas ao mundonatural. Socrates aplicou a mesma racionalidade crıtica ao comportamento humano a asinstituicoes sociais. Ali principiou o incoercıvel crescimento da pesquisa e do conhecimentodela resultante – fator que, de modo espetacular, distingue a civilizacao da Grecia classica,e dos seus herdeiros, da de todas as outras civilizacoes.

6Conjectures and Refutations, pg. 149.7Ver, tambem, a citacao de Xenofanes que se acha no cap. 2.8Popper, em Modern British Philosophy, ed. Bryan Magee, pg. 73.

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CAPıTULO 5

CONHECIMENTO OBJETIVO

Um desdobramento inconsutil da Historia, desde a ameba ate Einstein, revela, em todaextensao, um padrao constante. “As solucoes provisorias que animais e plantas incorporamem sua anatomia e em seu comportamento sao os analogos biologicos das teorias. Vice-versa:as teorias correspondem (como se da com muitos produtos exossomaticos – os favos de mel,por exemplo – e especialmente com muitos instrumentos exossomaticos – as teias de aranha,por exemplo) a orgaos endossomaticos e seu funcionamento. Tal como as teorias, os orgaos eseus modos de operacao sao adaptacoes provisorias ao mundo em que vivemos. E exatamentecomo as teorias ou os instrumentos, os novos orgaos e suas funcoes, bem como novas especiesde comportamento, exercem influencia sobre o primeiro mundo que ajudam a modificar.”1

Popper caracterizou o padrao subjacente desse desenvolvimento contınuo usando a formula

P1 → TS → EE → P2

em que P1 e o problema inicial, TS e a solucao provisoria proposta, EE o processo deeliminacao de erro, aplicado a solucao provisoria, e P2 a situacao resultante, com seus novosproblemas. Trata-se, em essencia, de um processo de realimentacao. Nao e cıclico, pois P2

e sempre diverso de P1: mesmo o fracasso total na resolucao de um problema nos ensinaalguma coisa; revela em que ponto se acham as dificuldades e as condicoes mınimas que umasolucao deve satisfazer – alterando, pois, a situacao problematica. O processo tambem naoe dialetico (em qualquer sentido hegeliano ou marxista), pois considera a contradicao (quedifere da crıtica) em termos de algo que nao pode ser tolerado, em qualquer circunstancia.

A formula citada contem algumas das mais importantes ideias de Popper. Ele proprioa conduziu para varios campos da investigacao, enquanto outros a levaram para areas quePopper nao chegou a explorar. Em sua opiniao, a formula nao seria aplicavel no terrenoda matematica e da logica. Em tempos recentes, porem, convenceu-se do contrario, gracas,em especial, ao trabalho de Imre Lakatos – que, sob este prisma, foi mais popperiano quePopper. Popper escreveu pouco acerca das artes, embora a musica signifique muito para ele.Foi, alias, em decorrencia de seus estudos de historia da musica, no inıcio de sua carreira, quenasceu a sua concepcao acerca da resolucao de problemas. Todavia, e com Ernst Gombrich,em Art and Illusion, que a historia das artes visuais vem descrita em termos popperianos,como incessante e “gradual modificacao das convencoes esquematicas tradicionais relativas aformacao de imagens, sob acao das pressoes exercidas pelas novas exigencias”. Virtualmentetodos os processos de desenvolvimento organico (em sentido literal ou figurado) e todos osprocessos de aprendizado podem ser encarados dessa maneira, ate mesmo o processo peloqual os seres humanos chegam a conhecer-se uns aos outros. O psiquiatra Anthony Storr,sem ter conhecimento das obras de Popper, chegou a seguinte conclusao: “Quando, em nossavida, mergulhamos em situacoes novas. e nos colocamos diante de uma pessoa desconhecida,arrastamos conosco os preconceitos formados no passado e as experiencias ganhas no tratocom outras pessoas. Esses preconceitos, nos os projetamos sobre a pessoa diante da qual noscolocamos. Em verdade, chegar a conhecer uma pessoa e, em boa medida, uma questao de

1Objective Knowledge, pg. 145.

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eliminacao de projecoes; questao de afastar a cortina de fumaca de como imaginamos queela seja, para substituı-la pela realidade de como ela realmente e.”2

A aceitacao desse enfoque leva a certas consequencias naturais. Em primeiro lugar, atonica se coloca nos problemas – nao apenas no que nos diz respeito, mas na apreciacaodos esforcos alheios. Uma tarefa nao principia com a tentativa de resolver um problema (asolucao provisoria e o segundo termo da formula, nao o primeiro). Principia com o proprioproblema e com as razoes que o transformam em problema. Antes de voltar a atencao paraa busca de possıveis solucoes, gasta· se tempo e esforco com a formulacao de problemas. Eo exito que se alcanca na segunda etapa depende, muitas vezes, do exito que se alcanca naprimeira. Estudando a obra de um filosofo, diga. mos, a primeira pergunta que se colocae esta: “Que problema esta ele procurando resolver?” Isso pode parecer obvio, mas minhaexperiencia revela que a maioria dos estudantes de filosofia nao e ensinada a fazer aquelapergunta, nem mesmo cogita de coloca-la. Em vez disso, os estudantes perguntam: “Queesta o filosofo querendo dizer?” Em consequencia, eles experimentam, de habito, a sensacaode que entendem o que o filosofo afirma, mas nao percebem por que o afirma. (Isto so seriacompreensıvel depois de alcancar a situacao·problema que o filosofo debate.)

Outra consequencia, fundamental para toda a filosofia de Popper, e que muito possivel-mente exercera influencia sobre a maneira pela qual os leitores de Popper passarao a encarartodas as coisas, e a de que, ao assimilar as ideias do pensador, compreende-se que as es-truturas complexas – sejam intelectuais, artısticas, sociais ou administrativas – sao geradase se transformam por etapas, por via de um processo de realimentacao crıtica de ajustessucessivos. A ideia de que tais estruturas possam nascer de um golpe, fruto de plano previo,e ilusoria, uma ilusao que nao se pode materializar. A concepcao evolutiva, entre outrascoisas, leva inevitavelmente a preocupacao com os desenvolvimentos ao longo do tempo. Ahistoria da filosofia ou da ciencia, por exemplo, e entendida nao como um registro de errospassados, mas como raciocınio em processo, uma cadeia de problemas e solucoes provisoriasinterligadas; nessa cadeia estamos nos, no presente instante, caminhando para o futuro sea sorte nos favorece – e tendo nas maos uma das extremidades de toda a argumentacao.Enquanto os filosofos positivistas e da linguagem se mostram, em geral, alheios a historiade suas disciplinas, o enfoque popperiano produz o sentimento de participacao pessoal nahistoria das ideias. (Isso explica porque Popper, como filosofo da ciencia, conhecedor defısica moderna, nao deixa de ser um erudito.)

Consequencia de partir sempre de problemas que sao realmente problemas – duvidasque temos e que enfrentamos – e o fato de que estamos existencialmente compromissadoscom nosso trabalho. Decorre daı, sob o prisma do proprio trabalho, que ele adquire aqueletom de “autenticidade” a que se referem os existencialistas. Trata-se nao apenas de uminteressante intelectual, mas de um envolvimento emocional – de enfrentar uma necessidadehumana sentida. Daı deflui, ainda, certo desinteresse pela separacao convencional entreas varias disciplinas: o que realmente importa e um problema empolgante que estejamosgenuinamente empenhados em solucionar.

A filosofia de Popper – em termos objetivos, sem confundir-se com a conduta de qualquerindivıduo, mesmo com a do proprio Popper – dificilmente poderia ser menos dogmatica, jaque coloca o maior premio na audacia da imaginacao. Segundo essa filosofia, nos jamaischegamos a saber: nossa abordagem de qualquer situacao ou problema deve sempre permitirnao so as contribuicoes insuspeitadas, mas a permanente possibilidade de uma transformacaoradical de todo o esquema conceitual com que (e no seio do qual) trabalhamos. A filosofiapopperiana difere fundamentalmente de todas as concepcoes de ciencia e racionalidade emque estas sao encaradas com exclusao de elementos como o sentimento, a imaginacao ou aintuicao criadora; ela condena (como “cientificismo”) a ideia de que a ciencia pode oferecer-nos conhecimentos certos e pode ser capaz, no futuro de nos dar respostas definitivas para

2The Observer, 12 de julho de 1970.

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todas as questoes legıtimas que nos preocupam. Boa parte da desilusao com a ciencia ea razao – muito comum em nossos dias – baseia-se, justamente, em nocoes erradas acercade ciencia e razao. Essa desilusao, nessa medida, nao se aplica ao popperismo. Se Poppertem razao nao existem duas culturas – uma cientıfica e outra estetica, uma racional e outrairracional – mas existe apenas uma. O cientistas e o artista, longe de se entregarem aatividades opostas ou incompatıveis, procuram ampliar nossa compreensao da experienciamediante o uso da imaginacao criativa submetida a controle crıtico, valendo-se, portanto, defaculdades irracionais e racionais. Artistas e cientistas exploram o· desconhecido e tentamarticular suas pesquisas e suas descobertas. Uns e outros buscam a verdade e nao podemprescindir do uso da intuicao.

Segue-se, porem, que se o aprendizado, o crescimento e o desenvolvimento se processammediante submissao das expectativas ao teste da experiencia, mediante reconhecimento deareas de conflito e mediante o uso progressivo desses elementos (ou, em um nıvel puramenteintelectual, mediante controle e correcao de conjecturas – que podem ser mais ou menosousadas – pela crıtica – mais ou menos severa), entao e impossıvel escolher um ponto departida absolutamente novo. Mesmo que fosse possıvel ao homem comecar pelo princıpio,ele nao se adiantaria, ao tempo de sua morte, para alem do que teria concluıdo o homem deNeanderthal. Estes sao fatos que muitas pessoas de temperamento radical ou independenterelutam muito em aceitar. Antes mesmo de, como indivıduos, tomarmos consciencia de nossaexistencia, ja sofremos a influencia (que se estende para o passado, abrangendo perıodos pre-natais) das relacoes que mantemos com outros indivıduos, de complicadas historias pessoais,que sao elementos de uma sociedade, de historia infinitamente mais longa e complicada doque a dos seus membros – que a ela pertencem em um dado momento e local. E no instanteem que estamos em condicoes de fazer opcoes conscientes ja nos valemos de categorias de umalinguagem que atingiu um particular grau de desenvolvimento atraves de vidas de incontaveisgeracoes de seres humanos que nos precederam. Popper nao afirma, porem poderia dizer quea propria existencia e o resultado direto de um ato social praticado por duas pessoas quenao temos condicoes de escolher e cuja acao nos e impossıvel impedir – pessoas cujo legadogenetico se implanta em nosso corpo e em nossa personalidade. Somos criaturas sociais atea raiz de nosso ser. A ideia de que e viavel comecar qualquer coisa do nada, sem dıvidaspara com o passado ou para com os semelhantes, e uma ideia completamente erronea.

Aquela verdade aplica-se a qualquer tipo de atividade intelectual ou artıstica. A propriapossibilidade de deixar marcas sobre uma superfıcie ou de produzir sons, com o objetivode manifestar ou comunicar alguma coisa ou de produzir prazer, so foi alcanca da depoisde incontaveis idades evolutivas. Artistas que imaginam retomar ao princıpio estao, emverdade, facam o que fizerem, tomando elementos em um estadio altamente avancado ecolocando-se sobre os ombros de numerosas geracoes precedentes. Em tudo aquilo em quemergulhamos e em tudo aquilo que fazemos, somos herdeiros de todo o passado e nao ha meioque possibilite, por mais que o desejemos, uma desvinculacao desse passado. Isso atribui umairretorquıvel importancia a tradicao. E nela que precisamos principiar, ainda que seja paradar-lhe combate. De habito, o progresso resulta de crıticas ao passado e de alteracoes quenele impomos: usamos a tradicao e avancamos com apoio nela. A situacao e, basicamente,a mesma, quer na arte, quer na ciencia. “Isto significa que o jovem cientista, esperancosode chegar a descobrimentos, recebe maus conselhos se o seu mestre lhe diz “Ande por aı eobserve” e recebe bons conselhos se o mestre lhe diz “Procure ver o que as pessoas estaodiscutindo agora no campo da ciencia; descubra onde se acham as dificuldades e passe ainteressar-se pelas divergencias. Aı estao as questoes que voce deve considerar”. Em outraspalavras, o que cabe e estudar a situacao-problema da epoca. Isto quer dizer que escolhemose procuramos continuar uma linha de pesquisa que tem atras de si todo o desenvolvimentoda ciencia; acompanha-se a tradicao da ciencia. . .. Sob o prisma daquilo que desejamos,na posicao de cientistas – compreensao, previsao, analise, e assim por diante – o mundo

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em que vivemos e extremamente complicado. Estaria inclinado a dizer que e infinitamentecomplexo, se esta frase tivesse algum significado. Nao sabemos onde e como iniciar nossaanalise do mundo. Nao ha sabedoria que nos informe. Mesmo a tradicao cientıfica nao nosdiz como proceder. Diz-nos apenas onde e como outras pessoas iniciaram a pesquisa e aondechegaram.”3

Considerando que e objetivo (na medida que importa a cada indivıduo, quando ele entraem cena) o fato de que as investigacoes chegaram a tal ou qual ponto, neste ou naquele ramodesta ou daquela ciencia, area academica, arte (ou sociedade ou linguagem); considerandoque qualquer crıtica, proposta de alteracao ou solucao de um problema, apresentada peloindivıduo, deve ser formulada em uma linguagem antes de se poder discutir ou submeter ateste suas ideias – segue-se que qualquer proposta desse genero se transforma em propostaobjetiva. Ela pode ser discutida, atacada, defendida ou utilizada, sem fazer-se alusao a pessoaque a apresentou. Em verdade, isso acontece com a maioria das ideias de interesse. E sepresta para sublinhar a enorme importancia do tornar objetivas nossas ideias – na linguagem,no comportamento ou nas obras de arte. Enquanto as ideias permanecem em nosso espıritoelas nao sao passıveis de crıtica. A formulacao publica das ideias e que conduz, normalmente,ao progresso. De outra parte, a validade de qualquer argumento em torno dessas ideias e,de novo, algo objetivo: nao e algo que dependa do numero de pessoas que se disponhama aceita-las. Mesmo que uma teoria tenha carater cientıfico e tenha sido rigorosamentesubmetida a teste pelo seu proponente, a comunidade cientıfica nao a acolhera enquantoos experimentos e observacoes nao hajam sido repetidos por outros. A afirmacao “Eu sei”,considerada em plano individual, assevera minha disposicao para agir, dizer e acreditar emcertas coisas e engloba condicoes que justificam tais acoes, ditos ou crencas. Nada disso,porem, e conhecimento em sentido objetivo: ninguem conferira as minhas assercoes, sem odevido teste, o carater de conhecimento (salvo se o conhecimento e de algo em meus propriosestados de consciencia, como se da quando eu respondo as indagacoes do meu oculista ouinformo ao meu medico da localizacao de minhas dores – e mesmo estes casos de relatosdiretos de nossos estados correntes de consciencia nao sao sempre acurados, como qualquerdoutor descobre pela experiencia). No trabalho cientıfico, portanto, nem as nossas propriasobservacoes sao encaradas como certas; em verdade, elas nao sao aceitas como observacoescientıficas ate que tenham sido repetidas e submetidas a teste. Sob todos esses aspectos,consequentemente, o conhecimento e objetivo. Ele pertence ao domınio publico (o Mundo3). Nao reside nos estados privados das mentes dos indivıduos (o Mundo 2).

Em sentido privado, individual, a maior parte do conheci. mento humano nao e “co-nhecida” por qualquer pessoa. O conhecimento existe no papel. A mesa em que escrevoesta rodeada de estantes com obras de referencia. Escolhamos uma delas, uma de que oproprio Popper se utilizou, para servir de ilustracao – uma tabua de logaritmos. Tabuas delogaritmos enfeixam conhecimento de especie prodigiosamente util, conhecimento que estaem uso ativo a cada dia, por todas as partes da Terra, na construcao de edifıcios, de pontes,de estradas, de aeronaves, de maquinas e de milhares de outras coisas. Sem embargo, duvidoque haja alguem neste mundo que “conheca” as tabuas; ela pode ser desconhecida ate peloautor do livro que esta aqui, diante de mim (livro que, alias, pode ter sido compilado porum computador). A observacao estende-se para todos os tipos de registros. Ate o estudioso,que devota sua vida ao preparo de obras eruditas, nao dispensa as anotacoes, via de regranumerosas, recolhidas em varias especies de documentos, livros e obras de referencia; e eleescreve com base em tais anotacoes. Mas nem mesmo ele “conhece” (no sentido associadoao Mundo 2) tudo que deixa registrado em suas obras. Ele nao pode recordar-se de tabelasestatısticas, de datas, de paginas consultadas, e assim por diante; ele nao pode guardar dememoria todas as citacoes, palavra por palavra; em verdade – e este e o ponto de relevo –ele nao pode memorizar suas proprias obras. Elas se acham no papel, nao em sua mente.

3Conjectures and Refutations, pg. 129.

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As bibliotecas e os sistemas de registro e os arquivos contem material do Mundo 3, materialque, analogamente, nao se encontra no espırito de ninguem, mas que, sem embargo, e co-nhecimento de especie mais ou menos valiosa e util. O status cognitivo desse material e suautilidade ou valia independem da existencia de alguem que o “conheca” no sentido subjetivo.O conhecimento, no sentido objetivo, e conhecimento sem conhecedor: e conhecimento semum sujeito da cognicao.

Sob esse prisma, Popper ataca a epistemologia ortodoxa. “A epistemologia tradicionalestudou o conhecimento ou o pensamento em um sentido subjetivo – no sentido que se as-socia ao uso ordinario das expressoes “Eu sei” ou “Eu estou pensando”. Esse fato, afirmoeu, conduziu os estudiosos de epistemologia a questoes irrelevantes: procurando examinaro conhecimento cientıfico, aqueles estudiosos examinaram, na realidade, algo que nao temimportancia para o conhecimento cientıfico. De fato, o conhecimento cientıfico simplesmentenao e conhecimento no sentido do uso ordinario da expressao “Eu sei”. · · · a epistemologiatradicional, de Locke, Berke1ey, Hume e mesmo Russell, e irrelevante, num sentido muitoestrito desta palavra. Corolario dessa tese e o fato de que larga parte da epistemologia con-temporanea tambem e irrelevante. Estara aı abrangida a logica epistemica, se admitirmosque seu objetivo e a formulacao de uma teoria do conhecimento cientıfico. Sem embargo,qualquer estudioso da logica epistemica pode facilmente escapar de minhas crıticas, sim-plesmente tornando claro que seu alvo nao e contribuir para a elaboracao de uma teoria doconhecimento cientıfico.”4

Eis o que Popper sublinha no Prefacio de Objective Knowledge: “Os ensaios deste livrorompem com uma tradicao que remonta a Aristoteles – a tradicao da teoria do conhecimentoassentada no senso comum. Sou um grande admirador do senso comum que, acho eu, e es-sencialmente autocrıtico. Todavia, embora esteja preparado para defender, ate as ultimasconsequencias, a essencial verdade do realismo do senso comum, encaro a teoria do conhe-cimento assentada no senso comum como um desatino subjetivista. Esse engano dominoua filosofia ocidental. De minha parte, procurei elimina-la, substituindo-o por uma teoriaobjetiva do conhecimento essencialmente conjectural. Minha asseveracao pode ser ousada,mas nao me parece que deva pedir desculpas por faze-la.”

4Objective Knowledge, pg. 108.

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CAPıTULO 6

A SOCIEDADE ABERTA

A maior parte das filosofias polıticas surgidas de Platao a Marx teve raızes em concepcoesque se relacionavam nao apenas com o desenvolvimento social e historico, mas tambem como avanco da logica e da ciencia e, em ultima analise, com as conquistas da epistemologia.Os leitores que ate aqui me acompanharam terao percebido que Popper nao constitui umaexcecao. Devido ao fato de ele encarar a vida antes de tudo e principalmente como processode solucao de problemas, deseja sociedades que favorecam esse processo. E, como a solucaode problemas supoe a livre proposicao de sugestoes, que passam a ser submetidas a crıtica eao crivo do sistema de eliminacao de erro, deseja Popper formas de sociedade que permitama irrestrita apresentacao de proposicoes diferentes, seguidas pela crıtica e pela efetiva pos-sibilidade de mudanca a luz da crıtica. Independentemente de quaisquer consideracoes deordem moral (e e da mais alta importancia que disso nos demos conta), acredita Popper queuma sociedade organizada ao longo dessas linhas esteja mais capacitada do que outras pararesolver suas dificuldades e, consequentemente, em condicoes mais favoraveis para possibili-tar que seus componentes alcancem os respectivos fins individuais. A ideia comum de quea mais eficiente forma de organizacao social seria alguma variante da ditadura aparece, aosolhos de Popper, como inteiramente equivocada. O fato de a duzia de paıses onde se gozade mais alto padrao de vida (e nao que isto constitua o criterio decisivo) estar organizadasob a forma de democracia liberal nao se deve a que a democracia seja luxo a que os ricos sepodem dar; ao contrario, a grande maioria de seus habitantes enfrentava a pobreza quandoviu instalado o sistema de sufragio universal. A conexao causal deve ser estabelecida demodo inteiramente diverso. A democracia desempenhou papel importantıssimo no ensejar eassegurar a permanencia de altos padroes de vida. Tanto do ponto de vista material comode outros, e de se esperar que uma sociedade alcance maior progresso se dispuser do que senao dispuser de instituicoes livres.

Todas as diretrizes governamentais e, em verdade, todas as decisoes administrativas en-volvem predicoes empıricas: “se fizermos X, ocorrera Y e, por outro lado, se quisermos B,teremos de fazer A”. Como e de conhecimento geral, essas previsoes frequentemente se mos-tram erroneas – todos cometem erros – e e normal que tenham de ser alteradas, na medidaem que delas se passa para o terreno das aplicacoes concretas. Uma polıtica e uma hipoteseque deve ser submetida ao teste da realidade corriqueira, a luz da experiencia. Identificarerros e perigos ınsitos atraves de exame crıtico e discussao previa e o procedimento mais raci-onal e, via de regra, convem a ele recorrer porque exige menor dispendio de recursos, esforcoe tempo – em vez de esperar que os males aparecam na pratica. Alem disso, com frequencia,somente o exame crıtico dos resultados praticos – independentemente das diretrizes que osinspirem – permite sejam os erros identificados. Tendo tais circunstancias em vista, e es-sencial a consciencia de que qualquer acao pode ter consequencias indesejadas. Esta simplesobservacao tem implicacoes de alta significacao no campo da polıtica e da administracao eem todos os setores que envolvam planejamento. E e facil ilustrar o ponto. Se me proponhoa adquirir uma casa, o fato de eu aparecer no mercado, como comprador, tendera a fazercom que o preco se eleve; embora esta seja uma consequencia direta de minha acao, ninguempodera dizer que se trata de uma consequencia desejada. Quando subscrevo uma apolice deseguro, para poder fazer uma hipoteca, isso tende a elevar o valor das acoes da companhiade seguros. Tambem aqui a consequencia direta do meu ato nao tem relacao com as minhas

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intencoes. A todo instante estao ocorrendo coisas que ninguem planejou ou desejou. (Veja,a proposito, a pg. 102.) E esse fato inevitavel deve ser considerado tanto no processo detomada de decisoes como no processo de estabelecer estruturas de organizacao; se assim naofor, o mesmo fato se erigira em fonte permanente de distorcao. Isso reforca a necessidadede vigilancia crıtica ao longo do processo de concretizacao de diretrizes de planejamento ede recurso ao sistema de correcao por eliminacao de erros. Em tais termos, as autoridadesque proıbem o previo exame crıtico de suas diretrizes de acao condenam-se a cometer muitoserros, de maneira dispendiosa, so os descobrindo mais tarde do que seria necessario. E – se,como acontece muitas vezes, proıbem tambem o exame crıtico das aplicacoes praticas da-quelas diretrizes – condenam-se igualmente a ver-se atingidas por esses erros durante algumtempo apos haverem eles comecado a produzir consequencias danosas. Toda essa colocacao,caracterıstica de estruturas altamente autoritarias, e anti-racional. Deflui daı que as maisrıgidas dentre essas estruturas perecem por forca de suas falsas teorias ou, na melhor dashipoteses (caso sejam afortunadas e rudes), paralisam-se; e as estruturas menos rıgidas fazemum progresso doloroso, dispendioso e desnecessariamente lento.

Nao basta que o detentor do poder (quer no governo, quer em organizacoes menores)tenha diretrizes de acao, no sentido de finalidades ou objetivos formulados de maneira maisou menos clara. E tambem preciso que existam os meios para concretiza-las. Se esses meiosinexistem, deverao ser criados; de outra forma, os objetivos, elevados embora, nao seraoatingidos. Sob certo aspecto, portanto, organizacoes e instituicoes de qualquer especie de-vem ser vistas em termos de maquinas que levem a cabo acoes planejadas. E tao difıcilprojetar maquinas que fornecam o produto desejado, como e difıcil estruturar organizacoesque levem aos objetivos visados. Se o projeto da maquina, feito pelo engenheiro, nao foradequado ao proposito em vista, ou se ele, introduzindo adaptacoes em maquinas ja exis-tentes, deixar de fazer todas as alteracoes necessarias, nao podera obter o que deseja. Soobtera o que a maquina possa produzir – e isso nao somente sera diverso do que o enge-nheiro deseja, mas podera, ainda, mostrar-se defeituoso (sejam quais forem os padroes deavaliacao) e ate mesmo perigoso. O mesmo e verdadeiro com respeito a grande porcao damaquinaria das organizacoes: mostra-se incapaz de executar o que dela requerem os quea manipulam independentemente da habilidade dos operadores, de suas boas intencoes oudos bem formulados objetivos. Requer-se, pois, uma tecnologia polıtica (ou administrativa),bem como uma ciencia polıtica (ou administrativa) que a si incorpore uma atitude crıticapermanente, mas construtiva, em face dos meios de que dispoe a organizacao e a luz de seuscambiantes objetivos. A concretizacao dos planos ha de ser submetida a teste – e isto se faranao apenas atraves da busca de evidencia de que os esforcos estao alcancando os pretendidosefeitos, mas tambem atraves da busca de evidencia de que assim nao esta ocorrendo. Nestesentido, submeter a teste e, em geral, facil e barato, se nao por outro motivo, pelo fato deque raramente se exige aprofundado grau de precisao. O sistema ingles de educacao superiorja conta com pelo menos um orgao devotado ao estudo de instituicoes segundo o esquemapopperiano (orgao criado por Tyrrell Burgess na North East London Polytechnic) e os re-sultados obtidos sao simples e de grande utilidade potencial, pois elevadas somas e muitoesforco sao comumente dedicados a empreendimentos mal orientados, sem que se dediquemesforcos e quantias reduzidos para verificar se nao estarao surgindo, concomitantemente,consequencias indesejadas. Numa organizacao, as pessoas tendem a se mostrar cegas para aevidencia de que nao esta ocorrendo o que desejam, a despeito do fato de que tal evidencia eexatamente o que deveriam estar procurando. Naturalmente, o processo de contınua buscae reconhecimento de erro, em organizacoes, torna-se difıcil quando se trata de estruturasautoritarias. Por essa via, a irracionalidade se estende para atingir os proprios instrumentosde que as mesmas organizacoes se valem.

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As posicoes morais de Popper, em relacao a questoes polıticas, foram expressas, talvezcom menor carga de paixao, por outros. Seus escritos mostram-se, nesse ponto, profunda-mente penetrados de emocao, mas caracterısticas sao a forca e o poder dos argumentos comos quais demonstrou que o coracao tem a razao como aliado. Tem-se, com efeito, acreditadoe, em nosso seculo mais do que em qualquer outro, que a racionalidade, a logica, a abordagemcientıfica reclamam uma sociedade que se apoie em orientacao central e que seja planejadae ordenada como um todo. Popper demonstrou que essa maneira de ver, alem de revestircunho autoritario, fundamenta-se em erronea e ultrapassada concepcao de ciencia. A raci-onalidade, a logica e a abordagem cientıfica, atuando em conjunto, orientam-nos para umasociedade “aberta” e pluralista, dentro da qual se expressam pontos de vista incompatıveis ese perseguem objetivos conflitantes. Uma sociedade em que todos sejam livres para estudarsituacoes-problema e propor solucoes; uma sociedade em que todos sejam livres para criticaras solucoes propostas por outros e, em particular, as propostas pelo governo, estejam estasem fase de elaboracao ou de aplicacao; e, acima de tudo, uma sociedade em que as diretrizesgovernamentais se alterem por forca da crıtica.

Uma vez que os planos do governo sao normalmente propostos e tem sua concretizacaosupervisionada por pessoas que a eles estao, de uma ou de outra forma, ligadas, alteracoes decerta importancia hao de implicar em alteracoes de pessoas. Assim, para a sociedade abertaser uma realidade, o requisito fundamental e o de que os que detem o mando sejam destituıdosa intervalos razoaveis, sem violencia, e substituıdos por outros, com diferentes orientacoes.Para que a opcao tenha carater genuıno, as pessoas que perfilham ideias diferentes das quenorteiam o governo devem sentir-se livres para se organizarem como alternativa de governo,prontas para assumirem o poder; quer isso dizer que essas pessoas devem ter como agrupar-se, falar, escrever, publicar, usar o radio e a televisao, para difundirem sua posicao de crıticaao governo e devem ter constitucionalmente garantida a utilizacao de meios que as levem asubstituir os governantes, meios que serao, por exemplo, a realizacao de eleicoes livres.

A tal sociedade quer Popper aludir, quando fala em “democracia”, embora, como sempre,ele nao atribua grande importancia a palavra. O ponto merecedor de enfase e o de que ele ve ademocracia em termos de preservacao de certos tipos de instituicao – que costumavam recebero nome de instituicoes livres, antes que a propaganda norte-americana em torno da guerra friadesmoralizasse aquela expressao. Popper quer ver preservadas, especialmente, as instituicoesque efetivamente possibilitem ao governado criticar os governantes e ve-los substituıdos, semderramamento de sangue. Nao limita essas instituicoes as que possibilitam a eleicao dosgovernantes pela maioria dos governados, pois que essa maneira de ver conduziria ao que elechama “o paradoxo da democracia”. Que fazer quando a maioria vota num partido como ofascista ou o comunista, que nao cre em instituicoes livres e quase sempre as destroi quando sealca ao poder? O homem que defende a escolha do governo por voto majoritario ve-se, em talcaso, diante de um dilema: qualquer tentativa de impedir a ascensao do partido comunista oufascista ao poder significa agir de maneira contraria aos princıpios aceitos e, nao obstante,se aqueles partidos subirem ao poder, aniquilarao a democracia. O mesmo homem naoencontraria base moral para resistencia ativa a um regime nazista, se a favor de tal regimehouvesse votado a maioria dos cidadaos, como na Alemanha quase aconteceu. A colocacao dePopper afasta esse paradoxo. Um homem, comprometido com a preservacao de instituicoeslivres, pode, sem contradicao, defende-las de ataques provindos de qualquer ponto, venhameles de minorias, ou de maiorias. E, se houver tentativa de subverter as instituicoes livrespor violencia armada, podera aquele homem defende-las recorrendo a violencia armada. Issoporque, se, numa sociedade cujo governo pode ser alterado sem apelo a forca, um gruporecorre as armas, porque nao pode ver de outra maneira concretizados os seus propositos,esse grupo – independentemente do que pense ou pretenda – estara estabelecendo, pelaviolencia, um governo que so pela violencia sera possıvel afastar, e que e, em outras palavras,uma tirania. E cabıvel justificar moralmente o emprego da forca em oposicao a um regime

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alicercado na forca, caso se tenha em vista criar instituicoes livres – e caso haja razoavelpossibilidade de exito – pois em tal circunstancia o proposito e o de substituir a regra deviolencia por uma regra de razao e tolerancia.

Popper aponta outros paradoxos que sao evitados por sua forma de colocar o assunto. Umparadoxo a que ja se aludiu e o da tolerancia: se uma sociedade admite ilimitada tolerancia,talvez venha a desaparecer – e a tolerancia com ela. Assim, uma sociedade tolerante deveestar preparada para, em certas hipoteses, suprimir os inimigos da tolerancia. Nao deve faze-lo, a menos que exista real perigo – pois, alem de tudo mais, isso pode conduzir a uma “cacaas bruxas”. A sociedade tolerante deve, recorrendo a todos os meios, tentar defrontar-se comseus inimigos a um nıvel de discussao racional. Contudo, esses inimigos podem “comecardenunciando qualquer discussao; podem impedir seus seguidores de dar ouvidos a argumentosracionais, porque sao falazes, ensinando-os a respondera esses argumentos com os punhos oucom armas”. E a sociedade tolerante somente sobrevivera se, em ultima instancia, estiverpreparada para conter esses inimigos atraves do uso da forca. “Deverıamos · · · considerar aincitacao a perseguicao e a intolerancia como atos criminosos, tal qual deverıamos considerarcriminosa a incitacao ao homicıdio, ao rapto ou ao restabelecimento do trafico de escravos.”1

Outro paradoxo, este mais comum, pela primeira vez formulado por Platao, e o da liber-dade. A liberdade sem restricoes, como a tolerancia sem restricoes, nao apenas e autodestrui-dora mas tambem capaz de produzir o seu reverso; com efeito, afastadas todas as repressoes,nada existiria para impedir que o forte escravizasse o fraco (ou humilde). Liberdade to-tal aniquilaria a liberdade e, em consequencia, os que advogam a liberdade completa sao,em verdade, e sem consideracao de suas intencoes, inimigos da liberdade. Popper assinala,com enfase especial, o paradoxo da liberdade economica, que torna possıvel a desenfreadaexploracao do pobre pelo rico e resulta em o pobre perder quase completamente a mesmaliberdade economica. No caso, uma vez mais, “deve haver um remedio polıtico – remediosemelhante ao que se usa contra a violencia fısica. Devemos erigir instituicoes sociais, ga-rantidas pelo poder de Estado, para proteger os economicamente fracos dos economicamentefortes. Significa isso, naturalmente, que deve ser abandonado o princıpio da nao intervencao,a ideia de um sistema economico sem peias. Se desejarmos que a liberdade seja salvaguar-dada, deveremos exigir que a polıtica da liberdade economica irrestrita ceda lugar a umaeconomia que admita intervencao estatal planejada. Deveremos exigir que o capitalismo ir-refreado ceda passo ao intervencionalismo economico”.2 E avanca Popper para assinalar queos contestadores do intervencionismo estatal sao reus de autocontradicao. “Que liberdadedeve o Estado proteger? A liberdade do mercado de trabalho ou a liberdade de os pobresse congregarem? Seja qual for a decisao tomada, caminharemos, no campo da economia,para a intervencao estatal, para o uso do poder polıtico organizado, seja do Estado, sejados Sindicatos. Caminharemos, em qualquer caso, para um alargamento da responsabili-dade economica do Estado, seja ou nao essa responsabilidade conscientemente aceita.”3 Emtermos mais amplos, assevera Popper: “Se o Estado nao interferir, poderao interferir outrasorganizacoes semipolıticas, tais como os monopolios, os trustes, os sindicatos, reduzindo-sea liberdade de mercado a uma ficcao. De outra parte, e importantıssimo ter consciencia deque, sem um mercado livre, cuidadosamente protegido, todo o sistema economico deixarade atingir seu unico proposito racional, que e o de satisfazer as necessidades do consumidor· · · O‘planejamento’ economico, que nao inclui plano de liberdade economica, no sentidoreferido, levara perigosamente para as vizinhancas do totalitarismo.”4

Em todos os casos mencionados, o maximo possıvel de tolerancia ou de liberdade eum grau otimo, nao um absoluto, pois ha restricoes para poderem existir. A intervencao

1The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 265.2The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 125.3The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 179.4The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 348.

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governamental, unica fonte de garantia da liberdade, e arma ameacadora: sem intervencao,ou com intervencao, em medida insuficiente, a liberdade perece; mas a liberdade pereceratambem se a intervencao se fizer com demasiado peso. Somos levados a reconsiderar ainevitabilidade do controle – que, para ser efetivo, deve significar renovacao – do governopelo governado, como condicao sine qua non da democracia. Nao assegura a preservacaoda liberdade, pois nada pode faze-lo: o preco da liberdade e a eterna vigilancia. Tal comoobservou Popper, as instituicoes assemelham-se as fortalezas, no sentido de que embora, paraserem eficazes, devem ser adequadamente construıdas, embora isso apenas seja insuficientepara leva-las a preencher o papel que lhes toca: e preciso ainda que sejam adequadamentemanipuladas.

De modo geral, as filosofias polıticas tem visto como problema central o que deflui daindagacao “Quem deve governar?” e as diferentes doutrinas buscam justificar as diferentesrespostas: um homem apenas, o bem nascido, o rico, o sabio, o forte, o bom, a maioria, oproletariado, e assim por diante. Contudo, a propria indagacao esta mal colocada, e issopor varios motivos. Em primeiro lugar, por encaminhar-nos diretamente para um outro dosparadoxos de Popper, que ele denomina “paradoxo da soberania”. Se o poder for colocado,por exemplo, na mao do mais sabio dos homens, ele podera, do fundo de sua sabedoria,dizer: “O governante nao devo ser eu, mas quem e moralmente bom.” Se o moralmentebom estiver no governo, ele podera dizer, com a melhor das intencoes: “E errado que euimponha minha vontade sobre outros. O governante nao deve ser eu, mas a maioria.” Amaioria, detendo o poder, talvez assim se expresse: “Impoe-se que haja um homem fortepara implantar a ordem e dizer-nos o que fazer.” Uma segunda objecao, dirigida contraa pergunta “Quem deve deter a soberania?” e a de repousar ela no pressuposto de que opoder ultimo deve estar localizado, o que nao e verdade. Na maioria das sociedades, existemcentros de poder, diferentes e conflitantes, nenhum deles capaz de determinar tudo segundoseus proprios moldes. Algumas sociedades apresentam o poder difuso em alto grau. Apergunta “Afinal, onde se localiza ele?” elimina, antes de ela ser aventada, a possibilidadede controle sobre os governantes – e este e o ponto mais importante a determinar. A questaofundamental nao e “Quem deve exercer o governo?”, porem, “Como podemos reduzir aomınimo o desgoverno tanto a possibilidade de ele ocorrer quanto, na hipotese de ele ocorrer,as suas consequencias?”.

Ate este ponto, admite-se, portanto, que a melhor sociedade de que podemos dispor,seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista pratico, e aquela capaz de assegurar aseus membros o maximo possıvel de liberdade; admite-se, ao mesmo tempo, que o maximode liberdade e algo sujeito a restricoes; que so pode surgir e ser mantido em nıvel otimopor instituicoes planejadas com esse objetivo e sustentadas pelo poder do Estado; que issoenvolve, em larga escala, a intervencao estatal na vida economica, social e polıtica; que in-tervencao demasiado tımida ou demasiado severa resultara, igualmente, em desnecessariaameaca a liberdade; que a melhor maneira de reduzir os perigos ao mınimo estara em pre-servar, como as instituicoes mais importantes, os meios constitucionais que permitam aosgovernados afastar os ocupantes do poder estatal, substituindo-os por pessoas de orientacaodiversa; que toda tentativa no sentido de privar de eficacia essas instituicoes e tentativa deadmitir governo autoritario e deve ser obstada – se necessario, pela forca; que se justifica ouso da forca contra a tirania, mesmo quando esta encontra o apoio da maioria dos cidadaos;mas que o unico uso que se pode dar a forca e a defesa das instituicoes livres, onde elas jaexistam, e sua criacao, onde ainda nao existam.

Sempre me pareceu obvio que essa e uma filosofia que preconiza a democracia social – taoclaramente anticonservadora, de um lado, como antitotalitaria (e, assim, anticomunista), deoutro. Com efeito, e, antes de tudo, uma filosofia do como alterar as coisas e de como faze-lode modo que, diversamente da revolucao, seja racional e humano. Penso ter mostrado queessa doutrina se liga indissoluvelmente a filosofia da ciencia elaborada pelo mesmo Popper.

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Devemos, contudo, lembrar tambem que o homem que escreveu The Open Society tinha, asuas costas, vinte anos de convivencia com membros ativos do partido social-democraticoda Austria. Como social-democrata, ele se havia convencido de que a nacionalizacao dosmeios de producao, troca e distribuicao, que. constituıam as bases da plataforma de seupartido, nao resolveriam os problemas que se destinavam a resolver, embora pudessem vira destruir os valores que o partido considerava mais dignos de prezar. Sendo jovem, cominfluencia polıtica apenas sobre alguns amigos, o que ele desejaria ver, mas supunha quenao teria oportunidade de ver, era os social-democratas repudiarem a analise marxista damudanca social, substituindo-a por ideias do tipo das que ele defendia. Ao fim, desiludiu-se com o partido, nao, primariamente, por causa de sua limitacao intelectual, mas porcausa da maneira como expunha os trabalhadores a violencia, sem contar com um programapara resistir-lhe; em virtude dos lıderes temerem a responsabilidade; e, acima de tudo,por se acumpliciarem com os comunistas, nao oferecendo qualquer resistencia ao ato de osnazistas se apossarem do poder – ainda que os motivos do partido nao fossem, como os doscomunistas, maquiavelicos, mas caracteristicamente devidos a debilidade. Desde essa epoca,Popper descre dos partidos social-democratas. Se o exigissem, ele se descreveria, hoje, comoum liberal, no velho sentido da palavra.

Aqui devo fazer uma referencia pessoa1. Sou um socialista democratico e acredito queo jovem Popper definiu, como ninguem jamais o fez, quais devam ser os fundamentos fi-losoficos do socialismo democratico. Tal como ele, desejaria eu ver essas ideias substituırema deturpada mescla de marxismo e oportunismo de orientacao liberal, que passa por serteoria polıtica para a esquerda democratica; em 1962, publiquei o livro The New Radicalism,advogando esses pontos dentro do contexto da polıtica do Partido Trabalhista britanico. Emresumo, embora deixando claro que Popper nao e mais um socialista, desejo realcar as ideiasque produziu em prol do socialismo democratico, em atendimento das necessidades que essacorrente polıtica manifestava na ocasiao em que ele se deu as reflexoes aqui referidas. Nissoreside, segundo acredito, a real significacao de que se reveste e que aponta para o futuro.Minha mais profunda discordancia com o Popper mais velho diz respeito a acusacao que lhedirijo de ele nao aceitar, em questoes de polıtica pratica, as radicais consequencias de suasproprias ideias. (Se estou certo quanto a este ponto, ha pelo menos um precedente famoso:Marx costumava afirmar, nos ultimos anos de vida, que nao era marxista.)

Em The Open Society, preconiza-se, como princıpio geral orientador da polıtica, o se-guinte: “Reduzir ao mınimo o sofrimento evitavel.” Esse princıpio tem, singularmente, oefeito imediato de chamar a atencao para problemas. Se uma autoridade educacional sepropusesse o objetivo de ampliar ao maximo as oportunidades oferecidas as criancas sobseu cuidado, poderia vir a encontrar-se sem saber exatamente como concretizar suas in-tencoes; ou poderia comecar pensando em termos de como empregar fundos na construcaode escolas-modelo. Contudo, se, ao contrario, a autoridade se propusesse a reduzir ao mınimoas desvantagens, isso faria com que sua atencao se voltasse imediatamente para escolas menosatendidas – para aquelas com maiores problemas de pessoal, com classes mais numerosas,com instalacoes mais precarias, com mais reduzido equipamento de ensino – e transformariao auxılio a essas escolas em primeira prioridade. A abordagem popperiana traz esta prontaconsequencia: em vez de encaminhar o pensamento para a construcao da Utopia, leva-o adescobrir e tentar remover os especıficos males sociais que estao afetando os seres huma-nos. Sob esse aspecto, e, antes de tudo, uma abordagem de carater pratico, encerrando naoobstante, o proposito de provocar transformacoes. Parte de uma preocupacao com os sereshumanos e envolve permanente e ativa determinacao de remodelar as instituicoes.

“Reduzir a infelicidade ao mınimo” nao e apenas uma formulacao negativa da maximautilitarista “Elevar a felicidade ao maximo.” Ha, no caso, uma assimetria logica: nao sabe-mos como fazer felizes as pessoas, mas sabemos como lhes reduzir a infelicidade. E os leitoresestabelecerao, desde logo, analogia entre este ponto e a possibilidade de serem corroborados

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ou contestados os enunciados cientıficos. “Creio que do ponto de vista etico, nao ha simetriaentre sofrimento e felicidade ou entre dor e prazer· · · Do sofrimento humano se levanta umclamor de matiz moral, invocacao de auxılio que nao tem similar em pedido de aumento defelicidade feito por aquele que esta bem. (Outra crıtica. possıvel de dirigir contra a formulautilitarista ‘conseguir o maximo de prazer’ e a de que tal formula presume a existencia deuma escala contınua prazer-dor que permite ver os graus de dor como, graus negativos deprazer. Do ponto de vista moral nao pode a dor, contudo, ser contrabalancada pelo prazer e,especialmente, nao pode a dor de um homem encontrar contrapartida e equilıbrio no prazerde outro. Em vez de pleitear a maior felicidade para o maior numero, deve-se, mais modes-tamente, pleitear o menor sofrimento possıvel para todos; e o sofrimento inevitavel – comoo que provem da fome, em epocas de falta de alimento – deveria ser partilhado em termosda maior igualdade possıvel.5)

A abordagem do problema por esse angulo conduz, como Popper acentua acertadamente,a uma contınua corrente de exigencias de acao imediata para remediar os erros identifica-dos. E tal acao e do tipo que se presta a merecer ampla aceitacao e a resultar em visıvelmelhoria. Popper mostra-se, ainda, e procedentemente, preocupado em evitar o utopicoque, na pratica, se revela de carater intolerante e autoritario (ponto que aprofundaremos noproximo capıtulo). Ha, porem, duvida quanto a saber se “reduzir a infelicidade ao mınimo”tem alcance suficiente para se constituir em maxima polıtica fundamental, nao obstante seualto valor heurıstico. Limita-se ela a retificar abusos e anomalias, dentro de um sistemaja existente, de distribuicao de poderes, bens e oportunidades. Literalmente considerada,parece, inclusive, deixar de contemplar medidas liberais moderadas como o subsıdio estatalpara as artes e a construcao de piscinas e campos de esporte com fundos municipais. Umaposicao tao extremamente conservadora seria anormal consequencia da radical filosofia dePopper, pelo menos em uma sociedade opulenta – e foi vista como demasiado conservadoraate mesmo por um polıtico profissional de orientacao conservadora6 – e o proprio Poppernao desejaria deter-se aı. Devemos fazer daquela maxima uma regra metodologica a aplicarde inıcio, agindo, em seguida, conforme as consequencias, mas sempre que possıvel reexami-nando a situacao, com vistas a uma formulacao nova, mais rica, aperfeicoamento da inicial.A segunda regra e: “Elevar ao maximo a liberdade de as pessoas viverem como desejam.”Isso requer macico emprego de recursos publicos em educacao, artes, habitacao, saude e to-dos os outros aspectos da vida social sempre com o objetivo de ampliar a gama de escolhase, portanto, a dimensao de liberdade aberta as pessoas.

5The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 284-285.6Sir Edward Boyle: New Society, 12/09/1963.

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CAPıTULO 7

OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA

Embora a meu ver, nos dias de hoje, o aspecto mais relevante de The Open Society andIts Enemies seja a filosofia da democracia social ali pregada e embora esse aspecto falasse deperto ao coracao de Popper quando escreveu o livro, nao foi a razao principal da elaboracao daobra. Importa lembrar que durante a maior parte do tempo dedicado a redacao, Hitler estavaalcancando exito apos exito, conquistando quase que a totalidade da Europa, paıs depoisde paıs, e penetrando profundamente na Russia. A civilizacao ocidental defrontava-se coma ameaca proxima de uma nova Idade Obscura. Em circunstancias tais, o que preocupavaPopper era compreender e explicar a atracao das ideias totalitarias, fazendo o possıvel parasolapa-las e para proclamar o valor e a importancia da liberdade, em amplo sentido. Essevasto programa coloca a filosofia da democracia em contexto dos mais estranhos, estranhono que se refere ao tempo, bem como ao lugar.

Proximo ao nucleo da explicacao que Popper oferece para a atracao exercida pelo totali-tarismo, coloca-se um conceito socio-psicologico por ele denominado “tensao da civilizacao”conceito relacionado, como ele reconhece, ao formulado por Freud em A Civilizacao e SeusDescontentes. Com frequencia, vemos afirmado que a maior parte das pessoas realmentenao deseja a liberdade, porque liberdade envolve responsabilidade e a maioria das pessoasteme a responsabilidade. Independentemente de isso aplicar-se ou nao aplicar-se a “maioriadas pessoas”, ha, estou seguro, um importante elemento de verdade na afirmacao. Acei-tar responsabilidade por nossa vida equivale a enfrentar continuamente escolhas e decisoesdifıceis, suportando-lhes as consequencias quando erroneas, e isso e desagradavel, para naodizer assustador. Existe em todos nos algo de infantil, talvez, que apreciaria escapar a essepeso, vendo a carga tirada dos ombros. Nao obstante, sendo o de sobrevivencia o nosso maisforte instinto, nossa necessidade mais profunda e, provavelmente, a de seguranca. Dessaforma, so nos dispomos a transferir responsabilidade para alguem ou para alguma coisa emque depositemos confianca maior do que a depositada em nos mesmos. (Tal e a razao porqueo povo deseja seus governantes “melhores” do que ele e; porque o povo acolhe tantas crencasimplausıveis que reforcam aquela confianca; e porque se perturba tao profundamente dianteda revelacao de que a crenca e infundada.) Desejamos que as difıceis e inevitaveis decisoesque disciplinam nossas vidas sejam tomadas por alguem mais forte que nos mesmos e que,nao obstante, considere de perto nossos interesses, como o faria um pai severo, porem bene-volente; ou nos sejam oferecidas por um sistema pratico de ideias que seja mais sabio do quenos e so nos leve a incidir em poucos erros ou em nenhum. Acima de tudo, desejamos ver-noslibertados do medo. No fundo, a maior parte dos temores – incluindo os temores basicos,tais como o do escuro, o de estranhos, o da morte, o das consequencias de nossas acoes e odo futuro – sao formas do medo do desconhecido. Assim, estamos continuamente clamandopor garantias de que o desconhecido seja conhecido e que aquilo que nele se contem seja algoque, de uma forma ou de outra, desejamos. Abracamos religioes que nos garantem que naopereceremos e filosofias polıticas que nos asseguram que a sociedade se tornara perfeita nofuturo, talvez em futuro proximo.

Tais necessidades foram satisfeitas pelas inalteraveis certezas das sociedades pre-crıticas,atraves de apelo a autoridade, hierarquia, ritual, tabu, e assim por diante. Na medida emque o homem emergia do tribalismo e se iniciava a tradicao crıtica, novas e assustadoras

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exigencias comecaram a ser feitas: o indivıduo deveria por em questao a autoridade, ques-tionar aquilo que sempre havia admitido e assumir responsabilidades por si mesmo e poroutros. Em contraste com as velhas certezas, isso ameacava a sociedade de ruptura e o in-divıduo de desorientacao. Como resultado, houve, desde o comeco, reacao contra esse estadode coisas, tanto da parte da sociedade em geral, como (e esse foi, em certa medida, objetode consideracao de Freud) no interior de cada indivıduo. Adquirimos liberdade a custa deseguranca, igualdade a custa de nossa auto-estima e autoconsciencia crıtica a custa de nossapaz de espırito. O preco e alto: nenhum de nos o paga alegremente e muitos nao querempaga-lo. Os melhores dentre os gregos nao tinham duvidas acerca dos meritos dessa permuta.“Melhor”, diziam eles a proposito do maior dos seus crıticos sociais e contestadores, “ser umSocrates descontente do que um animal contente”. Houve, contudo, uma reacao, que levouSocrates a morte, em vista de sua atitude contestadora. A partir do seu discıpulo Platao,nunca mais deixou de haver figuras altamente dotadas que se opunham a sociedade tornar-semais “aberta”. Desejavam que ela retrocedesse ou avancasse no sentido de uma sociedademais “fechada”.

Assim, desde o despertar do pensamento crıtico, o que se deu com os pre-socraticos, atradicao desenvolvimentista da civilizacao tem visto caminhar, paralelamente a ela (e talvezfosse mais correto dizer, caminhar dentro dela), uma tradicao de reacao contra as tensoes quese originam da civilizacao; esta ultima tradicao produziu filosofias de retorno a segurancainicial propria de uma sociedade pre-crıtica, ou tribal, ou filosofias de encaminhamento auma Utopia. Uma vez que esses ideais reacionarios e utopicos pretendem dar atendimentoa necessidades semelhantes, apresentam afinidades profundas e essenciais. Ambos rejei-tam a sociedade existente e proclamam que uma sociedade mais perfeita surgira em algummomento. Consequentemente, ambos tendem a ser violentos e, nao obstante, romanticos.Quando se acredita que a sociedade vai passando de mal a pior, deseja-se por fim aos proces-sos de alteracao; quando alguem se vir estruturando a sociedade perfeita do futuro, desejaraperpetuar essa mesma sociedade, ao alcanca-la e isso tambem significara deter os processosde transformacao. Dessa forma, tanto os reacionarios como os utopicos almejam uma so-ciedade estagnada. Como a transformacao so pode ser impedida pelo mais rıgido controlesocial, – privando o povo de fazer qualquer coisa por iniciativa propria, ara impedir as gravesconsequencia sociais dessa atuacao ambos aqueles ideais conduzem ao totalitarismo. Essedesenvolvimento esta neles inerente desde o princıpio, embora ao manifestar-se leve a dizerque a teoria foi pervertida. Ja se tornou lugar comum ouvir dizer que esta ou aquela teoriareacionaria (e. g.) que a mais eficaz forma de governo seria uma ditadura) ou teoria arespeito de um futuro perfeito (e. g., o comunismo) e muito boa como teoria, mas, infeliz-mente, nao opera convenientemente na pratica. Trata-se de uma falacia. Se uma teoria deixade operar adequadamente na pratica, basta isso para mostrar que encerra algo de erroneo(pois que exatamente esse ponto, desconsiderados quaisquer outros aspectos, e o criterio doexperimento cientıfico).

Embora as consequencias praticas das teorias reacionarias e utopicas sejam sociedadescomo as de Hitler e Stalin, o desejo de uma sociedade perfeita por certo que nao tem raızesna maldade humana, mas no oposto. Os mais horrorosos excessos tem sido perpetradoscom sincera conviccao moral por idealistas, cujas intencoes eram inteiramente boas – porexemplo, os que se ligaram a inquisicao espanhola. As autocracias ideologicas e religiosase as guerras que formam parte consideravel da historia ocidental, sao a mais contundenteexemplificacao do proverbio “O caminho do inferno esta pavimentado com boas intencoes”.Nao sao apenas os tolos que caminham ao longo dessa trilha; em verdade, o sentido deinsatisfacao com a sociedade existente, que atinge as pessoas, muito mais comumente seassocia a inteligencia e a imaginacao do que a sua ausencia. Os nao inteligentes e naoimaginativos tendem a aceitar as coisas como as encontram e a mostrar-se conservadores.Assim, a revolta contra a civilizacao – isto e, contra as formas que na realidade revestem a

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liberdade e a tolerancia e contra as suas consequencias, no que diz respeito a diversidade,conflito, aceitacao das transformacoes imprevisıveis e incontrolaveis e a inseguranca que seabre em multiplas facetas – tem sido, como anteriormente sugeri, comandada por alguns dosmaiores lıderes intelectuais da humanidade. O genio desses lıderes colocou-os de maneira“natural” e confortavel no seio de uma elite – que significa desprezo pelo conservadorismoinerte do homem comum e, consequentemente, uma nao aceitacao pratica do igualitarismo eda democracia. Popper, ao dirigir ataques contra os inimigos da sociedade aberta, atribui amaioria deles os motivos mais elevados e a alguns deles a mais alta inteligencia, reconhecendoque apelam a alguns de nossos mais puros instintos e tocam em pontos de insegurancaprofundamente enraizados em todos nos.

Popper toma Platao como o supremo exemplo de filosofo de genio em cuja teoria polıticase inclui um desejo de retorno ao passado e dirige uma extensa e pormenorizada crıtica aessa teoria no primeiro dos dois volumes de The Open Society and Its Enemies. O segundovolume contem uma crıtica analoga, dirigida contra Marx, como o supremo filosofo cuja teoriaantecipa um futuro perfeito. (Popper distingue o marxismo de teorias utopicas, por motivosque se tornarao claros mais adiante, porem se coloca em oposicao a ambos.) Sua maneira deenfrentar esses poderosos oponentes e, em particular, Marx, constitui, por si mesma, uma dasmais importantes licoes metodologicas que se pode retirar de seus escritos. Ao longo de todaa historia da advocacia e da controversia, a abordagem escolhida, mesmo por polemistas degenio, como Voltaire, tem sido a de procurar e atacar os pontos fracos da posicao adversaria.Isso encerra uma desvantagem seria. Todas as posicoes apresentam angulos mais fracose mais fortes e a atracao que exercem se liga, obviamente, aos ultimos; assim, atacar osprimeiros pode causar embaraco aos adeptos da doutrina, mas nao destruira as bases sobreas quais se assenta a adesao. Essa e uma das razoes porque as pessoas raramente alteram seuponto de vista depois de se verem inferiorizadas em uma discussao. Mais frequentemente,um reves dessa ordem leva-as a fortalecerem a propria posicao, no sentido de que as leva aabandonar ou a aperfeicoar as porcoes mais fracas da posicao em que se colocam. Ocorre, comfrequencia, que, quanto mais discutem duas pessoas inteligentes, mais se fortalece o ponto devista de cada qual, pois os modos de ver se aperfeicoam constantemente como resultado dacrıtica que recebem. A analise que Popper faz de tal situacao e clara. Busca – e consegue,nas melhores ocasioes – identificar e atacar o ponto mais forte da posicao de seu oponente.Na verdade, antes de ataca-lo, tenta reforca-lo. Procura ver se suas fraquezas podem serafastadas, se alguma de suas formulacoes admite aperfeicoamento, concede-lhe o benefıciodas duvidas possıveis, ignora certas falhas obvias e entao, tendo aquela posicao defendidada melhor forma possıvel, ataca-a no que ela tenha de mais poderoso e atraente. Essemetodo – o mais serio que se possa conceber, do prisma intelectual – e apaixonante; e seusresultados, quando alcanca exito, sao devastadores. Com efeito, em tal hipotese, nenhumaversao imaginavel da posicao derrotada e passıvel de reconstrucao depois da crıtica, poistodos os seus recursos conhecidos e reservas de substancia ja estavam presentes na formaque tomou ao ser derrubada. Isso e o que se pensa haver Popper conseguido em relacao aomarxismo – daı o comentario de Isaiah Berlin, citado na sentenca de abertura deste livro.Devo confessar que nao percebo como um homem racional, tendo lido a crıtica dirigida porPopper contra Marx, possa continuar sendo marxista. Esse e ponto, entretanto, a que logovoltaremos.

Nos meios academicos, o aspecto mais controvertido de The Open Society and Its Enemiestem sido sempre o ataque dirigido contra Platao. A maior parte dos comentarios dessaordem carece de fundamento. Ja ouvi muitos admitirem que o primeiro volume de TheOpen Society e, antes de tudo, uma crıtica feita a Platao, que Popper diminui a estatura dePlatao como filosofo e que foi “totalmente refutado”, ou algo semelhante, pelo excelente, bemdocumentado e erudito livro de Ronald B. Levinson intitulado In Defense of Plato (ao qualPopper replicou num Addendum a quarta edicao de The Open Society, surgida em 1961).

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Nada disso e verdade. Popper refere-se a Platao claramente, chamando-lhe “o maior filosofode todos os tempos” (pg. 98) e emprega, naturalmente sem ironia, “com toda a forca desua inigualada inteligencia” (pg. 109), e frases semelhantes. Popper endossa, em verdade, aobservacao de Whitehead, segundo a qual toda a filosofia ocidental e um conjunto de notasde pe de pagina, apostas aos textos platonicos. Alem disso, nao e o proposito principal dePopper dirigir crıticas a Platao. Levinson coloca a questao em termos corretos ao dizer,no In Defense of Plato, a pg. 17, que “O ataque de Popper e o aspecto negativo de suapropria conviccao positiva, que orienta toda a obra, ou seja, a de que a maior das revolucoesconsiste numa passagem da “sociedade fechada” para a “sociedade aberta” uma associacaode pessoas livres que respeitam os direitos alheios, num sistema de referencia de protecaomutua, oferecido pelo Estado, e que alcancam, por meio de decisoes racionais e responsaveis,um crescente aumento dos valores humanos e a vida cheia de sabedoria”. Longe de rejeitartotalmente o juızo que Popper faz de Platao, Levinson acaba acolhendo a parte mais notaveldesse juızo. “Em primeiro lugar e acima de tudo, concordamos com a ideia de que Plataopropunha, nos termos de Popper, o “fechamento” de sua sociedade, na medida em que istocorrespondia a uma arregimentacao dos cidadaos comuns (pg. 571).· · · O ideal polıtico de Platao pode ser classificado, sem erro, como ideal altamente

diferenciado das muitas formas de governos autoritarios abrangidos pela definicao genericadada pelo Webster de totalitarismo; tambem pode, como vimos antes, situar-se no ambitodo “totalitarismo”, respeitando a cuidadosa maneira de entender o termo em Sabine – comogoverno que ’oblitera a distincao entre as areas de juızo privado e as de controle publico’“ (pg. 573). Levinson nao concorda com muitas das observacoes de Popper, mas semprerespeita “seu amplo conhecimento de muitos setores do pensamento” e “sua irrestrita adesaoaos ideais liberais-democraticos, a cuja defesa se dedica todo o trabalho (The Open Societyand Its Enemies)” (pg. 19). A ideia muito repetida de que a erudicao que Popper revela,ao falar de Platao, esta cheia de pormenores sem interesse e, ela propria, uma ideia cheiade pormenores sem interesse – no sentido de que e reiterada sem base. Nao ha culpa,entretanto, dos filosofos de maior eminencia. Bertrand Russell escreveu: “Seu ataque aPlatao, embora nao ortodoxo, e, segundo creio, inteiramente justificado” e Gilbert Ryle, quee notavel especialista em Platao, deixou registrado na resenha que fez do livro de Popper,para Mind : “Seus estudos a proposito da historia grega e do pensamento grego, foram, semduvida, profundos e originais. A exegese platonica nunca mais se fara nos termos anteriores.”Um quarto de seculo depois, atraves da BBC Radio 3 (28 de julho de 1972), Ryle voltou aendossar, explicitamente, essa maneira de ver.

O platonismo, como tal, nao e uma questao viva no panorama polıtico e social do mundomoderno. Como nao o e, tambem, a filosofia dos pre-socraticos. Mas o marxismo e. Comefeito, sob um aspecto profundamente pratico, a contribuicao de Marx, tal como se apresentaem face da situacao de nosso tempo, nao tem paralelo na historia da humanidade. Ha menosde um seculo, vivia em Hampstead, com sua esposa e filhos, um intelectual ja com 50 anoscompletos, que devotava seus dias a ler e escrever, sendo pequeno o conhecimento que deletinha o publico. Menos de 70 anos apos sua morte, um terco de toda a especie humana,inclusive toda a Russia e seu imperio e toda a China, adotaram formas de sociedade que temdenominacao calcada em seu nome. Trata-se de um fenomeno cujo carater extraordinario naofoi ainda, segundo penso, suficientemente considerado. Poucos negarao, porem, que Marx eo filosofo que maior influencia exerceu nos ultimos cem anos e que e impossıvel compreendero mundo onde hoje vivemos, sem algum conhecimento de suas ideias polıticas e sociais. Aocontrario do que ha vinte anos atras ocorria, o interesse atual pelo marxismo, em nossasuniversidades e nos meios intelectuais jovens, em todo o mundo ocidental, esta aumentandoe nao diminuindo.

Ponto central do marxismo e sua afirmacao de constituir-se em doutrina cientıfica. Marxviu-se a si mesmo como, por assim dizer, o Newton ou o Darwin das ciencias historicas,

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polıticas e economicas – em verdade, daquelas que poderıamos, de maneira geral, denominarciencias sociais. “Dedicou seu livro (Das Kapital) a Darwin, por quem tinha maior ad-miracao intelectual do que por qualquer de seus outros contemporaneos, encarando-o comoalguem que, gracas a sua teoria da evolucao e da selecao natural, havia feito pela morfo-logia das ciencias naturais o que ele proprio estava tentando fazer no campo da historiahumana. Darwin declinou prontamente da honra, numa carta polida e cautelosamente es-crita, dizendo-se, infelizmente, ignorante da ciencia economica, mas desejando exito ao autor,naquilo que ele entendia ser um objetivo comum a ambos – o progresso do conhecimentohumano.”1 O nucleo da questao e o seguinte: Marx acreditava que o desenvolvimento dassociedades humanas estava disciplinado por leis cientıficas, das quais ele era o descobridor.A concepcao que fazia da ciencia era (inevitavelmente) pre-einsteiniana. A semelhanca doshomens bem informados de seu tempo, julgava que Newton houvesse descoberto leis natu-rais disciplinadoras dos movimentos da materia no espaco, de tal modo que, conhecidos osdados relevantes a respeito de qualquer sistema fısico, seria possıvel predizer-lhe todos osestados futuros. Podemos predizer o momento do Sol se levantar ou se deitar, os eclipses, osmovimentos das mares, e assim por diante. Contudo, embora as Leis Naturais nos permitampredizer o futuro do sistema solar, nao nos capacitam a exercer controle sobre ele. As Leis –caberia dizer – agem com ferrea necessidade, produzindo resultados inevitaveis, que estamosem condicoes de prever, mas nao de alterar. Marx contemplou as suas descobertas sob essemesmo prisma e firmou o paralelismo valendo-se de termos retirados da teoria newtoniana.Em Das Kapital, ele descreve sua atividade afirmando haver descoberto as “Leis Naturais daproducao capitalista”; adverte-nos de que “mesmo quando uma sociedade trilha os caminhoscertos que a conduzirao a descoberta das Leis Naturais de seus movimentos – e e objetivodesta obra colocar de modo explıcito a Lei Economica de Movimento da moderna sociedade– ela nao esta em condicoes (seja por meio de saltos ousados, seja por meio de estatutos le-gais) de afastar os obstaculos que se apresentam nas fases sucessivas de seu desenvolvimentonormal.” Acontece que as leis, ou tendencias, agem com ferrea necessidade, conduzindo aresultados inevitaveis. O paıs mais desenvolvido industrialmente so pode mostrar o futuroque espera o paıs menos desenvolvido”.

O fato de que Marx recebia com agrado o futuro inevitavel e irrelevante, do ponto de vistacientıfico. Falando estritamente, Marx nao podia defender o futuro inevitavel, assim comoum astronomo nao pode defender um eclipse que teve condicoes de prever; podia alegrar-se com a contemplacao dos acontecimentos, antecipar outros e sentir-se feliz com a suachegada. Marx insistiu varias vezes no carater cientıfico de sua teoria: ela fazia descricoes,mas nao prescricoes. Rejeitava, por contraste, outras formas do Socialismo, que classificavade “utopicas” – loas, na melhor das hipoteses, meras visoes, na pior. Popper aceita essadistincao que se traca entre, de um lado, a crenca marxista de que somos impotentes parafixar os rumos da historia e, de outro lado, a crenca utopica de que esta em nossas maosa capacidade de construir a sociedade perfeita. Em realidade, o marxismo foi amplamentedisseminado como se fora uma crenca deste segundo tipo e nessa condicao chegou a seracolhido pela maioria dos comunistas – que sao, pois, “marxistas vulgares”, na acepcaode Popper, ou “socialistas utopicos”, na acepcao de Marx. Segundo creio, o comunismo eutopico, mas nao o marxismo, de modo que aquela distincao importante deve ser retida emnossos espıritos.

Consequencia notavel do fato de o marxismo comparar-se a ciencia e a de que deve,para nao cair em contradicoes, defender, com exito, no plano das discussoes cientıficas, asposicoes que advoga. Em caso de derrota, nesse plano, nao lhe resta outro recurso, pois ficaimpedido de lancar mao de outras formas de argumentacao. Em resumo, o marxismo devesubmeter-se a testes e aceitar as consequencias deles advindas. O que se admite e haverPopper derrubado os proclamados alicerces cientıficos do marxismo – que se viram abalados

1Isaiah Berlin, Karl Marx, pg. 232.

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a ponto de impedir uma reconstrucao da teoria. Popper nao abalou os alicerces do marxismotentando mostrar que a teoria e irrefutavel. O marxismo vulgar e irrefutavel, mas Poppernao comete o erro de atribuir esse marxismo vulgar a Marx. A teoria de Marx, tratada coma seriedade intelectual que merece, permitiu numero consideravel de previsoes falseaveis –as mais importantes das quais se mostraram, de fato, falsas. Exemplificativamente, somenteos paıses capitalistas plenamente desenvolvidos poderiam, de acordo com a teoria, tornar-secomunistas; consequentemente, todas as sociedades deveriam preliminarmente completar afase capitalista, antes de se voltarem para o comunismo. Contudo, ressalvando-se o casoda Checoslovaquia, todos os paıses que se tornaram comunistas atravessavam fases pre-industriais – nenhum deles chegou a ser uma sociedade capitalista plenamente desenvolvida.Segundo a teoria, a revolucao teria de assentar-se no proletariado industrial. Entretanto,Mao Tse-Tung, Ho Chi-Minh e Fidel Castro refutaram a previsao, baseando suas bem su-cedidas revolucoes nos camponeses de seus respectivos paıses. Segundo a teoria, existemponderaveis razoes para que o proletariado industrial se torne mais pobre, mais numeroso,mais revolucionario e com maior consciencia de classe. O que se constata, porem, desde osdias de Marx, nos paıses industrializados, e que esse proletariado se vem tornando mais rico,tem diminuıdo em numero, esta perdendo a consciencia de classe e se tornou cada vez menosrevolucionario. De acordo com a teoria, o comunismo so poderia ser implantado pela acaodos trabalhadores, das massas.

Na realidade, contudo, em nenhum paıs (nem mesmo no Chile) o partido comunista con-seguiu apoio das maiorias, em eleicoes livres. Nas paıses em que o partido comunista con-seguiu domınio completo, isso se deveu a uma imposicao feita por um exercito – geralmentede nacao estrangeira. A teoria tambem previa que os meios de producao do capitalismo seconcentrariam nas maos de um numero cada vez menor de pessoas. Todavia, com a criacaodas companhias de capital social, a propriedade se dispersou de tal maneira que passou asmaos de uma nova classe de administradores profissionais. O surgimento dessa classe e, porsi mesmo, refutacao da previsao marxista, segundo a qual todas as classes tenderiam a desa-parecer, polarizadas em apenas duas – a classe decrescente dos Capitalistas, dos proprietariose controladores que nao trabalhariam, e a classe cada vez mais ampla do Proletariado, quetrabalharia sem ter propriedades ou exercer controle.

De outra parte, para encarar o tema sob outro prisma, o que Marx e Engels tinham adizer acerca das ciencias tornou-se obsoleto em virtude do proprio desenvolvimento dessasciencias; as concepcoes acerca da materia, por exemplo, viram-se superadas pela fısica pos-einsteiniana; e as concepcoes acerca do comportamento individual foram suplantadas pelapsicologia pos-freudiana. O fundamento ricardiano da economia marxista foi abandonadodepois de surgidas as ideias de Keynes; a logica hegeliana, que serviu de base ao marxismo,tambem foi olvidada quando surgiram as logicas pos-fregianas. As ideias marxistas acerca dodesenvolvimento das instituicoes polıticas tambem diferiram muito do que realmente ocorreu– sobretudo (creio eu) porque nao levavam em conta, com a seriedade devida, o crescimentoda democracia parlamentar. Esta falha foi decorrencia da propria teoria marxista, queimpedia os seus adeptos de encarar seriamente a possibilidade de um tal crescimento.

Tudo isso e refutacao da teoria – uma teoria que reclama status cientıfico em razao deadotar o metodo basico de submeter suas previsoes ao teste da experiencia, podendo con-cluir que sao falsas. Lembremos, contudo, referindo-nos a capıtulos anteriores, que emboraseja esse o teste mais importante que uma teoria devera vencer, nao e o unico: tem ela depreencher ainda os criterios logicos de compatibilidade e coerencia interna. O ponto funda-mental do marxismo, de acordo com o qual o desenvolvimento dos meios de producao e ounico de terminante de transformacao social, revela-se logicamente incoerente, pelo fato deque a teoria nao pode explicar de que maneira os meios de producao se desenvolvem, emvez de permanecerem os mesmos. A concepcao de Marx, de acordo com a qual a historiase desenvolve de conformidade com leis cientıficas, e um exemplo do que Popper denomina

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“historicismo”. “Considero ‘historicismo’ a forma de abordar as ciencias sociais que presumeser a previsao historica o principal objetivo e que presume ser esse objetivo atingıvel pormeio da descoberta de ‘ritmos’ ou de ‘padroes’, ‘leis’ ou ‘tendencias’ subjacentes a evolucaoda historia.”2 Exemplos de crencas historicistas sao: a dos judeus do Velho Testamento, namissao de povo eleito; a dos primeiros cristaos, na inevitabilidade das conversoes em massa,seguidas pela segunda vinda; a de alguns romanos, no destino de Roma, como dominadorado mundo; a dos liberais iluministas, na inevitabilidade do progresso e na perfectibilidadedo homem; a de muitos socialistas, na inevitabilidade do socialismo; a de Hitler, na criacaode um Imperio de mil anos. Basta relacionarmos alguns dos mais famosos exemplos paranotarmos o seu baixo ındice de concretizacao. Deixadas de lado algumas teorias especıficas,e muito difundida a nocao de que a historia deve ter uma destinacao; se nao isso, uma tramapropria ou, de qualquer modo, um significado ou, pelo menos, algum tipo de padrao decoerencia.

Desde que se pretenda debater seriamente a inevitabilidade historica, torna-se possıveloferecer um limitado numero de explicacoes. A historia estara sendo orientada por algumainteligencia exterior (usualmente Deus), de conformidade com propositos proprios. Ou ahistoria estara sendo impelida por alguma inteligencia interior (espırito imanente, forca vital,ou alguma entidade como “o destino do homem”). Ou nao havera, de modo algum, espırito,caso em que deverao estar operando processos materiais de carater inteiramente determinista.As duas primeiras alternativas tem, de forma obvia, feicao metafısica: nao sao refutaveis e,por certo, nao sao cientıficas. A terceira apoia-se numa concepcao de ciencia que nao e maissustentavel.

As razoes que levam Popper a rejeitar essas concepcoes defluem claramente de tudoquanto neste livro ja se deixou registrado. Ele e um indeterminista, acreditando que atransformacao e o resultado de nossas tentativas de resolver problemas e que nossas tentativasde resolver problemas envolvem, entre outros imprevisıveis, imaginacao, escolha e sorte. Comreferencia a esses elementos, somos responsaveis por nossas escolhas. Na medida em quequalquer processo de orientacao esteja operando, somos nos que impelimos a historia parafrente, por meio de nossa interacao com os outros e com o ambiente fısico (o qual, comoespecie, nao criamos) e com o Mundo 3 (que, como especie, criamos, mas que cada indivıduoherda e so muito reduzidamente pode alterar). Quaisquer propositos que a historia incorporeserao nossos propositos. Qualquer sentido que a historia encerre sera o que nos lhe demos.

Do ponto de vista destas ideias, Popper combate todas as teorias historieistas. E aquelacontra a qual dirige o ataque mais poderoso e o marxismo, tanto porque essa e a doutrinaque, entre todas as doutrinas historicistas, maior influencia exerce sobre o mundo moderno,como porque e a que mais alto proclama ocorrer o desenvolvimento da historia segundo leiscientıficas, habilitando-nos o conhecimento dessas leis (conhecimento propiciado pela dou-trina) a predizer o futuro. O ponto mais especializado do argumento de Popper consiste emmostrar que nao ha meio cientıfico de um cientista ou de maquina de calcular predizer, pormetodos cientıficos, quais serao os resultados futuros da previsao. Em termos mais populares,o argumento toma a seguinte feicao. E facil mostrar que o curso da historia humana viu-sefortemente influenciado pelo aumento do conhecimento humano, fato que mesmo as pessoasque tendem a encarar o conhecimento como subproduto do desenvolvimento material podemadmitir sem incorrerem em autocontradicao. E entretanto logicamente impossıvel predizero conhecimento futuro: se pudessemos predizer o conhecimento futuro, nos o estarıamosdominando hoje e ele nao seria futuro; se pudessemos predizer os futuros descobrimentos,eles seriam descobrimentos atuais. Daqui decorre que se o futuro encerra descobrimentossignificativos, isso e de previsao cientıfica impossıvel, ainda que determinado independen-temente de desejos humanos. Ha um outro argumento: se o futuro fosse cientificamente

2The Poverty of Historicism, pg. 3.

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previsıvel, nao poderia, uma vez descoberto, permanecer secreto, pois seria, em princıpio,passıvel de redescobrimento por qualquer pessoa. Isso nos defrontaria com um paradoxoacerca da possibilidade/impossibilidade de adotar acao evasiva. Com base apenas nessesfundamentos logicos, o historicismo se desmorona; e devemos rejeitar a nocao, central noprograma do marxismo, de uma historia teoretica em correspondencia a uma fısica teoretica.

Com o colapso da nocao de que o futuro seja cientificamente previsıvel, entra em colapso,tambem, o conceito de uma sociedade totalmente planejada. Ha como demonstrar, ainda,que, do ponto de vista logico, isso e incoerente sob outros aspectos: antes de tudo, porqueaquela nocao nao nos pode propiciar uma resposta plausıvel para a pergunta: “Quem planejaos planejadores?”; e, em segundo lugar porque, tal como anteriormente vimos, cabe esperar,em todos os casos, que nossas acoes tenham consequencias nao desejadas. Este ultimo ponto,acentuemo-lo de passagem, expoe a falacia existente na presuncao geralmente feita pelosutopistas (embora nao por Marx – a verdade, os marxistas abordam esse ponto de maneiramais clara que muitos social-democratas), segundo a qual “quando algo ‘mau’ ocorre nasociedade, quando ocorre algo que nos desagrada – como guerra, pobreza, desemprego – deveisso ser o resultado de alguma intencao ma, de algum sinistro desıgnio: alguem assim agiu‘de proposito’; e, naturalmente, alguem esta tirando proveito da situacao. Esse pressupostofilosofico foi por mim denominado teoria social da conspiracao.”3 Outros aspectos do ataquede Popper ao marxismo encontram apoio em argumentos ja anteriormente expostos nestelivro e de repeticao dispensavel. O mais importante deles e o de que Marx, apresentando oque ele denominou “socialismo cientıfico”, errava nao apenas no que diz respeito a sociedade,mas ainda no que diz respeito a ciencia, tendo Marx uma concepcao de ciencia que Popperacredita haver superado. Se Popper esta certo a respeito de ciencia, a sua e a unica filosofiapolıtica genuinamente cientıfica; e, alem disso, o que e mais importante, a hostilidade contra aciencia e a revolta contra a razao, que se expressam tao fortemente no mundo contemporaneo,estao dirigidas, em verdade, contra falsas concepcoes de ciencia e de razao.

O argumento de Popper, segundo o qual nao podemos encontrar, na historia, significadooutro que nao o a ela emprestado por seres humanos, tem, psicologicamente, efeito pertur-bador, porque desorientador, sobre certas pessoas que, por forca dele, se sentem colocadasem uma especie de vazio existencialista. Outras temem, que, se Popper esta certo, sao ar-bitrarios todos os valores e normas. Esta ultima incompreensao e muito bem consideradaem The Open Society (vol. 1, pp. 64-65). “Quase todas as incompreensoes remontam a ummal-entendido fundamental, ou seja, a crenca de que ‘convencao’ implica ‘arbitrariedade’;que, se formos livres para escolher o sistema de normas desejado, um sistema sera tao bomquanto qualquer outro. Importa, naturalmente, admitir o ponto de vista de que, serem asnormas convencionais ou artificiais, indica a presenca de certo elemento de arbitrariedade,isto e, de que pode haver diferentes sistemas de normas entre os quais a escolha sera mais oumenos indiferente (fato que foi devidamente sublinhado por Protagoras). Artificialidade naoimplica, entretanto, de maneira alguma, total arbitrariedade. Os calculos matematicos, porexemplo, ou as sinfonias, ou as pecas de teatro sao altamente artificiais e daı nao decorre,porem, que um calculo ou sinfonia ou peca seja tao bom quanto outro.” Explicacao completado porque assim ocorre e de qual acredita Popper ser a verdadeira orientacao do homem, saopropiciadas por sua teoria evolutiva do conhecimento, em particular por sua teoria relativaao Mundo 3, que se encontra em obras por nos ja discutidas, mas publicadas em perıodoposterior ao que ora examinamos.

Alguns dos argumentos de Popper contra o marxismo aplicam-se igualmente ao utopismo– por exemplo, seu argumento contra a possibilidade de as sociedades serem “arrasadas” esubstituıdas por algo “inteiramente novo”. “A abordagem utopica pode ser descrita daforma seguinte. Toda acao racional deve ter certo objetivo. E racional no mesmo grau emque persiga consciente e coerentemente seu objetivo e na medida em que determine os meios

3Popper, in Modern British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 67.

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de acordo com esse fim. Escolher o meio e, portanto, a primeira coisa que temos de fazer sedesejamos agir racionalmente; e devemos ser cautelosos no determinar nossos fins efetivos, ouultimos, dos quais importa distinguir claramente os objetivos que sejam intermediarios, ouparciais, e que sao, em verdade, tao-somente meios ou degraus no caminho para o fim ultimo.Se nao fizermos esta distincao, nao havera como indagar se esses fins parciais sao suscetıveisde levar ao fim ultimo e, nesses termos, falharemos no agir racionalmente. Esses princıpios,se os aplicarmos ao domınio da atividade polıtica, exigirao que determinemos nosso objetivopolıtico ultimo, ou Estado Ideal, antes de iniciar qualquer acao pratica. Somente quando esseobjetivo ultimo esteja determinado, pelo menos em linhas gerais, apenas quando estejamosde posse de algo como um esboco da sociedade que objetivamos, somente entao poderemoscomecar a considerar os melhores caminhos e meios para a sua concretizacao, tracando umplano para a acao pratica.”4

Os argumentos de Popper contra qualquer abordagem da polıtica, a partir de um esboco,seguido da tentativa de concretiza-lo, tem de ser enfrentados por qualquer idealista quedeseje seriamente ser um idealista sem ilusoes. Inicialmente, ha o argumento de que, estejaa pessoa onde estiver, nao lhe resta recurso senao o de comecar onde esta. Ja nao e maispossıvel comecar do nada, em polıtica, o mesmo valendo para a epistemologia, ou para aciencia ou para as artes. Toda transformacao real – usando essa palavra como oposta ateorica – so pode ser transformacao de circunstancias realmente existentes. Os utopistasasseveram comumente que, antes de isto ou aquilo poder ser alterado, tera de ser alteradaa sociedade como um todo; e isso, entretanto, leva a asseveracao de que, antes de se alteraruma coisa, deve-se alterar tudo, o que e contraditorio. Em segundo lugar, todas as nossasacoes terao algumas consequencias indesejadas que facilmente se oporao ao esboco feito. Equanto mais ampla a acao, maiores as consequencias indesejadas. Defender a racionalidade devastos planos de transformacao da sociedade como um todo e afirmar grau de pormenorizadoconhecimento sociologico, simplesmente inexistente. Falar a maneira utopista acerca demeios e de fins e usar enganosamente uma expressao metaforica: aquilo que esta realmenteem causa e um conjunto de acontecimentos, proximos no tempo, aos quais se faz alusaochamando-lhes “os meios”, seguido por outro conjunto de acontecimentos, mais distanciado,a que se da o nome de “o fim”. Contudo, eles serao, por sua vez, seguidos – a menos quea historia simplesmente se detenha – por outros conjuntos de acontecimentos sucessivos.Nesses termos, o fim nao e, de fato, um fim, e nao se pode, fundamentadamente, reclamarprivilegios para aquilo que se constitui simplesmente no segundo conjunto de acontecimentos,numa serie interminavel. Alem disso, o primeiro conjunto de acontecimentos, estando maisproximo no tempo, e mais suscetıvel de se materializar da maneira imaginada do que osegundo conjunto, que esta mais distante e e mais incerto. As recompensas prometidas poreste ultimo sao menos seguras do que os sacrifıcios feitos para alcanca-las em relacao aoprimeiro conjunto. E se todos os indivıduos podem moralmente reclamar o mesmo, e erradosacrificar uma geracao a geracao seguinte.

Quanto ao esboco mesmo, e fato suscetıvel de comprovacao o de as pessoas diferiremcom relacao ao tipo de sociedade que desejam – mesmo os conservadores, os liberais e ossocialistas tradicionais assim agem, para nao falar em outros. Assim, qualquer grupo queassuma o poder, com o objetivo de concretizar seu esboco, tera de neutralizar a oposicaodos outros, se nao de coagi-los a servir um fim do qual discordem. Enquanto uma sociedadelivre nao pode impor objetivos sociais comuns, um governo com finalidades utopicas temde faze-lo e se inclinara a tornar-se autoritario. A reconstrucao radical da sociedade e umvasto empreendimento que se pode esperar tome longo tempo – so remotamente cabe espe-rar que os objetivos e ideias e ideais sociais nao se modifiquem substancialmente duranteesse tempo, especialmente se ele for, como por definicao devera ser, um tempo de levanterevolucionario. E se os objetivos, ideias e ideais se transformam, aquilo que pareceu a mais

4The Open Society and Its Enemies, vol. 1, pg. 157.

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desejavel forma de sociedade, mesmo para os que a esbocaram, se afastara mais e mais doenfoque inicial – e mais ainda do que possam desejar seus sucessores, que nada tiveram como esboco original. Este ponto se relaciona a outro argumento: ocorre que os planejadores saoparte da sociedade que desejam arrasar e a experiencia social e, portanto, os pressupostose os objetivos sociais que tem estarao profundamente condicionados por ela. Assim, arrasarverdadeiramente aquela sociedade implica arrasarem-se a si mesmos e aos proprios planos.De modo geral, uma reconstrucao da sociedade que desca as raızes que, por esse motivo,exija longo tempo, abalara e desorientara enorme numero de pessoas, dando margem, dessamaneira, a ampla hostilidade, tanto psicologica quanto material; cabe esperar, pois, que pelomenos algumas pessoas se oponham a medidas que ameacam fazer pesar sobre elas efeitosdessa ordem. Essas pessoas serao vistas pelos detentores do poder, empenhados em concre-tizar a sociedade ideal, como pessoas que se opoem ao bem geral por interesse particular –e nisso havera meia verdade. Serao essas pessoas vistas como inimigas da sociedade. Issoas tornara, inevitavelmente, vıtimas do que ocorra. Sendo inatingıveis os ideais, sua pre-tendida materializacao exige longo tempo e se prolonga o perıodo durante o qual a crıticae a oposicao devam ser sufocadas; dessa forma, a intolerancia e o autoritarismo se intensi-ficarao, movidos, embora, pelas melhores intencoes. Precisamente porque as intencoes e osobjetivos sao ideais, a persistente falha no se materializarem dara surgimento a acusacoes deque alguem esta prejudicando o esforco – deve haver sabotagem ou interferencia estrangeiraou lideranca corrupta, pois todas as explicacoes que tornam incabıvel a crıtica da revolucaoatribuem malignidade a alguem. Torna-se preciso identificar esse alguem e elimina-lo; e seculpados deve haver, culpados serao encontrados. A essa altura, o regime revolucionarioestara mergulhado nas imprevistas consequencias dos seus atos. Com efeito, mesmo apos osinimigos da revolucao terem recebido punicao, os objetivos revolucionarios continuarao, obs-tinadamente, a nao se concretizar; e o grupo dirigente sera levado, cada vez mais, a se apegara solucoes imediatas para problemas urgentes (aquilo que Popper chama “planejamento naoplanejado”), o que e, usualmente, um dos motivos que mais levava esse grupo a criticar osregimes precedentes. Isso abrira ainda mais o abismo entre os objetivos declarados e o queefetivamente esta sendo feito – e o que esta sendo feito vem a assemelhar-se crescentementeas atividades dos governos mais cinicamente nao utopistas.

A verdade e que quase todos nos exigimos que os aspectos relevantes da ordem so-cial continuem operando ao longo de qualquer reconstrucao: as pessoas devem continuara alimentar-se, vestir-se, morar; as criancas, caso nao se transformem inaceitavelmente emvıtimas, devem continuar a ser educadas e cuidadas; os servicos medicos, de polıcia, de bom-beiros, de transporte, hao de continuar operando. Numa sociedade moderna essas coisasdependem de uma organizacao em larga escala. Afasta-las de um momento para outro seriacriar literalmente um caos; e acreditar que disso emergira, de alguma forma, a sociedadeideal, toca as raias da loucura, o mesmo se dando com a crenca de que uma sociedade algomelhor do que aquela que temos podera mais facilmente emergir do caos do que da socie-dade que temos. Nao obstante, ainda que estivessemos determinados a arrasar tudo e tudocomecar de novo, jamais o conseguirıamos, a despeito de nossos sonhos de perfeicao. A hu-manidade se parece com a tripulacao de um navio no mar. Pode remodelar qualquer partedo navio e pode remodela-lo inteiramente, parte por parte, mas nao pode remodela-lo todode uma so vez.

O fato de que a transformacao nunca se detem priva de sentido a nocao mesma de esbocode uma sociedade perfeita pois ainda que a sociedade se conformasse ao esboco, nesse mesmoinstante comecaria a divergir dele. Assim, as sociedades ideais nao sao inatingıveis apenasporque sejam ideais, mas sao inatingıveis tambem porque, para corresponder a qualquerespecie de esboco, teriam de ser estaticas, fixas, inalteraveis; e nao ha sociedade imaginavelque venha a ajustar-se a tais exigencias. E verdade que a intensidade de transformacao socialparece tornar-se mais rapida, e nao mais lenta, com o passar de cada ano. E esse processo

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nao tera, tanto quanto podemos imaginar, um fim. Dessa maneira, para ter a veleidadede corresponder ao real uma abordagem polıtica deve preocupar-se nao com os estadas decoisas, mas com a transformacao. Nossa tarefa nao e a tarefa impossıvel de estabelecer epreservar uma particular forma de sociedade: e a de elevar ao maximo nosso controle sobreas transformacoes que efetivamente ocorrem num incessante processo de transformacao – eusar avisadamente esse controle.

As estruturas autoritarias incorporam as mesmas erroneas nocoes de certeza e as mes-mas erroneas presuncoes acerca do metodo que estao presentes na concepcao tradicional deciencia. Por isso, os argumentos sobre os quais repousa a crıtica de Popper a concepcao deque, em polıtica, podemos, para nao falar devemos, estabelecer e preservar certo estado dasociedade e a mesma, ponto por ponto, que serve de apoio a crıtica que ele dirige contra aconcepcao de que a ciencia pode, para nao dizer deve, estabelecer e preservar certo conhe-cimento. Sua concepcao, concepcao que se opoe a exposta, concepcao de que a ciencia emetodo cientıfico, e concepcao acerca de como tal metodo deve ser encarado, relacionam-sea sua concepcao de que a polıtica e metodo polıtico e a sua concepcao de como tal metododeve ser encarado. Em ambos os casos, Popper nos pede que utilizemos, com imaginacao esentimento, um interminavel processo de realimentacao, no qual a proposicao de ideias novase invariavelmente acompanhada por uma submissao dessas ideias a um rigoroso processo deeliminacao de erros, a luz da experiencia. A essa abordagem denomina ele “racionalismocrıtico”, em filosofia; em polıtica, da-lhe o nome de “engenharia social fragmentaria” (“pie-cemeal social engineering”). Essa expressao e tres vezes infeliz: “fragmentaria” e vocabuloque tem, as vezes, sentido pejorativo, apresentando, aqui, a segunda e adicional desvantagemde mascarar o radicalismo do metodo proposto; de outra parte, “engenharia” tem conotacoesdesagradaveis quando aplicada a seres humanos. A palavra soa como algo frio, mas nadapoderia ser mais apaixonado que a defesa que dela faz Popper, ou mais humano que algunsargumentos por ele usados. Tentando mostrar que sua filosofia e um todo uno, concentrei-me,ao escrever este livro, nos argumentos logicos e em suas interligacoes, porem de importanciaainda maior sao os argumentos morais; para deles tomar conhecimento e para muito maisde que nao pudemos tratar, aconselhamos o leitor a procurar as obras de Popper.

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POS-ESCRITO

Quando Logik der Forschung devia aparecer em ingles, 25 anos apos a sua publicacao emlıngua alema, Popper tencionou juntar um pos-escrito a obra, indicando pontos em que suaconcepcao se havia alterado. As notas cresceram de tal forma que se transformaram em outraobra. Afinal, The Logic of Scientific Discovery foi divulgada sem as notas e o Pos-escritopermaneceu em provas tipograficas desde 1957. Em minha opiniao, o Postscript e obra detanta importancia quanto as outras ja publicadas; em particular, o “Epılogo Metafısico” estaentre as melhores coisas escritas por Popper e seria bom que fosse publicado com a brevidadepossıvel.

Entretanto, o fato e que Popper so chegou a divulgar, ate o presente, pouco mais dametade de sua obra. Ainda permanecem ineditos trabalhos longos (que assumiriam formade livro ou quase isso) acerca da teoria da relatividade de Einstein, do Mundo 3 de Popper,do problema corpo-mente, da evolucao e da filosofia da linguagem, tal como ele a considera;junte-se a isso toda uma serie de artigos e conferencias, em que outros temas sao abordados.Boa parte desses trabalhos sera divulgada, de uma forma ou de outra. Dois novos livros jase acham no prelo no momento em que redigimos estas linhas: Philosophy and Physics e ThePhilosophy of Karl Popper, na serie “Library of Living Philosophers”, editada por Paul A.Schilpp. Este ultimo livro contem, como outros volumes da mesma serie, uma autobiografiaintelectual, uma lista completa das obras publicadas e uma “Replica aos meus Crıticos”.Acresce que Popper continua a produzir. Assim, embora ele ja tenha atingido a casa dossetenta, a quantidade de trabalhos originais que ainda devera vir a lume e tao grande que afilosofia de Popper deve ser encarada como uma filosofia ainda em pleno desenvolvimento.

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Page 58: As Ideias de Popper

BIBLIOGRAFIA

Livros de Karl Popper:The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson; publicado em 1959; ultima edicao revista

(segunda), em 1968. Trata-se de versao inglesa, com notas de rodape e apendices, da obraLogik der Forschung, publicado em Viena em 1934 (com data de 1935).

The Open Society and Its Enemies, Routledge & Kegan Paul, dois volumes, publicadosem 1945; ultima edicao revista (quinta), em 1966.

The Poverty of Historicism, Routledge & Kegan Paul, publicado, em forma de livro, em1957; edicao corrigida, em 1961.

Conjectures and Refutations: the Growth of Scientific Knowledge, Routledge & KeganPaul, 1963; ultima edicao revista (quarta), em 1972.

Objective Knowledge: An Evolutionary Approach, Oxford University Press, publicado em1972.

Ver, ainda, as contribuicoes de Karl Popper em Modern British Philosophy, de BryanMagee, publicado em 1971 por Secker & Warburg.

N . B . Todos os livros citados podem ser adquiridos em volumes encadernados ou embrochuras.

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