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Scintilla vol. 3, n. 1 - saoboaventura.edu.br · J. of the Muhyiddin Ibn ‘Arabi Society, XXIX, 2001: 87-121; p. 95, n. 7 [com inserções nossas]). 4 Tawhîd significa literalmente

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SCINTILLA

REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 3, n. 1, p. 1-210 jan./jun. 2006

Faculdade de Filosofia São Boaventura - FFSB

Curitiba PR

2006

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Copyright © 2004 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Centro Universitário Franciscano do Paraná FFSB – Faculdade de Filosofia São Boaventura NPA – Núcleo de Pesquisa Acadêmica (Área de Filosofia medieval e pensamento franciscano) Faculdade mantida pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected]

Reitor: Gilberto G. Garcia Diretor: Vicente Keller Editor: Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorial Emanuel Carneiro Leão, UFRJ Orlando Bernardi, IFAN Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia) Ulrich Steiner, FFSB Jaime Spengler, FFSB João Mannes, FFSB

b) Conselho editorial Vagner Sassi, FFSB Marco Aurélio Fernandes, IFITEG Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR Joel Alves de Souza, UFPR Gilvan Luiz Fogel, UFRJ Hermógenes Harada

Revisão e editoração: Enio Paulo Giachini Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches

Catalogação na fonte _____________________________________________________________ Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia São Boaventura, v.1, n.1, 2004- Semestral ISSN 1806-6526 1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5 ____________________________________________________________

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SUMÁRIO EDITORIAL ARTIGOS

Cohen A experiência de Deus na mística sufi: alguns lampejos

Edrisi Fernandes A luz do nada – Possibilidade da experiência do nada e de Deus

Ulrich Stein O De viose dei como expressão da experiência religiosa em Nicolau de Cusa

Maria Simone Marinho Nogueira A infinidade e a eternidade divinas no livro da contemplação de Raimundo Lullo

Ricardo da Costa Mística e experiência religiosa: um ponto de vista filosófico

Sérgio L. de C. Fernandes COMENTÁRIOS

Da substância do nada – Comentário-fantasia do opúsculo de Fredegis de Tours, “Do nada e das trevas”

Hermógenes Harada ENTREVISTA

Entrevista com Monja Coen Sensei – soto zen budismo – sobre experiência religiosa TRADUÇÕES

Do nada e das trevas - Carta de Fredegis aos maiorais do Palácio (Epistola de nihilo et tenebris. Ad proceres palatii)

Fredegis de Tours Diálogo sobre o Deus abscôndito entre um pagão e um cristão (De deo abscondito)

Nicolau de Cusa Do desprendimento e da posse de Deus

Mestre Eckhart RESENHAS

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EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

Está aí o vol. 3, n. 1 de Scintilla. Pensamos em unir forças bem diversificadas para pensar a questão de deus. Perguntar, questionar, abrir espaço para a aproximação e compreensão. Não temos nesse número uma acepção unitária do tema. Até porque o conceito da revista é ser plural. A singularidade fica por conta do empenho e desprendimento do pensamento na abordagem da questão, seja de quem escreve, seja de quem lê e estuda. Não temos sequer uma resposta precisa. A ingratidão e aridez de se discorrer sobre ou apartir de deus, como se queira, pode ser suavisada se pensarmos com Nicolau de Cusa, que “toda e qualquer resposta à questão de Deus não é uma resposta autêntica e precisa, pois existe apenas uma única e infinita resposta, que é o próprio Deus. Toda resposta participa da resposta absoluta, que é infinita precisâo”1.

Vale todavia manter ciência da imensidão e vastidão dessa questão. A experiência da imensidão nada acresenta à mesma, mas quem sabe alarga o coração receptivo.

“Ao fazer a experiência do sagrado, o homem tem novo acesso e nova visão da realidade... Em tudo que é humano o homem toca também o divino”2. Pois quem olha, não se aniquilando no visto, tem uma enfermidade, tem uma quebradura. No modo de ser corpóreo, algo não pode estar inteiramente no outro. No modo de ser do espírito, uma coisa está inteiramente noutra.

O artigo do E. Fernandes descreve traços da mística islâmica, com acento na versão sufi. Mostra seu caminho todo próprio e a possível relação entre homem, mundo e Deus dentro dessa tradição espiritual. Parafraseando Pascal, podemos dizer que o essencial dessa busca é a necessidade de a razão fazer troça da própria razão diante do que a ultrapassa, do que lhe anterior e posterior. A vida do espírito (humano) descobre, percebe e acusa uma pertença que a ultrapassa, na infusão e efusão, no interior e no exterior, em deus e no mundo.

A seguir D. Fr. Ulrich Steiner provoca a pensar a respeito das figuras, nomes, apreensões de deus. Estamos às voltas com a inquietação do vazio desses nomes. A luz e o aparecer desse nada também é uma experiência atual e atuante. Terá neles ainda uma referência à experiência originária e originante dessas figuras? Tradição pode ainda ser traduzida no intermeio dessas figuras vazias? Talvez o pensamento precise mais do que nunca da coragem de pensar e demorar-se na luz do nada, sem pressa para buscar substitutos.

Com alegria deparamo-nos com um texto que reflete a partir do De visione dei, de Nicolau de Cusa, escrito por Maria S.M. Nogueira. A seu modo, a autora descreve o diálogo acerca da experiência do espírito. O encontro com o princípio se dá além da capacidade apreensiva dos sentidos, da capacidade racional e intelectual, na coincidência dos opostos. Nos interstícios vemos a preocupação, sempre latente na medievalidade, da precedência entre intelecto e amor.

1 CUSA, N. Philosophisch-theologische Schriften. Band III, Wien: Herder, 1967, p. 461. 2 ROMBACH, H. Leben des Geistes. Freiburg, Basel, Wien: Herder, 1977, p. 163.

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Ricardo da Costa participa dessa discussão descrevendo, segundo R. Lullo, o pensamento da infinidade e eternidade divinas, cuja dimensão o pensamento não consegue abarcar. Se a imaginação e o intelecto não os alcançam, o poderá o caminho do amor.

Um texto especulativo, de autoria de Sérgio Fernandes, reflete que “a mística não é privilégio de alguns. Não se trata de estados alterados de consciência. Ela está presente em todo humano, independentemente de sua vontade, religião ou credo. Pela analogia da luz, pode-se ter uma idéia do que ele descreve.

O comentário de Fr. Hermógenes se detém no texto de Fredegis de Tours, que traduzimos, Do nada e das trevas. O nada é algo, é substância. A substância está sendo compreendida no sentido medieval, e não moderno, “em sua excelência qualitativa, denominada espírito. O espírito não é algo espiritual. É a substância, a substancialidade ela mesma na plenitude de sua vigência e qualificação”. Pergunta-se, concluindo, se o nada, sua substância, a pura matéria-prima, a potentia oboedientialis, não será o próprio Deus de amor e de encontro de amor, no vigor e na ternura da pura recepção e doação do encontro?

Completa este volume uma entrevista sobre experiência religiosa no zen bucismo com Monja Coen Sensei, de Pinheiros, SP.

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A EXPERIÊNCIA DE DEUS NA MÍSTICA ISLÂMICA: ALGUNS LAMPEJOS SUFIS

Edrisi Fernandes* INTRODUÇÃO Embora num certo contexto a mística islâmica possa ser tomada como sinônimo da

mística dos sufis (sûfiyya; mutasawwifûn) ou sufismo (tasawwuf)1, a história do Islã2

dá conta da existência de místicos que se sentem ou sentiram mais à vontade com a

qualificação de conhecedores/gnósticos (ârifûn), de “gente da gnose (ahl al-‘irfân)”

ou de “gente da Haqq3 (ahl al-Haqq)”, e mesmo com nenhuma qualificação exceto

aquela de fiéis/crentes (mu’minûn/mu’minîn) ou de muçulmanos (muslimûn -

“aqueles que se submetem [a Deus]”), preocupados em internalizar e dar corpo à

doutrina fundamental da fé islâmica, a unidade (tawhîd)4 de Deus. Também se sabe

que diversos místicos – do Islã bem como de outras crenças – são ou foram

acusados de descuidarem muitas vezes dos aspectos exteriores da religiosidade,

em detrimento dos aspectos interiores (nem sempre transparentes a observadores

alheios a experiências de transformação espiritual individual). O texto que se segue

pretende fornecer alguns subsídios para que um leitor de nível universitário, ainda

que pouco familiarizado com a tradição islâmica, possa vislumbrar um pouco daquilo

que essa rica tradição ensina a respeito da experiência da relação do homem com

Deus e com a criação enquanto teofania de Deus. A seleção das referências * Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN < [email protected] >. 1 Como p. ex. em NICHOLSON, Reynold A. The Mystics of Islam [1914]. Londres: Arkana, 1989, p. 8, e em AZEVEDO, Mateus Soares de. Mística islâmica: atualidade e convergência com a espiritualidade cristã. Petrópolis: Vozes, 2000. Um tratamento bem mais complexo da questão é-nos oferecido por AMOR RUIBAL, Angel. Los Problemas Fundamentales de la Filosofia y del Dogma (nova ed. e introdução por Saturnino Casas Blanco), vol. II. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas/Instituto de Filosofia “Luis Vives”, 1974, cap. VI (“El intuicionismo místico – mística árabe”), p. 189-227. Cf. tb. MASSIGNON, Louis. Essay on the Origins of the Technical Language of Islamic Mysticism. trad. Benjamin Clark. Notre Dame, Indiana: Univ. of Notre Dame Press, 1997, p. 104s. 2 “A mais transcendental de todas as religiões superiores”, na opinião de HAPPOLD, Frederick Crossfield. Mysticism - A Study and an Anthology. 2 ed. Harmondsworth, Reino Unido/Baltimore, E.U.A.: Penguin Books, 1964, p. 218. 3 Termo que “abrange tanto a ‘Realidade’ [também: Verdade, Certeza] divina quanto tudo o que é certo e devido [por direito] ou obrigatório como uma dimensão inseparável dessa mesma Realidade” (MORRIS, James Winston. “Ibn ‘Arabî in the ‘Far West’”. J. of the Muhyiddin Ibn ‘Arabi Society, XXIX, 2001: 87-121; p. 95, n. 7 [com inserções nossas]). 4 Tawhîd significa literalmente “tornar [ou fazer] um”. “A efetuação da tawhîd pela supressão do ‘eu’: não diga mais ‘a meu ver’, ‘por mim’, ‘de mim’, ‘para mim’ (...) A Tawhîd consiste em apagar todo traço de humanidade (mahw âthâr al-bashariyya) a fim de que surja, despojada, a divindade (tajarrud al-ulûhiyya)” (QUSHAYRÎ, Abû’l-Qasîm al-. Risâla al-Qushayriyya. ed. Ma‘rûf az-Zurayq e ‘Alî ‘Abd al-Hamîd al-Baltajî. Beirute: Dâr ar-Risâlat, 1988/1408, p. 302).

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consultadas e a contextualização das passagens citadas do Corão e da Suna foram

feitas sob um enfoque sufi, e não intencionaram ser ofensivas a quaisquer das

correntes do pensamento muçulmano, sejam elas sunitas ou xiitas.

A SENDA DO BUSCADOR E SUA META Conforme a revelação de Deus e o ensinamento dos profetas e dos eleitos, o

buscador deve desenvolver a pureza do corpo, dos sentidos e do coração, e uma

disposição para buscar a Deus sempre e em todo lugar, para que esteja preparado

para a ocasião do encontro. O encontro mais completo passa pelo aniquilamento do

eu, que pode ser entendido como transcorrendo em três instâncias5: fanâ’

(aniquilação do eu pessoal), baqâ’ billah (permanência em Deus)6, e fanâ’ al-fanâ

(aniquilação da aniquilação)7. Conforme o shaykh Sharaf ad-Dîn Ah mad ibn Yahyâ

al-Manîrî (al-Manêrî; m. em 1381/782)8, “perguntaram ao khwâjâ Bâyazid9: ‘Qual o

caminho para Deus?’ Ele respondeu: ‘Quando tiveres te volatizado no Caminho,

então terás chegado a Deus’. Registra isto: se alguém apegado ao Caminho não

pode ver a Deus, como poderia vê-Lo alguém apegado ao eu?” (Maktûbât-i Sadî,

epístola 51)10. Ainda segundo al-Manîrî, “o khwâjâ Ahmad teve uma visão de Deus,

que disse a ele: ‘Ahmad, todos os homens me pedem algo, exceto Bâyazid, que

nada pede além de Mim’” (epístola 73)11.

Experimentar a Deus é para o muçulmano uma questão que começa com a própria

* Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN. [email protected] . 5 JÂMÎ, ‘Abd ar-Rahmân al-. The Nafahátal-ons min hadharát al-qods, or the lives of the Soofis [= Nafahât al-Uns], ed. Gholâm ‘Yisa, ‘Abd al-Hamid e Kabir ad-Dîn Ahmad, com um perfil biográfico do autor por W. Nassau Lees. Calcutá: ed. particular de Nassau Lees, 1850, p. 161. Em outras fontes Naqshbandis temos 3, 5 ou 7 instâncias: fanâ’ as-sifât (aniquilamento dos atributos), fanâ’ fî ad-Dhât (aniquilamento na Essência divina) e fanâ’ al-fanâ’ (aniquilamento do aniquilamento); ou essas instâncias precedidas por fanâ’ fî’l-Fa‘lî (aniquilamento nas Ações divinas) e seguidas por baqâ ba‘d al-fanâ (permanência após o aniquilamento); ou o entendimento de fanâ’ as-sifât como três instâncias separadas, fanâ’ fî as-Sifât at-Thubûtiyya (aniquilamento nos Atributos Positivos), fanâ’ fî as-Sifât ad-Dhâtiyya (aniquilamento nos Atributos Essenciais) e fanâ’ fî as-Sifât as-Salbiyya (aniquilamento nos Atributos Negativos), mantendo-se as outras quatro instâncias. 6 A permanência em Deus tem lugar quando o devoto, estando inteiramente morto para as coisas sensíveis e para o próprio eu, é agraciado por Deus com uma existência e uma natureza purificadas de todas as imperfeições dos acidentes temporais, podendo então ser investido das qualidades divinas. 7 Aniquilação da consciência de passar por uma aniquilação, ou aniquilação última da aniquilação experimentada pelo eu (= a alma) desde que se viu “aniquilado” na prisão da materialidade. 8 Anos da Era Comum/Anos da Hégira (forma de apresentação de datas seguida ao longo deste texto). 9 O mestre Abû Yazîd Tayfûr al-Bistâmî (Bâyazid Bestâmî), m. em 875/261. 10 MANERÎ, Shaikh Sharfuddîn (“Makhdûm-ul-Mulk”). Letters from a Sûfî Teacher. trad. Baijnârh Singh. Benares: Theosophical Publishing Society, 1908 (reimpr. N. Iorque: Samuel Weiser, 1974), p. 60-1. 11 MANERÎ, S. Letters from a Sûfî Teacher [op. cit.], p. 102.

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autopercepção, pois Deus, enquanto transcende (em essência) nossa percepção

sensorial e nosso entendimento, ao mesmo tempo está mais perto (em atributos) do

homem que sua veia jugular (Corão, 50: 16). O modo de efetuar a experiência de

Deus, apesar de guardar sempre o requisito da obediência aos deveres exteriores

(como oração e jejum) e interiores (como amor e devoção), passa sempre pela

adequação à capacidade de cada um. Contaram a um mestre que a maior

autoridade de uma certa localidade havia passado a noite inteira em orações. O

mestre disse que o pobre sujeito tinha errado o caminho ao realizar o trabalho de

outros. Questionado sobre isso, o mestre esclareceu que o caminho do dever do

chefe devia passar por alimentar os famintos, vestir os desnudos, confortar os

perturbados e atender às necessidades dos carentes, e que passar a noite inteira

orando era a tarefa de um recluso. Cada homem deve trabalhar o caminho conforme

sua posição na vida12.

Além do desfrute e da exaltação da beleza e da grandiosidade da criação, os

poemas místicos sufis, com sua mensagem anagógica13 e sua musicalidade natural

– por vezes complementada por acompanhamento instrumental e dança14 nas

reuniões místicas (samâ’) de algumas confrarias –, são capazes de ajudar no

12 MANERÎ, S. Fawâ’id-i Ruknî, cit. em Letters to a Sûfî Master [op. cit.], p. 99. 13 “Não se trata de que coincidam as idéias, mas as vidas. Nenhuma pessoa pode ter as mesmas idéias que outra verdadeiramente tem. A idéia é personalíssima e intransferível. Quando um pensamento nos é comum, corre grande risco de não ser uma idéia, mas exatamente o contrário, um tópico. O tópico é o lugar, o lugar comum, o local em que os homens coincidem, se identificam e se confundem, coisa que não pode acontecer senão na medida em que os homens se mineralizam, se desumanizam. Em sua verdade, em sua autenticidade, os homens são incomunicantes. (...) Em seu conteúdo, as idéias podem discrepar sobremaneira e, no entanto, coincidir no único ponto que importa: em haver sido pensadas desde o mesmo nível. (...) Os que ignoram de que ingredientes são feitas as ‘idéias’ crêem que é fácil sua transferência de um povo a outro e de uma época a outra. Desconhece-se que o que há de mais vivaz nas ‘idéias’ não é o que se pensa paladinamente e à flor de consciência ao pensá-las, mas o que se sub-pensa sob elas, o que permanece sobredito ao usá-las. Esses ingredientes invisíveis, recônditos, são, por vezes, vivências de um povo formadas durante milênios. Esse fundo latente das ‘idéias’ que as sustêm, preenche e nutre, não se pode transferir, como nada que seja vida humana autêntica. A vida é sempre intransferível. (...) Resulta, pois, ilusório o transporte integral das ‘idéias’. Traslada-se somente o caule e a flor e, acaso, pendendo dos ramos, o fruto daquele ano, o que naquele momento imediatamente é útil delas. Mas permanece na terra de origem o vivaz das ‘idéias’, que é sua raiz” (ORTEGA Y GASSET, José. Prólogo a IBN HAZM de Córdoba. El Collar de la Paloma. trad. E. García Gómez. Madri: Alianza Editorial, 1971, p. 9, 10, 16, 17. Q. v. também o poema “Não basta abrir a janela”, de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, nas “Ficções do Interlúdio”/”Poemas Inconjuntos”). No sufismo (tasawwuf), a experiência de “mineralização” ou “desumanização” do fiel se traduz pelo vocábulo khushû‘ (derivado do verbo khasha‘a), que refere-se a um estado de humildade imóvel, silenciosa, reverente e servil, que permite a expressão mais completa do amor e da submissão a Deus (cf. o Corão, 23: 1-2; 20:108; 41:39). 14 Cf. DURING, Jean. Musique et Extase: l´audition mystique dans la tradition soufie. Paris: Albin Michel, 1988, e MOLÉ, Marijan. “La danse extatique en Islam”, em: CAZENEUVE, J.; WILD, H.; CAQUOT, A. et al., Les Danses Sacrées: Egypte ancienne, Israël, Islam, Asie Centrale, Inde, Cambodge, Bali, Java, Chine, Japon. Paris: Ed. du Seuil, 1963, p. 145-280.

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desencadeamento de “estados alterados da consciência”, propiciadores da

experiência da comunhão com Deus, sabendo-se que alguns poemas místicos

costumam ser entoados no intervalo de ciclos de zikr (ou dhikr, prática sufi de

rememoração dos Nomes divinos), aumentando assim a intensidade e a

profundidade das emoções que eles despertam15. Cabe recordar que a prática do

zikr (e de outras técnicas de acesso a estados de conhecimento trans-racional16)

deve ser precedida e acompanhada pela firmeza e coerência em diversas virtudes

ou atitudes que compõem a ética do Islã – abnegação, abstinência (notadamente de

ganhos ilícitos e sexo ilícito), altruísmo, amor, arrependimento, constância,

continência, cortesia, desapego, devoção, esforço, fé, generosidade, humildade,

justiça, modéstia, paciência, piedade, prudência, renúncia, respeito a Deus,

sinceridade, sobriedade, vigilância e outras –, pois se o conhecimento17 superior

pode ser facilitado ao buscador, este deve necessariamente estar munido da ética

apropriada para usá-lo sabiamente (cf. o Corão, 8: 53, e 13: 11). A repetição de

15 Sobre a música e a dança como exercícios religiosos, cf. GHAZÂLÎ, Abû Hâmid al-. Ihyâ ‘Ulûm ad-Dîn [“A revivificação das ciências religiosas”]. Cairo, 1910/1327 [reimpr. Beirute: Dâr al-Qalam, s.d.], 2: 199-229, e Kîmîâ’ al-As‘ada [“A alquimia da felicidade”], ed. Husayn Khadîv-jam, Teerã, 1983/1361, 1: 473-498 (outra ed.: A alquimia da felicidade, trad. Por Claud Field, revisada e comentada por Elton L. Daniel, versão brasileira de C. E. Conolly de Carvalho. Rio de Janeiro: Fissus, 2001, p. 63-72). 16 Esses estados excepcionais de consciência foram descritos e analisados pelos primeiros autores sufis. Al-Hakim at-Tirmidhî (falecido em 930/318) situa no topo da hierarquia dos místicos – e dos crentes – aqueles aos quais chama de “os arrebatados de Deus” (al-majdhûbûn) e que viveram a verdade de sua fé de uma maneira imediata, extática (cf. GOBILLOT, Geneviève. Le Livre de la Profondeur des Choses. [tradução e comentário do Kitâb Ghawr al-Umûr, precedidos por um estudo biográfico-filosófico sobre Tirmidhî] Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 1996, p. 45, 51, 122), podendo ser considerados como os verdadeiros herdeiros do Profeta (GOBILLOT, p. 20s). 17 O Profeta advertiu: “A busca do conhecimento é tarefa de todo muçulmano” (relatado por SUYÛTÎ, Jalâl ad-Dîn as-. Al-Jâmi‘ as-Saghîr fî Ahâdîth al-Bashîr an-Nathîr, 2 vols. Beirute: Dâr al-Fikr, 1981, v. 2, p. 182). Entre os sufis é comum não se restringir o termo ‘ilm (“conhecimento, ciência”, pl. ‘ulûm) às categorias tradicionais de ma‘qûl (produto da intelecção ou razão, ‘aql) e manqûl (o conjunto de conhecimentos ensinados através das gerações). Os sufis distinguem a ciência adquirida (‘ilm al-kasbî) também conhecida como ciência especulativa (‘ilm an-nazarî), da ciência outorgada por graça divina (‘ilm al-wahbî; ‘ilm mawhûb). Para IBN AL-‘ARABÎ (Futûhât al-Makkiyya, IV 121 ed. O. Yahyâ. Cairo: Al-Hay’ah al-Misrîya al-‘Âmma li’l-Kitâb [Ministério da Cultura do Egito, em colaboração com a Sorbonne de Paris], 1972 a.D./1392 a.H e s [edição ainda inconclusa, com reimpressão freqüente em Beirute: Dâr as-Sadîr]), esta última constitui o estofo de toda profecia (“an-nubuwwât kullu-hâ ‘ulûm wahbiyya”). A ‘ilm al-wahbî/mawhûb equivale à‘ilm al-ladunî (cf. o Corão, 18: 65), a ciência que Khidr, o iniciador dos santos, recebe diretamente de Deus para repassar aos eleitos. Bâyazid Bestâmî declarou aos juristas (fuqahâ’): “Vós, mortais, que vos sucedeis uns aos outros, tomais vossa ciência de ‘sábios da terra (‘ulamâ ar-rusûm)’ enquanto nós, os sufis, recebemos a nossa d’O Vivente (al-Hayy), Aquele que não morre” (cit. por SHA‘RÂNÎ, ‘Abd al-Wahhâb as-. At-Tabaqât al-Kubrâ/Lawaqih al-Anwâr fî Tabaqât al-Akhbâr (al-Anwâr al-Qudsiyya fî Bayân Âdâb al-'Ubûdiyya), 2 v. Cairo, 1954/1374 [reimpr. Beirute: s/d], v. I, p. 5). A “ciência do conhecimento” deve ser distinguida do conhecimento: este último, também conhecido como gnose (‘irfân), tende ao achado (wijdân) imediato e transracional, e não pode ser comunicado por qualquer expressão: a ciência não é mais que sua preliminar. No Nafahât al-Uns Jâmî opina que enquanto o conhecimento sem a ciência é impossível, a ciência sem o conhecimento é deplorável.

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atitudes louváveis ou persistência de virtudes éticas proporciona uma modificação

das qualidades da alma, de modo a condicionar um desligamento dos sentidos

externos e uma ativação dos sentidos internos18 – faculdades que estão presentes

no homem em virtude de sua essência divina. Nas palavras de ‘Abd ar-Rahmân ibn

Ahmad al-Jâmî (1414-1492/817-898), quando um homem faz uma ação extraordinária ao renunciar a qualquer coisa daquilo que as pessoas costumam fazer ou daquilo que ele mesmo tinha o hábito de fazer19, Deus também, de Sua parte, por um tipo de “compensação”, muda em seu favor qualquer coisa do curso ordinário da natureza. É a isso que a gente comum (‘âmm) chama de karâmât [“carismas”, usualmente traduzido como “milagres”], mas os eleitos (khâss) [por Deus] entendem por essa palavra o favor divino que lhes deu a segurança e a força de renunciar às coisas às quais estavam acostumados20.

Essa passagem evoca uma outra de Abû Hâmid al-Ghazâlî (1058-1111/450-505),

que esclarece alguns pontos acerca do processo de ativação dos sentidos internos: Quando o conhecimento adentra o coração (qalb), o estado do coração muda. Quando isso muda, as funções dos órgãos mudam. As funções acompanham o estado do coração, e este segue o conhecimento, e o conhecimento segue o pensamento. O pensamento, portanto, é o princípio e a chave de todo bem. Isso lhe mostrará a virtude da contemplação (tafakkur), e que ela supera a rememoração (zikr), já que o pensamento inclui a rememoração e mais21.

Para o fiel, a experiência de Deus não precisa ser buscada no conhecimento de

homens vesgos às expensas de espreitarem o além: al-Ghazâlî já dizia que “o

caminho para conhecer Deus consiste em glorificá-Lo em Sua criação, contemplar

Suas maravilhosas obras, entender a sabedoria em Suas várias invenções”22, e

Sufyan at-Thawrî (714-778/97-161) costumava recitar os seguintes versos: “Quando

um homem é dado à contemplação/ De tudo ele aprenderá uma lição”23. O modelo

para esses ensinamentos nos é dado no Corão (2: 164): 18 Cf. adiante as faculdades perceptuais externas e internas da alma humana segundo Al-Ghazâlî. 19 Essa renúncia, como toda ação humana voluntária, começa sempre, segundo Muh ammad ibn Abû Bakr Ibn al-Qayyim al-Jawzîyya (1292-1350/691-751), por um diálogo interior (khatirah, pl. khawatîr) ou sussurro mental (waswasah, pl. wasâwis). Pensamentos aleatórios que, se não forem adequadamente canalizados, podem se encaminhar na direção de pulsões ou atos não-virtuosos que, insatisfatoriamente confrontados, podem se transformar em hábitos (IBN AL-QAYYIM AL-JAWZÎYYA. Al-Fawâ’id. Beirute: Dâr an-Nafâ’is, 1981, p. 173s). As pessoas esquecem freqüentemente que alguns ulemás que criticaram os sufis, como Ibn al-Jawzî – citado adiante no nosso texto – no seu Talbîs Iblîs, ou Ibn Taymîyya em trechos do seu Majmû‘a al-Fatâwá, ou Ibn al-Qayyim al-Jawzîyya, não estavam criticando o sufismo como uma disciplina subordinada à Sharî’a. Prova disto é que o portentoso Kitâb Sifat as-Safwa de Ibn al-Jawzî contém as biografias dos mesmos sufis mencionados no famoso manual sufi de al-Qushayrî, Ar-Risâla al-Qushayrîyya. Ibn Taymîyya considerava-se um sufi da confraria Qadirî, e os volumes 10 e 11 do seu Fatâwá (37 volumes) são dedicados ao sufismo. Ibn al-Qayyim al-Jawzîyya escreveu o Madârij as-Sâlikîn, um comentário detalhado (em 3 volumes) ao tratado de ‘Abd Âllah al-Ansârî al-Harawî sobre as estações espirituais no caminho sufi, o Manâzil as-Sâ’irîn. Esses trabalhos mostram que a crítica dos autores não se dirigia ao sufismo como um todo, mas a grupos específicos, e deve ser entendida como tal. 20 JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. Vie des Soufis...[op. cit.], p. 91. 21 GHAZÂLÎ Abû Hâmid al-. Ihyâ ‘Ulûm ad-Dîn [op. cit.], 4: 389. 22 GHAZÂLÎ, Abû Hâmid al-. Al-Hikmah fî Makhlûqât Allâh. Beirute: Dâr Ihyâ’ al-‘Ulûm, 1984, p. 13. 23 Sufyan ibn Sa‘id ibn Masrûq Abû ‘Abd Allâh at-Thawrî al-Mudârî al-Kufî, cit. por IBN AL-QAYYIM AL-JAWZÎYYA, Miftâh Dâr as-Sa‘âdah. Riad: Ri’âsat al-Iftâ’, s.d., p. 180.

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Contemplai! Na criação dos Céus e da Terra; na alternância do dia e da noite; na flutuação

dos barcos através do oceano24 para o benefício da humanidade; na chuva que Deus envia

dos céus e na vida que ela doa a uma terra que está morta; nos animais de toda espécie que

Ele espalha sobre a Terra; na mutação dos ventos e nas nuvens arrastadas por eles como

seus escravos entre o céu e a Terra – [nisso tudo] há, de fato, sinais para os sábios. Noutra passagem (12: 105): “E por quantos sinais nos céus e na Terra passam os

homens [distraídos]? E, no entanto, eles se afastam deles!”

COMUNHÃO E COMUNICAÇÃO A verdade da experiência da comunhão com Deus é verificável em sua plenitude

não tanto através de “entendimento racional humano e discurso sobre as imagens

manifestas” (Liu Chih25 [c.1670–1730 e.C.] – um sufi chinês –, Chen-ching Chao-wei,

cap. 14)26, quanto através “da gustação [espiritual] (dhawq) dos grandes e perfeitos

gnósticos e do grandioso povo da certeza” (Jâmî, Lawâ’ih27, “lampejo”28, cap. 14)29.

“O conhecimento de Deus/da Divindade passa pela gustação [espiritual], que apaga

os argumentos da razão e aqueles oriundos dos ensinamentos transmitidos (dâla’il

24 Cf. o Corão, 17: 66 e 55: 24. Os feitos humanos apenas confirmam as leis naturais estabelecidas por Deus. 25 Com o título de Chen-ching Chao-wei (“Exibindo a Ocultação do Domínio Real”), Liu Chih (Liu Chieh-lien; Liu I-chai; Liu Yi-tsai) “traduziu” para o chinês o Lawâ’ih de Jâmî. Liu Chih, o mais sistemático e prolífico escritor muçulmano chinês das primeiras décadas do século XVIII, “provavelmente o mais importante erudito muçulmano a escrever em chinês” (MURATA, Sachiko. “The Unity of Being in Liu Chih’s ‘Islamic Neoconfucionism’”. J. of the Muhyiddin Ibn ‘Arabi Society, XXXVI, 2004: 39-58, p. 40), “uma das mais sofisticadas mentes teológicas no mundo islâmico chinês” e o autor que marca o apogeu da trajetória do “confucionismo muçulmano” (Tu Weiming, em MURATA, Sachiko. Chinese Gleams of Sufi Light – Wang Tai-Yü’s Great Learning of the Pure and the Real and Liu Chih’s Displaying the Concealment of the Real Realm, with a New Translation of Jâmî’s Lawâ’ih from the Persian by William C. Chittick [prefácio por T. Weiming]. Nova Iorque: State University of New York Press, 2000, p. xi), também é o autor da mais influente obra sobre o pensamento islâmico em chinês, o T’ien-fang Hsing-li (“Natureza e Princípio da Direção do Céu”, 1704, também traduzido como “Filosofia da Arábia” – já que T’ien-fang, “a direção do Céu”, pode indicar Meca ou a Arábia –, ou ainda “Natureza e Princípio segundo o Islã” ou “Neoconfucionismo Islâmico”, uma vez que o neoconfucionismo é usualmente conhecido como Hsing-li Hsüeh, “a Escola da Natureza e do Princípio” (MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 25, e “The Unity of Being…” [op. cit.], p. 41). 26 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 155. 27 A Risâla-i Lawâ’ih (“Epístola sobre os Lampejos”; completada em 1465/870, dedicada ao governante turcomano Jahânshâh al-Qaraquyûnlî (r. 1439-67/842-70); da confederação tribal dos Qara-Quyûnlû ou “Ovelhas Negras”) e mais conhecido como Lawâ’ih (“Lampejos”), uma coleção de ensinamentos sufis com paráfrases em versos, escritos “com atenção plena para as obras de seus antecessores” e “um bom sumário daquilo que Jâmî considera os ensinamentos-chave de Ibn al-‘Arabî, sendo os tópicos que ele cobre representativos dos temas que ele debate em todos os seus escritos teóricos e também em grande parte de sua poesia” (MURATA, S. Chinese Gleams [op. cit.], p. 115). 28 Lâ’ihah, “brilho, cintilação, clarão, esplendor, fulgor, lampejo”. 29 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 154.

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al-‘aql wa shawâhid an-naql)”30. Sem o sinal de qualquer sinal [particular], Ela [a Realidade do Real]31 não se encaixa no

conhecimento ou na visão comum. (…) Tudo é percebido através d’Ela, mas Ela está fora do

alcance da percepção. Os olhos da cabeça ficam ofuscados com a contemplação de Sua

beleza, e a visão secreta do coração fica obscurecida se não observa Sua perfeição” (Jâmî,

“lampejo” 13)32.

Nas palavras de Liu Chih (Chen-ching..., cap. 13), Nenhum ensinamejto pode comunicá-Lo [= o Ser Real (Chen-Yu); Deus], nenhum olho pode vê-Lo. Ele manifesta todas as cores e disfarces, mas em Si mesmo carece de cor e disfarce. Ele está atento às dez-mil [= infinitas] coisas, mas em Si está fora da [atenção à]s dez-mil coisas. Se queres observar Sua beleza, a luz dos teus olhos estará ofuscada a princípio. Se queres dar idéia de Sua sutileza, tua garganta e língua ficarão mudas a princípio. Se queres pensar sobre Sua ocultação, a sabedoria do teu coração estará perplexa a princípio33.

A crítica que Jâmî faz às limitações do pensamento lógico faz-se presente também

em alguns poemas seus: A sabedoria dos gregos é a mensagem do eu e do desejo, a sabedoria dos fiéis é o comando do Profeta. Que serventia têm a escrita e a fala para o possuidor da gnose? Seu livro é a tabuleta do seu coração, e de coração ele conhece o Corão. (...) Meu coração tornou-se um tesouro de segredos gnósticos, nem por mero vintém comprarei exageros dos filósofos!34

O desdém em relação à escrita e à fala pode ser melhor compreendido à luz do

preceito da yâd dâsht, concentração na presença da Divindade sem a ajuda de

palavras ou idéias, considerada pelos Naqshbandis como o mais importante método

no sulûk (caminho para Deus). ‘Alî ibn Husayn “al-Wâ‘iz (o pregador)” al-Kâshifî,

também chamado as-Safî, no Rashahât-i ‘Ayn al-Hayât (“Gotas da Fonte da Vida”;

completado em 1503-4/909) definiu yâd dâsht como “o estado de ter consciência de

Deus a cada momento e em todo lugar, por meio do êxtase e do arrebatamento”35.

“Êxtase e arrebatamento” tipificam aqui a experiência trans-racional de Deus, aquela

sobre a qual al-Manîrî escreveu na epístola 45 do seu Maktûbât-i Sadî:

Perguntaram a [Muhammad an-] Nûrî: “Qual é a prova da existência de Deus?” Ele respondeu: “A prova de Deus é Deus em Si”. Perguntaram depois: “Então, para que serve o intelecto?” Ele disse: “O intelecto é falho; ele não pode chegar a nada que

30 GHAZÎ, Najm ad-Dîn al-, Al-Futûhât al-Ilahiyya fî Naf‘Arwâh ad-Dhawât al-Insâniyya, in: HARLEY, A. H. J. of the Royal Asiatic Society of Bengal, New Series, XX, 1924, p. 134. 31 Haqîqat al-Haqq, ou Haqîqat al-Haqâ’iq, “Realidade das Realidades”. 32 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 152. 33 Apud MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 153 (c/ inserções nossas). 34 JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. Kullîyât-i Dîwân-i Jâmî, ed. Shams-i Brilvî. Teerã: Intishârât-i Hidâyat, 1984 (1362 Hijri-Shamsi), p. 44 e 47. 35 Cf. SAFÎ, Mawlâna ‘Alî ibn Husain [as-], Rahahât ‘Ain al-Hayât/Beads of Dew from the Source of Life: histories of the Khwjagân, the masters of wisdom, trad. do turco por M. Holland. Forte Lauderdale, Flórida: Al-Baz, 2001, p. 22.

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não seja falho como ele”. O intelecto pode conceber uma entidade apenas como corpo, essência ou acidente, ou no espaço e tempo. Ele não pode transcender essas limitações. Se ele fixa qualquer dessas limitações em Deus, ele cai na infidelidade. Se estupefato, ele exclama: “Não encontro [= não há] existência sem essas propriedades. Logo, Deus, carecendo dessas propriedades, talvez seja [um] nada” –, [desse modo] ele ainda é empurrado à infidelidade. Abreviadamente, o conhecimento Divino depende da iluminação Divina apenas36.

Muitos dos relatos experienciais dos místicos – sejam eles sufis ou não – podem nos

parecer incoerentes ou absurdos. Isso ocorre porque, quando se refere ao Absoluto,

toda palavra carrega a marca da metáfora, pois é induzida do todo e inferida em

relação a ele, pelo que afigura-se inapropriado afirmar de qualquer predicado que

ele seria adequadamente aplicável ao Absoluto. Essa aparente incoerência ocorre

também em razão da necessidade de se tomarem emprestadas palavras de outros

domínios da experiência para se tentar descrever aquilo que, em última instância, é

indescritível: uma experiência transformadora. Com palavras, não há maneira

satisfatória de fazer alguém sentir, por exemplo, o gosto de qualquer alimento. A

experiência puramente estética do relato místico é como o desfrute de uma

descrição, primorosa que seja esta, de uma degustação (dhawq). Vejamos o

exemplo de um alimento37 simples – uma fruta (não é necessário que cheguemos à

culinária fina para esbarrarmos na incomunicabilidade). Se a descrição diz que uma

fruta “tem gosto de pêra”, devo perguntar: que gosto tem a pêra para mim? Se a

descrição diz que “é doce”, cabe outra pergunta: o que é o gosto doce para mim? A

descrição pode ser rica, e falar da fruta como “doce, com um discreto amargor no

final; suculenta sem ser aguada; macia ao ser mordida, deixando a sensação de

grãos açucarados que se dissolvem na boca”. Isso dá uma idéia bastante boa do

gosto de uma fruta, mas um catálogo inteiro de atributos não faz jus à experiência da

gustação real da essência do alimento – como disse Abû Nasr ‘Abd Âllah ibn ‘Alî ibn

Muhammad ibn Yahyâ as-Sarrâj (m. em 988/378), “quem questiona o tema do

saboreio do êxtase pede o impossível, pois o saboreio não pode ser descrito sem

36 MANERÎ, S. Letters from a Sûfî Teacher [op. cit.], p. 53-4. 37 No sufismo, o alimento indescritível é o amor, como aprendemos de um poema do mestre Javad Nurbakhsh: “A fala do amor é sem palavras e sem sentido,/ para o amor há outra língua e outra fala./ Pede-me o meu rival: ‘Diz-me do Amor!’,/ mas ao surdo coração só o silêncio é devido./ O coração que sabe as coisas do Amor/ apenas ouve doces murmúrios de Amor e Bondade./ Os homens não entendem o que diz o Amor,/ perdidos em palavras fatigantes que não dizem nada./ Não há de entender minhas palavras quem nega o Amor/ e nada que eu diga acalma seu coração./ Palavras não há na via do Amor, caminho da Bondade;/ só ligeira brisa por detrás de cada porta da alma./ Nurbakhsh, como sabes falar do Amor e seu respirar/ abraçado ao coração de todo crente de claro olhar!” (NURBAKHSH, J. Divan Nurbakhsh: Sufi Poetry. Londres: Khaniqahi-Nimatullahi Publications, p. 55).

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que se viva a degustação”38. Contudo, a comunicação de algumas instruções

metafóricas dizendo certas coisas a serem feitas ou evitadas permite ter uma idéia

de como chegar a um resultado que satisfaria ao chef mais exigente. Logo, o

registro da experiência mística pode ser simplificadamente visto como um conjunto

de dicas que orientam e incentivam o empenho para se alcançar um resultado que,

em verdade, escapa ao domínio das palavras/da razão39 (a alternativa ao relato

metafórico é o silêncio que traduz espanto ou perplexidade, hayra).

Se é possível aprender alguma coisa através do relato das vivências de outrem,

pode-se entender algo de determinadas realidades que não podem ser

satisfatoriamente comunicadas através de palavras ou conceitos. Para Mahmûd ibn

al-Karîm as-Shabistârî (m. em 1320/1720) no Gulshan-i Râz, vv. 719-731: Quando os termos [metafóricos] são escutados pelos ouvidos, estes reclamam à mente sobretudo coisas tangíveis. O mundo do espírito é infinito, e como poderiam palavras finitas alcançá-lo? Como poderiam os mistérios contemplados na visão extática serem interpretados por meio de palavras? Quando os místicos discutem tais mistérios, eles traduzem-nos por meio das imagens, pois as coisas tangíveis são como sombras neste mundo, e este mundo é como um bebê recém-nascido de quem Ele/Ela (Deus/a Divindade) é a ama-de-leite. Acredito que inicialmente esses termos, no seu significado original, foram destinados ao mistério, e que apenas posteriormente foram atribuídos a coisas reais para serem usados pela gente comum (‘âmm) (na verdade, que sabem os comuns sobre tais mistérios?); de fato, somente em seguida a razão volve seu olhar para o mundo e lhe transfere termos que vêm da razão. O homem sábio faz uso da analogia quando volta o próprio espírito para as palavras e para os mistérios, e se bem que não possa alcançar a analogia perfeita, pelo menos ele continua incansavelmente a buscá-la40.

Parafraseando W. Y. Ling seguindo André Malraux41, palavras que devem comover os que as ouvem ou lêem com singular encanto ou poder são palavras menos poderosas. É a possibilidade de gerar em nós a infinita diversidade da vida que dá valor às palavras mais poderosas; o que as engrandece é o fato de serem elementos de um todo perfeito, de modos infinitamente variados. Palavras existem apenas para tentar comunicar, uma a uma, as inumeráveis formas do mistério e da beleza encerrada neste mundo permeado por eloqüente silêncio42. Inumeráveis, insuspeitadas, surpreendentes, as emoções, experiências e intuições que nos 38 SARRÂJ, Abû Nasr ‘Abd Allâh ibn ‘Alî as-. Schlaglichter über das Sufitum: Abû Nasr al-Sarrâğs Kitâb al-Luma’, trad., apresentação e coment. Richard Gramlich. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1990, p. 444. 39 Em árabe, ‘aql, “razão, intelecto” significa etimologicamente laço ou entrave, o que levou um mestre sufi (‘ALWÂN, Shaykh. Shahr Silk al-‘Ayn. Biblioteca Nacional de Damasco, ms. 7357, fol. 25 a-b) a afirmar, num jogo de palavras de difícil tradução, que “os juristas (fuqahâ) estão enredados nas [= são prisioneiros de] suas intelecções (bi ‘uqûli him-ma‘qûlûn)”. Não se trata de rejeitar pura e simplesmente a razão, mas de reservar-lhe um lugar contingente, relativo, em relação ao Absoluto. 40 Trad. segundo ZANOLLA, Valentina. “Simbolismo del mondo naturale nella lirica mistica neopersiana”, in: Semicerchio – Rivista di Poesia Comparata [Florença: Le Lettere], XXIV-XXV [Altri medioevi. Il linguagio del mondo nella poesia persiana, celtica, bizantina], 2000; disponível em < www.unisi.it/semicerchio/numeri/testi/24_25_zanolla.htm >; acessado em 04/03/2005. 41 MALRAUX, A. A tentação do Ocidente. trad. A. Ramos Rosa. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, s.d., p. 26-29. 42 Quaisquer que sejam as qualidades de uma palavra, seu valor é sempre limitado, pois ela não é mais que uma proposição de desvendamento do mistério e da beleza da criação.

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transformam constroem a tessitura da vida, e nossas palavras, como que escritas em papel engordurado ou entreouvidas em meio a uma algazarra, não as fixam tão bem quanto as vivências partilhadas. Como o sábio chinês admoestou, dirigindo-se aos ocidentais em geral:

[a custo compreendeis que] para ser, não é necessário agir, e que o mundo vos transforma

muito mais do que vós o transformais. (...) [É importante ter] consciência de não se estar

limitado a si próprio, de ser mais um lugar do que um meio de ação. (...) O tempo para vós é

aquilo que fazeis dele; nós somos o que ele faz de nós43.

Não há sentido em se falar da incompletude das mensagens, pois nós é que

necessitamos mais completude, “e a única maneira pela qual podemos entender

isso é aprendendo a nos julgar e avaliar à luz dessa completude, e não à imaginada

luz de nós mesmos”44. O que se deve captar com a mensagem é o sentido de nunca

perder, por fragmentação ou esquecimento, o foco n’O Todo; o sentido de nunca

descuidar da procura de dicas, de “uma orientação, em qualquer forma que ela

venha a tomar, de sinais da rota a seguir, não importa o quão rápido eles possam

aparecer ou desaparecer”45, não importa a forma que esses sinais venham a tomar:

é preciso estar alerta em todos, e com todos, os sentidos46.

“FILOSOFANDO” SOBRE A EXPERIÊNCIA DE DEUS

Num tratamento hierárquico da experiência de Deus, o primeiro nível47 do

Verdadeiramente Existente [o Ser Real] é aquele de “não-entificação (lâ ta‘ayyun)48,

não-confinamento (lâ taqyîd), e desprendimento (itlâq) de qualquer vínculo ou

relação” (Lawâ’ih, “lampejo” 24)49, aquele do “não-movimento, que é a sutil

penetração (t’ung) sem qualquer obstrução (ai)” (Liu Chih, Chen-ching Chao-wei,

cap. 25)50, que “é incomparável com a atribuição de descrições e atributos, e

esvaziado além da denotação por palavras e frases. A tradição não tem língua para

expressar Sua majestade, e o intelecto não tem possibilidade de aludir à Sua

perfeição mais íntima” (“lampejo” 24)51; “Ele/Ela nada tem a ver com marcas

equalitativas (ni), nem Se revela em som e audição” (Liu Chih, cap. 25)52: “O

43 MALRAUX, A. A tentação do Ocidente [op. cit.]., p. 33, 35-6. 44 KINGSLEY, Peter. Reality. Inverness, Califórnia: The Golden Sufi Center, 2003, p. 59. 45 KINGSLEY, P. Reality, [op. cit.], p. 90; grifo nosso. 46 KINGSLEY, P. Reality, [op. cit.], p. 100. 47 Sobre os outros níveis, q. v. mais abaixo. 48 Expressão popularizada por al-Qûnawî. 49 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 180. 50 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 181. 51 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 180. 52 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 181.

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Começo efetivo não tem designação,/ a Substância Real (Chen T’i) não tem vínculo./

Apenas isso é Realidade-Ser (Shih-Yu)./ Atendo-se ao Uno, ela contém dez-mil

[coisas]” (Liu Chih, T’ien-fang Hsing-li, 1:1-5)53. Essa é uma realidade cognitivamente

delimitada pelo “Lódão do Limite [Final]” (Corão 53: 14, 16 e 28; Sahih al-Bukhârî

Hadîth54, vol. 1, lv. 8 [Kitâb as-Salât], n° 345), inacessível até aos “grandes e

perfeitos gnósticos (ârifûn) e o grandioso povo da certeza (ahl-i haqq)”: “Os senhores

do desvelamento estão velados à percepção de Sua realidade, e os mestres do

conhecimento estão agitados com a impossibilidade de conhecê-Lo(a). O limite

extremo de Seu sinal [= suas características] é a falta de sinais, e o limite extremo

de Sua gnose é o espanto (hayra)” (“lampejo” 24)55; “querendo descobrir Sua

ocultação, o homem de claridade torna-se perplexo; querendo penetrar Seu

significado, o homem de fala torna-se mudo. Ele/Ela não tem qualquer traço para ser

seguido, nem princípio de significado para ser examinado” (Liu Chih, Chen-ching...,

cap. 25)56. Deus/a Divindade – exaltado seja Ele/Ela! –, (...) é descrito como Ser Absoluto (...), e

conhecê-Lo(a) significa conhecer Seu Ser, e Seu Ser nada mais é que Sua Essência, mas

Sua Essência é incognoscível. Apenas Seus Atributos são cognoscíveis (...); o conhecimento

da Verdade de Sua Essência é proibido. Ela não é conhecida nem pela prova nem pelo

argumento intelectual, e não pode ser definida (...). A Lei Revelada (Shar‘) proíbe que se

pense sobre a Essência Divina (Futûhât57 I 118).

Para Muhyî ad-Dîn ibn al-‘Arabî (1165-1240/580-638), Deus/a Divindade é Aquele(a) cuja Essência é grande além de qualquer semelhança com outras essências. Sua Essência é exaltada por sobre todos os movimentos e calmarias, todo espanto e diligência. Ela é grande demais para ser abarcada por qualquer explicação expressa ou implícita, do mesmo modo que é grande demais para ser limitada e descrita. (...) Ela é grande demais para ser descrita em detalhe ou em resumo, para ser a base de crenças, para mudar com a diferença entre crenças, (...) ou para ser qualificada por qualquer coisa que não a eternidade. Ela é grande demais (...) para o entendimento circunscrever o cerne de Sua realidade, para ser como a imaginação A descreveria, para ser como a vigília ou o sonho tentariam percebê-La. (...) Ela é grande demais para que a negação ou a confusão ocultem Sua majestade, é grande demais para ser compreendida por reflexão intelectual, pelas práticas espirituais dos mestres da iluminação, pelos segredos dos gnósticos, pela amplidão majestosa da

53 Apud MURATA, S. “The Unity of Being…” [op. cit.], p. 43. 54 Sahih al-Bukhârî, 9 vols. (Arabic-English), trad. Muhammad Muhsin Khan. Arábia Saudita: Maktaba Dâr as-Salâm, s/d. 55 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 180. 56 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 181. 57 O título completo é Kitâb al-Futûhât al-Makkîya fi Ma‘rifat al-Asrâr al-Mâlîkiya wa’l-Mulkîya (“Livro das revelações mequenses sobre a gnose dos mistérios do soberano divino e sua soberania”), e aparece como Al-Futûhât al-Makkîya [ta’lîf] Muhyî ad-Dîn ibn ‘Arabî. Tahqîq wa-Taqdîm ‘Uthmân Yahyâ. Tasdîr wa-Murâja‘at Ibrâhîm Madkûr na edição organizada/revisada por Osman Yahyâ, Cairo: Al-Hay’ah al-Misrîya al-‘Âmma li’l-Kitâb [em colaboração com a Sorbonne de Paris], 1972 a.D./1392 a.H e ss., com reimpressão freqüente em Beirute: Dâr as-Sadîr).

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visão dos líderes – pois Ela é grande demais para ser confinada por trás de véus e cortinas, e desse modo não pode ser compreendida por coisa alguma que não a Sua própria luz58.

De maneira assemelhada, Jâmî conclui no último poema (post-script) dos seus

“Lampejos”: (...) Já que as palavras são uma máscara à face do objetivo o silêncio é melhor que falar e escutar. Até quando como um sino clamarás e repicarás? Por um momento, cala essa conversa vazia. Um tesouro de pérolas da realidade59 tu não te tornarás enquanto não te tornares só ouvido, como uma ostra60. Ó tu cuja natureza foi tomada pela inquietação das palavras, se és do povo do conhecimento, observa tuas palavras! Não solta tua língua a desvelar os segredos do Ser – aquela pérola não pode ser perfurada com o diamante das palavras. (…) Não mancha com a fala a tua consciência pura. Já que podes ficar mudo sobre isso, se abrires teus lábios depois, possa a sujeira encher a boca tua!61

Seguindo Ibn al-‘Arabî, Jâmî rejeita a teoria Ash‘arita62 (cf. o “lampejo” 26), segundo

a qual os Atributos Divinos “são distintos de Sua Essência e [no entanto] são [co-

]eternos e subsistentes em Sua Essência (zâ’idatun ‘alâ ad-dhâti wa qadîmatun wa

qâ’imatun bi ad-dhât)”63, a teoria de que “a existência de tudo [o que existe] é

idêntica à sua essência, tanto na mente (dhihnan) quanto externamente (khârijan)”

(Durrat al-Fâkhira, ¶4)64. O problema, aparentemente simples, na verdade revela

58 IBN [AL-]‘ARABÎ. “On Majesty and Beauty – the Kitâb al-Jalâl wa’l-Jamâl”, trad. Rabia Terri Harris. J. of the Muhyiddin Ibn ‘Arabi Society, VIII, 1989: 5-32, p. 5-6. 59 A expressão “um tesouro de pérolas da realidade” comunica uma hipérbole no original persa, já que no simbolismo místico da poesia persa a pérola (dorr; gowhar) representa por si só o conhecimento íntimo da existência ou a realidade espiritual (as pérolas podendo significar ainda os Atributos Divinos), e um tesouro (ganj) dessas pérolas representa uma preciosidade incomensurável. 60 Aqui aparece a analogia da forma da ostra com aquela da orelha/pavilhão auricular. 61 Trad. William Chittick, em MURATA, S. Chinese Gleams [op. cit.], p. 210. 62 Da escola de teologia fundada por Abû’l-Hasan ‘Alî ibn Ismâ‘îl al Ash‘arî (874 - c. 935/260 - c. 323). 63 Essa fórmula tradicional aparece, p. ex., em GHAZÂLÎ, Abû Hamid al-. Al-Iqtisâd fî’l-Itiqâd, ed. I. S. Çubukçu e H. Atay. Ankara, 1962, p. 5, 4-5; cf. p. 158, 3, e 121, 7. A posição xiita em relação a essa questão é a seguinte: “Os Atributos de Deus são a mesma coisa que sua Essência, não como os seguidores de Abû’l-Hasan al-Ash‘arî asseveram, que à sua numerosidade [= dos Atributos essenciais] na existência corresponde um número equivalente de [Atributos] eternos (...), mas como mantêm aqueles firmes no conhecimento, que dizem que Sua Existência é a mesma coisa que sua Essência, o que é a confirmação de Seus atributos de Perfeição (kamâliyya) e a manifestação dos Atributos de Beleza (jamâliyya) e Majestade (jalâliyya)” (SHÎRÂZÎ, Sadr ad-Dîn as- [Mullâ Sadrâ]. Kitâb al-Mashâ’ir/Le Livre des Pénétrations Métaphysiques, ed., trad. e introd. por H. Corbin. Paris: Départment d’Iranologie de l’Institut Franco-Iranien de Recherche/Teerã: Librairie d’Amerique et d’Orient Adrien-Maisonneuve, 1964, p. 54). 64 JAMÎ, ‘A. ar-R. al-. The Precious Pearl – Al-Jâmî’s Al-Durrah Al-Fakhirah together with his Glosses and the Commentary of ‘Abd al-Ghafûr al-Lârî, ed. e trad. por Nicholas Heer. Albany: State University of New York Press, 1979, p. 34.

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insuspeitadas nuances65: os atributos são distintos entre si e distintos de Deus, já

que é inegável que atributos como conhecimento, poder e vida são partilhados por

seres humanos, mas ao mesmo tempo esses atributos, em Deus, são essenciais

(habitualmente emprega-se uma inicial maiúscula para destacá-Los) – no sentido de

que, se fossem adjuntos à sua Essência, não se teria a Absoluta Unidade

(wahdâniyya) de Deus – e são distintos dos atributos humanos que chamamos pelos

mesmos nomes66. No “lampejo” 1567, Jâmî explica que “os ‘Atributos’ (Sifât) são

distintos da ‘Essência’ (Dhât) em relação àquilo que as faculdades racionais

entendem, mas são idênticos à Essência em relação à realização e à obtenção”68.

Na versão de Liu Chih (Chen-ching..., cap. 15)69, “Substância (t’i) e função (yung)

não são a mesma coisa, mas elas não podem ser separadas. Elas não são a mesma

coisa se falamos sobre significado, mas elas não podem ser separadas se falamos

sobre sua realidade”. No fraseamento “neoconfucionista islâmico”70 de Liu Chih, a Essência de Deus é sua substância (t’i)71, e os Atributos de Deus são sua função

(yung). Não há dúvida de que os Atributos/operações (“funções”) de Deus são

diferentes entre si em relação às suas propriedades, e que são diferentes da

Essência, mas na realidade todos eles são idênticos à Essência no sentido de que

não há pluralidade da existência em Deus.

Deus, i. e., a “Realidade das Realidades (Haqîqat al-Haqâ’iq)”, “é a realidade de

todas as coisas” (“lampejo” 25)72, “o princípio (li) das dez-mil coisas” (Liu Chih, Chen-

ching..., cap. 26)73, o fundamento de tudo que existe. Ele/Ela é Um(a), de forma que

a multiplicidade, “as múltiplas teofanias (tajallîyyât) e entificações (ta‘ayyunât)

plurais74 nos níveis [da existência]” não podem afetá-Lo(a). Mas quando Ele/Ela

revela-Se na multiplicidade das realidades (haqâ’iq; chinês shih), Ele/Ela parece ser

muitos(as). Essas distinções de Um(a) e muitos(as), contudo, são meramente

subjetivas: “o cosmos é o manifesto [‘externo’] do Real, e o Real é o não-manifesto

65 Cf. o Durrat al-Fâkhira, ¶¶ 4-24 (JÂMÎ. The Precious Pearl [op. cit.], p. 34-42). 66 Como advertiu IBN AL-‘ARABÎ (Fût. II 56), “os Nomes divinos que temos [= as palavras] são nomes de Nomes (asmâ’ al- asmâ’)”. 67 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 156. 68 Q. v. CHITTICK, William C. The Sufi Path of Knowledge: Ibn Al-Arabî's Metaphysics of Imagination. Nova Iorque: State University of New York Press, 1989, p. 36. 69 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 157. 70 A expressão é de Murata. 71 Ou são sua “natureza-raiz (pen-jan)”, no cap. 26 do Chen-ching... 72 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 184. 73 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 185. 74 Em Liu Chih (cap. 26 do Chen-ching...), “emissões (fa) e aparições (hsien)”.

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[‘interno’] do cosmos. Antes da manifestação, o cosmos era o mesmo que o Real, e

após a manifestação, o Real é a mesma coisa que o cosmos” (“lampejo” 25)75. Deus

e o mundo são dois aspectos da mesma realidade, mas o buscador não deve dar-se

por satisfeito apenas com a realidade manifesta, como podemos aprender com a

seguinte oração que nos foi legada por Jâmî: Meu Deus, meu Deus! Salva-nos das preocupações com as trivialidades da vida e revela-nos a realidade das coisas como elas são! Remove dos olhos do nosso entendimento o véu da ignorância e revela-nos a realidade das coisas como elas são! Não nos mostre o inexistente como existente, nem jogue sobre a beleza da existência o véu da inexistência! Torna esse mundo fenomênico um espelho para refletir as manifestações de Tua beleza, e não um véu para separar-nos e afastar-nos de Ti! Faz desses fenômenos irreais do universo uma fonte de conhecimento e visão interior

para nós, e não uma causa de ignorância e cegueira! Toda a nossa privação e banimento vem de nós; não nos deixe [sozinhos] conosco, mas livra-nos de nossos eus e assegura-nos o conhecimento de Ti!76

Em relação ao Real, a natureza das coisas no universo manifesta-se em modos que

Jâmî, seguindo Ibn al-‘Arabî, chama de shu’ûn (“graus”; plural de sha‘an)77 – as

coisas são realidades subordinadas, meras “entificações (ta‘ayyunât) e

confinamentos (taqyîddûn)” do Real (“lampejo” 25)78. Esses modos são incluídos na

“unicidade da Essência”79 do mesmo modo como descrições são incluídas em uma

coisa descrita, ou como uma metade, um terço, um quarto, um quinto, e outras

frações ad infinitum são relacionadas ao Uno. Essas frações são potencialmente

incluídas no número integral um e tornam-se explicitadas apenas quando, “através

da repetição da manifestação nos níveis”, elas se tornam parte de dois, três, quatro,

cinco, e assim sucessivamente (“lampejo” 19)80. Liu Chih emenda no Chen-ching...:

“Isso é como os poderes de iluminar, aquecer e cozinhar comida que estão contidos

no fogo. O fogo possui antecipadamente todos esses poderes, mas até que não

encontre diversas coisas [a escuridão, algo frio, alimento para cozer], eles não se

tornam manifestos”81.

A criação deve ser vista não como a atualização das potencialidades ocultas do(a) 75 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 184. 76 SHARIB, Zahurul Hassan. The Culture of the Sufis. Southampton: Sharib Press, 1999, p. 68. 77 Sergio Foti, tradutor do Lawâ’ih para o italiano, entende shu’ûn como “articulações internas essenciais” do Absoluto. 78 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 184. 79 Jâmî, “lampejo” 19; “Substância Una (T’i-I)” em Liu Chih (Chen-ching..., cap. 19). 80 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 168. 81 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 169

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Criador(a), mas como a produção de entidades que, embora derivem sua existência

de Deus82, gozam no entanto alguma medida de autodeterminação e independência,

conforme seu preparo/sua capacidade (isti‘dâd)83: quando uma das realidades possíveis é preparada para a existência por causa da

obtenção das pré-condições e da eliminação dos impedimentos, a misericórdia todo-

misericordiosa (rahmat-i rahmâniyya)84 apreende-a e efunde existência sobre ela.

Então, o manifesto da existência, ao vestir-Se com os traços e propriedades dessa

realidade, entifica-Se em uma entificação e descerra-Se nos termos dessa entificação

(“lampejo” 26)85.

A entificação ou teofania do mundo fenomênico foi definida do seguinte modo por

Ibn al-‘Arabî (2a metade do 4o capítulo do Futûhat86): Se você considerar o mundo analiticamente (mufassalan) em termos de suas realidades

[existenciais] (nisab) [= atributos]87 e relações [= nomes]88 (haqâ’iqu-hu wa nirabu-hu), você o

descobrirá limitado (mahsûr) por suas [várias] realidades e relações, determinado (ma‘lûm)

pelas estações e níveis (al-manâzil wa’l-rutab), [e] vinculado pelos gêneros (mutanâhî’l-ajnâs)

– algo entre “homogêneo”89 e “vários” (mutamâthîl wa mukhtalif)90.

O Absoluto [literalmente, o “não-delimitado”] Ser do Real (persa Wujûd-i Haqq-i

Mutlaq), desprovido de toda determinação, manifesta-Se, para a maioria dos

pensadores akhbaris (da escola de Ibn al’Arabî), nos níveis da existência ou nas

“Cinco Presenças [Divinas] (persa Hadarât-i [Illahiyya-i] Khams)” – uma expressão

aparentemente cunhada por Sadr ad-Dîn al-Qûnawî (m. em 1274/673) –, “cinco

domínios nos quais Deus é ‘encontrado’, ou nos quais a presença de Deus é

82 Árabe Allâh [al-Lâh], o Deus [Uno]; persa Khudâ; chinês An-la [por fonetização do árabe] ou Chen-Chu, “o Senhor Real”. 83 Cf. a nota 100. Literalmente, isti‘dâd = medida. 84 O Sopro do Misericordioso que dá existência ao cosmos. 85 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 188. 86 Capítulo encontrado em Fut., vol. II, p. 123-31, correspondendo a Fut. I 99 (26-101).21, ed. O. Yahyâ. 87 “Ibn al-‘Arabî emprega esse termo (nisab; singular nisbah) em preferência ao uso do termo sifât (atributos) pelos teólogos dialéticos [mutakallimûn], para denotar as características específicas de Divindade evidenciada pelos Nomes de Deus na Escritura [= no Corão] (q. v. o Futûhât, IV 294, 11-19). Logo, ele vê os Nomes mais como inter-relações formais, ou hipotéticas, dos supostos aspectos (wujûh) da Auto-manifestação Divina, do que como os campos semânticos reais, distintos, implicados no conceito de ‘atributos’ ou ‘qualidades’” (ELMORE, Gerald. “Four Texts of In al-‘Arabî on the Creative Self-Manifestation of the Divine Names”. J. of the Muhyidin ibn ‘Arabi Society, XXIX, 2001: 1-43, p. 35, n. 103). 88 “Para cada realidade [existencial] (haqîqa), há um dos Nomes que é especial para Ela” (ELMORE, G. “Four Texts...” [op. cit.], p. 23). 89 “Realidades homogêneas (haqâ’iq mutamâthila) [isto é, realidades individuais, ou ‘essências’, que são universais (comuns à espécie)], pois elas são homogenéticas (mithlân) [umas às outras]” (ELMORE, G. “Four Texts...”, [op. cit.], p. 29, c/ n. 84). 90 ELMORE, G. “Four Texts...” [op. cit.], p. 22.

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percebida”91. Al-Qûnawî pode ter se inspirado em Al-Ghazâlî, um autor que no

Mishkât al-Anwâr92 correlaciona as cinco similitudes (mithâl) mencionadas na “surata

da Luz” [a lâmpada, o nicho, o vidro, a árvore, o azeite (Corão, 24: 35)] com cinco

faculdades perceptuais da alma humana e cinco véus que as fazem funcionar de

modo impróprio. As faculdades perceptuais da alma humana são o espírito sensível

(= os sentidos; Mishkât 2.47 e 56), o espírito imaginal (= a imaginação; 2.48 e 57-

60), o espírito racional (= a razão; 2.49 e 61), o espírito reflexivo (= a faculdade de

reflexão; 2. 50, 62 e 67) e o sagrado espírito profético (= a faculdade profética; 2.51

e 63). Os cinco véus são shahwa (os apetites bestiais, sensuais e mundanos; 2.71,

3.4-12), ghadab (a raiva e os atributos predatórios a ela associados; 2.72), i‘tiqâdât

(crenças [corrompidas]; 3.14-20), khayâl (a imaginação obscurecida [corrompida];

3.22) e muqâyasât (comparações [analogias] racionais obscurecidas, corrompidas;

3.24). Também existiriam cinco níveis de aproximação à Realidade Divina:

1. pessoas que conhecem o significado dos atributos através de verificação, e

que conhecem Deus em relação às criaturas (3.27);

2. pessoas que reconhecem que “há multiplicidade no Céu e que o movente

de cada Céu específico (...) é um anjo”, e que Deus é o movente da esfera

celestial mais exterior, aquela que a todas as demais envolve numa unicidade

(3.28);

3. pessoas que entendem que Deus é o movente superior por meio de

comando, e não de contato direto (3.29);

4. “os que chegaram (al-wâsilûn)” e a quem foi revelado que Aquele que é

obedecido (al-mutâ‘)93 é descrito por um atributo que contradiz

misteriosamente a absoluta unidade e a suprema perfeição (3.31). “Os que

chegaram” podem ser de dois tipos, sendo o primeiro o daqueles cujo objeto

de visão foi apagado/aniquilado, mas não o sujeito que vê (3.32). O segundo

grupo é o dos “eleitos dos eleitos (khâss al-khâss)”, aqueles que percorreram

91 CHITTICK, W. C. The Sufi Path of Knowledge. Albany: State University of New York Press, 1989, p. 5. 92 GHAZÂLÎ, [Abû Hamid] al-. The Niche of Lights/Mishkât al-Anwâr, a parallel English-Arabic text, trad. introd. e notas por David Buchman. Provo, Utah: Brigham Young University Press, 1998 (q. v. também IBN KHALDÛN, Abd ar-Rahmân, Shifâ’ as-Sâ’il li-Tahdhîb al-Masâ’il: ma’a dirâsa tahlîlîya li’l-‘alâqa bayna as-sultân ar-rûhî wa as-sultân as-siyâsî, ed. Abû Ya‘rub al-Marzûqî. Túnis: Dâr al-‘Arabîyah li’l-Kitâb, 1991/1411, p. 210). 93 Um intermediário entre o Uno e a multiplicidade – talvez equivalente ao “Sopro [Divino]”, ar-Rûh, do Corão 78: 38 e 97: 4.

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o caminho do “amigo (waly)” [= de Abraão]/dos “amigos (awliyâ’), que são

volatizados/aniquilados em suas essências na “unificação (ittihâd)” (3.33-4);

5. os que precocemente94 conheceram a sacralidade e a incomparabilidade

divinas (não são “os que chegaram”, pois são os que já estavam). São

aqueles do caminho do “amado (ashîq)” [= de Muhammad – exaltado seja!]

(3.34).

No Nafahât al-Uns, Jâmî, seguindo de perto o Corão (56: 7), divide os homens, “em

razão dos diferentes graus a que chegaram”, em três categorias: 1. “os que

permanecem (mukimûn) no terreno baixo da imperfeição”, ou “mesquinhos”,

postados à esquerda”; 2. “os que estão a caminho (salikûn) na via da perfeição”, ou

“justos (abrâr), postados à direita”, e 3. “os que chegaram (wasilûn) e os perfeitos

(kâmilin)”, que são “aqueles admitidos a se aproximarem [de Deus] (muqarrâbûn;

alhures, majdhubûn, ‘os atraídos’) e que tomaram a dianteira”95. Diversas

subcategorias de salikûn e de wasilûn são mencionadas. A aproximação a Deus

está na dependência da graça Deste ou da fé, um fator que influencia os outros

parâmetros potencialmente envolvidos, como a habilidade para entregar-se à

contemplação (tafakkur) e o conhecimento do objeto contemplado, o conhecimento

mais perfeito consistindo num reconhecimento.

A cada nível de manifestação e teofania divinas, a Realidade Una assume infinitas

formas e contornos, corforme a predisposição das entidades existentes (a‘yân

mawjûda), isto é, segundo suas receptividades (qâbiliyyât) e capacidades (isti'dâdât).

A “existência” das entidades não pertence, portanto, a elas96: aprendemos no Fusûs

al-Hikam de Ibn al-‘Arabî que a existência de tudo que é originado depende de algo

externo que “existe essencialmente e necessariamente por Si, e que é auto-

suficiente e independente de qualquer outro. Esse é Aquele [Ser Real] que, à

existência dependente, concede existência a partir de seu próprio Ser essencial”97.

Deus, ou se preferirmos, “o Ser Absoluto/a Existência Absoluta [não-delimitada]”

(árabe al-Wujûd al-Mutlaq), é a origem de todas as criaturas, de todos os

seres/existentes relativos e delimitados.

94 Por aquilo que Ibn Khaldûn chama de disposição inata (jibila wa tabî‘iyya)? 95 JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. Vie des Soufis... [op. cit.], p. 48s. 96 Cf. a glosa 31 de Jâmî ao ¶36 do seu Durrat al-Fâkhira (JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. The Precious Pearl…[op. cit.], p. 100). 97 IBN AL-‘ARABÎ. The Bezels of Wisdom, trad. R. W. J. Austin. Nova Iorque: Paulist Press, 1980, p. 54.

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As “Cinco Presenças Divinas” têm sido descritas de diversos modos pelos

seguidores de Ibn al-‘Arabî. Al-Qûnawî habitualmente refere-se à Primeira Presença

como “a Primeira Teofania (al-Tajallî al-Awwal)” de Deus, e, portanto, em sua

perspectiva a Essência Divina está situada fora do esquema, enquanto alguns dos

seus seguidores falam da Essência Divina como a Primeira Presença98. No Futûhât,

Ibn al-‘Arabî diz que cada presença (hadra) é regulada por seu próprio tempo

(waqt)99 e duração (zamân)100. O tempo de uma presença representa seu aspecto

interior (bâtin), e a duração, seu aspecto exterior (zâhir); algumas vezes o grande

Shaykh inverte os papéis. Por um outro ponto de vista, a expansão (bast) e

contração (qabd) da Existência na Divindade exala e inala a criação: quando Deus

expira, a existência tem lugar; quando Deus inspira, todas as coisas retornam à sua

origem101. Esse é o assunto do “lampejo” 26, onde encontramos o seguinte poema,

que retrata o fluxo da existência: Um oceano, sem aumentar, sem diminuir ondas a ir, ondas a vir: Posto que o mundo é feito de ondas alternantes ele nunca dura dois momentos, ou ainda, dois instantes. O mundo, se receber uma lição tu podes,

98 Cf. CHITTICK, W. C., e WILSON, P. L. Fakhruddin ‘Iraqi: Divine Flashes. N. Iorque: Paulist Press, 1982, 12s, e CHITTICK, W. C. “The Five Divine Presences: from al-Qûnawî to al-Qaysarî”. Muslim World, 72, 1982: 107-28. 99 Cf. Sylvestre De Sacy, “a palavra waqt, ‘tempo’, tem uma acepção técnica entre os sufis. O autor do ‘Livro das Definições (Kitâb at-Ta‘rîfât)’ [Amir as-Sayyid as-Sharîf ‘Alî Muhammad al-Jurjânî, m. em 816/1413 ou 13] diz: ‘Por tempo quer-se dizer vosso estado (hâl), isto é, aquilo que exige vossa disposição atual, que não é produzida de propósito” (JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. Vie des Soufis... [op. cit.], p. 93 n. 1). 100 “Ao desenvolver-se, a manifestação forma certo número de estados ou níveis. Essencialmente, esses estados constituem uma estrutura atemporal que subsiste além dos limites do ‘tempo’. Mas, ao mesmo tempo, eles se integram na ordem temporal das coisas, o que lhes dá uma estrutura ontológica particular (...). Na verdade, não há relação de precedência e posteridade entre as manifestações. Tudo se produz ao mesmo tempo, já que, no momento mesmo em que surge a ‘preparação [isti‘dâd]’ por parte de uma coisa (se bem que, de fato, todas as ‘preparações’ existem desde a eternidade, já que o primeiro tipo de manifestação vem se produzindo desde a eternidade), o Espírito divino a impregna e a faz aparecer como coisa existente e concreta. Como já assinalamos no princípio, a relação entre ambos os tipos de manifestação [uma essencial, no mundo invisível, e outra sensorial, no mundo visível] é um fenômeno temporal e, ao mesmo tempo, uma estrutura atemporal ou transtemporal. Neste segundo sentido, a manifestação no [mundo] Invisível e aquela que se produz no mundo visível não são senão dois elementos básicos e constituintes do Ser” (IZUTSU, T. Sufismo y Taoísmo. Estudio comparativo de conceptos filosóficos clave, vol. 1, trad. Anne-Hélène Suárez. Madri: Siruela, p. 175 e 181). 101 Ibn al-‘Arabî chama o processo da criação de “a respiração d’O Compassivo (an-nafas ar-Rahmân)” (cf. IBN AL-‘ARABÎ, The Bezels... [op. cit.], p. 147-148, e SELLS, Michael A. Mystical Languages of Unsaying – Plotinus, John the Scot Eriugena, Ibn ‘Arabi, Marguerite Porete, Meister Eckhart. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1994, p. 246, n. 11, e p. 92-95). Ibn al-‘Arabî escreve (The Bezels..., p. 148) que “Deus descreveu a si mesmo como a Respiração (nafas), que vem de tanfis, [que significa causar] repouso ou alívio”. Deus proporciona aos entes repouso ou alívio de sua condição material mediante o retorno a Si.

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é uma aparição que em estágios sucessivos102 flui. Em todos os estágios da aparição que flui há um mistério, a penetrante Realidade das Realidades.103

O que há de permanente na existência é seu fluir104, como Liu Chih (Chen-ching...,

cap. 27) explicita na sua paráfrase do poema acima: A ocultação e a revelação da Raiz Una (Pen-I) [das dez-mil coisas] não são perpétuas. Em um momento, Ela torna-se manifesta nesta imagem; noutro momento, aparece naquela imagem. O espectador vê que as imagens dominantes [em cada ocasião] mudam e fluem, e que aquilo que é visto depois e aquilo que foi visto antes são semelhantes em forma e padrão. Então, ele finalmente alcança a suposição de que isso é um afazer permanente105.

No “lampejo” 24, Jâmî oferece uma explicação um tanto detalhada dos níveis de

teofania do Verdadeiro Existente (Mawjûd-i Haqq), também conhecido como

Existência Real (Haqq-i Wujûd) e Ser Absoluto/não-delimitado (Hastî-i Mutlaq)106.

Jâmî descreve107 seis níveis ou estratos (um a mais do que al-Qûnawî), mas o

primeiro108, estritamente falando, permanece fora do esquema:

Nível 1 ou “Inefável” – “Não-entificação, não-confinamento e não-vinculação

(itlâq, desprendimento) por qualquer vínculo ou relação”.

Nível 2 ou “Primeira Entificação” – “é o entificar-se de Deus por uma

entificação que compreende todas as entificações divinas ativas e

necessárias e todas as entificações engendradas passivas e possíveis”.

Nível 3 ou “da Divindade” – “Unidade da reunião109 de todas as entificações

ativas e indutivas [concessivas] de traços”.

102 Em Liu Chih, “de acordo com a quantidade de energia vital (ch’i)” (apud MURATA, Chinese Gleams... [op. cit.], p. 187). 103 Trad. William Chittick, em MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 186. 104 “Não existe existência verdadeira que não sofra mudança, exceto Deus; nada existe na existência percebida, exceto Deus. (...) Tudo aquilo que não é a Essência de Deus é imaginação interveniente e sombra evanescente” (Ibn al-Arabî, Futûhat II, 313). 105 Apud MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 187. É interessante notar que David Hume dirá isso mesmo muitos anos depois, na “Investigação Acerca do Entendimento Humano” (1748). 106 Na versão de Liu Chih, “Ser Real (Chen-Yu), Ser Verdadeiro (Cheng-Yu) e Ser Perfeitamente Penetrante (Chi-t’ung Yu)”. 107 Apud MURATA, S. Chinese Gleams of Sufi Light…[op. cit.], p. 180 e 182. 108 Chamado de “não-entificação (lâ ta‘ayyun)” ou “não-movimento (wu-tung)” em Liu Chih. 109 “[Sa‘îd ad-Dîn al-] Farghânî (Mashâriq ad-Darârî, ed. S. J. Âshtiyânî. Teerã: Anjuman-i Islâmî-i Hikmat wa Falsafa, 1979, p. 22) explica que, no nível da Divindade – aquele que Ibn al-‘Arabî chama de ‘Um/Muitos’ – há tanto a unidade da Existência Real quanto a multiplicidade do conhecimento divino. Noutras palavras, Deus é verdadeiramente um através do Seu ser, mas Ele abarca os princípios de toda multiplicidade através do seu conhecimento de todas as realidades. Essa verdadeira unidade é chamada de ‘o Manifesto do Conhecimento (Zâhir-i ‘Ilm)’, e essa multiplicidade é chamada de ‘o manifesto da existência (Zâhir-i Wujûd)’. O manifesto da existência é a forma da unidade (ahadiyya) e tem o atributo da necessidade; ele tem uma unidade real e uma multiplicidade relativa. O Manifesto do Conhecimento é a forma da unicidade (wâhidiyya) e tem o atributo da possibilidade. (...) Ele tem uma unidade relativa e uma multiplicidade real” (MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 231-2, n. 41).

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Nível 4 ou “dos Nomes e de Suas Presenças” – “diferenciação do nível da

Divindade”.

Nível 5 ou “engendrado, possível” – “Unidade da reunião de todas as

entificações passivas, cuja tarefa é aceitar traços e ser passiva”.

Nível 6 ou “do cosmos (‘âlam)” – “diferenciação do nível engendrado”.

O esquema de estratificação proposto por Jâmî segue de perto a descrição de

Mu’ayyid ad-Dîn al-Jandî110 (m. c. 1300/700) – não sabemos se diretamente ou

através do entendimento que o discípulo deste, ‘Abd ar-Razzâq al-Qâshânî111 (m.

em 1330/730), oferece para a manifestação do Absoluto em termos de “estratos

(marâtib)” (na explicação de Izutsu112):

Nível 1 – Entidade (‘Ayn) não-determinada (lâ ta‘ayyun), sem delimitação

(adam inhisâr). O Ser ainda está em sua Essência absoluta.

Nível 2 – “o Ser se ‘determina’ por uma espécie de autodeterminação global

que abarca todas as determinações ativas próprias do aspecto divino do Ser

(ou seja, os Nomes divinos), assim como todas as determinações passivas

próprias do aspecto criado ou fenomênico [mashûd] do Ser (...). O Uno ainda

não se dividiu na multiplicidade”.

Nível 3 – “fase da Unidade divina (al-Ahadiyya al-ilahiyya), ou de al-Lâh, em

que todas as autodeterminações ativas (fa‘ilî) e efetivas (mu‘attir) se realizam

como conjunto integral”.

Nível 4 – “fase em que a Unidade divina se divide em autodeterminações

independentes, a saber, os Nomes divinos”.

Nível 5 – “inclui, sob a forma de unidade, todas as autodeterminações de

caráter passivo (infi‘âlî). Representa a unidade das coisas criadas e possíveis

do mundo do devir”.

Nível 6 – “aqui, a unidade do estrato anterior se dissolve e transforma nas

coisas e propriedades existentes. É o nível do mundo. Todos os gêneros,

espécies, indivíduos, partes, acidentes, relações etc. se atualizam neste

nível”.

110 JANDÎ, Mu’ayyid ad-Dîn al-. Shahr Fusûs al-Hikam, ed. S. J. Âshtiyânî. Mashshad: Dânishgâh-i Mashshad, 1982/1361, p. 613. 111 QÂSHÂNÎ, ‘A. ar-R. al-. Tafsîr al-Qur’ân al-Karîm li’s-Shaykh al-Akhbar al-‘Arif bi’llâh al-‘Allâma Muhyî ad-Dîn ibn ‘Arabî, 2 vols. Beirute: Dâr al-Yâqzat al-‘Arabiyya, 1386-7/1966-7. 112 IZUTSU, T. Sufismo y Taoísmo [op. cit.], p. 176-7.

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A faculdade de perceber a Deus desde o nível das coisas mais ínfimas do mundo,

como a cinza e a poeira, prepara o crente para perceber a integração de todos os

níveis sob o Poder tudo-envolvente do Uno, como aprendemos com o imâm

hanbalita Abû al-Faraj ‘Abd ar-Rahmân ibn ‘Alî ibn al-Jawzî (c. 1114-1201/c. 509/10-

597):

Em minha peregrinação a Meca, eu estava um tanto apreensivo em relação aos beduínos salteadores, então segui a passagem de Khaybar. Vi colossais montanhas e maravilhosas trilhas de pasmar. A grandeza do Criador avolumou-se em meu coração, de um modo que eu nunca havia experimentado antes. Gritei para minha alma: “Envergonha-te! Atravessa o mar e contempla suas maravilhas com o olho da alma, e testemunharás uma grandiosidade ainda maior. Então, observa o mundo, e isso parecerá ser, em relação aos céus e às órbitas [dos astros], não mais que um grão de areia no deserto. Depois, imagina as órbitas [das galáxias] e o Trono de Deus, o Paraíso e o Inferno... Então, esquece tudo isso, retorna e vê que tudo está sob o controle do Todo-Poderoso, Cujo poder não conhece limites. Depois, volta-te para ti, e vê teu começo e teu fim. Pensa naquilo que existia antes do começo: nada mais que o vazio; pensa naquilo que haverá depois do fim: nada mais que cinzas e pó. Como pode alguém sentir conforto neste mundo quando o olho da alma vê o começo e o fim? Como pode o sensiente de coração não atentar para a rememoração de Deus? Por minha vida, se as almas humanas virassem as costas às suas fantasias, elas derreteriam por temor a Deus, ou desfaleceriam por amor a Ele! Mas os sentidos estão obnubilados, e o poder do criador só pode ser percebido na visão de uma montanha. E no entanto, se eles tivessem a capacidade de perceber o verdadeiro sentido disto, então o poder que opera sobre a montanha seria mais indicativo do que a montanha em si”113.

O neoconfucionista islâmico Ma Chu (1640-1711 e.C.)114, que partilhou com Liu

Chih a educação confuciana, a fé islâmica e o contexto geográfico e histórico (Liu

Chih, recordemos, viveu em Yunnan, c.1670–1730 e.C.), parece ter sido influenciado

pelo pensamento akhbarî quando descreve, no capítulo intitulado “O Verdadeiro

Amor Benevolente (Chen-tz’u)” do seu compêndio “A Bússola [ou O Guia] do Islã

(Ch’ing-chen Chih-nan)” (chü-an 2.24a-31b), de 1680 (publ. 1681), uma realidade

em seis níveis, que começa por Deus (An-la), o “Verdadeiro Mestre (Chen-Chu)”, o

“Ancestral do sem-forma”, que flui como luz brilhante (wu-se hsiang – um termo

emprestado do budismo) sem forma e sem traços, e prossegue, através do

Comando inicial divino, numa relação de amor (tz’u-ai) benevolente com a criação,

através de cinco outros níveis: O “Não-supremo/máximo (Wu-Chi)”, não é Deus, mas sem ele o Comando inicial divino não poderia se manifestar. O “Grande Supremo/Máximo (T’ai-Chi)” não é Deus, mas sem ele o vasto poder de Deus não poderia se manifestar. O yin e o yang não são Deus, mas sem eles as sutis operações de Deus não poderiam se manifestar. As “dez-mil coisas (wan wu)” [= a realidade fenomenal] não são Deus, mas sem elas a

113 JAWZÎ, Ibn al-. Sayd al-Khâtir. ed. ‘Alî at-Tantâwî. Damasco: Dâr al-Fikr, 1978, p. 148-9. 114 Para uma breve biografia de Ma Chu, cf. BENITE, Zvi Ben-Dor. The Dao of Muhammad: a cultural history of Muslims in late imperial China. Cambridge, Massachusetts/Londres: Harvard University Asia Center, 2005, p. 137-40, 182-83, 185-87, 195-99.

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façanha perfeita de Deus não poderia se manifestar. A natureza individual não é Deus, mas sem ela a benevolência perfeita não poderia se manifestar115.

Temos, então, a seguinte correspondência entre os estratos de teofania do Absoluto

em Jâmî – com sua paráfrase em Liu Chih – e Ma Chu:

Autor Nível

Jâmî Jâmî (continuação)

Liu Chih Ma Chu Ma Chu (cont.)

1 “Inefável” Realidade sem descrição e

atributos

“Não-movimento”

“Ancestral do sem-forma”

Luz sem forma e sem traços

2 “Primeira Entificação”

Entificação global (potencial)

“Primeiro movimento”

“Não-supremo/máximo”

Comando

3 “da Divindade” Concessão global de traços

“Senhorio”; “Único-um (Chi-I)

verdadeiro”

“Grande Supremo/ Máximo”

Poder

4 “dos Nomes e de Suas

Presenças”

Diferenciação

Separação divisiva;

manifestações/ movimentos116

yin e yang

Operações

5 “engendrado, possível”

Aceitação global de traços

“ato poderoso e coisidade

(≠ Senhorio)”

“dez-mil coisas”

Façanha (Realização)

6 “do cosmos” Diferenciação ulterior

Separação divisiva ulterior

Natureza individual

Benevolência

No Lawâ’ih de Jâmî (“lampejo” 24)117, as seis Presenças Divinas são tomadas como

estando distribuídas em três planos (2-2-2), começando com o “não-manifesto da

existência (bâtin-i wujûd)” e continuando com o “manifesto da existência (zâhir-i

wujûd)” [“o exterior do Ser Real” em Liu Chih] e o “manifesto do conhecimento (zâhir-

i ‘ilm)” [“a superfície externa” em Liu Chih], com o nível da “primeira entificação” [do

“primeiro movimento” em Liu Chih] tacitamente permanecendo entre o manifesto e o

não-manifesto da existência.

No “lampejo” 17 [e também no 24], aprendemos que o nível da “primeira entificação

(ta‘ayyun-i awwal)” [“primeira teofania (tajâlli-i awwal)” nos “lampejos” 16 e 36]

compreende “receptividade para o desligamento (tajarrud) em relação a todos os

atributos (sifât) e aspectos (i‘tibârât)”118 no nível da Unidade (Ahadiyya), e

“receptividade para ser qualificado por todos [os atributos e aspectos]”119 no nível da

115 Apud ZHANG, Guangda (pinyin Chang, Kuang-ta) e LIPMAN, J. A Neo-Confucian Muslim Ponders the Creating God. Em: <faculty.washington.edu/stevehar/zhenci.html>, acessado em 11/2/2005. 116 “Manifestação dos nomes e designação de todos os movimentos do ato-raiz (pen-wei)”. 117 Apud MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 180 e 182. 118 “Unidade pura (wahdat-i mahd)” na sentença de abertura deste “lampejo”. 119 “Receptividade pura (qâbilîyat-i mahd) que engloba todas as receptividades” na sentença de abertura deste “lampejo”.

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Unicidade-e-completude (Wâhadiyya; Wâhidîyya)120. Ao primeiro nível pertencem

“não-manifestação, primeiridade [ontológica], e não-principialidade [azaliyya,

ausência de começo]”, ao segundo nível pertencem “manifestação, posterioridade e

infinitude [abadiyya, eternidade]”121. Murata explica: Noutras palavras, Deus envolve tanto os atributos que o declaram incomparável

(tanzîh) com todas as coisas, quanto aqueles que afirmam sua similaridade

(tashbîh)122 com a criação. Deus é um Ser indiferenciado que recebe tudo que

negamos d’Ele e tudo o que afirmamos d’Ele, o que quer dizer (…) que pode-se falar

sobre Deus não apenas em termos teológicos positivos [= catafaticamente], mas

também na linguagem da teologia negativa [= apofaticamente]123.

William Chittick esclarece que deve-se permitir [falar d’]a similaridade (tashbîh) de Deus [com os entes e coisas] se quisermos entender o verdadeiro significado de declará-Lo incomparável (tanzîh). Se a razão (‘aql) vê as coisas de forma abstrata e entende Deus como diferente e um outro, a imaginação (khayâl) apreende o conceito e reconhece Deus como igual e o mesmo. Noutras palavras, a imaginação (...) reconhece tudo no universo como um “símbolo” de Deus – não no sentido de que uma coisa aponta para outra, mas no sentido de que Deus está realmente presente nas coisas, do mesmo modo que ele está realmente ausente delas124.

Em conformidade com isso, na versão de Liu Chih para o “lampejo” 17 lemos sobre

um Primeiro Movimento (Ti Tung) envolvendo o domínio (fa) do “não-ser (wu)” no

nível do “Único Um (Chih-I)” e ouvimos falar do domínio do “ser (yu)” no nível do

“Uno Primeiro (Ti-I)”. O primeiro nível é “o interior, a origem e o começo”; o segundo

nível é “o exterior, o derivado e o final”125. No monismo de Jâmî, a não-manifestação

é claramente manifestação potencial (ao mesmo tempo que toda manifestação real

vem da não-manifestação, e para ela retorna): As tarefas, estados e relações da Essência [Divina], assim como suas propriedades e requisitos – todos os quais aparecem nos níveis das realidades divinas e engendradas –, são testemunhados pela Essência e por Ela fixados de um modo universal, indiferenciado, na sua própria não-manifestação, pela inclusão de tudo dentro de Sua unidade, junto com suas formas e propriedades, do modo como elas se manifestaram e serão manifestadas, fixadas e testemunhadas nos [diversos] níveis126.

120 Apud MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 160. Sobre a distinção entre Ahadîyya e Wâhadîyya, cf. ainda o Durrat al-Fâkhira, ¶26 (JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. The Precious Pearl… [op. cit.], p. 43), e as referências apontadas por N. Heer na nota 1 a esse parágrafo (idem, ibidem, p. 80). Ahadîyya é a unidade essencial (al-ahadîyya ad-dhâtîyya) que é idêntica ao Uno (al-Wâhid), e não um Seu atributo (na‘t); é a unidade carente de todo aspecto, enquanto Wahadîyya é qualificada precisamente por essa carência de qualquer aspecto particular na uni[ci]dade tudo-envolvente. 121 Apud MURATA, S. Chinese Gleams…[op. cit.], p. 160. 122 Também similitude (mathâl) e semelhança (mithâl). 123 MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 124. 124 Introdução a GHAZÂLÎ, [Abû Hamid] al-. The Niche of Lights… [op. cit.], p. xiii. 125 Apud MURATA, S. Chinese Gleams... [op. cit.], p. 161. 126 Trad. William Chittick, em MURATA, S. Chinese Gleams… [op. cit.], p. 162.

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Essa condição da Essência Divina, de “inclusão de tudo dentro de Sua unidade”, é

conhecida como sua “riqueza” ou “prosperidade” (árabe ghinâ; também

“independência; falta de necessidade”), e foi chamada por Al-Farghânî (m. em

1296/695, e de quem Jâmî parafraseou sua sentença) de “inclusão de todos os

números e seus níveis no um (wâhid) [= na unicidade, wâhadiyya] e na unidade

(ahad)”127. Após citar o Corão (29: 6) [“certamente Deus é

riqueza/prosperidade/independência além dos mundos (i.e., de toda a criação)”],

Jâmî (“lampejo” 17) explica, comparando inicialmente os níveis da existência a uma

saia [em camadas] (cuja pluralidade de camadas não afasta sua condição de ente

único):

É pura e imaculada a saia da riqueza (ghinâ) do Amor, sem necessidade que a suje como poeira a enodoar. Quando contemplado e contemplador nada mais são que esse Amor128,

se “tu” e “eu” não estivermos lá, que mal decorrerá?129 Cada tarefa e atributo do Ser Real em Si próprio tem conhecimento e realização. Em meio às coisas vinculadas130 e carentes umas das outras, Sua riqueza é sem vínculos na sua contemplação.131

O [Ser] Necessário é riqueza além da existência do bem e do mal, o Um é prosperidade além dos níveis dos [demais] números. Como Ele os vê a todos eternamente dentro de Si Ele é riqueza que ultrapassa a visão deles fora de Si.132 Combinando o entendimento desse poema de Jâmî ao seu pensamento

“neoconfucionista islâmico”, Liu Chih parafraseia do seguinte modo no Chen-ching

Chao-wei a supramencionada passagem do Corão (29: 6): “Apenas o Senhor Real

(Chen-Chu) é riqueza além dos dez-mil mundos”133. Noutras palavras, estamos

diante de uma formulação antiga da afirmação de que a Unidade é maior (mais rica)

que a soma das multiplicidades que a compõem.

127 FARGHÂNÎ, Sa‘îd ad-Dîn al-. Mashâriq ad-Darârî [op. cit.], p. 17 (cf. tb. JAMÎ, Durrat al-Fâkhira, ¶26). 128 Ator e espectador são um só. 129 Isto é, Deus não necessita de qualquer coisa fora de Si. 130 Os seres contingentes. Somente a Deus, o ser necessário que não necessita de qualquer coisa fora de Si, pode-se qualificar de “sem vínculos” em sua absoluta ghinâ (“suficiência; independência; falta de necessidade”). 131 Por contemplar a tudo em Si mesmo, a contemplação por parte de Deus não tem vínculos, fora aqueles conSigo mesmo. 132 Trad. William Chittick, em MURATA, S. Chinese Gleams…[op. cit.], p. 162. 133 Apud MURATA, S. Chinese Gleams…[op. cit.], p. 163.

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À GUISA DE CONCLUSÃO O sentido profundo da tawhîd escapa a toda contingência, donde a célebre resposta

de Abû Bakr as-Shiblî (m. em 945/334) a uma pessoa que o interrogou sobre isso: Desgraçado seja! Quem define a tawhîd de modo explícito é um apóstata, quem lhe faz alusão é um biteísta, quem a evoca é um idólatra, quem emite raciocínio sobre ela é um inconsciente, quem guarda silêncio a seu respeito é um ignorante, quem se acredita próximo [dela] está distante, quem faz dela seu êxtase é deficiente. Tudo aquilo que distinguis por vossa imaginação e que apreendeis por vossa inteligência é rejeitado, devolvido a vós, posto que, como vós, é contingente e criado134.

Quem faz da tawhîd seu êxtase é deficiente na medida em que, conforme um outro

mestre, no seu grau supremo a tawhîd “cega o clarividente, confunde aquele que

raciocina e estupefaz aquele que está seguro do seu julgamento”135. Num poema do

shaykh Abû Ismâ‘îl ‘Abd Allâh ibn Muhammad al-Ansârî al-Harawî (m. em 1089/481),

lemos: Ninguém que realizou (ou afirmou) a tawhîd realizou [realmente] a unidade do Uno, pois todos os que afirmaram Sua unidade O negaram136. A tawhîd, por parte de qualquer pessoa que ensaie descrever Sua qualificação, é [por assim dizer] um empréstimo do qual o Uno provou por Si mesmo a falsidade: Sua tawhîd [enquanto percepção] é verdadeiramente Sua tawhîd [enquanto realização]; qualquer pessoa que O qualifique está maculada pelo erro137. Numa glosa de ‘Abd al-Ghafûr al-Larî ao Nafahât al-Uns de Jâmî, aprendemos que o

sentido desse poema é, grosso modo, que a profissão real da unidade só pode ter lugar enquanto Deus, que é o Ser verdadeiramente simples, é compreendido sem nenhuma oposição/resistência/intervenção (muzâhama) do que quer que seja. Ora, isso só pode se passar em Deus, dado que Ele é simples, e que não há nada que se Lhe oponha/resista/intervenha. Em relação a tudo que não é Deus, isso não pode existir, pois todo ser que não é Deus é mais ou menos composto, e aquilo que é composto não pode compreender pela via da gustação [espiritual] (dhawq). (...) Se, portanto, qualquer pessoa pretende professar em toda a realidade a unidade de Deus, sua própria condição [de ser composto] evidencia a mentira de sua pretensão138.

Conforme um relato corrente na tradição sufi, o mestre Junayd al-Baghdâlî (m. em

910/288 ou 89) ensinou que a profissão de fé do sufi consiste em “permanecer um

instante sentado sem enfermidade”. Abû Ismâ ‘îl ‘Abd Allâh al-Ansârî perguntou-lhe:

“Que significam essas palavras sem enfermidade?”. Junayd respondeu: “É encontrar

sem buscar, e ver sem olhar, pois aquele que olha [não se aniquilando n’O Visto]

134 TÛSÎ, Abu Nasr ‘Abd Âllah as-Sarraj at-. Kitâb al-Luma‘ fi at-Tasawwuf. ed. R. A. Nicholson. Leiden: E. J. Bril/Londres: Luzac & Co., 1914, p. 30. 135 Apud TÛSÎ. Kitâb al-Luma‘, [op. cit.], p. 33. 136 Pois conhecedor e conhecido eram, então, um só. 137 ANSÂRÎ, Khwâja ‘Abd Âllah al-. Manâzil as-Sâ’irîn. ed. S. de Laugier de Beaurecueil. Cairo: L’Institut Français d’Archéologie Orientale, 1962, p. 113. 138 JÂMÎ, ‘A. ar-R. al-. Vie des Soufis ou Les Haleines de la Familiarité/Nafahât al-Uns [somente os prolegômenos e a vida de Junayd]. ed. e trad. Sylvestre de Sacy. Paris: Michel Allard Éditions Orientales, 1977, p. 74, n. 1.

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tem uma enfermidade139 na vista”. Quando buscador, senda e meta são Um, pode-

se então falar na verdadeira experiência de Deus. E “Allâh sabe mais (Allâhu

a‘alam)!” (Corão, 3: 167).

Agradecimentos: a Behjat’osadat Hejazî, Mohammed Sirâj Elschot e James

Frankel.

139 Quando o vedor e O Visto, o buscador e O Buscado, não são apenas Um.

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A luz do nada

possibilidade da experiência do nada e de deus

Ulrich Steiner*

O presente artigo é uma repetição. Repetir como repetem os Tapirapé da Aldeia Urubu Branco, de geração em geração, as estórias de seu povo. A repetição é um pedido silencioso para abrir a alma à razão da existência do povo. A repetição de outra parte é recordação. Recordação como deixar pulsar o sentido da vida de um povo.

O artigo busca repetir pensamentos presentes nos escritos de Bernhard Welte.1 Recorda a possibilidade da experiência do nada como luz que ilumina a figura e o nome de Deus. Com lacunas, saltos, tropeços, silêncio, má formulação do discurso, quase cópia, o artigo repete a tentativa de demonstrar na presença silenciosa, infinita e incondicionada do nada, a luz do por-vir de Deus.

Morte da figura e do nome

Nomes e símbolos vêm e vão. As figuras e os nomes surgem e tornam-se expressão máxima de significado de uma experiência, mas podem desaparecer e perder o seu sentido, diz Welte. Eles já não dizem mais nada, tornaram-se expressão de nada. Assim, por exemplo: O que diz o nome Deus? (WELTE, 1997, p. 184) A interrogação ou a questão colocada não trata da palavra ou da defesa ou derrocada do conceito Deus. A pergunta interroga o que a palavra deseja dizer. É perguntar se o conceito Deus deixou de ter aquela ressonância, aquela evidência da experiência que o homem fez ou faz do inominável. A não evidência e a não ressonância do conceito Deus se faz presente no hoje do homem.

A questão não é falar de Deus ou referir-se a Ele, nem mesmo de defender a existência de Deus, mas, à luz da razão, interrogar a presença e a essência de sua presença. O dizer, a fala, o discurso pode ser vazio sem um referimento à experiência originária. A fala, o nome podem ser produzidos intencionalmente pelo homem através do pensamento, no sentido de uma representação objetiva de um conteúdo que possa corresponder ao que vem pensado. Mas não bastam definições, conceitos. O pensamento de Deus simplesmente representado perdeu a própria força íntima e originária e, em conseqüência, a própria vida. Um pensamento que produz Deus intelectualmente se refere simplesmente a alguma coisa pensada que se tenha tomado em consideração quando se fala de Deus. Por isso, Deus produzido intelectualmente, como uma coisa qualquer que em uma época foi pensado e definido, permanece, talvez, como alguma coisa do passado, morto. Os pensamentos e as palavras que a um tempo expressavam a experiência de um mundo onde Deus dava sentido a tudo podem esvaziar-se de muitos modos. E se * Ulrich Steiner foi professor de filosofia na FFSB até 2005. Atualmente é bispo auxiliar da Diocese de S. Félix do Araguaia. 1 Bernhard Welte nasceu em Messkirch, Baden, Alemanha, no dia 31 de março de 1906. Professor de Filosofia da Religião na Unversidade de Friburgo na Alemanha. Faleceu em 6 de setembro de 1983, em Friburgo.

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tornam vazios sobretudo quando referidos ao Divino. Mas o pensamento atento, disponível, crítico, pode receber o sentido originário e a partir da experiência originária dar nome novo.

O nome de Deus sofre no tempo uma transformação. Não da grafia, mas do sentido que o homem buscou guardar na casa da palavra. O nome, como também as figuras, que aparecem e desaparecem, dizem da transformação histórica do sentido do mundo, e, por isso, da presença e ausência de Deus, da experiência que o homem faz de Deus (Cf. WELTE, 1978, p. 1-10). A transformação das figuras e dos nomes acontecidas pela transformação do sentido de mundo, que se costuma denominar mundo secularizado, incitam o pensador a questionar o sentido da ausência de Deus e a presença do nada (WELTE, 1985, p. 21). Com a transformação do nome e das figuras de Deus, o pensador é levado a pensar a negação de Deus, o niilismo, mais precisamente o nada.

A transformação do nome e da figura de Deus passa pela afirmação da morte de Deus. A morte ligada à declaração do louco de Nietzsche: “Onde está Deus?... Nós o matamos... somos todos assassinos” (NIETZSCHE, 1995, p. 162). O louco proclama, de um lado, o desaparecimento de Deus no horizonte da existência humana e, de outro, que o homem deseja ocupar o lugar de Deus, querendo ser divino (WELTE, 1981, p. 165).

A morte de Deus numa época histórica como a nossa parece vinculada à própria palavra morte. Morto é o que há um tempo era visível, enquanto manifestação viva de uma presença que dava significado à existência dos mortais. Existência dos mortais, vale dizer, o sentido da totalidade do homem e o seu mundo. Mas a vida deu seu último suspiro e agora está morto. De um lado a morte diz do fim, do nada, e de outro diz que ainda permanecem a lembrança da figura e do nome. Deus, na morte, pode ainda ser visível e se mostrar, mesmo que a figura visível e o nome já não tragam à fala a vida que a tudo dava vida e sentido. Na morte permanece o seu vulto como possibilidade de manifestar-se no tempo (WELTE, 1993b, p. 22s). Mas a grande força vivente que era visível no espaço espiritual do tempo agora, através do grande evento de sua morte, desapareceu. Desapareceu e, com a morte, o sentido da vida.

A morte de Deus é a morte do Deus da metafísica e, daí, o descrédito do Deus cristão que a tudo dava sentido (WELTE, 1994, p. 17). Na expressão de Nietzsche, com a morte do Deus cristão, construído nos sistemas de pensamento, os valores supremos se desvalorizam; falta a meta; falta a resposta para o “porquê” (NIETZSCHE, 1952, p. 10). Ele advertia de modo extremamente agudo que, com o desaparecer do Deus vivo, de per si nenhum pensamento e nenhuma pergunta adquiriria um verdadeiro fundamento, nem o agir um sentido de futuro. Todo pensamento e toda obra deveriam permanecer suspensos em um nada sem fim. Ele viu o niilismo europeu avançar como um fantasma que inevitavelmente traz no seu bojo a aproximação da morte de Deus. Assim, advertia para o nada sem fim que avança de modo mortal (WELTE, 1994, p. 19). No avançar do nada, com a morte do Deus da metafísica, morrem as figuras e os nomes de Deus. No desaparecimento do sentido da vida, a morte de Deus faz perceber a presença do nada invisível, intocável e silencioso. É a sombra que agora tudo cobre e vela (PENZO, 1994, p. 77).

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Vale dizer que a morte de Deus, o mutamento dos nomes e das figuras, e, por isso a

presença do nada, não são mudados à força, nem mesmo com a força da razão.

Mas, em interrogando e pensando o nada sem fim, o homem poderia colocar-se,

despojadamente, dispostamente e expostamente, à espera do inesperado. Na

espera humilde, caminhar atentos passos do pensamento! Essa disposição de

silêncio e de disponibilidade é necessária para pensar o nada e não para a tentativa

de reconstrução da imagem e dos nomes de Deus (WELTE, 1978, p. 10). O

pensamento, assim, estaria na disposição da experiência do nada de Deus.

Ser-no-mundo: o espaço da experiência

O homem, como ser-no-mundo, é ser em relação com. E, como ser em relação com, se apercebe muito mais como ser que continuamente é atingido no seu ser. Essa como que dupla significação do ser que se relaciona pode ser dita como o espaço aberto da experiência. O homem, visto como espaço aberto, espaço aberto que vem à fala como fazer experiência, indica o movimento existencial determinante do itinerário na busca do nada.

Segundo Welte, o homem colhe-se sempre como “eu sou/estou aqui” (ich bin da). No seu ser todo inteiro aqui, ele já está sempre, por princípio, determinado, e no seu ser cada vez somente aqui, está sempre em relação com, pois jamais se encontra isolado (WELTE, 1967, p. 11-20). Ele vive no mundo, e viver no mundo significa que se encontra determinado pelo estar relacionado com. Ao mesmo tempo em que está relacionado com, ele se colhe como determinado pelo mundo, podendo, assim, responsabilizar-se pelo seu relacionar-se com, e ser mais que seu mundo, libertando-se continuamente, descobrindo a manifestação de novos mundos (WELTE, 1969a, p. 43-68).

No estar em relação com os outros, consigo mesmo, com o mundo, ele toca, vê, algo vem à visibilidade, se mostra (WELTE, 1997, p. 84). Ele vê o que se mostra, pode tocá-lo, isto é, experimenta-o. Mas, em tocando, vendo, experimentando, toca, vê a si mesmo, isto é, sempre ilumina, dinamicamente, a si mesmo. Na terminologia de Heidegger, pode ser descrito como Dasein, como ser-no-mundo, a clareira, die Helle, a possibilidade de fazer experiência.

Esse modo de ser do homem no mundo vem expresso como: espaço aberto de experiências. Por isso, ao modo de ser do homem no mundo pertence a clareira ou abertura de muitas possibilidades de poder realizar muitas experiências consigo mesmo, com a sua comunidade e com o seu mundo (WELTE, 1997, p. 85). O estar aberto, o fazer experiência, indica também o modo da relação, da apreensão e da responsabilização como ser-no-mundo. Em todo o seu modo de estar sempre em relação com, o homem é ser-no-mundo e, como ser-no-mundo, vem pensado como um espaço aberto de experiência. Um espaço aberto de experiência significa a própria possibilidade de a experiência poder vir à fala, e poder vir à fala o próprio da experiência.

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Assim, experiência não significa experiência no sentido de informação, comprovação dos dados que se possam adquirir a respeito de alguma coisa, mas experiência indica totalidade. Como totalidade significa, antes de mais nada, pertencente como próprio ao homem histórico, ou que pertence à essência histórica do homem (GADAMER, 1995, p. 411). Experiência ela mesma é história e história é experiência (WELTE, 1975a, p. 40).

No espaço aberto, na experiência, o homem é tocado e toca o absoluto, que é sem início e sem fim (SÁ CAVALCANTE, 1999, p. 119), o nada, e, ao mesmo tempo, é a possibilidade de todo começo e de todo fim do absoluto para o homem. Na experiência que o homem faz ou é levado a fazer, o absoluto, o nada, se torna absoluto para ele; já não é figura, permanecendo sem nome e sendo ao mesmo tempo a possibilidade de toda figura e todo nome.

A experiência da ciência

Se Dasein é o espaço aberto de experiência, como compreender o significado da mesma? O que seja experiência vem demonstrado por Welte como imediatez, encontro e transformação (unmittelbare Gegebenheit, Betreffen e Verwandeln) (WELTE, 1985, p. 13). Imediatez, encontro e transformação são fundamentais para a compreensão do todo da existência do homem como experiência. Mas imediatez, encontro e transformação da experiência podem ser compreendidos de modos diversos.

Na fala corrente, a experiência vem expressa como um modo de captação da realidade, um modo da formação dos conhecimentos e das relações. Esse modo poderia ser expresso como natural, porque é o modo de entrar diretamente em contato com as realidades, sem que se recorra a categorias estranhas e exteriores interpostas entre o homem e o experimentado. O homem, com todos os sentidos, entra em contato diretamente com a natureza e dela tira conclusões. A apreensão da realidade, as conclusões, nesse sentido, determinam uma transformação na compreensão da realidade. Mas, igualmente, determinam o modo como o homem vai à realidade, como também o modo de a realidade vir ao encontro do homem: de modo natural (WELTE, 1985, p. 25s).

Ocorre que, em tal modo de compreender especialmente a imediatez e a transformação da experiência, isto é, como uma espécie de “contato imediato”, o homem poderia se deixar guiar pela subjetividade, pela aparência, pelo seu estado de ânimo. Apesar da aparente integração consigo mesmo e com o mundo, ele permanece no imediato da interpretação que faz a partir de si mesmo e do que lhe cai sob os olhos. Tal modo corrente de compreender a experiência não parte da essência, do ir à coisa ela mesma a partir dela mesma, deixando que o próprio olhar se transforme na sua totalidade a partir do que se manifesta (WELTE, 1976, p. 11s). Mas também não se interroga sobre a transformação do homem e seu mundo.

O modo corrente de compreender a imediatez e a transformação da experiência como espontâneo e sem muito trabalho, poderia ser considerado carente de rigor científico, não servindo para demonstrar e iluminar a questão de Deus e do nada, que surge a partir da experiência como imediatez e encontro e transformação. O rigor das ciências poderia possibilitar uma compreensão ou um modo objetivo de maior precisão.

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O rigor das ciências poderia indicar uma compreensão de experiência que se refere à compreensão verdadeira de imediatez e de transformação. Se por ciência se entendem as ciências empíricas e experimentais, no uso comum que se faz do termo, então, a experiência deve ser compreendida de um modo próprio e, por isso, também com um método próprio (WELTE, 1985, p. 26s).

Fazer experiência significa intervir na realidade mediante certa técnica, com a objetivação própria das ciências. Essa intervenção busca respostas precisas às perguntas propostas e bem determinadas, isto é, hipóteses, que direcionam a pesquisa e toda a ação experimental. Na ciência, experiência é o conjunto de operações que o cientista faz com o objetivo de descrever o comportamento; é o conjunto de fenômenos tomados em consideração ou, também, o modo de verificar certas previsões ou antecipações que acontecem no decurso dos eventos, a partir de certas condições inicialmente conhecidas.

O que é experimentado, ou aquilo com o qual se faz experiência, deve ser submetida à verificação e controle, pois se tem em vista um fim, um resultado. Por isso, a experiência vem compreendida como mediação do conhecimento, do saber. O fim, ou o resultado, é garantido pela repetição da experiência que, na repetição, deve ser garantido pela verificação e pelo controle. Toda e qualquer experiência, nesse sentido, tem validade somente na medida em que comprove o resultado obtido (WELTE, 1985, p. 28; GADAMER, 1995, p. 402). Assim, a ciência intervém sobre a realidade, predispondo o experimento, com a intenção de verificar, mediante a experiência, uma hipótese já formulada, ou fazer nascer uma idéia ou hipótese de trabalho, através de repetição e controle (WELTE, 1982, p. 29s).

Dessa forma, a experiência como imediatez caracteriza-se pelo domínio, pelo controle e pela repetição, garantindo assim objetividade e consistência à experiência na comprovação de uma verdade. A verdade se manifesta na comprovação e mensuração do resultado, numa compreensão de imediatez como rigor de controle e precisão. O resultado da experiência leva a uma transformação dos conhecimentos do homem, bem como da compreensão de mundo. A experiência feita pela ciência determina, muitas vezes, a transformação do modo de relação com as coisas, com as pessoas e, por isso, com a transcendência (WELTE, 1993b, p. 43-76).

Mas as ciências não possibilitam verificar o dar-se da experiência, isto é, não se interrogam a partir de onde a experiência se dá e qual a abertura que possibilita a experiência. No modo como as ciências se dirigem às coisas para fazer a experiência, além de estas não se interrogarem pelo porquê, para quê, de onde advém o verdadeiro conhecimento, também permanecem num imediato de comprovação que não é o da verdadeira imediatez e da verdadeira transformação. Pelo fato de colocar a experiência como meta, a ciência quase elimina o caráter histórico da mesma, isto é, a incidência existencial da mesma. O modo de organizar e compreender a experiência, no seu método, parte sempre de pressuposições (GADAMER, 1995, p. 402). Além da pressuposição da repetição, a ciência coloca como base o cálculo da própria repetição. Esse modo ou caráter da experiência aparece principalmente na organização do método (WELTE, 1985, p. 29).

A imediatez e a transformação, a partir dessa compreensão, permanecem sob o poder e o domínio do homem, não havendo um encontro com a realidade, onde o homem silencia e pode ser transformado. Por não compreender a questão da

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imediatez, da transformação e do encontro, dificilmente se intui o sentido de experiência que leve em consideração todos os fenômenos humanos, principalmente aqueles que fogem ao controle da ciência, como a morte e a dor. Justamente na morte e na dor, a competência do método das ciências chega ao seu limite, ao seu confim. E, pelo fato de fugir ao controle da ciência, entra em questão a discussão, a validade e a legitimidade de um outro nível ou outra realidade que se manifeste como real ao homem, que é o caso de Deus, do nada etc., pois não são mensuráveis pela imediatez e pela transformação da experiência que a ciência faz.

Imediatez, encontro e transformação

Por experiência, Welte compreende um movimento que vem demonstrado como imediatez, encontro e transformação (WELTE, 1985, p. 13). A experiência como dar-se na imediatez e no encontro-transformação indica o movimento em que o homem se encontra, e é continuamente transformado. É tarefa do pensamento estar atento a esse movimento todo próprio da experiência, bem como trazer à fala as experiências que permanecem veladas (WELTE, 1979b, p. 106).

A experiência deve ser determinada fundalmentalmente como dado imediato do que pode ser experimentado (WELTE, 1985, p. 13). O experienciado mostra-se a si mesmo na experiência imediata, a quem faz a experiência. A imediatez da experiência pode ter diferentes graus e modificações, isto é, pode não ser percebida, ou permanecer velada, ou não vir à fala devido às impossibilidades de compreensão e sensibilidade de uma época histórica. Ela pode, no entanto, na sua imediatez, dar-se e manifestar-se. Mas o que se mostra na imediatez, como também o que se vê na imediatez, permanece naquela indivisibilidade anterior à divisão entre sujeito e objeto.

O estar na imediatez do que se manifesta na experiência como anterior a qualquer divisibilidade, quer entre sujeito-objeto, quer de figura e de conceitualização, compreende a totalidade do homem. Não se trata de uma percepção dos sentidos, mas de uma abertura humana complexa, ampla e indistinta do homem. O homem como Dasein é a abertura de ouvir, de ver, antes mesmo que possa ser diferenciado em seus sentidos. A abertura humana é que se encontra estruturada de modo multiforme nos sentidos. O homem é abertura ao mundo, e cada um dos sentidos indica o deixar vir ao encontro e ir ao encontro. É o homem que se apercebe como abertura ao mundo que lhe vem ao encontro e não cada um dos sentidos. O que é mais imediato é o homem, como um todo, que se encontra com o mundo, e não cada um dos sentidos. Assim, a abertura da relação de homem e mundo é que é imediata e, nessa imediatez de homem e mundo, mundo e homem, acontecem as experiências. Por isso, a experiência toma de modo imediato o homem na sua totalidade (WELTE, 1985, p. 14). A experiência, assim, não indica vivências, apreensões subjetivas de dados, fatos, mas, dada a complexidade da imediatez que a experiência comporta, está indicando a abertura do homem.

Imediatez é a abertura do homem. E é na imediatez que se dá o encontro do homem e a coisa, ou do homem com o mundo. O encontro todo próprio entre as pessoas, como também com o absoluto, é possível na imediatez.

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Na imediatez percebe-se encontro e transformação. Na experiência, como imediatez do que se manifesta, acontece o encontro entre pessoas ou entre o que se mostra. No encontro, a pessoa que tenha feito experiência não permanece a mesma, ela é outra, nela acontece uma transformação. A experiência significa, então, encontro e transformação. O que se encontra, por si só, não é ainda experiência, porque a coisa permaneceria como vazio em si (an sich). Experiência é experiência quando a coisa, de que se faz experiência, toca o homem, isto é, é encontro entre a coisa que se manifesta e o homem. A imediatez e a transformação partem do encontro (WELTE, 1979, p. 106).

O encontro pode ser intuído na tentativa de demonstrar o encontro de tu e eu. O encontro de tu e eu acontece na imediatez absoluta. No encontro entre eu e tu, como imediatez absoluta, ainda não se dá um conhecimento de conceito, uma pré-compreensão, uma idéia. Tanto eu quanto tu se encontram simplesmente na unidade e totalidade da imediatez do dar-se do encontro. Ao mesmo tempo em que acontece na imediatez, o encontro entre eu e tu demonstra a indivisibilidade de sujeito e objeto, de eu e tu. No dar-se, na imediatez do encontro nem mesmo é possível pronunciar a palavra tu, nem mesmo eu. E existe somente puro dar-se e não como um poder fazer dar-se da parte do eu (BUBER, 1993, p. 67).

O encontro na imediatez entre o eu-tu é sem proximidade e sem divisão. O outro é somente tu e enche o céu e a terra. Não porque não existe nenhum outro, mas porque tudo vive na luminosidade do tu (BUBER, 1993, p. 64). Viver na luminosidade do tu é ainda dizer do acontecer na imediatez. E o dito vem depois da imediatez da experiência. Assim, a verdadeira relação entre o eu e o tu nasce do encontro na imediatez. Não existe uma pré-compreensão. É somente imediatez de encontro, onde cada um é iluminado e ilumina o outro, dando sentido de totalidade, isto é, cria todo o universo. A imediatez deixa-se entrever na relação, no encontro que se manifesta na sua plenitude, na sua totalidade, antes mesmo que se transforme em consciência da relação e tome forma na palavra, ou seja, conceito; nem tampouco é ainda do domínio do homem. Imediatez-encontro está sempre fora da possibilidade do homem, se dá, é. A relação, aqui, é. Não se encontram momentos, nem antes, nem depois. É! O antes e o depois são a partir da imediatez do encontro. O encontro está na imediatez, e a imediatez é a possibilidade do encontro. Nesse sentido, a imediatez tem um sentido de absoluto, sem momentos, puro movimento, puro acontecer, onde tu e eu não são o eu e o tu, mas deixam de ser na diferença.

Nesse sentido, encontro é puro toque, puro golpe, é tudo num toque, num só golpe. No tudo, tudo é, e cada um, no que é, sem nada deixar de ser, o é, sem ainda saber que é. E, em sendo, o homem é somente toque. E tudo como um percorrer trabalhoso do pensar, sustentado pela gratuidade do mistério do próprio toque, que se deixa tocar e se desvela numa unidade onde tudo apenas é.

Mas, ao mesmo tempo em que se pode descrever o encontro, também se deve descrever o movimento da transformação do encontro que acontece na imediatez. A compreensão, o saber, a percepção, a memória, o dar-se histórico entre pessoas e com o absoluto, o nada, se transforma, porque o sabido, percebido, mergulha no não-saber. Todos os elementos, que até então compunham uma relação, caem e se manifestam de modo novo, inusitado, a partir do encontro tudo se transforma, tudo se reencontra.

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A transformação ocorrida é elemento fundamental e decisivo na experiência (WELTE, 1979, p., 106). A transformação manifesta-se no que se costuma dizer: é uma pessoa de experiência. O homem que fez experiência é um outro daquele que era anteriormente. Ele vê seu mundo diversamente, ele se relaciona de outro modo que anteriormente (WELTE, 1985, p. 17). Na imediatez do encontro com o que se manifesta, abre-se um mundo diverso, uma nova possibilidade de ver, como também incide em uma nova possibilidade de ser do homem. Há uma transformação do sentido do mundo, e o modo de ser do homem no seu mundo se transforma.

A transformação possui, nesse sentido, um componente de negatividade. O homem perde o seu mundo sabido e dominado e se abre para a possibilidade de um novo mundo. A negatividade, a perda de todo saber, possibilita a transformação, a superação; negatividade como nova abertura, como entrar no seu não-ser, para poder ser. Abandonar o mundo até então conhecido, para deixar-se iluminar por outro mundo, que se descortina. O que era não é mais, pois mostrou a sua face de modo diverso. Na experiência, a negatividade do ter que deixar de ser abre ao homem um novo modo de ser: O velho desapareceu. Mas dessa negatividade emerge uma nova positividade. Tudo é novo, talvez, surpreendentemente diferente no modo (WELTE, 1985, p. 18).

Não só o modo se transforma, mas aquilo do qual se fez experiência começa a fazer parte da existência de quem fez a experiência, abrindo novo espaço e possibilidando nova forma do homem existir no mundo (WELTE, 1979, p. 106). Assim, a transformação na experiência traz consigo uma nova compreensão da totalidade. A compreensão da totalidade agora é outra, isto é, o mundo em que agora vive, é outro, porque se manifestou de modo diverso, como não se havia manifestado até então. Mas, ao mesmo tempo, modifica o modo de estar no mundo porque, atingido no seu ser, ao homem abriu-se nova compreensão. Em outras palavras, advém um novo céu e uma nova terra. Abriu-se uma nova percepção e visão de si mesmo. Nesse sentido o homem carrega consigo o experimentado2.

A experiência indicada por Welte como movimento de encontro-imediatez transformante possibilita pensar as transformações da figura e do conceito de Deus e a manifestação do nada.

A presença da não-presença, o nada

O nada é compreendido de diversos modos. O modo mais ordinário e imediato é a negação de alguma coisa e o nada existir no espaço entre dois pontos de referência. O nada como negação da existência de alguma coisa e o nada como um espaço vazio entre dois objetos ou seres, ainda que na aparência iguais, determinam duas compressões diferentes do nada. Uma se refere à não existência ou não percepção de alguma coisa, a outra a um espaço que é dado de antemão ao homem. Mas ambos se referem a alguma coisa (WELTE, 1975b, p. 26).

O nada pode ser compreendido também como não percepção de sentido de alguma coisa, ou da existência de alguma coisa, e mesmo como destruição do sentido. A 2 cf. Kierkegaard (1995, p. 44). Abraão não é mais o mesmo ao voltar silenciosamente para casa depois de ter obedecido ao Senhor para que sacrificasse seu filho Isaac.

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destruição de sentido está ligada diretamente ao niilismo, pois ele diz que tudo é nada ou diz que tudo pode ser interrogado e, por isso, é nada (WELTE, 1975b, p. 28). Com o niilismo tudo pode perder sentido, especialmente o que chamamos de transcendência. Assim, o nada ganha contorno não mais da existência de alguma coisa, mas como o espaço existencial que deixou de ter algum sentido.

Existencial refere-se ao homem. Ele, como existente, interroga a si mesmo e pode encontrar-se com o nada de sua existência. Welte demonstra a presença do nada na existência do homem, ou melhor, na interrogação da não existência do homem.

O homem existe, ele se apercebe como vivo, como vivente. Ele é relação com os outros, ele vive no mundo. Existir, e existir no mundo, independe de maior ou menor consciência de existir. Para além de todas as discussões e compreensões, afirma o nosso autor, nós existimos no nosso mundo. Mas existir no mundo significa fazer experiência. Como visto, a abertura do homem como experiência é continuamente colher-se como existente, como ser no mundo, como Dasein. Existir, ser no mundo, não carece de explicações, de comprovações, mostra-se a partir de si mesmo. Existo!

A experiência que o homem faz do seu existir pode levá-lo a interrogar sua não existência: Eu não existi sempre e não existirei sempre. Como ser em relação com, ele interroga seu destino, seu porvir e igualmente o lugar da sua proveniência. Significa que ele interroga, a partir de seu ser no mundo, o seu ainda não existir e, ao mesmo tempo, o seu deixar de existir.

O homem se apercebe como um ser que não existiu sempre e deixará de existir no futuro. Ele se sabe nascido e se confronta com a sua morte. É a afirmação de um lado de seu passado e de seu futuro, mas ao mesmo tempo a negação de seu passado e seu futuro. Negação no sentido da não existência de um tempo e a não existência de um tempo que chegará ao seu fim. É a confrontação com: um dia eu não existia e de novo um dia não existirei. E a não-existência do passado e a do futuro referem-se ao homem em sua totalidade. Essa não-existência, não-existir, pode ser denominada, nomeado de nada (WELTE, 1997, p. 84-88).

Dizer da não-existência como um tempo que não houve e um tempo que não mais será é perceber o nada do finito, deixando o homem suspenso no nada de sua existência. É estar suspenso entre dois abismos do infinito e do nada (PASCAL, 1993, p. 72).

A não-existência, o nada, pode ser experimentado pelo homem, pode ser experimentado como um abismo sem limite, que foge ao espaço e ao tempo, segundo Welte. É sem fim (WELTE, 1997, p. 94). Sem fim porque nele não se encontra nem início, nem chão, nem ponto de chegada. É o fundo sem fundo no qual se pode cair sem chegar a um fundo, ou o fundo sem fundo no qual se pode cair e finalmente deve-se cair sem se chegar a um fim (WELTE, 1985, p. 44). O nada despreza os limites, toda limitação e toda determinação. A experiência do nada deixa dizer que não tem ponto de partida nem ponto de chegada, rejeita todos os

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limites e limitações, mesmo do pensar e de toda outra determinação. Assim, o nada na sua negatividade é sem fim, isto é, ilimitado, infinito.

O nada vem experimentado também como incondicionado. Diante do nada não existem condições. O homem o experimenta independentemente de o desejar ou não, independentemente de todos os seus afazeres, independentemente do modo e do quando, e independentemente das compreensões que ele tenha de si mesmo. E ao mesmo tempo o nada não se deixa apreender; é uma presença fugitiva, incapaz de ser dominada, mas dominando com sua presença e sua ausência (WELTE, 1985, p. 44).

Além de ser percebido como infinito, ilimitado, incondicionado, sem confim, o nada também pode ser experimentado como silêncio. Silêncio porque não é um ente que fala, e, nem mesmo um ente que possa ser descrito. E é assim porque assim é experimentado pelo homem. O nada silencia: é o próprio silêncio! O nada experienciável nada diz e por isso não indica nenhuma saída. Ele é simplesmente silêncio (WELTE, 1985, p. 45). Mas o próprio silêncio do nada traz um estranhamento, pois é um silêncio, que por ser silêncio, ao mesmo tempo fala, porque experimentado pelo homem. Um silêncio vazio e que se manifesta como uma força que fala. Nesse sentido o nada no seu silêncio é experimentado como infinito e incondicionado, como impossibilidade.

O ser infinitude, o ser incondicionado, o ser silêncio que a experiência do nada traz à fala, não podem ser compreendidos como predicados ou propriedades de uma coisa. Não se trata de uma coisa. É a negação de toda e qualquer propriedade, acidente, comportamento de um sujeito (WELTE, 1997, p. 95). É justamente a mais radical negação de qualquer coisa ou sujeito, bem como de tudo o que possa significar qualquer propriedade de coisa e sujeito que possam indicar tal presença.

Essa presença do nada manifestada como infinito, incondicionado, silêncio, vem experienciada como o outro do homem e não somente como seu limite, pois como limite seria ainda fora do seu Dasein. Onde o homem faz a experiência do nada ele se encontra tomado do nada, mas também onde ele nega a experiência de tal presença. O homem mesmo é o lugar da manifestação do nada e ao mesmo tempo é experienciado como o seu outro.

O nada como o outro do homem não é alguma coisa que se ajunta ao homem, mas que o pervade na sua totalidade e o marca de modo todo singular e próprio. Assim, o nada é existencialmente o outro e não puramente o limite do homem, nem mesmo a indicação do limite da existência. Ao mesmo tempo não é experimentado como estando fora da existência. Na experiência do nada a existência está tomada e invadida pelo nada, mas também invadida e repleta, onde a experiência vem rejeitada (WELTE, 1997, p. 96). O homem e o nada, nesse sentido, não podem ser pensados como dois âmbitos justapostos, mas como dois espaços que se interpenetram, e, por isso, não podem ser pensados como duas realidades que se contrapõem ou justapõem, mas como espaços que se interpenetram.

A experiência da presença do nada como presença infinita, incondicionada e silenciosa poderia ser apenas uma constatação, ou será que o pensador poderia ser

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provocado a continuar o seu caminho e sondar nessa presença uma presença profundamente significativa para ele?

Welte dirá que o nada é a presença velada da força infinita, incondicionada e silenciosa que guarda e dá sentido à totalidade da existência humana. Mas, somente se o nada na sua infinitude, incondicionalidade e silêncio, não for um nada vazio, mas sim o velamento da presença da força infinita, incondicionada e silenciosa que dá sentido a tudo (WELTE, 1997, p. 106). Na presença do nada sonda a possibilidade do velamento do divino, antes que de Deus (WELTE, 1985, p. 45).

O nada que tudo guarda

A experiência que o homem faz do nada está em conflito com o sentido que ele dá à ocupação e à responsabilização de seu fazer e ser. No seu fazer e ser, o homem se move dentro de um sentido. Não se move em um vazio, mas é sempre movido por um sentido que faz e busca fazer, é e busca ser.

Sempre está presente um sentido. O sentido que justifica a plena realização da vida no seu todo e ao mesmo tempo faz com que a vida possa realizar-se na sua totalidade (WELTE, 1997, p. 97). O sentido existencial guia o homem no seu fazer e no deixar de fazer. Todo agir e pensar é guiado ou provocado por um sentido ou por uma busca de um sentido. As realizações concretas e diárias, os sonhos e as esperanças, as exigências mais imediatas e profundas estão sempre sendo guiadas e fundamentadas por um sentido. Por isso, pode-se dizer que no seu fazer e no seu ser o homem é guiado por um sentido que realiza a sua existência. Mesmo sendo guiado por um sentido em todo seu fazer e ser, ele permanece na insatisfação com o próprio sentido de seu fazer e ser, buscando um sentido que sempre ultrapasse o próprio sentido que o guia em sua ocupação. Isso indica que ele postula um sentido, exige um sentido que responda à questão essencial: Qual o sentido do homem como ser no mundo na sua totalidade? (WELTE, 1997, p. 99).

O existir do homem e seu mundo como uma totalidade implica o transcender toda realidade finita e a realidade finita no seu todo. A pergunta pelo sentido da totalidade que tudo abraça e que tudo perpassa deve dar sentido também aos percalços, às dissonâncias, à não realização e mesmo ao não sentido. Somente sustentado e guiado por um sentido da totalidade é que o homem se ocupa e ao mesmo tempo se sente provocado a ir além do próprio sentido que o guia na sua finitude. Ele se deixa guiar por um sentido último e total que tudo abraça. Esse sentido está na origem e no início de toda a vida humana, é o pressuposto de toda vida humana na busca de sentido.

O sentido último e total que o homem experimenta não é unívoco, único. Ele permanece um sentido aberto e livre, possível de diferentes interpretações. Mas o sentido vital originário, experimentado e que cada vez e em cada povo

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é interpretado de modo diverso, vem demonstrar sua raiz única, isto é, na sua totalidade a vida tem sentido (WELTE, 1997, p. 101). Esse sentido emerge com limpidez quando o homem, negando qualquer sentido possível, vive num vazio de sentido. Mas também essa possibilidade de renúncia pelo sentido do existir e a decisão de viver nesse absurdo está ancorada num sentido límpido de todo sentido desfigurado onde a ilusão e os maceramentos de sentidos não podem tomar corpo. Nisso se confirma que a própria interpretação de um sentido absurdo, absoluto, parte de um sentido existencial: o sentido do não-sentido é um sentido.

O homem, enquanto existente, não sobrevive sem um sentido que tudo perpassa. E sem um sentido teria como conseqüência deixar de viver, não mais ser no mundo (WELTE, 1997, p. 102). Abandonar o sentido que dá sentido é deixar de viver e de existir. O sentido que tudo perpassa é que mantém o homem na dinâmica do fazer e do ser, isto é, o constituir-se do próprio do homem, recriando o mundo do homem.

Qual a ligação entre o nada e o sentido fundamental que dá sentido à vida e a move e a guia? O nada, entendido como um puro nada vazio, destrói todo o qualquer sentido e assim destrói o sentido que o homem possui de si e de seu mundo. O nada como uma força puramente nadificante destruiria todo e qualquer sentido do pensar que busca a verdade e ser.

Se o homem e seu mundo somente podem subsistir tendo como fundamento um sentido, então, o nada poderia ser a presença velada do poder infinito e absoluto que guarda o sentido de tudo e a tudo dá sentido, pensa Welte. O nada na sua infinitude, no seu sem confim, no seu poder indubitável e no seu silêncio, não é um nada vazio, mas é muito mais a presença velada da força infinita e incondiconada que guarda e cuida o sentido de tudo e a tudo doa sentido (WELTE, 1997, p. 106). Então, o nada pode ser a presença silenciosa, sem rosto, obscura, terrível, e por isso, pura presença. A infinitude e a absoluticidade do nada deixam entrever uma realidade velada, escondida, uma força misteriosa, que guarda e dá sentido, de modo impensável, ao homem e seu mundo. E porque guarda e dá sentido, possibilita ao homem o movimento de realizar e plenificar na totalidade o seu mundo (WELTE, 1997, p. 106s).

No entanto, a força misteriosa, infinita e incondicionada não pode ser compreendida como escondida no nada ou ainda um nada em confronto com alguma coisa que poderia ser a força misteriosa. O nada, em confronto com o sentido do homem e o seu mundo, possibilita uma interpretação toda própria se for compreendido como a presença velada e inaferrável do poder infinito e absoluto. A contradição entre o postulado de sentido da existência humana e o nada somente pode ser resolvida se este vier pensado como a presença da força fugidia do poder infinito. O nada, enquanto nada, poderia ser o rosto, isto é, o modo da manifestação da força infinita como manifestação fenomênica.

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Mas a força infinita na sua manifestação não é um ente, uma coisa, uma substância. O nada como presença do poder infinito é justamente a não-coisa, isto é, o outro da coisa. É o mesmo que dizer que enquanto não-ente é outro de todo ente. Outro do ente quer dizer o que deixa o ente ser. O mistério que se manifesta como nada não pode ser tomado como um ente, pois o mistério não vem entendido com um ente como o vale, o monte. Nesse sentido o mistério está para além do ente, para além de todo limite e factualidade. Mas o mistério, igualmente, está para além da linguagem e do conceito que sempre de novo se fazem necessários para trazer à luz da compreensão a infinitude e absoluticidade do nada, bem como a força intocável e silenciosa que a tudo dá sentido. Por ser uma presença viva e velada, a linguagem se faz necessária para fazer ver e, no ato mesmo da palavra, ver que a força intocável e silenciosa a transcende (WELTE, 1997, p. 112).

A força intocável e silenciosa, a força infinita e incondicionada, o mistério, são todas manifestações que se costumam atribuir a Deus. Mas a força misteriosa não é Deus. Mesmo porque, frente a essa força infinita, silenciosa e misteriosa o homem não “pode cair de joelhos cheio de reverência e nem mesmo pode, diante deste Deus, fazer música e dançar”.3 O homem pode compreender a força infinita como infinita, incondicionada, inaferrável, como o não-ente, como o outro do ente, dando sentido a si mesmo e ao seu mundo, mas não mais.

O vir a ser figura e nome

Cair de joelhos e dançar somente é possível quando o mistério receber rosto e nome. Partindo da compreensão do homem como experiência, torna-se possível pensar a experiência do evento da revelação. Welte afirma que o mistério será Deus ao tomar forma (WELTE, 1997, p. 184). O mistério absoluto torna-se Deus quando se constitui figura no evento de sua revelação, quando recebe um nome.

O infinito e incondicionado como mistério é ausência de figura, é puro velamento, absoluto, nada. Welte percorre muitas veredas, como a dialética do amor, a busca da verdade, a sondagem do tu eterno e outros itinerários, demonstrando sempre a possibilidade de perceber a presença inominável do mistério insondável. Mas todas as tentativas dos itinerários não revelaram uma figura, não pronunciam um nome. São sempre indicações, aberturas, iluminações, sondagens sugeridas pela presença inominável. Assim, o mistério impensável e pensável, ao mesmo tempo em que sugere uma figura, não é figura, pois ele é ele mesmo, nele mesmo e a partir dele mesmo. Nem mesmo a possibilidade do mistério absoluto ser presumivelmente chamado de tu eterno, na tentativa de sondar os modos dessa presença inominável, elimina o seu ser para além de toda figura (WELTE, 1997, p. 70). O mistério absoluto não é figura, não se deixa prender numa figura e não se deixa transformar em figura. Igualmente o mistério insondável, enquanto se deixa dizer como presença

3 “Zu diesem Gott kann der Mensch weder beten noch kann er ihm opfern. Vor causa sui kann der Mensch weder aus Scheu aufs Knie fallen, noch kann er vor diesem Gott musizieren und tanzen” (HEIDEGGER, 1957, p. 70).

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silenciosa e infinita, não se deixa apreender na palavra, no conceito. Ele não se deixa, na sua essência, apreender no nome e ele é não nome, sem nome.

Levando em consideração o modo próprio de ser do homem que se apercebe atingido por uma presença que lhe vem ao encontro, cada vez em modos diferentes e surpreendentes, pode-se demonstrar a experiência que ele faz da manifestação do mistério. O homem pode fazer a experiência do mistério absoluto! Welte, tentando sondar essa presença como um tu, na possibilidade de identificar um caráter pessoal a essa presença, como encontro entre pessoas, diz que o mistério pode se manifestar positivamente na experiência humana (WELTE, 1997, p. 164-183). O mistério absoluto que primeiro se vela na negatividade do dar-se, da impossibilidade de sua apreensão e de seu velamento, pode revelar-se na sua positividade. Somente o mistério absoluto que se mostra positivamente no contexto da experiência da finitude humana e, por isso, dentro das condições da finitude, se torna accessível na finitude humana que busca pensar tal presença. Significa que o mistério absoluto, o não-ente, torna-se ente na experiência humana, mas, também, que a distância entre o não-ente e o ente vem eliminada. Dito de outro modo, significa o encontro entre o mistério absoluto e o homem.

Mas isso quer dizer também que o mistério absoluto sem nome recebe um nome que o distingue de todas as outras realidades nomeadas. O eterno conquista o seu tempo, o seu espaço, no qual acontece a manifestação. O infinito conquista um lugar finito, que pode ser expresso pelo homem, e de quem se pode dizer que houve uma experiência. Mas a manifestação do mistério absoluto, na imediatez da experiência, não lhe tira o caráter de absoluto, não permanece limitado à finitude humana. O absoluto pode se manifestar ao homem e, enquanto imediatez do toque da manifestação e na imediatez da manifestação, ela é tomada pela presença do mistério absoluto. É da experiência da manifestação do absoluto que, na condição da finitude, o absoluto recebe um nome, vem expresso, dito no conceito. Saindo da imediatez da experiência, a transformação que a manifestação do absoluto possibilita ao homem, faz com que ele deseje guardar no conceito, como também na figura, o mistério absoluto. Conceito recolhe em uma unidade a manifestação de uma concreta multiplicidade de revelações que podem ocorrer no mundo do homem.

Na experiência, devido ao caráter do encontro e da transformação, o eterno adquire para o homem contorno e rosto, ele se encontra diante de uma figura. Tornando-se figura, recebe da parte do homem um nome e ao mesmo tempo, e por isso mesmo, vem denominado o Deus. Assim, na dimensão do encontro na experiência é que vem chamado Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, o Deus de um povo. Determinando mais precisamente a relação que se estabelece na experiência, é que Deus recebe rosto e recebe nome. E por receber rosto e nome: Deus, ele adquire um expressão concreta e funda as diversas expressões históricas, tornando-se a história do povo de Deus. No nada de Deus, o nada do homem

É na experiência que o homem faz do absoluto que este pode transformar-se em evento, e no evento tornar-se figura, e receber um nome: Deus. Mesmo assim, o absoluto, o eterno, o para além do ente, tornando-se figura e recebendo um nome na sua manifestação, conserva a sua infinitude na finitude (WELTE, 1997, p. 189).

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No seu desvelar-se e aproximar-se na figura finita e com nome, aparece ainda com maior nitidez a inatingível transcendência do infinito e incondicionado. É próprio da manifestação do mistério eterno que, ao fazer-se figura, não desapareça na série anônima de cada realidade possível, mas permaneça acima de tudo, conservando a sua transcendência e o seu ser totalmente outro como intimidade e segredo. Ao mesmo tempo, irradie e doe no ato de sua manifestação a sua própria transcendência. Por isso, a figura que vem à concreção, na finitude do homem, não se fecha em si mesma, mas se faz transparência do absoluto. Mesmo não sendo o mistério absoluto, em si mesma a figura deixa serem sinais do ser absoluto.

O mesmo deve-se dizer do conceito, da linguagem. Apesar do nome “Deus”, o mistério absoluto conserva na limitação do tempo do homem o silêncio, a não-linguagem de sua revelação. O manifestar-se é o extraordinário, o não-disponível, justamente porque nele o mistério, em se manifestando, se aproxima e toca aquele que recebe a revelação. Ele também concede a palavra, o nome. No entanto, se retrai no seu silêncio inominável.

Deus não é nem figura e nem nome. Os nomes dizem de Deus, mas não dizem o absoluto, pois o nome já é a linguagem da experiência, não estando mais na imediatez da mesma. Todos os nomes dizem, mas ao mesmo tempo não dizem; são nomes, mas não é o que o nome diz. O conceito não aferra o absoluto. E, no pensar a experiência, o homem pode ser levado novamente a ultrapassar o nome, o conceito. Assim, o homem pode fazer a experiência do mistério que está para além de tudo o que é terreno, do mistério que no encontro revela rosto e recebe nome, é presente na figura, mas não é a figura, recebe nome, mas é sem-nome, não é o que o nome diz. Se dá sempre como movimento do mistério absoluto, em contínua visitação ao homem e seu mundo.

O nada como infinito, incondicionado e silêncio, no evento mostrou o rosto e recebeu um nome: Deus. Mas a tentação está em permanecer com o rosto e o nome, isto é, viver da figura e do nome “Deus” e apropriar-se dos mesmos. A apropriação da figura e do nome (mit Eigenschaft) tolhe o movimento livre de encontro, levando o homem ao já sabido, ao domínio da figura e do nome. A figura já não fala do encontro, permanecendo na aparência. A figura e o nome já não dizem mais do infinito e incondicionado, apenas lembram o finito e o condicionado, a apropriação por parte do homem.

A experiência deveria levar sempre ao encontro do próprio da figura e do nome, no encontro com o absoluto. O abandonar, o não dominar, pode ser denominado de desapropriação da figura, ou não apropriação (ohne Eigenschaft). Desapropriação é viver na interioridade da figura e do nome. No interior quer dizer sem domínio, sem coisificação, sem endurecimento da figura e do nome, isto é, na liberdade do encontro onde o absoluto revelou rosto e recebeu um nome. Caso contrário, o homem apropriar-se-ia da figura e do nome, já não estando mais na mobilidade e na transformação da figura e do nome, na liberdade do encontro. Ele identificaria a figura consigo mesmo, coisificando a compreensão do absoluto e de si mesmo. Deus deixaria de ser Deus, o outro do homem.

O homem tem a tarefa de pensar a figura e o nome de Deus, entrando na dimensão provocadora da liberdade do absoluto. Recebendo a figura e o nome como tarefa é permanecer ele mesmo na disponibilidade, isto é, na liberdade da receptividade

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daquele que pode revelar-se com outro rosto e receber um outro nome. A abertura de pura receptividade originária é deixar-ser. Deixar-ser é abandonar a figura e o nome. No abandono são abandonadas, também, as possibilidades últimas do dizer e ver, resta novamente o nada. Nada, não como alguma coisa, mas referido ao nada do homem em seu dizer e ver. Se ele deve abandonar tudo, deve abandonar a si mesmo, tornar-se vazio. Abandonar a figura, o nome, então, é dispor-se a entrar no movimento da liberdade do abandono, isto é, deixar-se tomar pelo límpido silêncio, pela calma e repouso, da espera, onde se é pura imensidão, imensidão de receptividade (Emphänglichkeit) (WELTE, 1979a, p. 37). Totalmente livre e puro silêncio, distendido, deixa tudo ser como é, ali o homem é nada. Os que são nada são iguais a Deus (MEISTER ECKHART, 1979, p. 354).

No nada de Deus e no nada do homem vige a liberdade de novas veredas, novos caminhos, novas figuras, novos nomes, novo mundo, novo céu, nova terra. Encontro! O ser atingido em conceituando

Nenhum nome diz o absoluto como absoluto, pois o absoluto permanecerá absoluto na impossibilidade de, na temporalidade, seja qual for o conceito, ser o melhor nome para o absoluto. A partir do homem, todos os conceitos são possíveis, mas nenhum conceito é possível na imediatez da experiência onde a presença inaudita ainda não se fez linguagem. Mas o homem, tocado no encontro pelo infinito e incondicionado, continuamente está no pensamento, usando conceitos para dizer de Deus.

Mas se Deus permanece ele mesmo, em si mesmo, sendo nada, o que advirá ao homem na sua tarefa contínua de viver com figuras e nomes, na tarefa de continuamente nomear e, em nomeando, perceber que seu nomear é nada? Na percepção de que o nomear é nada, em nomeando, em conceituando, não emergiria um modo de sensibilidade própria de pensamento?

Nesse sentido, esse movimento que o homem faz de, pensando, buscar deixar dito no conceito a presença inominável pode ser encontrado numa passagem de sensibilidade filosófica toda própria de Welte. Partindo de Santo Tomás, demonstra o movimento existencial da busca de Deus. Esse movimento mostra a pertença mútua entre o pensar conceitual (Begreiflichedenken) e o pensar afetivo (Berührendedenken) (WELTE, 1969, p. 145s; 1975a, 219s).

O texto do autor medieval analisado e interpretado pode ser traduzido: de Deus somente podemos dizer o que ele não seja.4 Nas obras do pensador medieval, os tratados sobre a essência, o ser, os nomes de Deus, e outros, a partir da Escritura e da razão, são a tentativa de dizer quem Deus é ou o que ele seja (WELTE, 1975a, p. 220). Mas depois de longa tentativa, em itinerários diversos, em sendas diversas, depois da demonstração das provas da existência de Deus, Tomás diz que somente se pode dizer como ele não é5. A frase no texto medieval estaria quase como conclusão de toda a tentativa da razão. A afirmação ilumina, assim, toda a busca da definição, da busca da compreensão de Deus. A frase indicaria a negatividade da possibilidade da definição, do conceito. Seria muito mais uma sondagem toda

4 TOMMASO D’AQUINO, S.Th., pI, q3, in Opera Omnia, Tomus Quartus, 35, Ed. Leonina. 5 TOMMASO D’AQUINO, S.Th., pI, q 3,5.

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própria e particular expressando como Deus não é. Ele não é deste modo nem daquele modo, ele não é finitude, nem mesmo substância (WELTE, 1975a, p. 220). Na realidade, toda essa tentativa de expressar a Deus positivamente na metafísica seria apenas o caminho da sondagem, da distinção, da negação, onde se é tocado pelo mistério da presença inaudita.

O princípio da negação, da impossibilidade humana, vem demonstrado com a afirmação: Deus não é nenhum modo. Deus, portanto, não se encontra em nenhum modo e de forma nenhuma no pensamento do conceito (WELTE, 1975a, p. 220). Significa que Deus não entra no âmbito do pensamento conceitual e nem mesmo no de todos os modos de discurso (WELTE, 1975a, p. 221). Por modo, deve-se entender as categorias dos seres e os modos de sua manifestação, ou os modos como os entes são ou podem ser. Os modos indicam o vir-a-ser da totalidade dos entes. E o homem, em todos os discursos, ao expressar o que é o ente, se esquece de que Deus não é um ente (WELTE, 1975a, p. 222). Significa que Deus permanece fora do domínio do pensamento conceitual, bem como dos modos da afirmação e opinião que a Ele se atribuem, ou que a partir d’Ele se lhe atribuem.

Mas, igualmente, o princípio da negação se refere à afirmação de que Deus não “é” enquanto ainda lhe deve advir ou convir “ser”, pois ele é o ser ele mesmo, dando e doando ser a todos os seres (WELTE, 1975a, p. 221). A Deus não convém ser, não lhe advém ser, pois é o ser. E se ser não convém, não pode ser enunciado na forma do conceito, porque todo enunciado conceitual diz ser o advir ou convir de um sendo. Quer dizer que Deus está sempre fora de todo reino do enunciado conceitual, onde sempre está presente o modo de falar do juízo representado, isto é, de um pensar já determinado. Ele é o não-enunciado, o não-dito. E o não-enunciado, o não-dito, somente é possível em um outro modo fundamental de pensar, o pensar afetivo (Berührendedenken). Mas quem não pode ser enunciado pode ser tocado na negatividade do não-enunciado (WELTE, 1969, p. 148; cf. Id. 1975a, p. 222). Nesse sentido, compreender a Deus é impossível a todo espírito criatural, mas tocar (berühren) a Deus com o espírito é a maior realização.6

O pensamento que segue o caminho da tentativa do conceito, do dizer, da apreensão, pode, ao mesmo tempo, se aperceber da negação, da impossibilidade de sua tentativa (HEMMERLE, 1987, p. 106).

O desenvolvimento de teses e tratados sobre a essência, o ser, os nomes de Deus que em Welte aparecem como busca da verdade, da liberdade, do amor, da revelação, da fé, da historicidade, da morte, do sofrimento, do ateísmo, são sempre, somente, tentativas positivas de dizer o que não é presente na palavra. A tentativa de dizer o infinito, o incondicionado, o absoluto, a partir da finitude humana, e ao mesmo tempo de afirmar essa tentativa de demonstração, em si, traz à fala algo do mistério ou o que, na religião, os pensadores chamam de Deus. É fazer a busca de, no conceito, dizer aquele que é sempre presente e ausente no conceito, mas possibilitando o conceito. Todas as teses e tratados tocam somente o caminho da diferença e da negação do impensável a quem ninguém tem acesso e ninguém conhece (WELTE, 1969, p. 147). Ele é a possibilidade da palavra, ele cria a palavra, mas não é o que a palavra diz. Significa que, apesar de todas as tentativas, Deus

6 TOMÁS DE AQUINO, S.Th., pI, q 12,7.

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permanece fora do domínio do pensar e da linguagem e, ao mesmo tempo, que o pensar e a linguagem não podem provar ou fundamentar a existência de Deus.

Assim, em conceituando, em pensando e colhendo na palavra, haveria a possibilidade, não de definir, determinar, mas pelo menos tocar o mistério, o absoluto, Deus. No esforço contínuo de querer saber, em querendo saber, não se sabe, e, em não sabendo, se nomeia, conceitualiza e toca o mistério. É nesse sentido que se poderia passar do pensamento do conceito ao pensamento afetivo (berührende Denken). É na passagem da impossibilidade da negatividade do conceito e da linguagem, isto é, da inaferrabilidade, que se toca o inaferrável (HEMMERLE, 1987, p. 106). A impotência do pensamento conceitual deixa nascer a possibilidade de tocar o mistério. A impotência do conceito leva a uma abertura onde espírito ultrapassa o modo do conceito e percebe o toque do mistério (WELTE, 1975a, p. 224). Por isso, o pensamento, tocando a negatividade, se transforma pela negatividade numa positividade, e, nesse sentido, não se expressa mais positivamente: de Deus se pode dizer o que ele não é. Assim berühren teria o sentido de tocar, de apalpar, sem poder possuir. É outro modo de pensamento, uma sensibilidade própria que se apercebe como aproximação do mistério. O movimento onde o homem, em pensando, deixa o mistério ser nele mesmo, porque, às apalpadelas, toca o mistério. Nesse sentido, no pensamento afetivo (berührende Denken) não se encontra um pensamento já determinado, mas plena abertura de um encontro com o mistério que permanece em seu ser sem lhe convir ser.

Assim, o espírito, para usar a expressão de Welte, além de ultrapassar o modo da compreensão conceitual em tocando o mistério, traz em si uma abertura de encontro. Pois, no toque do não conceituável existe o sentido positivo de uma resposta, de um sim da parte do homem! (WELTE, 1969, p. 149; cf. WELTE, 1975a, p. 224). Mas todos os conceitos, ainda que negativos, por Deus ser inapreensível pelo pensar e dizer, são a manifestação da presença e da experiência do pensar e dizer que se converte existencialmente em um Sim diante da percepção da presença inaudita. Sim que é um salto em cada pensar e cada dizer. O pensamento estaria no contínuo movimento de pensar que apenas toca o mistério insondável. Pensamento que não vive de dogmatismo, mas da provocação de dizer o que não é, para merecer a graça de ser tocado por Aquele que é, e assim poder permanecer na sua cercania, no sim existencial. Aquele que é permanece ausente e presente na palavra (WELTE, 1966, p. 106).

Mas pensamento afetivo (berührende Denken), segundo Welte, tem mais o sentido de ser tocado do que tocar. Ser afetado quer dizer sofrer a ação do afeto. O absoluto não apenas está possibilitando a própria conceitualização e, por isso, possível de tocar o mistério, mas pode ser compreendido como o mistério absoluto que está sempre batendo à porta, sem se deixar apreender no conceito (WELTE, 1969a, p. 136). Toca, afeta o pensante, que, na tentativa sempre constante de conceituar, apreender, determinar, esgota todas as suas possibilidades até entrar na negatividade da linguagem e do conceito, na busca de deixar Deus ser nada, isto é, revelando-se a partir de si e por si mesmo. Pensar afetivo é, assim, o toque da aproximação do mistério absoluto, onde o pensamento se transforma. O pensamento que brota de tal transformação, pelo fato de ter recebido a ação da aproximação, é de outro tipo e nível, de outro tipo de sensibilidade pensante. É o pensamento como esprit de finesse de Pascal (1993, fgm. 512). Antes que o homem toque, é tocado, possuído, abrindo-se a uma outra possibilidade de pensar que não

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é mais proveniente do pensador, mas do pensado. O pensado presenteia ao pensador a própria possibilidade de pensar, daí afetivo. Ele vem tocado pelo mistério absoluto. E no encontro nasce a transformação fazendo nascer o sim da correspondência.

Por isso, o homem, ao receber o toque da graça do pensar, sabe que seu pensamento é sempre o do conceito, criando figuras, e sabe também que, apesar de viver no conceito, recebe o toque do mistério absoluto como experiência do próprio pensamento. Antes de afetar (berühren) ele é afetado (berüht). Por outro lado, o pensamento conceitual (begreifliches Denken) é a possibilidade mesma do pensamento afetivo (berührendes Denken), não como possibilidade humana, pois a possibilidade de conceitualizar já vem dada pelo próprio mistério absoluto, que o faz buscar e conceitualizar. Como busca humana de abrir-se em cada busca, como desejo de ser atingido, sabendo, no entanto, que, se absoluto, somente o absoluto se dá como afetivo ao homem (WELTE, 1969a, 226).

O pensamento da conceitualização percebe que o nome de Deus, da parte do homem, é nada. Nada, porque em todos os nomes, em todo conceito, Deus é ainda um ente, e Deus não é ente. É uma figura, e Deus não é figura. É ainda conceito, mas Deus não é conceito. A luta do pensamento cai então no abismo onde o absoluto surpreende com sua presença tocando o pensador. A luta do conceito esbarra com a surpresa do toque que o pensador recebe do absoluto. Então, perseguir a Deus no conceito é a possibilidade de receber gratuitamente a sua visita. Visita gratuita, surpresa, admiração, encanto! Admiração e maravilhamento que transforma todo o saber e ser.

Conhecimento já não possui mais o sentido de definição, de apreensão, mas de um co-nascer. Conhecimento é co-nascimento! O movimento abissal que desperta admiração e encanto pelo mistério absoluto que se apresenta na sua inefável grandeza, pequenez e velamento, transforma o pensador. Ele é outro, mas igualmente, é sempre outro e cada vez outro o mistério absoluto. Co-nascimento porque o relacionar-se conduz à liberdade de ser tanto do pensador, quanto de Deus. Co-nascimento indica todo o movimento da experiência que o homem faz ao pensar o ser de Deus.

Co-nascer: Deus como mistério absoluto, como nada, é Deus vindouro, Deus por-vir, por nascer. Vindouro, por-vir, sempre batendo à porta do homem em modos novos, inauditos e admiráveis de revelação, manifestação e transformação do homem. Presente no conceito, mas não o conceito, presente nas figuras, mas não figura. Ausente, provocando o homem a buscá-lo como possibilidade de manifestação sempre nova e encantadora, sem se deixar dominar e sem dominar, deixando tudo na sua liberdade de ser. Deus é sempre por-vir; é sempre em vir; sempre vindouro! (ROMBACH, 1991). Deus é liberdade de encontro.

REFERÊNCIAS

BUBER, M. “Io e tu”, in: Il principio dialogico e altri saggi. Milano: San Paolo, 1993.

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SÁ CAVALCANTE, M. O começo de Deus. A filosofia do devir no pensamento tardio de F.W.J. Schelling. Petrópolis: Vozes, 1999.

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O DE VISIONE DEI COMO EXPRESSÃO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA EM NICOLAU DE CUSA

Maria Simone Marinho Nogueira*

O presente artigo procura mostrar em que medida a obra De visione dei pode ser

lida como a expressão de uma experiência religiosa em Nicolau de Cusa.

Tomaremos como ponto de partida duas idéias que nos parecem fundamentais para

o desenvolvimento da nossa tese: em primeiro lugar, o número de vezes em que o

verbo experimentare e seus correlatos aparecem na referida obra, número este (não

menos que vinte e cinco vezes num livro relativamente curto) que quer expressar, do

nosso ponto de vista, a importância da experiência (não entendida no sentido

moderno do termo, mas no sentido daquilo que pode ser experienciável por alguém,

no sentido de uma vivência), no caso específico desta obra, uma experiência

religiosa que se reveste de um matiz acentuadamente místico, como o próprio título

já o indica. Em segundo lugar, a idéia, até certo ponto desconcertante para quem

escreve ou reflete sobre a mística Cusana, segundo a qual Nicolau de Cusa não

afirma na sua correspondência1 ter experienciado uma única vez que fosse uma

experiência mística, no sentido de um face-a-face com o divino, como relata-nos

para citar somente dois grandes místicos, Plotino e Pseudo-Dionísio2. Partindo, pois,

destas duas idéias, buscamos, mostrar os vários contextos em que aparece o verbo

experimentare, ao mesmo tempo em que refletimos sobre a experiência religiosa

Cusana, na medida em que a entendemos como uma experiência mística.

A compreensão da idéia de uma experiência religiosa em Nicolau de Cusa requer,

em primeiro lugar, uma contextualização histórico-filosófica do momento em que o

De visione dei foi escrito. Para tanto, será necessário que nos reportemos ao ano de

* Doutoranda em filosofia medieval, na Universidade de Coimbra, e professora da Universidade Estadual da Paraíba, UEPB. 1 Na Carta datada de 22 de setembro de 1452 para Gaspar Aindorffer, Nicolau de Cusa escreve: “Parcite queso hac vice; aleas emuleacius, si Deus dederit. Potest enim quis aliis viam ostendere, quam scit ex auditu veram, eciam si per ipsam non ambulaverit; sed certius qui viso per eam incessit. Ego, si quid scripsero aut dixero, incertius erit; nondum enim gustavi quoniam suavis est dominus” (As cartas foram editadas por VANSTEENBERGHE, 1915, p. 113). Na tradução de GANDILLAC, 1985, p. 51, há uma nota ao texto acima citado, onde escreve: “Le Cusain veut dire qu'il n'a pas fait personnellement l'expérience de l'union mystique”. 2 Sobre o tema da experiência mística em Plotino e Pseudo-Dionísio (sobre a tentativa de descrevê-la), cf. NOGUEIRA (2004); cf. Também NOGUEIRA (2003b).

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1452, precisamente para o dia 12 de setembro, data em que o Cusano inicia uma

troca de correspondências com dois eminentes irmãos do monsteiro de Tegernsee:

Gaspar Aindorffer e Bernard de Waging. Gaspar Aindorffer, nascido em Munique,

assume a abadia de Tegernsee em 1426 e neste posto permanece como grande

administrador, sob todos os aspectos, até sua morte em 1461. É a este homem que

Nicolau de Cusa em 1452 entrega um exemplar dos seus Sermões, acreditando que

os mesmos poderiam ajudar na meditação dos monges. O outro, Bernard de

Waging, de Salzbourg, bacharel em artes, vem para a Abadia de Tegernsee movido

pelo clima de estudos e recolhimento que ali havia. Na biblioteca daquele mosteiro,

Waging encontra o De docta ignorantia e bastante entusiasmado com esta obra,

escreve o Laudatorium doctae ignorantiae3.

Retornemos ao ano de 1452 e, com este, à carta que Nicolau de Cusa envia a

Gaspar Aindorffer, procurando responder a seguinte pergunta feita pelo próprio

Aindorffer em nome de toda a comunidade da ordem beneditina: “Uma alma devota,

sem conhecimento intelectual (...) pode, somente pela afecção, isto é, por este apex

mentis que se chama synderesim, alcançar Deus e ser movida ou levada para Ele

de maneira imediata?”4 Ao fazer tal pergunta, Aindorffer busca saber qual a opinião

do Cusano, sobretudo, acerca da interpretação de Gerson (chanceler parisiense)

sobre a Mystica theologia do Pseudo-Dionísio, pois aquele afirmava só ser possível

um conhecimento de Deus através do intelecto. Não é aqui o momento de entrarmos

em detalhes em relação à resposta Cusana, mas podemos adiantar que, se por um

lado Cusa concorda com a idéia de Gerson, por outro, esta concordância dá-se em

parte, já que Nicolau de Cusa embora não deixe de lado o intelecto, acrescenta a

este uma outra dimensão, a dimensão do afeto5, e ambos os termos tomarão lugar

na experiência religiosa expressa no De visione dei.

Numa outra carta datada de 14 de setembro de 1453, Nicolau de Cusa procura

responder a uma outra pergunta feita pelo Prior Aindorffer, a saber: qual o seu

pensamento acerca da ordem que o Pseudo-Dionísio, na sua Mystica theologia, dá a

Timóteo, quando pede para este elevar-se por via da ignorância até a teologia

3 Para a polêmica que se segue a este texto, vejam-se as duas obras referidas na nota 1. 4 “Est autem hec quaestio utrum anima devota sine intellectus cognicione, (...) solo affectu seu per mentis apicem quam vocant synderesim Deum attingere possit, et in ipsum immediate moveri aut ferri” (VANSTEENBERGHE, op.cit. p. 110). 5 Encontramos não só nas Cartas como também nos Sermões várias passagens em que Nicolau de Cusa trata da dimensão afetiva relacionada à dimensão intelectiva.

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mística6. A pergunta tem a sua razão de ser, uma vez que a interpretação de Vicente

de Aggsbach (Prior de Aggsbach) daquela obra dionisiana diz o contrário do que

escreveu Gerson, ou seja, diz que o conhecimento de Deus só é possível pelo afeto,

e assim, está formado o contexto histórico-filosófico que antecede a composição do

De visione dei: de um lado, a corrente intelectualista que diz que o único modo de

atingir Deus é através do intelecto; do outro, a corrente afetiva que afirma que o

caminho para a união com Deus é o caminho do puro afeto. Em meio a esta

polêmica7, Nicolau de Cusa, na carta acima referida, diz que enviará em breve aos

irmãos de Tegernsee uma pintura juntamente com um pequeno livro, onde eles

poderão entender, através de uma experiência, o que se pode saber sobre teologia

mística. Este pequeno livro é o De visione dei e é nele que agora pousaremos o

nosso olhar.

O De visione dei, escrito em 1453, num contexto polêmico acerca da via de

apreensão de Deus, é composto de vinte e cinco capítulos, cuidadosamente

intitulados e articulados. É um dos textos de Cusa que não é escrito em forma de

diálogo, mas, assim mesmo, é bastante representativo do caráter dialógico da obra

Cusana8. O próprio título da obra já aponta para aquele caráter, uma vez que o

genitivo utilizado pelo autor permite uma dupla compreensão do título: visione dei é

tanto a visão que os homens têm de Deus quanto a visão que Deus tem dos homens 6 “Para mim, realmente, é isto que eu suplico; quanto a ti, amigo Timóteo, dedica-te à continua exercitação nas maravilhas místicas e renuncia às percepções sensoriais e às actividades intelectivas, deixa tudo que pertence ao sensível e ao inteligível e todas as coisas que não são e as que são; despojado de conhecimento, avança, na medida do possível, até à união com aquele que está acima de toda a substância e de todo o conhecer. No distanciamento irresistível e absoluto de ti mesmo e de tudo, uma vez arredado e liberto de todas as coisas, elevar-te-ás em plena pureza até ao brilho [1000 A], que é mais que substancial, da obscuridade divina” (PSEUDO-DIONÍSIO, 1996, p. 10-12). 7 Para um maior esclarecimeto sobre esta polêmica, leia-se a obra de VANSTEENBERGHE, já citada; bem como D'AMICO (2004); cf. também TROTTMANN (2004). 8 Para uma visão acerca do caráter dialógico da obra Cusana, leia-se o belíssimo artigo de ANDRÉ. Neste artigo, quando o autor escreve sobre uma das vias possíveis para abordar o caráter dialógico da obra Cusana, diz: “(...) Así, si recorremos la forma de elaboración de su obra, vemos un conjunto de escritos que asumen expresamente la forma del diálogo. Desde el De Deo abscondito, pasando por el De genesi y escogiendo como momento alto los cuatro diálogos del Idiota, hasta llegar al De possest, al De non aliud, al De ludo globi y, por fin, al De apice theoriae, vemos que la forma dialógica de presentación ha sido una de las formas que más ha privilegiado en la elaboración de sus textos. Además, otros escritos, que no asumen de modo explícito el diálogo como modo de exprésion son también profundamente dialógicos en su formulación, como es el caso del De visione Dei, todo construido como un soliloquio con Dios. En algunos casos Nicolás de Cusa elegió la forma estilística del tratado, pero aún ahí, como sucede con frecuencia en nel De coniecturis, la presencia del otro con el cual se dialoga insinúase siempre en sus respetivas formas discursivas. Y no podemos también olvidar que una grande parte de su obra especulativa se ha condensado en textos epistolares, por una parte, y en sermones, por otra parte. Ora tanto en el primer caso com en el segundo, nos vemos una vez más, ante formas distintas, pero convergentes en sus rasgos esenciales, de realizar el pensamiento y el discurso como diálogo” (2005a, p. 16-17).

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e, neste duplo aspecto, a obra articula-se do início ao fim nos vários matizes em que

podemos entender o verbo experimentare e seus correlatos, até tornar-se num

solilóquio revestido por um aspecto profundamente místico-religioso que implica no

próprio movimento Cusano na tentativa de experimentar o divino, ou seja, ao

tencionar revelar aos irmãos de Tegernsee o acesso mais fácil à teologia mística,

como afirma na pequena apresentação da obra antes do prefácio, é o próprio

percurso feito pelo cardeal alemão que será narrado; afinal, nesta pequena

apresentação da obra, Cusa roga ao Senhor onipotente que lhe dê as palavras mais

adequadas (elevadas) para que seja capaz de revelar aos monges beneditinos

aquilo que eles buscam, e não com a certeza de quem já percorreu o caminho, mas

com a humildade e a sinceridade de quem ainda não fez tal percurso (conforme

podemos ler na carta datada de 22 de setembro de 1452). Cusa dirá no início do De

visione dei: “Tentarei, do modo mais simples e comum, conduzir-vos pela mão duma

forma experienciável até à mais sagrada obscuridade” (CUSA, 1988, p.

133)./“Conabor autem simplicissimo atque communissimo modo vos experimentaliter

in sacratissimam obscuritatem manuducere” (CUSA, 2000, p. 4). Deste modo, Cusa

não só conduzirá, como, ao mesmo tempo, será conduzido pela sua própria tentativa

que se realiza enquanto é experimentada e, por isto, o De visione dei não pode ser

lido somente como um “guia espiritual” à abadia de Tegernsee, mas, sobretudo,

como o relato de um homem religioso que vive a sua própria experiência religiosa.

Parece-nos que o “experimentar” no De visione dei segue uma gradação que parte

da sensibilidade, passando pela razão até o intelecto (neste percurso o amor se

mantém presente). Sendo assim, na primeira vez em que aparece o termo

experimentare (experienciar/experimentar)9, este deve ser compreendido no nível da

sensibilidade, uma vez que, como veremos no prefácio, Cusa está falando de um

quadro enviado juntamente com a obra referida à abadia de Tegernsee. Até a forma

como ele narra a sua tentativa é reveladora da sensibilidade: “...do modo mais

simples e comum, conduzir-vos pela mão...”; e nesta mesma via abre o prefácio,

afirmando: “Se por vias humanas me abalanço a conduzir-vos às coisas divinas é

necessário que o faça recorrendo a uma comparação” (CUSA, 1988, p. 135)./ “Si

vos humaniter ad divina vehere contendo, similitudine quadam hoc fieri oportet” 9 Conforme foi dito no início deste artigo, estamos usando o verbo “experimentar” não no sentido moderno do termo. Por este motivo, consideraremos “experimentar” e “experienciar” como termos equivalentes e por isso, utilizaremos os dois termos no sentido de que ambos significam mais do que o sentido experimental que nos oferece a Filosofia Moderna.

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(CUSA, 2000, p. 5). Para tal comparação, ele escolherá a imagem de alguém que

tudo vê, representada pela pintura de um rosto que parece acompanhar tudo o que

acontece à sua volta. Passa depois a enumerar algumas imagens com as mesmas

características e termina por enviar um quadro que ele chamará de ícone de Deus10.

Ele sugere então que se faça a seguinte experiência com o quadro: Pendurai-o num lugar qualquer, por exemplo na parede do lado norte, e colocai-vos, irmãos, à sua volta, à mesma distância dele, olhai-o e cada um de vós experienciará, seja qual for o lugar a partir do qual o contemple, que é o único a ser olhado por ele. Ao irmão que se encontra a oriente parecerá que aquele rosto olha na direcção de oriente, ao que se encontra a sul que ele olha na direcção sul e ao que se encontra a ocidente que ele olha na direcção de ocidente (CUSA, 1988, p. 135-136)11.

Até o final do prefácio, Cusa utilizará ainda mais quatro vezes o verbo

experimentare12, todas no âmbito da sensibilidade e, portanto, no campo semântico

da experiência sensível.

Neste campo, privilegiará um dos sentidos: o olhar, e a partir deste sentido tentará

conduzir os irmãos beneditinos à contemplação mística que inicialmente está envolta

pela reflexão metafórica. Trabalhando com a metáfora do olhar, o Cusano põe-nos

diante do olhar do criador e do olhar da criatura. Deste modo, o olhar é não só uma

forma de ver o outro, como também uma forma de ser visto por outrem13. Entretanto,

por se tratar de uma comparação, conforme afirmara no início do prefácio, o cardeal

alemão chama a atenção no final da parte I para a excelência do olhar absoluto, no

10 Para as citações do De visione dei utilizaremos a seguinte obra: CUSA, N. de. A visão de Deus. Tradução e introdução de João Maria André. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988. Esta tradução pauta-se na edição bilingue de Leo Gabriel, Wein: Verlag Herder, 1967; confrontada com o texto da edição de Paris de 1514. Como hoje já existe a edição crítica da referida obra, citaremos o texto em latim a partir da seguinte edição: CUSA, N. de. Opera Omina. Iussu et auctoritate Academiae Literaturum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Hamburgi: Felicis Meiner, Vol. 6. De visione dei, ed. Adelaida Dorothea Riemann, 2000. Deste modo, sempre que se fizer necessário, explicaremos as diferenças (quando houver) entre a tradução portuguesa e o texto latino, como por exemplo a expressão [sive de icona liber]/[ou livro do ícone] que se encontra no texto estabelecido por L. Gabriel e portanto, também na tradução portuguesa, mas não existe no texto da edição crítica, onde é explicado que a referida expressão foi acrescentada posteriormente. 11 “Hanc aliquo in loco, puta in septentrionali muro, affigetis circumstabitisque vos fratres parum distanter ab ipsa intuebitisque ipsam, et quisque vestrum experietur, ex quocumque loco eandem inspexerit, se quasi solum per eam videri, videbiturque fratri, qui in oriente positus fuerit, faciem illam orientaliter respicere, et qui in meridie meridionaliter, et qui in occidente occidentaliter” (CUSA, 2000, p. 5). 12 “Deinde frater, qui fuit in oriente, se locet in occasu, et experietur visum in eo figi in occasu quemadmodum prius in oriente (...) Et dum hoc experiri volens fecerit confratrem intuendo eiconam transire de oriente ad occasum, quando ipse de occasu pergit ad orientem (...) Experietur igitur immobilem faciem moveri ita orientaliter, quod et move|tur simul occidentaliter, et ita septentrionaliter, quod et meridionaliter, et ita ad unum locum quod etiam ad omnia simul, et ita ad unum respicere motum, quod ad omnes simul. Et dum attenderit, quomodo visus ille nullum deserit, videt, quod ita diligenter curam agit cuiuslibet quasi de solo eo, qui experitur se videri, et nullo alio curet, adeo quod etiam concipi nequeat per unum, quem respicit, quod curam alterius agat” (CUSA, 2000, p. 6). 13 Cf. ANDRÉ, 1988. Cf. também NOGUEIRA (2003a).

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sentido em que aquilo que aparece no olhar do ícone está mais próximo do conceito

do que propriamente do olhar absoluto. Com isto não se pode pôr em dúvida que

aquilo que aparece no quadro aparece de forma muito mais excelente e perfeita no

olhar de Deus. Nesta comparação já é possível perceber a gradação do caminho

indicado aos monges e a ascese místico-religiosa que será percorrida no De visione

dei.

Ascese que se encontra ainda no ponto de partida, ou seja, no âmbito do sensível,

no capítulo IV, quando aquele que experimenta o olhar do quadro, especula sobre

aquele olhar e dirá: “Senhor, nesta tua imagem intuo agora, numa experiência

sensível, a tua providência” (CUSA, 1988, p. 142)./“...Domine, nunc in hac tua

imagine providentiam tuam quadam sensibili experientia intueor” (CUSA, 2000, p.

13). E no parágrafo seguinte: “E porque onde estão os olhos está o amor,

experiencio que me amas, porque os teus olhos estão sobre mim, teu humilde servo,

com a maior das atenções” (CUSA, 1988, p. 143)./“Et quoniam ibi oculus ubi amor,

tunc te me diligere experior, quia oculi tui sunt super me servulum tuum attentissimi”

(CUSA, 2000, p. 14). E assim, a experiência do olhar do quadro que não me

abandona, seja para que lado eu me desloque, faz-me especular e portanto, faz-me

ultrapassar o plano do sensível, deduzindo a existência da providência divina a partir

da comparação com um olhar absoluto que tudo abraça, tudo vê e tudo prevê. Do

mesmo modo, este olhar sensível (do quadro) que não me abandona, me faz

deduzir/especular que eu sou amado porque aquele olhar dá-me todas as atenções,

dá-me assim, todos os cuidados, todos os afetos, todos os carinhos e portanto, me

dá provas de todo seu amor por mim, porque nunca me abandona14. Mas, quando

se poderia pensar que Nicolau de Cusa tomaria o partido de Vicente de Aggsbach,

ou seja, trilharia o caminho do puro afeto, ele conclui este capítulo pleno de amor

com a via da razão, afirmando ser a felicidade eterna “o máximo absoluto de todo o

desejo racional, o qual não pode ser maior” (CUSA, 1988, p. 145)./“Nam est ipsa

absoluta maximitas omnis desiderii rationalis, quae maior esse nequit” (CUSA, 2000,

p. 16). Deste modo, temos neste capítulo III gradações da experiência, ou melhor,

uma ascese que parte da experiência sensível (o olhar do quadro), passando pela

experiência do afeto que aquele olhar me proporciona, até a experiência do desejo

racional15, que se impõe como necessário.

14 O amor enche as páginas restantes do referido capítulo. 15 Cf. NOGUEIRA (2006, no prelo).

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Logo no início do capítulo V, já no plano da ordem racional, mas sem deixar de lado

o caráter afetivo da experiência religiosa, o cardeal alemão fala da experiência ao

mesmo tempo em que fala do saber e da sabedoria, num jogo lingüístico que lhe é

tão peculiar: “Por isso, saborear a tua própria doçura é apreender num contacto

experimental a suavidade de todos os bens agradáveis na sua origem, é atingir a

razão de todos os bens desejáveis na tua sabedoria”16 (CUSA, 1988, p. 146). E

assim, relacionando à razão os sentidos da visão e do paladar, afirmará que ver a

razão absoluta (razão de todas as coisas) é saborear mentalmente a Deus que é

propriamente a suavidade do ser, da vida e do intelecto, numa fórmula clássica de

muitos místicos que faz ecoar, sobretudo, a filosofia eckhartiana para quem Deus é

atividade permanente. Enquanto ser, vida e intelecto, uma experiência mística de

Deus não pode ser pensada, ou melhor, vivida em termos disjuntivos17, onde as vias

afetiva e intelectual sejam excludentes. Ter a experiência de um ser que é, ao

mesmo tempo, vida e intelecto, implica ter a experiência do diverso no uno e isto é

ser capaz de unir não só os semelhantes como também os diferentes18, é ser capaz

de perspectivar todos os aspectos possíveis de um determinado dado. É o que faz

Nicolau de Cusa no percurso para sua “experiência de Deus” no De visione dei,

quando propõe aos irmãos beneditinos a experiência do quadro, principalmente no

capítulo VI onde a forma como cada um olha para o quadro representa, numa

relação causal, a forma como o quadro olha para cada um.

Ser capaz de perceber que a diversidade da vida nada mais é do que a

manifestação da unidade divina, que por sua vez é, ao mesmo tempo, una e trina, é

ser capaz de viver uma experiência religiosa que “esconde”, através da diversidade

dos ritos, a unidade do abraço divino19. Assim, do capítulo VII ao capítulo X temos

uma nítida passagem da experiência racional para a experiência intelectual. No

capítulo VII, Cusa fala da experiência enquanto capacidade para fazer comparações

16 “Gustare enim ipsam dulcedinem tuam est apprehendere experimentali contactu suavitatem omnium delectabilium in suo principio, est rationem omnium desiderabilium attingere in tua sapientia” (CUSA, 2000, p. 17). 17 Cf. carta a Gaspar Aindorffer, datada de 14 de setembro de 1453 (VANSTEENBERGHE, 1915, p. 113-117). Cf. também KREMER (2000, p. 136), que afirma: “Es gibt daher nicht nur das Auge des Intellekts, sondern auch das Auge des Affectus, wie auch die Liebe als Liebe nur durch Lieben (amando) erkannt werden kann”. 18 Cf. ANDRÉ (2005b). Sobretudo a primeira parte do primeiro capítulo, onde o autor mostra a atualidade da filosofia Cusana acerca do diálogo intercultural. 19 Cf. CUSA (2002).

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e continua com uma imagem, a da nogueira20, vista com os olhos sensíveis e com

os olhos da mente e de um modo crescente, mostrando como ela permite aos

irmãos de Tegernsee ver o quadro não mais com os olhos sensíveis, mas com os

olhos da mente, a tal ponto que no capítulo IX a experiência ultrapassa o plano

racional e entra na escuridão onde parece também ser necessário ultrapassar o

próprio intelecto: Por isso, experiencio como é necessário entrar na escuridão, admitir a coincidência dos opostos sobre toda a capacidade racional e procurar a verdade aí onde se depara a impossibilidade e acima dela, acima também de toda a ascensão intelectual mais elevada, quando chegar àquilo que é desconhecido de todo o intelecto e que todo o intelecto julga sumamente afastado da verdade; e é aí que tu estás, meu Deus, tu que és a necessidade absoluta21 (CUSA, 1988, p. 166).

Por fim, no capítulo X a experiência feita com o olhar interior (oculis interioribus)

permite perceber a diversidade dos sentidos na simplicidade do olhar absoluto: E ocorre-me o pensamento, Senhor, de que o teu olhar fala. Na verdade, o teu falar não é diferente do teu ver, porque não diferem realmente em ti, que és a simplicidade absoluta. Experiencio então claramente que tu vês ao mesmo tempo todas as coisas e cada uma delas, porque eu falo, ao mesmo tempo e de uma só vez, enquanto prego, à igreja congregada, e a cada um dos indivíduos que está na igreja; digo uma só palavra e com essa única palavra falo a cada um dos indivíduos22 (CUSA, 1988, p. 168).

20 “Tanta est dulcedo illa, qua nunc, domine, pascis animam meam, ut se qualitercumque iuvet cum his, cuae experitur in hoc mundo, et per eas, quas tu inspiras, similitudines gratissimas. Nam cum tu sis vis illa, domine, seu principium, ex quo omnia, et facieis tua sit vis illa et principium, ex quo omnes facies id sunt, quod sunt, tunc me converto ad hanc arborem nucum magnam et excelsam, cuius quaero videre principium, et video ipsam oculo sensibili magnam, extensam, coloratam, oneratam ramis, foliis et nucibus. Video deinde oculo mentis arborem illam fuisse in semine, non modu quo eam hic inspicio, sed virtualiter. Attente adverto illius seminis admirabilem virtutem, in qua arbor tota ista et omnes nuces et omnis vis seminis nucum et omnes arbores in virtute seminum nucum fuerunt. Et video, quomodo vis illa non est ullo umquan tempore motu caeli ad plenum explicabilis, sed vis illa seminis, quamquam inexplicabilis, est tamen contracta, quia non nisi in hac especie nucum virturem habet; quare licet in semine videam arborem, non tamen nisi in contracta virtute” (CUSA, 2000, p. 24). “Tão grande é a doçura com a qual, Senhor, apascentas a minha alma, que ela se apraz de certo modo com aquelas coisas que experimenta neste mundo e mediante as comparações tão agradáveis que tu inspiras. Com efeito, sendo tu, Senhor, aquela força ou princípio de que tudo depende e sendo a tua face aquela força e o princípio a partir do qual todas as faces são o que são, volto-me então para esta grande e excelsa nogueira cujo princípio procuro ver. E, com os olhos sensíveis, vejo-a grande, extensa, colorida, carregada de ramos, folhas e nozes. Vejo, depois, com os olhos da mente, que essa árvore, na semente, não era do mesmo modo como agora a vejo, mas virtualmente. Considero atentamente a admirável virtude daquela semente, na qual se encontravam toda aquela árvore, todas as nozes, toda a força da semente das nozes e todas as árvores virtualmente [existentes] nas sementes das nozes. E vejo como essa força nunca é plenamente explicável no tempo pelo movimento do céu, mas também como essa força da semente, embora inexplicável, está contudo contraída porque não tem a sua virtude senão nesta espécie de nozes. Por isso, ainda que veja a árvore na semente, não a vejo senão na virtude contraída” (CUSA, 1988, p. 154-155). 21 “Unde experior, quomodo necesse est me intrare caliginem et admittere coincidentiam oppositorum super omnem capacitatem rationis et quaerere ibi veritatem, ubi occurrit impossibilitas; et supra illam, omnem etiam intellectualem altissimum ascensum, quando pervenero ad id, quod omni intellectui est incognitum et quod omnis intellectus iudicat remotissimum a veritate, ibi es tu, deus meus, qui es absoluta necessitas” (CUSA, 2000, p. 34). 22 “Et occurrit mihi, domine, quod visus tuus loquatur; nam non est aliud loqui tuum quam videre tuum, cum non differant realiter in te, qui es ipsa simplicitas absoluta; tunc clare experior, quod tu simul

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Temos assim nestas três passagens, a capacidade racional, auxiliada pela sensível,

de fazer comparações e, deste modo, partindo de imagens concretas, como a

nogueira e o quadro, abstrair destas imagens as “características” que podem ser

aproximadas do olhar absoluto. Ao mesmo tempo, desenha-se o processo crescente

de chegar à visão intelectual que não mais compara e separa, mas une os

contraditórios (coincidência dos opostos)23 a tal ponto que onde se depara a

impossibilidade, é o lugar24 onde nos aproximamo de Deus, que abraça em si todas

as diferenças; pois vê ao mesmo tempo todas as coisas e cada uma delas, da

mesma forma que o falar de Deus não difere do ver, ouvir, saborear, tocar,

raciocinar, saber, compreender. Mesmo assim, consciente de que a linguagem é

incapaz de “descrever” a experiência mística (também aproximativa) na sua

totalidade, é necessário, nesta união dos contraditórios, elevar-se acima de toda

ascensão intelectual mais elevada, porque, embora a atividade intelectiva seja a

mais apta para unir do que para separar; mesmo nesta máxima união não se chega

à posse plena do olhar absoluto, porque esta posse ultrapassa, em muito, as nossas

capacidades intelectivas. Poder-se-ia pensar com isto que Nicolau de Cusa

representaria a corrente afetiva, mas, mais uma vez, estaríamos enganados25; pois,

entrar na escuridão, ou seja, deparar-nos com a impossibilidade ou elevar-nos acima

do intelecto, só é possível com a potência intelectiva, pois como escreve em uma

das Cartas: “a afecção não se eleva sob o modo da ignorância, pois ela mesma não

pode elevar-se pelo modo da ciência se ela não recebe sua ciência do intelecto”26.

Deste modo, ignorar é saber (para utilizarmos uma fórmula clássica do De docta

ignorantia), mesmo sendo um saber que não se sabe, ou melhor, um saber que se

sabe exatamente por não sabê-lo.

Articulando os três momentos que aparecem no parágrafo anterior: sensível,

racional e intelectual, no capítulo XI Nicolau de Cusa mostra estes três momentos,

ao mesmo tempo em que prepara o leitor para um outro elemento que sempre se

manteve presente na sua experiência místico-religiosa, mas que a partir de agora

omnia vides et singula, quia ego simul et semel, dum praedico, ecclesiae loquor congregatae et singulis in ecclesia exsistentibus; unum verbum loquor et in illo unico singulis loquor” (CUSA, 2000, p. 35). 23 Para a distinção das operaçõs entre ratio e intellectus, cf. MARTÍN (2002). 24 Cf. ANDRÉ (2002, no prelo). 25 Cf. carta datada de 14 de setembro de 1453, VANSTEENBERGHE (1915). Cf. também D'AMICO (2004). 26 “Ignote enim consurgere non potest dici nisi de virtute intellectuali, affectus autem non consurgit ignote, quia nec scienter nisi scienciam habeat ex intellectu” (VANSTEENBERGHE (1915, p. 115).

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revelar-se-á mais explícito: o desejo e o amor27. Assim, ao iniciar o capítulo XI,

intitulado “Em Deus vê-se a sucessão sem sucessão”, Cusa afirma: “Experimento a

tua bondade, Deus meu, a qual não só não me abandona, mísero pecador, mas de

certo modo me alimenta docemente no meu desejo. Inspiraste-me uma agradável

comparação a propósito da unidade do verbo mental, ou seja, do teu conceito e da

sua variedade nas coisas que aparecem sucessivamente (...)”28 (CUSA,1988, p.

172). E assim, a imagem do quadro faz aquele que o vê experimentar não só o olhar

que tudo vê e daí, racionalmente, compará-lo com outras imagens e cada vez mais

afastar-se da imagem sensível e aproximar-se da imagem intelectual que não mais

compara e separa, mas une; como também, permite experimentar a bondade de

Deus que, no seu olhar simultâneo sobre todos os seres, alimenta amorosamente o

desejo de buscá-lo, unindo e não separando todas as experiências que se podem ter

a partir do quadro29.

Todas aquelas experiências tornam a ser relatadas não só nos capítulos que se

seguem, mas também ao longo do De visione dei, de diferentes maneiras, como se

cada uma das experiências narradas não bastasse para dar conta da experiência

religiosa vivida (por mais aproximativa que seja esta experiência) e como se, todas

juntas, ainda não conseguissem ultrapassar o limite da linguagem que embora

insuficiente, serve de alimento àqueles que a ouvem30 e por isso, o empenho pela

melhor linguagem deve ser buscado sempre, porque nela reflete-se a imagem

daquilo que buscamos, experimentamos e vivemos. Talvez por isso, nos capítulos

que se seguirão, a linguagem (es)colhida por Cusa para dizer/fazer a experiência de

Deus, seja a linguagem do amor. Deste modo, dos capítulos XVII ao XXI o nosso

filósofo mergulha e nos faz mergulhar na experiência do amor divino31. Deixemo-nos

27 Cf. GÓMEZ (2004). Sobretudo a terceira parte do primeiro capítulo, Añoranza y conocimiento de Dios. Também nosso artigo cf. nota 15 e também ANDRÉ cf. nota 8, cujas páginas finais falam de uma scientia amoris. 28 “Experior bonitatem tuam, deus meus, quae me miserum peccatorem non solum non spernit, sed quodam desiderio dulciter pascit. Inspirasti similitudinem mihi gratam circa unitatem verbi mentalis seu conceptus tui et varietatem eiusdem in successive apparentibus” (CUSA, 2000, p. 39). 29 O verbo experimentare será usado ainda uma vez mais neste capítulo XI, quando se fala da experiência que temos da sucessão (através da imagem do relógio) e de como esta experiência é da ordem da criatura. 30 Sobre o tema da força da palavra em Nicolau de Cusa, cf. ANDRÉ. Nikolaus von Kues und die Kraft des Wortes, conferência pronunciada em Trier à convite do Cusanus-Institut de Trier, em janeiro/2006 e ainda não publicada. 31 E nesta experiência, profundamente plena, abre o Cap. XVII: “Ostendisti, domine, te mihi adeo amabilem, quod magis amabilis esse nequis; es enim infinite amabilis, deus meus. Numquam igitur poteris a quoquam amari, sicut amabilis es, nisi ab infinito amante. Nisi enim esset infinite amans, non esses infinite amabilis. Amabilitas enim tua, quae est posse in infinitum amari, est, quia est posse

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conduzir pela linguagem do amor e experienciemos com esta linguagem, com

Nicolau de Cusa e com os irmãos de Tegernsee, a experiência místico-religiosa do

amor de Deus: Por isso és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de ambos, não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com efeito, como posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o amável e a união de ambos? No amor contraído experiencio que o facto de o amor ser o amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do amor perfeito. Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito contraído não pode faltar ao amor absoluto do qual o amor contraído recebe o que de perfeição comporta. (...) Aquelas coisas que ocorrem como sendo três, ou seja o amante, o amável e o nexo, são a essência mais simples absoluta. Por isso não são três mas uma só32 (CUSA, 1988, p. 198).

Assim, a partir da experiência do amor contraído, que é ao mesmo tempo reveladora

do amor absoluto (só podendo sê-la porque deste amor absoluto recebe o que de

perfeição tem), experienciamos a infinitude do amor divino que é simultaneamente

amante, amável e o nexo; é una e trina e portanto, é o próprio Deus, uma vez que

este, conforme o título deste capítulo XVII indica, não pode ser visto perfeitamente a

não ser como unitrino33. Mesmo sendo tocado pelo olhar amoroso de Deus, o

máximo que o Cusano experimenta e procura exprimir é um certo antegosto da

natureza divina, e para mostrar o quão distante esta representação está de uma

experiência direta e plena de Deus, passa a jogar, no final do referido capítulo, com

pares de contrários para afirmar que a imagem do quadro (o olhar que tudo vê)

in infinitum amare. A posse in infinitum amare et posse in infinitum amari oritur amoris nexus infinitus ipsius infiniti amantis et infiniti amabilis” (CUSA, 2000, p. 58). “Mostraste-te, Senhor, a mim dum modo tão amável que não podes ser mais amável. Com efeito, és infinitamente amável, Deus meu. Por isso jamais poderias ser amado por alguém como és digno de ser amado, a não ser por quem te ame infinitamente. E não serias infinitamente digno de ser amado, se não amasses infinitamente. Efectivamente, a tua amabilidade, que é o poder ser infinitamente amado, deve-se ao facto de ser simultaneamente o poder amar infinitamente. Do poder amar infinitamente e do poder ser infinitamente amado provêm o nexo infinito do amor entre o amante infinito e o infinito amável” (CUSA, 1988, p. 197). 32 “Tu es igitur amor ille infinitus, qui sine amante et amabili et utriusque nexu non potest per me naturalis et perfectus amor videri. Quomodo enim possum concipere perfectissimum et naturalissimum amorem sine amante et amabili et unione utriusque? Quod enim amor sit amans et amabilis et nexus utriusque, experior in contracto amore esse de essentia perfecti amoris. Id autem, quod est de essentia perfecti amoris contracti, non potest deesse absoluto amori, a quo habet contractus amor, quidquid perfectionis habet. Quanto autem amor simplicior, tanto perfectior (...) Illa igitur, quae occurrunt mihi tria esse, scilicet amans, amabilis et nexus, sunt ipsa simplicissima essentia absoluta. Non sunt igitur tria sed unum” (CUSA, 2000, p. 59). 33 É na tentativa de compreensão da Trindade que o verbo experimentare será utilizado ainda mais

duas vezes neste capítulo. Para o tema da trindade em Nicolau de Cusa e a tentativa de uma interpretação metafórica da mesma, cf. REINHARDT (2005, p. 435), que escreve: “Las metáforas son solamente el punto de partida del proceso de conocimiento, que no llega nunca a una comprehensión exhaustiva de Dios; ni si quiera en la visión facial, es capaz el hombre de comprender la esencia de Dios. Por otra parte, los nombres bíblicos de la Trinidad en especial y las metáforas en general son un punto de partida sólido, cierto y una fuente inagotable de ulteriores consideraciones.” Para a importância do simbolismo na obra de Nicolau de Cusa, cf. ANDRÉ (1997).

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permite a comparação e, a partir desta, a aproximação da experienciação do divino;

mas, jamais a posse plena do absoluto, e assim fala da irrepresentação (de Deus)

por qualquer representação; (Daquele) ser inexprimível por qualquer palavra; de

tentar representar, de modo visível, o invisível; e de, ao tentar expressá-lo, tornar

pequeno o que é grande (CUSA, 1988, p. 202)34. Entretanto, o esforço Cusano não é

inútil, porque a bondade de Deus é tanta que permite até aos cegos falar da luz e

proclamar os louvores daquilo de que nada sabem. Deste modo, a linguagem é

indicadora da e para a experiência religiosa, mas é preciso ter Deus como guia e

portanto, é preciso amá-lo e, amando-o, escolher vê-lo. Para isso, é necessário

também conhecê-lo, uma vez que amor e conhecimento andam juntos, já que não se

pode amar ou desejar aquilo de que não se tem conhecimento35.

No capítulo XXI, a linguagem enquanto indicadora, torna-se o próprio alimento da

experiência religiosa para todo aquele que crê:

Por isso, só os crentes humildes conseguem esta revelação vivificante e cheia de graça. Com efeito, é no teu sacratíssimo evangelho, que é alimento celestial, que está escondida, como no maná, toda a doçura do desejo, a qual não pode ser saboreada senão por quem crê e a toma como alimento. Mas, se alguém a crê e a recebe, experiencia, com toda a verdade, que desceste do céu e que só tu és o mestre da verdade36 (CUSA, 1988, p. 215-216).

E é neste alimento (linguagem) saboreado/experimentado por todos aqueles que

crêem, que Nicolau de Cusa é conduzido e conduz os irmãos de Tegernsee às

páginas finais do De visione dei e assim, a experiência de Deus (nas próprias

palavras do Cusano) ainda está por ser completada. Nos capítulos finais,

precisamente nos capítulos XXII, XXIV e XXV, em que torna a aparecer o verbo

34 “Si enim dulcedo pomi incogniti manet omni pictura et figura infigurabilis et omni verbo inexpressibilis, quis sum ego miser peccator, qui nitor te inostensibilem ostendere et te invisibilem visibilem figurare et illam infinitam et penitus inexpressibilem dulcedinem tuam sapidam facere praesumum, quam nunquam adhuc gustare merui, et per ea, quae exprimo, eam potius parvam quam magnam facio” (CUSA, 2000, p. 62). 35 Deste modo, a forma de aproximar-se de Deus ou a experiência mística em Nicolau de Cusa não pode ser somente afetiva ou somente intelectiva, porque ela pressupõe a união dos contrários no olhar simultâneo do criador, olhar este que opera todas as coisas, como nos é dito no Cap. XIX: “Mediante enim ratione et sapientia tu deus pater omnia operaris. Et spiritus seu motus ponit conceptum rationis in effectu, sicut experimur arcam in mente artificis poni mediante virtute motiva, quae inest manibus, in effectu” (CUSA, 2000, p. 67)./“Com efeito, através da razão e da sabedoria, tu, Deus Pai, operas todas as coisas. E o espírito ou movimento efectiva o conceito da razão, assim como experienciamos que a arca na mente do artista se efectiva através da força motriz que existe nas suas mãos” (CUSA, 1988, p. 208). 36 “Solum igitur parvuli creduli hanc consequuntur gratiosissimam et vivificam revelationem. Est enim in tuo sacratissimo evangelio, qui cibus est caelestis, uti in manna omnis dulcedo desiderii abscondita, quae non potest degustari nisi per credentem et manducantem. Si quis vero credit et accipit, experitur verissime, quia tu de caelo descendisti et solus es magister veritatis” (CUSA, 2000, p. 72).

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experimentare, percebe-se claramente o caminho de ascensão que se foi formando

ao longo do texto ou da própria experiência que culmina na força do intelecto, mas

não deixa de lado o amor37. Sigamos, então, os últimos momentos desta

experiência.

No capítulo XXII, intitulado Jesus vê e opera, o cardeal alemão discorre sobre a

força do olhar humano e do olhar divino. O olhar divino aqui se realiza enquanto

visão humana, uma vez que o verbo se fez carne38, mas, mesmo assim, a sua

capacidade de ver é infinitamente maior que a capacidade do olhar das criaturas.

Neste contraste de olhares, o olhar das criaturas só é capaz de aproximar-se do

olhar divino quando olha não mais sensivelmente, mas intelectualmente. Na primeira

vez em que aparece o verbo experimentare neste capítulo, ele está ainda no plano

da sensibilidade, pois experimenta com os olhos alguém que passa, sabe que

alguém passou, porém é incapaz de distinguir este indivíduo. No segundo momento,

o experimentar não é mais sensível, mas intelectual e neste intelecto é captada a

palavra do Senhor. Neste sentido, o Cusano passa do olhar sensível ao olhar da

mente e mantém a palavra (a linguagem) como orientadora:

37 Por exemplo, no capítulo XXIV em que Nicolau de Cusa faz um verdadeiro louvor ao intelecto, faz também um hino ao amor: “Quid fortius amore, ex quo omne amabile habet, quod ametur? Sic contracti amoris nexus aliquando tantus est, quod timor mortis eum rumpere nequit, qualis tunc est nexus gustati illius amoris, a quo omnis amor? (...) Non persuades nisi credere, et non praecipis nisi amare. Quid facilius quam credere deo? Quid dulcius quam ipsum amare? Quam suave iugum est iugum tuum et quam leve est onus tuum, praeceptor unice?” (CUSA, 2000, p. 83-86)./“O que há de mais forte que o amor, do qual tudo o que é amável recebe aquilo que faz com que seja amado? Se o nexo do amor contraído é por vezes tão grande que o temor da morte não o pode romper, qual é então o nexo daquele amor saboreado de que deriva todo o amor?(...) Não persuades senão a crer e não ensinas senão a amar. Que há de mais fácil que acreditar em Deus? Que há de mais doce do que amá-lo? Quão suave é o teu jugo e quão leve é o teu peso, mestre único?” (CUSA, 1988, p. 229-230, 233). Para o tema do amor e do conhecimento, leiam-se duas cartas de Cusa datadas de 14/09/1453 e 18/03/1454 (CUSA, 1915). 38 “Sed erat huic tuae humanae perfectissimae licet finitae visioni ad organum contractae absoluta et infinita visio unita; per quam quidem visionem omnia pariter et singula ut deus videbas tam absentia quam praesentia, tam praeterita quam futura. Videbas igitur, Ihesu, oculo humano accidentia visibilia, sed visu divino absoluto rerum substantiam. Nemo unquam in carne constitutus praeter te, Ihesu, substantiam vidit aut rerum quiditatem. Tu solus animam et spiritum et quidquid in homine erat vidisti verissime. Nam sicut vis intellectiva in homine unita est virtuti animali visivae, ut homo non solum videat ut animal, sed etiam discernat et iudicet ut homo, ita visus absolutus unitus est in te, Ihesu, virtuti humanae intellectuali, quae est discretio in visu animali. Vis visiva animalis in homine non in se, sed in anima rationali tamquam in forma totius subsistit” (CUSA, 2000, p. 76)./“Mas a esta tua visão humana perfeitíssima, embora, como finita, contraída a um órgão, estava unida a visão absoluta e infinita, pela qual vias, como Deus, simultaneamente todas as coisas e cada uma delas, tanto as ausentes como as presentes, tanto as passadas como as futuras. Vias assim, Jesus, os acidentes visíveis com os olhos humanos, mas a substância das coisas com o olhar divino absoluto. Jamais alguém feito carne, além de ti, Jesus, viu a substância ou a quididade das coisas. Só tu viste de um modo sumamente verdadeiro a alma, o espírito e o que quer que seja que existisse no homem” (CUSA, 1988, p. 220).

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Vejo, depois, que ao intelecto, no seu ponto supremo, está unido o verbo divino e que o intelecto é o lugar em que o verbo é captado, tal como experimentamos em nós que o intelecto é o lugar em que é captada a palavra do mestre, como se a luz do sol se unisse à candeia aludida. O verbo de Deus ilumina, pois, o intelecto como a luz do sol [ilumina] este mundo39 (CUSA,1988, p. 222-223).

No capítulo XXIV Nicolau de Cusa volta a utilizar o verbo experimentare para

mostrar a gradação da nossa experiência, e assim relata, sempre de uma forma

crescente, a força mineral, vegetal, sensível e intelectual e mais uma vez põe o

verbo (a palavra, a linguagem) como alimento e guia do intelecto: “É necessário,

com efeito, que confie no mestre e o ouça (...) Realiza-se, no entanto, o intelecto

pelo verbo de Deus e cresce e torna-se continuamente mais capaz, mais apto e

mais semelhante ao verbo”40 (CUSA, 1988, p. 232). Por fim, no último capítulo

(XXV), intitulado Jesus é a consumação, a experiência religiosa não poderia ser

melhor experimentada do que através dos vários modos em que se pode

experimentar o infinito e assim escreve o Cusano: Experienciamos, Senhor, que o teu espírito simples é captado de múltiplos modos na sua virtude infinita. Na verdade, é captado de um modo em um [espírito] em que atua o espírito profético, doutro modo em um outro em que actua o intérprete especialista e em um outro no qual ensina a ciência. E assim em outros doutros modos diferentes. Vários são, com efeito, os seus dons, os quais são perfeições do espírito intelectual, assim como o mesmo calor do sol realiza em várias árvores diferentes frutos41 (CUSA, 1998, p. 235/236).

E, desta forma, a experiência religiosa no De visione dei termina como começou, ou

seja, o modo como o criador vê as suas criaturas é o mesmo modo (entendidas as

devidas diferenças, sobretudo a improporcionalidade entre o olhar divino e o olhar

humano) como as criaturas vêem o criador42. No início do texto, temos a experiência

de um quadro cujo olhar tudo vê e vários olhares que vêem, cada um à sua maneira,

o olhar que nos olha. No final do texto, temos a experiência da virtude infinita, que

por ser infinita abraça a todos, e a experiência particular e por isso, diversa, que

cada um tem de viver a experiência desta virtude infinita e deste modo, como Jesus

39 “Et sic video intellectum in ratione quasi in loco suo ut locatum in loco, quasi candela in camera, quae illuminat cameram et omnes parietes et totum aedificium, secundum tamen gradus distantiae plus et minus. Video deinde intellectui in sua supremitate uniri divinum verbum atque intellectum ipsum locum esse, ubi verbum capitur, uti in nobis experimur intellectum locum esse, ubi verbum magistri capitur, quasi lux solis iungatur candelae praelibatae; illuminat enim verbum dei intellectum sicut lumen solis hunc mundum”(CUSA, 2000, p. 78). 40 “(...) oportet enim, quod confidat et audiat magistrum. Perficitur autem intellectus per verbum dei et crescit et fit continue capacior et aptior atque verbo similior” (CUSA, 2000, p. 85). 41 “Experimur, domine, simplicem spiritum tuum virtute infinitum capi multipliciter. Capitur enim aliter in uno, ubi efficit spiritum propheticum, aliter in alio, ubi peritum efficit interpretem, et in alio docet scientiam; ita in aliis aliter. Varia enim sunt dona eius, et illae sunt perfectiones intellectualis spiritus, sicut idem calor solaris in variis arboribus varios perficit fructus” (CUSA, 2000, p. 87). 42 Para esta idéia, veja-se, sobretudo, o capítulo VI do De visione dei, intitulado De faciali visione.

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é o verbo de Deus humanado e o homem deificado, reúne em si os contraditórios.

Os homens que buscam a Deus são manifestações Dele, embora diversos, são

iluminados pela mesma luz, cuja luminosidade se for seguida como um guia,

aproxima-os do abraço divino e portanto os faz viver a experiência religiosa que une

amor e conhecimento ou afeto e intelecto: “Revelam-se mutuamente os seus

segredos os espíritos cheios de amor. E com isso aumenta o conhecimento do

amado, o desejo dele e inflama-se a doçura da alegria” (CUSA, 1998, p. 237).

“Revelant sibi mutuo secreta sua amoris pleni spiritus et augetur ex hoc cognitio

amati et desiderium ad ipsum et gaudii dulcedo inardescit” (CUSA, 2000, p. 88).

Podemos dizer, portanto, que o verbo experimentare, no De visione dei, não tem

sempre o mesmo sentido e, por isso, não aparece sempre no mesmo contexto.

Entretanto, em todos os momentos em que aparece é revelador da busca que o

homem faz na tentativa de alcançar Deus e nesta, termina por construir um percurso

que vai do humano ao divino. No entanto, a posse plena de Deus, ou melhor, a visão

face a face (para utilizarmos um vocabulário mais próprio da obra em questão) não

acontece sem véus, ou seja, não se dá diretamente, pois, mesmo quando somos

capazes de mergulhar nas trevas ou na ignorância, superando toda ciência e todo

conceito, o que conseguimos perceber é que nesta escuridão revela-se a face acima

de todos os véus, mas não percebemos a face das faces43. Talvez por isso, o

percurso em busca de Deus, ou seja, a experiência religiosa expressa no De visione

dei, termina como começa: com a capacidade que cada um tem de ver o criador e

de querer vê-lo44 (entendendo que a visão, na sua operação do olhar, contém em si

todos os sentidos). Como o nosso querer é infinito, posto que aquilo que buscamos

também o é, ou melhor, por Deus ser infinito, o nosso desejo Dele também o é, pois,

retirado o infinito, nada permanece (sublato igitur infinito nihil manet), o percurso não

só narrado, mas também vivido por Cusa no De visione dei expressa a sua

experiência religiosa, já quase completa (Propero ad finem, cursum paene

consummavi), porém, sempre pronta para ser recomeçada.

Referências

ANDRÉ, João Maria. Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de Cusa. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 43 Para o desenvolvimento desta idéia, idem nota anterior. 44 Para o tema da liberdade, cf. Capítulo VII da referida obra.

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A INFINIDADE E A ETERNIDADE DIVINAS NO LIVRO DA CONTEMPLAÇÃO, DE RAMON LLULL

Ricardo da Costa* Contemplar é o ato do pensamento que pensa em Deus. Contemplar é falar com Deus de suas razões e de seus atos. Provérbios de Ramon (1296)1

Os estudiosos reconhecem que a Idade Média apresenta muitos problemas de compreensão para o homem atual. A mística é um deles. Um dos maiores filósofos brasileiros, Henrique Cláudio de Lima Vaz, afirmou com propriedade que a filosofia moderna se mostrou incapaz de oferecer um pressuposto antropológico adequado à compreensão do fenômeno místico em sua gênese, provavelmente por se tratar de uma tentativa de comunicação com o inefável, de expressão do inexprimível. Mesmo a experiência do Ser de Heidegger, segundo Lima Vaz, é uma “experiência mística desfigurada”2. Portanto, previno de antemão que tratarei de um tema que, em sua essência, me escapa. Devido a isso, a única possibilidade compreensiva que ele me oferece é a fruição estética, a emoção do autor, as palavras utilizadas para representar sua experiência. No entanto, apesar dessa dificuldade hermenêutica, creio poder exprimir aos meus contemporâneos algo da mente e do coração do autor que escolhi para tecer algumas considerações: o filósofo Ramon Llull (1232-1316). Para isso, me referirei à primeira grande obra do autor, o Livro da contemplação em Deus, texto escrito originalmente em árabe por volta de 1274 e depois transcrita para o catalão em 1280 (há ainda uma versão latina, feita a partir de diferentes manuscritos catalães)3. Selecionei algumas passagens do Livro Primeiro, que tratam da infinidade e da eternidade de Deus. Mas, antes, foi preciso fazer uma breve contextualização histórica e biográfica de nosso autor, para então abordar as meditações lulianas de Deus. 1 OS PRIMEIROS QUARENTA ANOS (1232-1272): FORMAÇÃO E CONVERSÃO Ramon Llull nasceu por volta de 1232 em Palma de Maiorca, ilha recém-conquistada por Jaime I (1213-1276)4. A expansão de Aragão prosseguiu durante sua infância, e entre os anos 1238-1245 Jaime I conquistou o reino de Valência5. Nesse período o * Doutor em História Medieval e Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Site: www.ricardocosta.com < [email protected] >. 1 “Contemplació es actu de pensa qui em Deus pensa. Contemplar es parlar ab Deu de ses raons e dels actus d’aquelles” (RAMON LLULL. Apud: BONNER, A.; RIPOLL PERELLÓ, M. I. Diccionari de definicions lul.lianes, Col.lecció Blaquerna, 2, Universitat de Barcelona / Universitat de les Illes Balears, 2002, p. 133). 2 LIMA VAZ, Henrique C. de. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20. 3 O Livro da contemplação foi publicado em RAMON LLULL, Obres Essencials (OE), Barcelona, vol, II, 1960, p. 97-1258. 4 Para uma análise da conquista, ver SANTAMARÍA, A. “La expansión político-militar de la Corona de Aragón bajo la dirección de Jaime I: Baleares”, Jaime I y su época. X Congreso de Historia de la Corona de Aragón, Zaragoza: Institución “Fernando el Católico, 1979, p. 91-146. 5 Ver BENNÀSSER, Pau Cateura. Mallorca en el segle XIII. Mallorca: El Tall Editorial, 1997, p. 19-22. Para um resumo da formação da Catalunha, ver REYLLY, Bernard. Cristãos e Muçulmanos – A luta pela Península Ibérica. Lisboa: Editorial Teorema, s/d, p. 191-217.

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império almôada cambaleava6, e os pequenos principados da Ocitânia começaram a ser anexados à coroa francesa, que, por sua vez, era apoiada pela Igreja7, interessada em extirpar a heresia cátara8. Tudo isso ante a conformidade tácita de Jaime I, que não desejava uma guerra contra a França, pois havia sido pressionado pelo papa Honório III (1216-1227) a não intervir no Languedoc9. Essa mudança tática de Jaime I em direção ao sul da Península fazia parte de uma nova orientação da política “internacional” catalã: a coroa abandonou suas pretensões na Provença e no Languedoc a partir da derrota das forças de Catalunha-Aragão na famosa batalha de Muret (1213)10. Essa derrota causou profunda impressão em Jaime I. Por isso, a coroa de Aragão abandonou seu interesse na Europa transpirenaica (que correspondia então a todo o Languedoc moderno, a metade da Gasconha, parte do Delfinado e a costa mediterrânea até Niza). Conseqüentemente, todo esse mundo cultural catalão passou para as mãos da coroa francesa, restando para os catalães somente Montpellier, cidade natal de Jaime I11. O pai de Llull, também chamado Ramon Llull, participou na conquista da ilha de Maiorca, recebendo por isso terras como recompensa12. Sua família já foi descrita tanto como nobres barceloneses enriquecidos pela conquista13, como burgueses ricos14. Seja como for, por volta de 1232, ano de nascimento do filósofo, a família Llull tinha cerca de 159 hectares na ilha15. A expansão aragonesa em direção ao sul fez com que uma considerável população muçulmana e judia fosse em pouco tempo absorvida pela coroa de Aragão. Calcula-se que os não cristãos constituíam uma quarta parte do total da população, isto é, cerca de 250.000 pessoas em um total de 900.00016. Mas esse avanço militar aragonês não prosseguiu porque seus vizinhos (França e Castela) atravessavam um período de apogeu demográfico. Por isso, sua expansão se deu nos mares do Mediterrâneo, através de um intenso comércio com o norte da África (até o Egito), e também mediante a conquista da Sicília (1282), Sardenha (1323) e o sul da Itália (século XV)17. Esse expansionismo comercial catalão foi acompanhado pela formação de uma consciência de identidade cultural, por um sentimento do

6 WATT, W. Montgomery. Historia de la España Islámica. Madrid, 1974. 7 BONNER, A. “Ambient Històric i Vida de Ramon Llull”, OS, vol. I, p. 4. 8 Ver NELLI, René. Os cátaros. Lisboa: Edições 70, 1980. 9 ENGELS, Odilo. “El rey Jaime I de Aragón y la política internacional del siglo XIII”, Jaime I y su época. X Congreso de Historia de la Corona de Aragón, op. cit., p. 225-226. 10 Pedro II, o Católico (1196-1213) morreu na batalha de Muret (1213), quando defendeu seus vassalos setentrionais comprometidos com a heresia cátara. Ver RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 185. Para a cruzada albingense, ver especialmente MACEDO, José Rivair. Heresia, cruzada e inquisição na França medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 11 PRING-MILL, Robert D. F. Estudis sobre Ramon Llull. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1991, p. 38. 12 HILLGARTH, J. N. Diplomatari Lul.lià. Barcelona: Edicions de la Universitat de Barcelona, 2001. 13 RUBIÓ I BALAGUER, Jordi. Ramon Llull i el lul.lisme, Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 1985, p. 36. 14 HILLGARTH, J. N. Diplomatari Lul.lià, op. cit., p. 11. 15 SOTO I COMPANY, Ricard. “Alguns casos de gestió ‘colonial’ feudal a la Mallorca del segle XIII”, La formació i expansió del feudalisme català. Actes del col.loqui organizat pel Col.legi Universitari de Girona, 8/11 de gener de 1985 (a cura de J. Portella), p. 349. 16 HILLGARTH, J. N. Los reinos hispánicos, 1250-1516. Vol. I, 1250-1410: Un equilibrio precário, Barcelona-Buenos Aires-Mèxic: Ediciones Grijalbo, 1979, p. 51-53. 17 HILLGARTH, J. N. “Vida i importancia de Ramon Llull en el context del segle XIII”, Anuario de Estudios Medievales 26, Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1996, p. 968.

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cumprimento de uma missão divina e pelo importante fato de que a própria língua catalã se “libertava” da influência cultural ocitânia18. Por todos esses motivos, por volta de 1300 a língua “internacional” falada no Mediterrâneo ocidental era o catalão, tanto no comércio quanto na diplomacia19. Por sua vez, a ilha de Maiorca possuía características culturais peculiares e que imprimiram um tom universal à obra de Ramon Llull. Existiam ali grupos de imigrantes de diversas partes da Europa20, muçulmanos (cerca de 40% do total da população21) e judeus (utilizados pela coroa como embaixadores no Magreb, apesar de uma lei de Jaime I de 1228 proibir aos judeus ocuparem cargos superiores aos dos cristãos22). Até meados da década de 1280 – quando uma onda anti-semita invadiu a ilha – Maiorca, devido a essa pluralidade de procedências, respirou um ar social mais lascivo e um pouco mais tolerante23. A maioria da população, predominantemente burguesa (no sentido medieval de “residente do burgo”), havia impresso um tom de “osmose estamental”, isto é, brindava com amplas possibilidades de ascensão social através do trabalho no comércio24. O porto de Maiorca, estrategicamente localizado, era um centro de rotas marítimas que se entrecruzavam. Da Europa, comerciantes de Montpellier, de Gênova e de Pisa faziam escala ali e logo passavam a Minorca25. Do Magreb os navegantes provinham de cinco cidades, entre Bugia e Oran. Além disso, os maiorquinos praticavam a navegação de cabotagem ao largo de toda a costa do Magreb, no canal da Sardenha e na Sicília, com escala em Túnis26. Esse cosmopolitismo da sociedade de Maiorca proporcionou a Ramon Llull uma visão privilegiada das culturas judia e muçulmana, tornando-o um dos escritores e filósofos medievais melhor preparados para abordar o tema do diálogo inter-religioso, assunto em voga nos círculos intelectuais de então27. Esse ambiente cultural possuía, naturalmente, uma grande preocupação religiosa, tanto na conversão dos infiéis quanto na unificação do cristianismo28. Esses dois aspectos culturais foram fundamentais na visão de mundo de Llull. Devemos levar em conta 18 Para a influência da poesia trovadoresca occitana na Catalunha, ver RIQUER, Martín De. Història de la literatura catalana, Barcelona: Edicions Ariel, 1964, vol. I, p. 21-196. 19 HILLGARTH, J. N. El problema d’un imperi mediterrani català, 1229-1327. Palma de Mallorca: Editorial Moll, 1984, p. 121. 20 Inclusive mercadores de Pisa e Gênova. HILLGARTH, J. N. El problema d’un imperi mediterrani català, 1229-1327, op. cit., p. 47. 21 A maioria era escrava, como resultado da conquista de Jaime I. BONNER, A. “Ambient Històric i Vida de Ramon Llull”, op. cit., p. 07. 22 HILLGARTH, J. N. “Los reinos hispánicos, 1250-1516” in: Vol. I, 1250-1410: Un equilibrio precario, op. cit., p. 276. Os judeus também eram intermediários no tráfico de ouro na rota que vinha do norte da África até Maiorca. 23 SANTAMARÍA, Álvaro. Ejecutoria del Reino de Mallorca. Mallorca, Ajuntament de Palma, 1990, p. 283. 24 SANTAMARÍA, Álvaro. Ejecutoria del Reino de Mallorca, op. cit., p. 316. Ver também DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “Introducción General. La vida de Ramón Llull alrededor del año 1300”, ROL XIX, 1993, p. XXIV-XXVII. 25 ABULAFIA, David. “El comercio y el reino de Mallorca, 1150-1450”, in: ABULAFIA, David; GARÍ, Blanca (Dir.), En las costas del Mediterráneo Occidental. Las ciudades de la Península Ibérica y del reino de Mallorca y el comércio mediterráneo en la Edad Media. Barcelona: Ediciones Omega S. A., 1997, p. 115-154. 26 DUFOURCQ, Charles-Emmanuel. L’Espagne Catalane et le Maghrib aux XIII et XIV siècles. De la bataille de Las Navas de Tolosa (1212) à l’avènement du sultan mérinide Abou-l-Hasan (1331). Paris: Presses Universitaires de France, 1966, p. 665 (mapa). 27 FIDORA, Alexander. “Raimundo Lúlio – Educador das Religiões”, Revista Mirandum 15, São Paulo: Editora Mandruvá (http://www.hottopos.com), ano VIII, 2004. 28 PRING-MILL, Robert D. F. Estudis sobre Ramon Llull, op. cit., p. 38.

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também que a expansão aragonesa teve como conseqüência cultural a formação de uma identidade catalã. Daí o surgimento dos primeiros escritos em língua vernácula, como as Crônicas (especialmente o Livro dos feitos – Llibre dels feyts – de Jaime I de Aragão29) e as obras de Llull, fato que converte nosso personagem em um dos fundadores da língua catalã. Esta grande região da fronteira medieval e cristã, Maiorca e Catalunha, foi o mundo no qual Ramon Llull viveu, pelo menos na primeira metade de sua longuíssima vida (para os padrões medievais). Em Maiorca, Llull recebeu uma educação cavaleiresca e cortesã, pois formou parte da corte de Jaime I e mais tarde como senescal de seu filho Jaime II30. O filósofo nos apresenta essa primeira metade de sua vida como dissoluta e mundana, pois escrevia vãs canções e se dedicava a outras coisas lascivas desse mundo31. Em seu Livro da contemplação, Ramon nos proporciona um retrato desse período de sua vida:

Ah, Senhor meu e Deus meu! Sou aquele que me vangloriava por ter traído e enganado muitos amigos meus, aos quais disse muitas mentiras, falsidades e cometi muitas injúrias. E tudo isso fazia porque não sabia nem cogitava Vossa verdade, nem a virtude e nobreza que existe em Vossa verdadeira verdade32. Como quis, Senhor, a ajuda dos anjos, das Escrituras dos profetas, e a admoestação dos religiosos, estou agora em uma boa vida; mas antes, até que os anjos me ajudassem e os religiosos me predicassem, eu permaneci (no pecado), pois me tornara o pior homem e o maior pecador de toda essa cidade e de todas as demais existentes33. Como eu, Senhor, injuriei meus vizinhos, meus parentes e meus amigos, tendo inveja de seus bens e de suas mulheres, aquelas injúrias, Senhor, não eram outra coisa senão as injúrias de minha alma, que se desordenava de ser digna de possuir a glória celestial34.

Todas essas opiniões negativas a respeito de sua vida antes de sua conversão fizeram com que Ramon Llull dedicasse somente algumas linhas a seus primeiros trinta anos em sua Vida coetânia. Mas sabemos que por volta de 1257, com cerca de vinte e cinco anos de idade, Llull tinha relações com a corte e estava muito

29 Jaume I. Crònica o Llibre dels feits (a cura de SOLDEVILA, Ferran). Barcelona: Edicions 62, 1982, de autoria do próprio rei Jaime I, que a redigiu (ou ditou) nos anos 1244-1274, entre Játiva e Barcelona, incentivado pela conquista de Maiorca, que considerou um feito extraordinário. Ver RIQUER, Martín de. “El mundo cultural en la Corona de Aragón con Jaime I”, Jaime I y su época. X Congreso de Historia de la Corona de Aragón, op. cit., p. 306. 30 Para a educação cavaeiresca de Ramon Llull, ver CARRERAS Y ARTAU, Tomás. “L’esperit cavalleresc en la producció lulliana”, La Nostra Tierra. Palma de Mallorca: 1935, p. 319-321. Hillgarth conjectura que possivelmente a informação que a Vida coetânia nos dá a respeito do cargo de senescal (ou majordomo) de Jaime II é falsa, já que ele não possuía nem a riqueza nem a estirpe necessárias para ostentar tal cargo (HILLGARTH, J. N. Diplomatari Lul.lià, op. cit., p. 12), opinião compartilhada por Álvaro Santamaría (Ramon Llull y la Corona de Mallorca. Sobre la estructura y elaboración de la Vita Raimundi Lulli. Mallorca, 1989). 31 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 2, OS, vol. II, p. 12. 32 “Ah Senyor meu e Déu meu! No som jo aquell qui pusca açò vanar, car jo som aquell qui he traïts e enganats molts amics meus, als quals he dites moltes d’avolees e de falsies e he fetes moltes d’injúries. E tot açò faïa per ço car jo no sabia ni cogitava vostra veritat ni la vertut e noblea qui és em vostra vera veritat” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. XXIII, 23, p. 149). 33 “Car no hi ha valgut, Sènyer, ajuda d’àngels, ni d’escriptures de profetes, ni amonestament de religiosos, que jo sia hom estat de bona vida; enans, jassia ço que los àngels m’han ajutat e.ls religiosos m’han preïcat, no roman per ço que jo no sia esdevengut lo pus mal home e.l pus pecador de tota esta ciutat e de totes mes encontrades” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. XXXVII, 26, p. 177). 34 “Com jo, Sènyer, haja injuriats mos veïns e mos parents e mos amics, havent enveja de lurs bens e de lurs mullers, aquelles injuries, Sènyer, no eren altra cosa si no injuriaments de la mia anima quis desordonava a ésser digna de posseir la celestial glòria” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. LXXV, 11, p. 259).

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vinculado ao príncipe Jaime, e que nesse mesmo ano ele se casou com Blanca Picany, com a qual teve dois filhos, Domingo e Madalena. Apesar dessas circunstâncias, ele mantinha sua vida cortesã. Mas quanto tinha cerca de trinta anos, por volta de 1263, ele compunha uma canção em língua vulgar para uma mulher a quem amava com um amor feiticeiro35. Foi então que teve uma visão do Cristo crucificado. Posteriormente teve mais quatro visões36. Mais tarde, no poema Desconsolo (1295), Ramon faz referencia a essas visões:

Quando cresci e senti do mundo a vaidade, entrei em pecado e comecei a fazer maldade, esquecendo Deus glorioso e seguindo a carnalidade. 15 Mas satisfez a Jesus Cristo, por Sua grande piedade, apresentar-se a mim cinco vezes crucificado, por bondade, para que me enamorasse e O relembrasse com saudade, tão fortemente que tratasse d’Ele quando pregasse a unidade por todo o mundo, e que fosse dita a verdade 20 de Sua Encarnação e de Sua Trindade, pelas quais fui inspirado em tão grande vontade, que mais nada amasse, e O honrasse com dignidade. Naquele momento, comecei a servi-Lo com sagacidade37.

Ramon Llull interpretou essas cinco visões de Cristo como um desígnio de Deus: ele deveria abandonar sua vida fútil e dedicar-se ao serviço de Cristo38. O tema do martírio, tão caro aos religiosos medievais39, passou a formar parte de seus objetivos, além da conversão dos muçulmanos que, por seu grande número, cercavam os cristãos por todos os lados40. O século XIII é o tempo da perplexidade para o cristianismo: conhecedores que eram minoria no mundo, a primeira atitude de muitos cristãos foi sair pelo mundo e divulgar a palavra de Deus. Por esse motivo, surgiram as ordens mendicantes; e a atitude apologética de Ramon Llull expressa muito bem esse sentimento de angústia e perplexidade coletiva que se transformou em ação, em um otimismo sem par, na certeza de poder converter todo o mundo. Por esse motivo, o século XIII foi definido como “o século do otimismo”41. O segundo objetivo que a “mente lúgubre”42 de Llull atinou foi escrever o “melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis”43 que, a princípio, foi o Livro da contemplação, obra que contém o núcleo de todo o seu pensamento. Finalmente, seu terceiro objetivo foi recorrer ao papa, aos reis e aos príncipes cristãos para incitá-los a construírem mosteiros onde se ensinassem os idiomas dos sarracenos e dos outros infiéis, para assim formar pessoas indicadas para serem

35 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 2, OS, vol. II, p. 12. 36 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 3, OS, vol. II, p. 12. 37 “Quan fui gran e sentí del món sa vanitat, / comencé a far mal e entré en pecat, / oblidand Déus gloriós, siguent carnalitat; / mas plac a Jesucrist, per sa gran pietat, / que.s presentà a mi cinc vets crucifigat, / per ço que.l remembràs e.n fos enamorat / tan fort, que eu tractàs com ell fos preïcat / per tot lo món, e que fos dita veritat / de la su trinitat e com fo encarnat; / per què eu fui espirat en tan gran volentat, / que res àls no amé mas que ell fos honrat; / e adoncs comencé com lo servís de grat” (RAMON LLULL, “Desconsolo”, OE, vol. I, 1959, II, 13-24, p. 1309). 38 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 4, OS, vol. II, p. 12-14. 39 Ver VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, especialmente o capítulo III (p. 65-123). 40 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 5, OS, vol. II, p. 14. 41 A denominação “era do otimismo” para o século XIII é de SOUTHERN, R. W., Western Views of Islam in the Middle Ages. Cambridge, Massachussets, 1962. 42 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 6, OS, vol. II, p. 14-15. 43 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 6, OS, vol. II, p. 14.

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enviadas aos sarracenos e manifestar-lhes a pia verdade da fé católica, um objetivo já proposto anteriormente pelos dominicanos44. É possível que esses três objetivos tenham sido amadurecidos durante um período maior de reflexão, como pensa Miquel Batllori45. Os historiadores sempre colocam em dúvida as sucintas palavras de certas passagens da Vida46. O fato é que só depois de escutar o sermão de um bispo sobre a vida de São Francisco47, que dizia como o santo havia abandonado todas as coisas mundanas para se entregar totalmente ao serviço da cruz, é que Ramon Llull finalmente decidiu mudar sua vida. Vendeu então a maior parte de seus bens e deixou somente uma pequena parte para sua esposa e filhos. Realizou uma peregrinação até Nossa Senhora de Recamador48 e a Santiago de Compostela, para pedir ajuda ao Senhor para realizar aqueles três novos objetivos de sua vida. Isso ocorreu em 1263, ano da famosa Disputa de Barcelona49. Após retornar dessas peregrinações, Llull foi aconselhado por Ramon de Penyafort (c. 1185-1275) a estudar em Maiorca, ao invés de ir a Paris, como era seu desejo. Ao chegar a Maiorca, Llull abandonou sua vida de fausto e vestiu um hábito do mais vil trapo, “o mais rústico que pôde encontrar”, passagem da Vida coetânia que indica sua proximidade com o ideal franciscano – a ênfase na vestimenta pobre era uma característica dos espirituais franciscanos. Depois disso, passou a ser menosprezado pelas gentes50. 1.1 Os anos de estudo e seus primeiros escritos Assim, durante nove anos (c. 1265-1274) Llull estudou um pouco de gramática (latim) em sua ilha natal. Comprou um escravo árabe que lhe ensinou a língua islâmica, base de uma fina cultura, especializada principalmente em filosofia e medicina51. É possível também que tenha estudado no mosteiro cisterciense de La Real (próximo a Palma) ou na escola (também cisterciense) de Valmagne, em Montpellier, onde certamente teve contato com a filosofia dos vitorinos e a medicina árabe52. Nesse período, certo dia, desejoso de contemplar a Nosso Senhor, Ramon subiu ao monte Randa, próximo de sua propriedade – observe que o retiro espiritual em um lugar elevado era típico dos contemplativos de então, que analogamente buscavam uma elevação no plano físico ao mesmo tempo em que se elevavam espiritualmente53. Foi quando então aconteceu outra revelação, belamente descrita na Vida Coetânia:

44 Especialmente por Raimundo de Peñafort, que por volta de 1245 organizou em Túnis, Múrcia e Maiorca escolas de árabe e hebreu para missionários. 45 BATLLORI, Miquel. Ramon Llull i el lul.lisme. Obra completa, Vol. II, Valência: Biblioteca d’estudis i investigacions, 1993, p. 9-10. 46 Ver, por exemplo, HILLGARTH, J. N. Diplomatari Lul.lià, op. cit., p. 11-12. 47 O sermão aconteceu em uma festa dedicada a São Francisco, em um 4 de outubro. 48 Santuário de la Dordoña. 49 Na Disputa de Barcelona de 1263, o rabino Moisés ibn Nahman (Nahmânides) debateu as questões da fé com frei Pau Cristià, um judeu convertido, no palácio real diante do rei Jaime I. Ver DA COSTA, Ricardo; PARDO PASTOR, Jordi. “Ramon Llull (1232-1316) e o diálogo inter-religioso: cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval: O Livro do gentio e dos três sábios e a Vikuah de Nahmânides”, disponível em: www.ricardocosta.com acessado em: 20.01.2006. 50 OS, vol. I, p. 17, n. 57. 51 Mais tarde o escravo tentaria matá-lo. A Vida coetânia descreve esse fato (OS, vol. I, 12-13, p. 21). 52 OS, vol. I, p. 19. 53 O monte Randa possui quase 700 metros de altura.

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Ramon subiu a uma montanha não muito distante de sua casa para contemplar a Deus mais tranqüilamente. Quando ainda não havia estado ali uma semana inteira, aconteceu certo dia, enquanto olhava atentamente o céu, que subitamente o Senhor ilustrou sua mente, dando-lhe a forma e a maneira de fazer o livro contra os erros dos infiéis54.

Assim, Llull recebeu uma ilustração, a “forma” e a “maneira” de sua Arte. A palavra engloba basicamente três elementos que distinguem a filosofia luliana com muita precisão: 1) a recepção de um conjunto de conhecimentos, de sabedorias, 2) a recepção de figuras que elucidam os conteúdos textuais (as famosas figuras lulianas) e 3) uma glorificação pessoal (ilustrar, tornar-se ilustre, glorificado, explicar um conhecimento transmitido). Mais ainda: tratava-se de uma ilustração divina. Parece claro que o filósofo acreditou ter recebido um contato direto de Deus, o que torna o fato um acontecimento místico – a mística se define basicamente pela crença na possibilidade de uma comunicação direta entre o homem e Deus, o êxtase. Os místicos medievais tinham como base filosófica os tratados neoplatônicos, especialmente a obra de Proclo e do Pseudo-Dionísio55. Dessa inspiração proveio o título de doutor iluminado56. Com lágrimas, Llull desceu do monte e retornou ao mosteiro de La Real para aprofundar seus conhecimentos teológicos e redigir a primeira de suas obras artísticas, a Arte abreviada de encontrar a verdade, em 1274. Não é nosso propósito aqui analisar o conteúdo de sua Arte57. Basta dizer que até o final de sua vida, Llull desenvolveu, ampliou e reduziu, ou seja, reescreveu várias vezes sua arte combinatória, sempre com o objetivo de apresentá-la a seus contemporâneos, baseando-a em uma filosofia de conversão, enfocada para a ação e a observação da realidade concreta, e com o objetivo último de provar racionalmente a existência da Santíssima Trindade aos infiéis. E foi nesse primeiro momento criador que Llull redigiu seu Livro da contemplação em Deus, obra definida como a suma mística da Idade Média58, um dos maiores tratados confessionais e transcendentais e, depois das Confissões de Santo Agostinho, uma das maiores obras desbordantes de lirismo na Idade Média59. Enquanto Llull iniciava a redação de seus primeiros textos, uma grande mudança acontecia em sua vida pessoal. Sua esposa, sofrendo com o estado contemplativo de seu marido, em 1275 solicitou em juízo que fosse designado um procurador para cuidar da administração de suas posses:

É certo e manifesto que Blanca, mulher de Ramon Llull, veio diante de nós, Pedro de Caldes, juiz etc., para afirmar e denunciar ao dito juiz que Ramon Llull, seu marido, se tornou tão contemplativo que não se ocupa da administração de seus bens temporais e assim eles se perdem e são destruídos. Por isso, suplicando, pede com essa alegação, para ela e os filhos

54 OS, vol. I, III, 14, p. 23. 55 Ver ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 671-673. 56 “Al reconstruir los episodios de la vida de Ramón Llull (1232-1316), nos encontramos con aquellas condiciones que afectan a la inmensa mayoría de personajes de la Edad Media. En sus vidas suele existir un acontecimiento que señala un antes y un después, que se traducen para la historia en una imprecisa etapa de preparación y en una generalmente segura cronología posterior. El acontecimiento referido será, según la persona de quien se trate, su acceso a la vida política, su graduación académica o su conversión a una vida más religiosa” (GAYÀ ESTELRICH, Jordi. “Biografía de Ramón Llull”, disponível em: www.jordigaya.com acessado em: 20.01.2006). 57 Para a Arte luliana, ver CARRERAS I ARTAU, Tomás. Historia de la filosofía española. Madrid: 1939, vol. I, p. 345-389. 58 BATLLORI, Miquel. Ramon Llull i el lul.lisme. Obra completa, Vol. II, Valência: Biblioteca d’estudis i investigacions, 1993, p. 11. 59 OE, vol. II, 92-93.

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comuns dela e do dito Ramon Llull, que escolham um curador que reja, governe, proteja, defenda e conserve os bens do dito Ramon Llull. E nós, Pedro de Caldes, tendo escutado a dita petição e efetuado uma acurada investigação sobre a vida e os costumes do dito Ramon Llull, e como consta que o citado Ramon Llull optou a tal ponto pela vida contemplativa que quase não se ocupa da administração de seus bens, tendo deliberado sobre o caso, e vendo que Dom Pedro Galcerán, cidadão de Maiorca, parente da dita Blanca, sem qualquer retribuição já se encarrega disso, é a pessoa adequada para a curadoria e administração dos ditos bens, damos e designamos o dito Pedro como curador e administrador de todos os bens móveis e imóveis do dito Ramon Llull, outorgando-lhe plenos poderes para reger, governar, reclamar e defender os ditos bens nos tribunais e fora deles, em juízo e fora de juízo, efetuando tudo o que seja útil e evitando ou deixando de lado o que seja prejudicial para a conservação dos ditos bens. Conseqüentemente, eu, Pedro Galcerán, recebendo de vós a mencionada curadoria dos ditos bens, prometo reger, governar e defender os ditos bens tanto quanto posso, e por isso obrigo etc., juro e dou como avalista Dom Pero Cuc, que obrigou etc. Testemunhos: Bernardo Rosselló, Berenguer de Castelló e Miquel Rotlan60.

A Vida coetânia nada nos informa dessa “dolorosa tragédia familiar”61, e tampouco Llull falou sobre isso em seus escritos. Nosso filósofo nunca se lembrou de sua esposa em seus livros, só dedicou a seu filho Domingo algumas obras! O primeiro rei que se interessou por seus escritos foi Jaime II. Sabedor da fama do maiorquino, o rei o convocou a uma audiência em Montpellier com o objetivo de que um frade franciscano – possivelmente Bertrand Berenguer (que antes foi professor de Sagrada Teologia em Montpellier) – lesse suas obras para assegurar a ortodoxia de sua religiosidade. A Vida coetânia especifica o Livro da contemplação:

Quando Ramon ali chegou, o rei fez certo frade menor examinar seus livros, especialmente umas meditações que ele havia feito em devoção sobre todos os dias do ano, marcando trinta parágrafos especiais para cada dia, meditações que aquele frade, não sem admiração, as encontrou cheias de profecia e devoção católica62. Ramon tinha cerca de quarenta e quatro anos. Foi quando rogou ao príncipe que “...fosse edificado um mosteiro no reino de Maiorca, bem dotado de posses, no qual pudessem viver treze frades para aprender a língua mourisca para converter os infiéis, e aos quais fossem dados cinqüenta e cinco florins de ouro para seu sustento todos os anos”63.

Supõe-se que a petição de Ramon ao rei tenha ocorrido em 1275 e que os franciscanos tenham iniciado seus estudos ali em 1276. A fundação foi confirmada no dia 17 de outubro de 1276 por uma bula do papa João XXI (curiosamente um papa português)64. A Vida coetânia não proporciona nenhuma informação sobre a vida de Llull entre 1275 e 1285. No final desse período, nosso autor entrou no cenário político “internacional”, em um momento que ocorria uma série de mudanças significativas que tiveram uma grande importância na época. Como esse trabalho abordará algumas passagens do Livro da contemplação, interrompo aqui essa breve contextualização histórica e biográfica de Ramon Llull.

60 Ver, por exemplo, HILLGARTH, J. N. Diplomatari Lul.lià, op. cit., p. 37. 61 RUBIÓ I BALAGUER, Jordi. Ramon Llull i el lu.lisme, op. cit., p. 38. 62 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 16, OS, vol. II, p. 25. 63 RAMON LLULL, Vida coetânia, I, 17, OS, vol. II, p. 26. 64 Ver CRUZ PONTES, J. M. “Miramar en sus relaciones con Portugal y el lulismo medieval portugués”, Actas del II Congresso Internacional de Lulismo. Palma de Mallorca: Maioricensis Schola Lullistica, vol. I, 1979, p. 261-277; e também GARCIAS PALOU, S. El Miramar de Ramon Llull. Palma de Mallorca: Instituto de Estudios Baleáricos, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1977.

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2 O LIVRO DE CONTEMPLAÇÃO EM DEUS (1273-1274)

A enciclopédia mística luliana, a Divina comédia catalã65, o Livro da contemplação, é o primeiro grande texto de Ramon Llull66. Ele pode ser comparado às Confissões de Santo Agostinho, tanto por sua graça desalinhada e seu tom patético, quanto pelo fato de ser um livro no qual encontramos a história dos estados de ânimo, dos estados interiores de nosso autor67, o que nos propicia realizar um pouco da história das atitudes mentais, da consciência de um homem medieval diante de seu mundo, de suas expectativas e ilusões de uma reforma cristã (que nunca ocorreu). Pois existe um documento mais propício para investigar as mais íntimas e sinceras idéias de um autor cristão e medieval que uma confissão a Deus? O que quero dizer com isso é que o Livro da contemplação é uma oportunidade única para conhecer e construir certa imagem mental, certamente muito próxima daquilo que pensou o filósofo, o que nos permite ter uma compreensão mais profunda de suas idéias e, no caso, a respeito de Deus. Pois bem, o primeiro objetivo da obra é unir-se a Deus em contemplação, um dos maiores objetivos dos religiosos medievais. A contemplação, a vida dedicada exclusivamente ao conhecimento do divino, para as culturas antigas, era um estado mental sumamente bom (summum bonum), pois olhava a forma do bem: ao buscar Deus com sua mente, o místico deveria refletir sobre as virtudes e, assim, afastar-se dos vícios. Aristóteles, por exemplo, disse que a atividade da vida contemplativa – a vida que olha a verdade – era o que melhor existia em nós, pois era a atividade virtuosa, a única estimada por si mesma, isto é, a própria felicidade68. O cristianismo nada mais fez que incorporar esse modo supremo de vida e integrá-lo em sua concepção, em seu conceito de beatitude69. Dessa forma, com uma concepção integral do homem – como toda a filosofia luliana70 – o Livro de contemplação engloba todas as atividades humanas. Com a obra, Llull quis escrever um texto confessional, uma confissão transcendental, na bela definição de Carreras y Artau71. São linhas emocionadas, com uma grande e terna paixão com a qual nosso autor inicia cada capítulo sempre se dirigindo diretamente a Deus, “Benigno Senhor, gracioso, amoroso...” para falar não só das 65 TORRAS I BAGES, La tradició catalana. Barcelona, 1935, p. 314. 66 Recordemos que este é o segundo escrito luliano. O anterior é um comentário à obra de Al-Gazali (Abu Hamid Muhammad ibn Muhammad al-Gazali, 1058-1111), um teólogo muçulmano. A obra de Llull é o Compendium logicae Algazelis (c. 1271-2, em Montpellier). Para a obra de Al-Gazali, ver Attie FILHO, Miguel. Falsafa. A Filosofia entre os árabes. São Paulo: Editora Palas Atena, e especialmente RAMÓN GUERRERO, Rafael. Filosofías árabe y judia. Madrid: Editorial Síntesis, s/d, p. 168-176. 67 CARRERAS I ARTAU, Tomás e Joaquín. Historia de la filosofía española. Madrid: 1939, vol. I, p. 553. 68 ARISTÓTELES, Ética a Nicômano. X, 7, 1177ª até 1177b, 31. Essa opinião foi compartilhada pela cultura muçulmana. Ver, por exemplo, al-Farabi, El camino de la felicidad (Kitab al-tanbih ‘ala sabil al-as ‘ada), Madrid: Editorial Trotta, 2002. 69 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 74-75; ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 198-199. Curiosamente, uma das características do Humanismo e do Renascimento é a suposta “ruptura” dessa tradição e o reconhecimento do valor da vida prática ou ativa, do trabalho e da atividade mundana – e nesse ponto a Reforma também coincidiu com o Renascimento. 70 Ver especialmente DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “El discurso luliano De homine en el contexto antropológico coetáneo”, CORCÓ, J.; FIDORA, A.; OLIVES PUIG, J.; PARDO PASTOR, J. (Coord.), Què és l’Home? Reflexions antropològiques a la Corona d’Aragó durant l’ Edat Mitjana Barcelona: Prohom Edicions, 2004, p. 101-127. 71 CARRERAS I ARTAU, “L’obra I el pensament de R. Llull”, OE, vol. I, 1959, p. 55.

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potências da alma e das coisas divinas mas também do mundo, dos homens e das angústias que pôde perceber em seu tempo. Como todo texto medieval, o Livro da contemplação tem uma divisão analógica, forma primeira do pensamento na Idade Média72. São cinco livros, como as cinco chagas de Cristo na cruz73. Por sua vez, cada livro está dividido em quarenta distinções, exatamente como os quarenta dias de Cristo no deserto (Mt 4,1-11). As quarenta distinções estão divididas em trezentos e sessenta e cinco capítulos, todos os dias do ano, e mais um capítulo complementar, pois as seis horas restantes de cada ano, ao chegar ao quarto ano, formam um dia74. De cada capítulo constam dez parágrafos, em memória aos dez mandamentos dados a Moisés, e cada parágrafo se divide em três partes, em reverência à Unidade divina. Assim, cada capítulo tem trinta partes, em memória aos trinta dinheiros pelos quais Jesus foi vendido. O Primeiro Livro está dividido em nove distinções, de acordo com os nove céus criados por Deus, o Segundo Livro possui treze distinções, concordando com os doze apóstolos e Cristo, o Terceiro Livro dez distinções (conforme os dez sentidos – cinco corporais e cinco espirituais), o Quarto Livro tem seis distinções (como os “seis caminhos”, alto, baixo, direito e esquerdo, frente e atrás), e o Quinto Livro está dividido em duas distinções, para se referir às duas intenções dadas ao homem por Deus. E conclui: “Senhor Deus! Assim como Vós sois um Deus, nós colocamos estes cinco livros sob um nome, o qual é o Livro da contemplação em Deus”75. Desse modo, o livro é também um reflexo da realidade criada por Deus, uma participação com a essência do Criador, uma imagem do Modelo Superior76, mas, sobretudo, uma contemplação, uma contemplação de leitura, como indica o próprio autor77. 2.1 A infinidade de Deus

A infinidade é a extensão que não tem fim, como Deus, E é eterna, pois não tem princípio. (Tabuleiro da Arte, c. 1290)78

Ramon inicia o tema da infinidade divina demonstrando sua capacidade filosófica de observar os fenômenos da natureza e relacioná-los com idéias metafísicas:

Oh, Deus, grande e maravilhoso Senhor! Bem sabeis Vós que se algo pudesse correr como um relâmpago, se mover do meio do mundo até o extremo do firmamento e subir correndo infinitamente por todos os seis caminhos, ainda assim não encontraria Vosso fim79.

72 A respeito da importância da analogia no pensamento medieval, ver especialmente FRANCO JR., Hilário, “Modelo e imagem: o pensamento analógico medieval”, LEÃO, Ângela Vaz; BITTENCOURT, Vanda O. (Org.). Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais – IV EIEM. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003, p. 39-58. 73 Não há nenhuma passagem na Bíblia sobre os números das chagas de Cristo. Por exemplo, em João (20,27-29): “Disse depois a Tomé: ‘Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!’ Respondeu-lhe Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ Jesus lhe disse: ‘Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!’ 74 CARRERAS I ARTAU, Tomás y Joaquín. Historia de la filosofía española. Madrid, 1939, vol. I, p. 549. 75 No Prólogo da obra (OE, vol. II, p. 107), Llull explica essa analogia numérica dos mistérios da fé cristã. 76 FRANCO JR., Hilário. “Modelo e imagem: o pensamento analógico medieval”, op. cit., p. 54. 77 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. CCCLXVI, III, 19, p. 1255. 78 “Infinitat es steniment que no ha terme, axí com Deu, e eternitat, qui no ha comensament” (apud: BONNER, A.; RIPOLL PERELLÓ, M. I. Diccionari de definicions lul.lianes, op. cit., p. 199).

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A observação dos fenômenos naturais não era novidade em seu tempo. Os vitorinos no século XII já haviam descoberto a natureza como fonte inesgotável de observação e, no século XIII, a tradição franciscana considerava o mundo sensível um livro, um caminho para se chegar a Deus (mas só aos espíritos mais elevadamente contemplativos)80. Ao iniciar o tema da infinidade com uma observação dimensional e física, Llull segue a tradição franciscana – ele mesmo fora influenciado em sua decisão de mudar de vida após ouvir um sermão sobre a vida de São Francisco, como vimos. Além disso, ele também parece inverter a tradição aristotélica, mesclando-a com o significado metafísico do conceito de infinito desenvolvido a partir de Plotino. Aristóteles desenvolveu o conceito de infinidade potencial, isto é, como uma disposição de grandeza – aquilo que não pode ser percorrido (Física, III, 4, 204-203). Ademais, sabemos que Llull teve acesso ao texto da Física de Aristóteles, pois em outra obra sua dedicada a seu filho, a Doutrina para crianças, ele sugere a leitura dessa obra, além de várias outras do Estagirita81. O texto prossegue criando uma série de analogias entre a pequenez do ser e a imensidão de Deus: o pensamento do filósofo se apequena a ponto de se tornar quase nada, pois é pobre para imaginar a infinidade divina:

Mas não é nenhuma maravilha, Senhor, se meu entendimento se apequena e se torna quase nada quando cogita em uma coisa infinita, pois se meu entendimento não pode atingir a pequenez do átomo, que é tão pouca que não se pode diminuir, como poderá atingir a grandeza de Vossa essência, maiormente como a parte do átomo seja coisa finita e Vossa essência seja sem fim?82

Essa incapacidade da potência imaginativa só pode ser resolvida através de um caminho: o do amor. Pois se Deus quiser, pode colocar um amor tão grande no coração do contemplativo que ele O amará a tal ponto que conseguirá imaginar Sua infinidade e Seu amor. Mas Ramon se considera mesquinho e perverso, pois amou as coisas de pouca virtude e proveito e se esqueceu de Deus. Por isso se pergunta: como Deus pôde permitir que ele Lhe permanecesse desobediente e obediente por coisas tão pequenas, mesquinhas e finitas?83 Assim, o filósofo se autopenitencia: se ele voltar a se esquecer de Deus, pede para ser esquecido, desamado e menosprezado, pois é uma grande afronta uma criatura estar na terra e desconhecer Seu criador84. Após muitos louvores e bênçãos, Ramon encerra suas considerações a respeito da infinidade divina com uma interessante observação: os olhos humanos falham em

79 “Oh Déus, sènyer gran e meravellós! Bé sabets vós que si tant s’era que una cosa pogués córrer com a lamp e que.s mogués del mig del món e anàs tro a l’extrem del firmament, e puixes que anàs per totes les sis dreceres, que infinidament poria córrer, que encara no trobaria a vós fi” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. IV, 1, p. 112-113). 80 GREGORY, Tullio. “Natureza”, in: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. São Paulo/Bauru: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 263-277. 81 RAMON LLULL Doctrina pueril. (a cura de SCHIB, Gret), Barcelona: Editorial Barcino, 1957, cap. LXXVII, 15, p. 179. 82 “E si mon enteniment s’apoqueix, Sènyer, e torna quaix a no-re com cogit en cosa infinita, no és nulla meravella; car si lo meu enteniment no pot atènyer la poquea de l’àtomus, qui és tan poca que no.s pot minvar, ¿com porà atènyer a la granea de la vostra esencia, e majorment com la part de l’àtomus sia cosa fenida e la vostra essència sia sens fi?” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. IV, 5, p. 113). 83 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. IV, 13, p. 113. 84 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. IV, 14-15, p. 113.

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compreender as criaturas criadas por Deus porque “tudo o que existe em nós é finito, e tudo o que existe em Vós é infinito”85:

E assim Vós, Senhor, que perdoais àqueles que Vos pedem misericórdia e que sois esperança daqueles que Vos pedem, Vos agrada que eu, com toda a força que me haveis dado, Vos sirva, orando, temendo e amando. E não esqueça, Senhor, o Vosso servidor, que confia em seu Deus86.

2.2 A eternidade de Deus: o que não tem princípio

Eternidade ou duração é a propriedade em razão da qual a bondade, a grandeza, o poder e os outros princípios da substância duram (Tabuleiro geral, 1293-1294)87.

Ramon divide sua digressão meditativa sobre a eternidade de Deus em duas partes: o princípio e o fim. Sua primeira constatação é que a contemplação da eternidade divina deixa o homem confuso. Ademais, algo sem princípio só pode ser contemplado com os conceitos de nobreza e bondade. Contudo, o entendimento humano tem um princípio, a eternidade não, e as coisas temporais ainda se opõem e prejudicam esse entendimento. Resta portanto suplicar a Deus que ajude o filósofo a sair de sua pobreza e vileza88. E novamente o amor é condição sine qua non para o esforço de compreensão do contemplativo: “Tal amor, Senhor, é necessário ao Vosso servo, para que ele seja tão diligente em Vos servir e Vos amar; e não deve caber nele outro amor a não ser o Vosso”89. Ramon tem a esperança de que Deus escute suas preces:

Senhor Deus! Muitas vezes acontece de homens vis, pobres e injuriados ficarem diante de reis, e os reis, por sua grande humildade, se humilharem tanto a ponto de escutarem suas palavras e atenderem suas preces, dando a eles satisfação de suas injúrias. Assim, Senhor, se Vós, que sois Rei dos reis e Senhor dos senhores, Vos humilhásseis diante de vosso servo, apesar dele ser pobre e mesquinho, daria um prazer se o escutasse e o atendesse nesse momento em que ele Vos adora e contempla90.

A contemplação é um caminho solitário: o contemplativo sequer tem certeza de que será ouvido. Mas o ato se autojustifica, pois é nobre em si. E por contemplar a Deus, Ramon não teme sequer seus inimigos, pelo contrário, os repreende por suas faltas. E assim, os parágrafos seguintes dão ensejo ao filósofo de lamentar sua pequenez e a impossibilidade de atingir algo que não tem princípio91. 2.3. A eternidade de Deus: o que não tem fim 85 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. IV, 29, p. 114. 86 “E doncs vós, Sènyer, qui perdonats a aquells qui misericòrdia vos demanen, e que sóts esperança d’aquells qui vos preguen, plàcia-us que jo ab tota la força que m’havets donada vos servesca, orant e tement e amant. E no hajats, Sènyer, en oblit lo vostre servidor qui.s confia en son Déu” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. IV, 30, p. 114). 87 “Eternitat o duració es proprietat per raó de la qual duren bonea, granea, poder e.ls altres comensaments de la substancia” (apud: BONNER, A.; RIPOLL PERELLÓ, M. I. Diccionari de definicions lul.lianes, op. cit., p. 149). 88 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VI, 1-8, p. 115-116. 89 “Car vital amor, Sènyer, és mester al vostre serf, per tal que sia tan diligent en servir e en amar vós, que altra amor no pusca caber en ell sinó la vostra” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VI, 12, p. 116). 90 “Sènyer Déus! Moltes de vegades s’esdevé que los hòmens vils e pobres injuriats entren davant los reis, e los reis, per lur gran humiltat, humilien-se tant a ells, que escolten lurs paraules e exoeixen lurs precs, e fan a aquells fer satisfacció de lurs injúries. E doncs, Sènyer, vós qui sóts Rei dels reis e Senyor dels senyores, humiliàssets vós al vostre serf, si bé s’és hom pobre e mesquí, e plagués-vos que escoltàssets ell, e que.l exoíssets, adoncs com ahora e contempla en vós” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VI, 17, p. 116). 91 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VI, 19-26, p. 117.

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O fato de a essência de Deus não ter fim significa aos homens a dignidade daquilo que é perdurável – trata-se do primeiro lampejo daquilo que será posteriormente chamado de dignidade divina. E a cogitação da eternidade divina faz com que a maravilha se expanda no entendimento humano, pois as coisas pequenas e mesquinhas se maravilham com as coisas elevadas e nobres92. Isso proporciona ao filósofo tratar da bem-aventurança daqueles que durarão infinitamente na glória, e do mal dos mesquinhos, “...que sofrendo as penas infernais durarão sem fim”93. Além disso, Llull critica quase que verbalmente os averroístas (que então defendiam a eternidade do mundo), pois em uma passagem afirma que tudo tem princípio, exceto Deus, “...e nada dura eternamente”94. Em várias passagens do Livro da contemplação Ramon critica as posições averroístas95, o que coloca seu texto em uma notável sintonia com os debates intelectuais de seu tempo (por exemplo, em 1270 o bispo de Paris Estevão Tempier condenou uma série de proposições defendidas pelos averroístas da Universidade de Paris)96. A contemplação de Llull foi posta em seu coração por Deus, pensa nosso autor. Ele então pede que ela não lhe seja tirada para que a tentação que tinha não retorne:

Oh, Senhor, tão poderoso e tão nobre que não concede graça, a não ser àqueles que Vós desejais! E como Vós sois poderoso, em todos os tempos, peço-Vos, Senhor, que não leveis a contemplação que haveis colocado em meu coração, porque se o fizésseis, eu contemplaria as coisas vis e finitas em minha alma, e escolheria dentre aquelas97.

Llull ainda estabelece uma analogia entre a possibilidade de saber o fim do que tem princípio e a impossibilidade de saber o fim do que não tem princípio:

Senhor Deus, que atende os pecadores em suas dificuldades! Como há pouco tempo entre o princípio e o fim da coisa que tem princípio e fim, não é impossível saber o fim da coisa que tem princípio. Mas se houvessem tantos corpos quanto existem grãos de areia, gotas d’água e átomos no ar, não poderíamos entender o fim da coisa que não tem princípio. E isso ocorre, Senhor, porque

92 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VII, 7-8, p. 118. 93 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VII, 12, p. 118. 94 RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VII, 14, p. 118. Averróis (1126-1198) foi o principal intérprete de Aristóteles na filosofia muçulmana, e seu pensamento influenciou a filosofia judaica e a cristã. Na segunda metade do século XIII se formou no mundo latino uma orientação filosófica chamada averroísmo latino, que defendeu, entre outras teses, a teoria da dupla verdade (uma correspondente ao dogma e à fé, e a outra ao exercício da razão), a eternidade do mundo, a unidade do entendimento na espécie humana – ou monopsiquismo – e a negação da imortalidade pessoal e do livre-arbítrio, sofrendo por isso a condenação por parte da Igreja. Assim, os averroístas diziam que não se poderia afirmar (entre outras coisas) que o mundo foi criado no tempo, que Deus é Providência, que a alma é imortal, que a produção dos seres provêm de um ato de liberdade e que existe revelação de verdades por parte de Deus. Eles defendiam a eternidade do mundo, o intelecto único comum a todos os homens, o determinismo universal e a negação da liberdade e da Providência. Ver especialmente RAMÓN GUERRERO, Rafael. Filosofías árabe y judía. Madrid: Editorial Síntesis, s/d, p. 215-246, e REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia I. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p. 536-541. Duas das principais obras de Ramon Llull contra o averroísmo (Do nascimento do menino Jesus e o Livro da Lamentação da Filosofia) estão publicadas em RAIMUNDO LÚLIO, Escritos Antiaverroístas. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. Todas as obras lulianas desse período estão publicadas em ROL V-VIII (e a melhor discussão sobre o tema encontra-se no Prefácio da ROL VI). 95 Como por exemplo, VI, 8-9; XXX, 5; CLXXIX; CCXXXI, 22; CCCL, 11. 96 SCHMITT, Jean-Claude. “Deus”, in: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Coord.), Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. São Paulo/Bauru: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 301-317. 97 “Oh Senyor tan poderós e tan noble que no fèts gràcia sinó a aquells qui.us volets! Pus que vós sóts poderós, en tots temps, prec-vos, Sènyer, que la contemplació que havets posada en mon cor, que no la’m levets, car si ho faíets, contemplaria ma ànima en les coses vils e fenides, e enllegir-s’hia en aquelles” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VII, 16, p. 118).

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todos eles seriam comprimidos em cômputo entre o princípio e o fim. Mas isso não é assim com Vós, porque não sois comprimido nem por cômputo, nem por princípio, nem por fim98.

CONCLUSÃO Por intermédio da ascensão contemplativa99, Ramon Llull tratou pela primeira vez no Livro da contemplação em Deus das dignidades divinas, em um notável esforço de compreender sua fé. Articulando os conhecimentos adquiridos em seu período de nove anos de reclusão e estudos, Ramon parece ter se valido da tradição aristotélica e neoplatônica para abordar a infinidade e a eternidade de Deus. O filósofo pensou esses atributos, virtudes, como essenciais em Deus, e que deveriam ser considerados em sua atividade ad intra (atividade que posteriormente seria identificada por ele como a atividade da própria Santíssima Trindade, a atividade pura – o Pai produzindo o Filho e espirando o Espírito Santo, a primeira intenção de Deus). Essas dignidades divinas lulianas eram princípios indemonstráveis100. O tom confessional e patético do texto ressalta todo o imenso esforço do autor em criar uma obra contemplativa. Além disso, o amor que permeia todos os parágrafos une o filósofo maiorquino à tradição franciscana: sem amor, o amor a Deus, “aquilo com o qual o amigo ama seu amado”, o homem não pode contemplar nem Deus, nem Sua criação. Portanto, com amor, a meditação contemplativa considerava as dignidades divinas para fugir dos vícios e se aproximar das virtudes. Além de seu objetivo reformador e de pregação, o Livro da contemplação tem esse cariz: a confissão dos pecados de seu autor. Percorridos esses caminhos da experiência religiosa e mística de Ramon Llull, concluo indicando ao leitor moderno a passagem do texto que explica como devemos dar graças a Deus pelo Livro da contemplação, uma intenção bem de acordo com a atitude metodológica de leitura101 de Ramon – e assim também destaco o imenso estranhamento que causa a nós, pós-modernos, a atitude dos medievais perante o livro, a leitura, a escrita e a meditação:

Ah, Deus, que é grande acima de todas as grandezas! Ah, Deus, que é forte acima de todas as forças! Como esse livro é dividido em tantas razões e em tantas estranhas, novas e

98 “Sènyer Déus, qui exoïts los pecadors en lurs cuites! Per ço car poc temps ha enfre lo començament e la fi de la cosa qui ha començament e fi, no és impossívol cosa a saber la fi de la cosa qui ha començament. Mas si eren tants cors com són grans d’arena ni gotes d’aigua ni àtomus en l’àer, no porien encara entendre fi en la cosa qui no ha començament. E açò, Sènyer, és car tots ells serien compreses enfre començament e fi, en compte; mas no és així de vós, car no sóts comprès per compte, ni per començament, ni fi” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. VII, 23-24, p. 118). 99 Termo utilizado por Lola BADIA e Anthony Bonner em sua obra Ramón Llull: vida, pensamento y obra literária. Barcelona: Quaderns Crema, 1992, p. 81. 100 A respeito da Arte Breve (1308), Alexander Fidora diz: “Tanto la palabra dignitas como el nombre de principia remiten a la tradición aristotélica de los Analítica posteriora, donde se establece que cada ciencia parte de principios per se nota que no pueden ser comprobados, al menos no por la misma ciencia” (FIDORA, Alexander. “El Ars brevis de Ramon Llull: hombre de ciencia y ciencia del hombre”, in: FIDORA, Alexander; HIGUERA, José G. (Eds.), Ramon Llull, caballero de la fé. El arte luliana y su proyección en la Edad Media. Pamplona: Universidad de Navarra, 2001, p. 61-80). 101 “O que hoje chamaríamos de atitude metodológica de leitura era uma abertura de corpo e alma para o estudo, para com o texto, seguindo sempre uma trilogia de receptividade: 1) uma pureza no coração para compreender, 2) uma pureza de intenção para aproveitar o que leu, e 3) uma disposição sincera e firme para obedecer aos preceitos lidos, pois ‘a verdadeira lectio divina não é assunto de inteligência, mas de retidão de coração’” (DA COSTA, Ricardo, “O deambulatório dos anjos: o claustro do mosteiro de Sant Cugat del Vallès (Barcelona) e a vida cotidiana monástica expressa em seus capitéis (séculos XII-XIII)”, conferência proferida no III Congresso de História da Região dos Lagos, evento ocorrido na Universidade Veiga de Almeida).

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necessárias provações, como esse livro é tão necessário ao mundo para ocasionar a confirmação da verdadeira fé, a demonstração das verdadeiras razões e a multiplicação da devoção a Vós, para Vos amar, louvar, honrar, servir e obedecer, e como o Vosso servidor, com a Vossa ajuda e a Vossa graça, acabou e completou esse livro, por isso, Senhor, dou graças e mercês a Vós por esse livro. Assim, com o coração humilde e devoto ele beija a terra e eleva suas mãos e seus olhos ao céu e diz: “Que a glória, o louvor, a reverência e a honra sejam dadas e feitas a Vós por todos os tempos, Senhor Deus, que haveis feito tanta graça ao vosso submetido, pois ele chegou ao fim dessa obra e à arte da contemplação”.

Essa obra e arte, Senhor, tem sido ao Vosso submetido uma obra de imenso trabalho e perigo sensual e intelectual, pois assim como o grande feixe fere e destrói o dorso da besta, da mesma forma, pela imensidão e sutileza das novas e muitas razões, Vosso submetido tem tido muitos sofrimentos, trabalhos e perigos, e tem sofrido muitas afrontas e escárnios das gentes. Assim, como Vós, Senhor, durante tanto tempo e tão longamente me sustentastes e me ajudastes, e como eu sou um homem mesquinho e pecador, de pobre poder e saber, e estou confiando e esperando por Vós, eu, Senhor, com todas as minhas forças sensuais e intelectuais dou graças e mercês a Vós, dando a Vós todo o louvor e todo o honramento de minhas forças sensuais e intelectuais, na presença de Vosso santo e glorioso altar102.

102 “Ah Déus, gran sobre tota granea! Ah Déus, fort sobre tota força! Com aquest libre sia departit en tantes raons e en tan estranyes e en tan novelles provacions e en tan necessàries, e com aquest libre sia al món tan necessari per ço car és ocasió a confermació de vera fe e a demostració de veres raons e a multiplicar devoció en vós a amar e a loar e a honrar e a servir e a obeir, e com lo vostre servidor per vostra ajuda e ab vostra gràcia haja acabat e complit aquest libre, per açò, Sènyer, fa a vós gràcies e mercès d’aquest libre. On, per açò besa la terra e leva ses mans e sos ulls al cela b cor humil e devot, e diu: “Glòria e laor e reverència e honor per tots temps sia donada e feta a vós, sènyer Déus, qui havets feta tant de gràcia al vostre sotsmès que ell és vengut a acabament e a fi d’esta obra e art de contemplació. A qual obra e art, Sènyer, és estada al vostre sotsmès obra de molt gran treball e perill sensual e entellectual; car enaixí com lo gran feix casca e destruu a la bèstia son dors, enaixí per la longuea e la subtilitat e les novelles raons e moltes, lo vostre sotsmès ha haüdes moltes de penes e de treballs e de perills, e ha sofertes moltes d’hontes e d’escarns de les gents. On, com açò sia enaixí, e com vós, Sènyer, tant de temps e tan longament m’hajats sostengut e ajudat, e com jo, qui som home mesquí pecador, de pobre poder e saber, me sia en tot confiat e esperat en vós, doncs jo, Sènyer, de totes les mies forces sensuals e entellectuals faç a vós gràcies e mercès donant a vós tota laor e tot honrament de mes forces sensuals e entellectuals, en presència del vostre sant altar gloriós” (RAMON LLULL, Livro da contemplação, cap. CCCLXVI, IV, 22-23, p. 1256).

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MÍSTICA E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA: UM PONTO DE VISTA FILOSÓFICO

Sergio L. de C. Fernandes*

Permitam-me dar início a essas considerações reproduzindo a citação de Carrol, com que R. C. Zaehner, então catedrático (Spalding Professor) de “Religiões orientais e ética”, em Oxford, e convertido ao Catolicismo Romano desde 1946, começa seu magnífico The Comparison of Religions, de 1958 (11):

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty-Dumpty, em tom bastante desdenhoso, “ela significa só o que eu escolho que ela signifique – nem mais nem menos.”/“A questão é”, disse Alice, “se você pode fazer palavras significarem tantas coisas diferentes.”/“A questão é”, disse Humpty-Dumpty, “quem é que vai ser o mestre – só isso”.

Até o final do que tenho a dizer deverá ficar claro que vou fazer como Humpty-Dumpty: vou desconotar e reconotar, em sentidos pouco usuais, diversas palavras freqüentemente utilizadas quando se trata do nosso tema. Sobretudo quando filosofamos, devemos “dobrar a língua”, pondo-a a nosso serviço, refutando performativamente muitos pós-modernos, que concebem temas, dos mais transcendentes, como meras produções discursivas. Após algumas considerações de natureza crítica, tomando como exemplo o que dizem especialistas, em uma das melhores enciclopédias filosóficas da atualidade, a Routledge Encyclopedia of Philosophy, vou tentar resumir minha concepção sobre as relações entre a mística e a experiência religiosa. Tanto uma quanto outra são de uma grande variedade, desafiando-nos não só a um trabalho de categorização ou tipologia, mas também a captar-lhes a essência. Acrescenta-se a isso o fato de que a literatura sobre o assunto é imensa. Quanto às tipologias, aviso-lhes que não terei tempo, aqui, de explorá-las. Contento-me, por exemplo, com a versão simplificada de Zaehner, que classifica a mística em teísta e não-teísta, mas confesso-me mais preocupado com a questão de captar o que haveria de essencial em ambas. Estas considerações não pretendem ter, como já se pode ver, com a agenda oficial e disciplinar da filosofia da religião, compromisso algum que as constranja. Embora tenha havido reflexão “filosófica” sobre temas relacionados à religião, desde o nascimento da “filosofia” como idéia ocidental, e desde a (anterior?) reflexão vedantina dos Upanichades, as filosofias “aplicadas”, ou seja, as “filosofias da ...”, estabeleceram-se no século XIX, por influência de Hegel. Infelizmente, em filosofia da religião, tanto entre “metafísicos especulativos” quanto entre “analíticos”, a principal preocupação tem sido o esclarecimento e a avaliação crítica, argumentativa, de sabor epistemológico, de crenças e conceitos (de uma ou outra tradição religiosa), e não a de construir teorias ao mesmo tempo profundas (ontológicas) e abrangentes sobre a experiência e suas dimensões. É por isso que uma autoridade como Alston pode abrir seu artigo intitulado “Religious Experience”, na enciclopédia à qual me referi, com a seguinte afirmação

* Professor associado do Depto. de Fil. da PUC-Rio, a partir de 1982, e professor titular de fil. geral da UERJ (aposentado) < [email protected] >.

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decepcionante: “A filosofia está interessada na experiência religiosa como uma possível fonte de conhecimento sobre a existência, a natureza e as ações de Deus” (8, 250), e dedicar dois terços do artigo a “experiências místicas como base para crenças sobre Deus” (item 2) e “objeções à tomada de experiências de Deus como verídicas” (item 3). Se eu não me sentisse tão contrariado ao ler essas coisas, não me daria ao trabalho de dedicar atenção à crítica e partiria logo para o que tenho a dizer no sentido construtivo. Pois, no meu entender, a experiência “religiosa”, em última análise, toda autêntica experiência autenticamente humana – o ser humano, para mim, é homo religiosus –, não pode produzir “conhecimento” ou “crenças”. Ao contrário, conhecimento e crenças prévias, pressupostas, são a condição de possibilidade de qualquer experiência. Mas, se insistirem em “conteúdos cognitivos” da experiência religiosa, pode-se fazer melhor e dizer que ela frutifica em sabedoria. Conhecimento tem necessariamente um ponto cego: não se pode ver os olhos que vêem, pensar no pensador do pensamento, conhecer o conhecedor do conhecimento, compreender o compreendedor da compreensão etc. (Upanishades, Brhadaranyaka, Kena etc.). Quanto a Deus, no meu entender, não se deve dizer dele – muito menos “argumentar” – que “existe”, pois Ele não pertence à ordem da existência, ou do não-ser (“existe”, na minha terminologia, o que é “projetado como real” pela mente social como re-identificável outra vez), mas pode-se dizer que Ele “é”, que pertence à ordem do Ser, no pleno sentido ontológico de Ser enquanto Ser; tampouco pode-se dizer que Ele “age”, no sentido vulgarmente antropomórfico do “agente”, que, na verdade, não passa de um “reagente”, já que somos, enquanto experiência, como as duas faces da moeda, de um lado a eternidade, o Ser, de outro o tempo e a existência. Vocês não me verão ocupado com a “epistemologia de crenças religiosas”, pois a fé é um mistério (na minha teoria a categoria usada para investigar a dimensão mística da experiência religiosa), não um fenômeno psicológico, como uma crença, que, por mais arraigada que seja, é abalável por qualquer coisa, por exemplo, por um simples mal-estar. O outro artigo de Alston, na enciclopédia, sobre a história da filosofia da religião restringe-se, infelizmente para um artigo enciclopédico, à filosofia ocidental e à tradição judaico-cristã (o que ele chama de “teologia filosófica”). Embora, como já disse, trate-se de um artigo sobre “ argumentos, conceitos e crenças” (sic), e não sobre o datum absoluto da experiência, distingue seu tratamento do assunto como “filosófico”, por oposição a “científico”, pelo fato de preocupar-se com a sua “compreensão” (para Alston, “esclarecimento, explicação” sic), e não com sua descrição ou com as leis que o governam. Distingue sua “teologia filosófica” da teologia dogmática, por não conduzir o assunto “a partir do ponto de vista de quaisquer compromissos religiosos”, mas apelando somente para o que estiver à disposição de “qualquer pessoa racional” (sic) “que reflita cuidadosamente sobre o assunto”. Ora, “compreensão”, no meu entender, é o oposto de “explicação”, pois a última é hipotética, ao contrário da primeira. E a noção de “racionalidade”, hoje em dia, é tal (hipotética e utilitarista) que não capacita ninguém para uma “reflexão cuidadosa” sobre a experiência religiosa. Em seguida, Alston distingue um punhado de temas que aparecem mais freqüentemente em tratados e livros-texto correntes sobre o assunto, mas concentra seu artigo nos “argumentos” (sic) a favor ou contra a “existência” (sic) de Deus, nos problemas relativos aos Seus atributos, no problema do mal... e sobretudo na “epistemologia da crença” religiosa (sic), deixando de lado, de sua própria lista, as questões religiosas relativas à “natureza humana” (no seu entender, possibilidade de

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vida após a morte e livre-arbítrio [sic]), a relação da religião com a ética (com a qual, aliás, a experiência religiosa nada tem a ver), conceitos como os de fé, salvação, criação e espiritualidade, e questões sobre a “ação divina no mundo” (milagres). Ora, a restrição à filosofia ocidental e à tradição judaico-cristã, numa enciclopédia que inclui abundantes e profundos artigos sobre filosofia oriental, é o primeiro sintoma de inépcia, pois, embora haja uma “filosofia” que, realmente, corresponde a uma “idéia ocidental”, também há miríades de formas orientais de competentíssima “amizade à sabedoria” (filosofia é compreensão da experiência, e a distinção não está em que aqui se faria filosofia, e lá, religião, mas, sim, em que aqui se privilegia a noção dual de “experiência”, e lá, a noção não-dual); a confusão entre “compreensão” e “explicação” é simplesmente imperdoável; a ingênua candura com que é tratada a noção de “pessoa racional”, a meu ver, é, hoje em dia, um escândalo, para não falar da insistência em “argumentos”, em “epistemologia da crença”, da obtusidade de visão em não ver o próprio mundo como um milagre, mas este como exceção, e da restrição da relação entre religião e natureza humana aos temas da “sobrevivência” (sic) e “livre-arbítrio” (sic), que, afinal, nada tem a ver com genuína liberdade. Não. Autores como Swinburne (A existência de Deus), Plantinga (Deus e outras mentes, A natureza da necessidade etc.), Alston, e os adeptos da tal “epistemologia reformada” representam uma “filosofia da religião” com a qual a minha tem muito pouco, ou nada, a ver. Do artigo de Alston sobre Experiência religiosa, que esquece completamente as distinções que fizera quarenta anos antes (na Enciclopédia de filosofia da Macmillan) entre a mística, o profético e o sagrado, salvam-se, com restrições, a primeira das quais, sendo a de que tal experiência teria que ter “Deus” como “objeto” (sic), as características dessa vivência, que muitos chamariam de “mística”, e que o autor, inspirado em William James, identifica como “experiencial”, por oposição a mero pensamento abstrato; “direta”, por oposição a mediatizada; “desprovida de conteúdo sensorial” (o que seria inexato, na minha concepção da dimensão do sagrado) e “focal”, no sentido de excludente de qualquer outra coisa (discutível). Melhor dizendo, então, salva-se sem restrições uma frase, do artigo “Religious Experience”:

Para jogar a rede tão abrangentemente quanto possível, e para evitar restringir a discussão a uma espécie de religião, como as religiões “teístas”, que pensam em Deus em termos pessoais, entendamos “Deus” aqui como abrangendo qualquer realidade suprema, seja de que modo for construída (8, 250).

Em vista dessas minhas predisposições, como suportar sequer o “competente” conteúdo dos dois artigos de Payne, na mesma enciclopédia, um sobre a história, outro sobre a natureza da mística, mistura que são de tanta bobagem com tanta platitude? Em primeiro lugar, ao contrário do que concebe Payne, a mística não é uma “experiência”, mas uma das três dimensões da experiência religiosa, dimensão que é essencialmente um mistério (categoria). Em segundo lugar, a “união”, tratada por tantos como “categoria” é justamente o contrário de “conceito”, ou seja, as “uniões” são as infinitas instâncias, únicas, irrepetíveis, daquilo que “cai sob”, ou é “subsumido pela” categoria. Em terceiro lugar, embora os mestres deste mundo possam saber por intuição direta se um discípulo está ou não está “unido” à sua verdadeira natureza, ainda que esta seja concebida como “outro” (Deus, no caso do teísmo), os autênticos sábios não se “reconhecem” cognitivamente como tal, tampouco têm interesse em “reconhecer” outros sábios. E mais: estes últimos são, intrinsecamente, todas as criaturas, “saibam” ou não disso, de modo que não se captará a essência da mística concebendo como “excepcional” aquilo que é, em última análise, a regra. Resumindo. Tal como o entendo, nosso tema, que pertence à filosofia da religião,

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não deve ser tratado, prioritariamente, pela Epistemologia, pois não se trata de “conhecimento”, que sempre pressupõe um ponto cego, mas, digamos, de “compreensão”, ou então “sabedoria”. Nem deve, acrescento, ser abordado somente pela hermenêutica, pois se trata de algo que transcende absolutamente o sentido, em direção àquilo para o que ele aponta, e que é absolutamente extralingüístico. Nem deve ser tomado pela fenomenologia, pois conteúdos noemato-noéticos pertencem à ordem das aparências, da mente, do pensamento, da linguagem e da consciência dita “intencional”, que ficam muito aquém da experiência que pretendemos investigar. Que não predominem “argumentos” (argumentos não provam nem premissas, nem conclusões, somente as relacionam hipoteticamente), “evidências intersubjetivas” (estamos no plano do sobrenatural, não no plano dos acordos epistêmicos), “crenças” (fé não é crença), intermináveis buscas de sentidos ocultos, ou descrição de “fenômenos” (o correspondente “fenomênico” de uma experiência religiosa não nos daria dela a mais pálida idéia). Por exemplo: estamos longe dos saberes em que argumentar ad hominem seria falacioso, e perto dos saberes em que, muito ao contrário, o testemunho é decisivo. O que quero dizer é que não se pode desses assuntos tomar o distanciamento que normalmente tomamos daquilo que se toma como objeto. Na direção performativa: investigar a mística é algo ... místico, assim como a genuína apreciação artística pressupõe dotes artísticos naquele que se põe diante de um objeto de arte, ainda que jamais tenha perpetrado algum. Já na direção de um paradoxo performativo: usamos a mente, o pensamento e a linguagem, sem que sejamos usados por eles e com plena ciência da sua natureza e seus limites. Nosso tema deve ser, isto sim, objeto de uma ontologia. Na verdade, de um dos ramos privilegiados da ontologia, que é a antropologia filosófica, ou teoria do ser do ser humano. E repito, de passagem: a antropologia filosófica que estará pressuposta pelas considerações que se seguem, e que não poderá ser defendida aqui, é aquela exposta em Ser humano, que o toma como homo religiosus, independentemente da consciência que ele possa ter desse fato. Na construção de teoria em filosofia da religião, a mística não deve ser concebida, em si, como uma experiência religiosa plena, mas como uma de suas três dimensões, junto com a dimensão profética, na qual se expressaria seu “precipitado gnóstico” (alguém ainda prefere “conteúdo cognitivo”?) e a dimensão sagrada, na qual se testemunha a pura espontaneidade da ação inspirada (p. opos. a “reação”), ou seja, ação em presença de espírito. Assim como um sólido pode ser considerado como tendo três dimensões, a altura, a profundidade e a largura, sendo possíveis variadas ênfases de uma dimensão em relação a outra, mas dentro dos limites fora dos quais o sólido se desfaz, do mesmo modo a experiência religiosa deve ser considerada como tendo três dimensões, a mística, a profética e a sagrada, podendo haver variadas ênfases numa ou noutra dimensão, ou dimensões, mas dentro dos limites fora dos quais não se terá mais experiência religiosa autêntica. Em construção de teoria, contudo, podemos distinguir, por abstração, uma ou outra parte do que compõe um todo (“Distinguer pour unir!”). É assim que vamos tentar abstrair a dimensão mística da experiência religiosa, como aquela dimensão que não tem conteúdo sensorial, perceptual ou cognitivo, e cujo domínio é o da união entre o ser humano e sua verdadeira natureza ontológica (concebida, seja como criatura divina, seja como consciência búdica etc.). Proponho, para tratarmos disso, servir-nos de uma categoria, a de mistério, e de

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uma condição de possibilidade, que é a transparência. (A categoria para tratarmos da dimensão profética, cujo domínio é o da contemplação da verdade, é a do segredo – o sentido oculto –, tendo como condição de possibilidade o silêncio, a quietude da mente; aquela que usamos para tratar da dimensão sagrada, cujo domínio é a ação em presença de espírito, é a do arcano da máscara e da face – a face que se oculta por trás de nossas máscaras é a máscara de deus, que, como deitas, não tem face –, tendo como condição de possibilidade a criação, a união de duas vontades distintas e livres. Em termos budistas: o dharma que se oculta por trás de nossos kayas, nirmana ou sambhoga, é o alegado “dharmakaya”, que, como bodhi e sat, é sunya, potencialidade de todas as coisas, não tem kaya.) Trata-se de usarmos agora a categoria de mistério e a condição de possibilidade, a transparência. Este uso se fará dentro da imagética da luz, símbolo primevo que habita os estratos mais profundos da consciência humana. E, então, mistério e transparência se articulam. Pois o mistério é aquilo que, em última análise tudo revela, mas por excesso de luz. O pensamento errôneo de que ele ocultaria alguma coisa advém do fato de que a pura luz, pura transparência sem opacidade alguma que a reflita, é invisível como as trevas, ou seja, é o sol da meia-noite, ou a noite escura. Com efeito, o que introduz opacidades nessa luz é a mente, o pensamento e a linguagem. No limite da opacidade, temos um espelho, no limite da transparência, a límpida “visão” da noite escura, que não é a dos nossos olhos sensíveis. Entre a opacidade total e a transparência total, temos a translucidez pela qual o místico entrevê a ordem do Ser, transfigurada pelas formas da existência. Para a compreensão dessas coisas é imprescindível que se aceite, ainda que meramente por hipótese, concedendo-me talvez o privilégio da dúvida, que não trabalho com a noção de “tempo” como algo dado, ou pressuposto, mas sim como algo a ser compreendido. Compreendido, portanto, sem círculo vicioso, em termos atemporais. Em segundo lugar, é muito importante que também se admita, por inverossímil que pareça à primeira vista, que a “experiência” que usualmente pensamos “ter”, nos sentidos, tanto genitivo (a “minha”, a “sua” etc.), quanto objetivo (aquilo que seria experimentado), é apenas como se fosse uma só das faces de uma moeda. Não estaríamos jamais, em nossa verdadeira natureza, de um só dos lados da moeda, mas seríamos como a própria moeda. E imagine agora essa moeda ampliada em tamanho, feita de vidro grosso, e vista de frente como um abajur circular, com uma lâmpada atrás. Face à luminária, se o vidro fosse totalmente opaco, escondendo por completo a lâmpada que está por trás, teríamos “luz indireta”, e a face da “moeda” voltada para nós funcionaria como um espelho, refletindo a luz ambiente, mostrando até, talvez, nosso rosto. Mas se, ao contrário, o vidro não fosse opaco, mas totalmente transparente, mostrando por completo a lâmpada que está por trás, teríamos “luz direta”, e a face da “moeda” voltada para nós, supondo-se que o vidro estivesse perfeitamente limpo, seria virtualmente invisível. A lâmpada seria visível, mas pelas opacidades que contém, na sua estrutura interna, fio incandescente etc. A luz só é visível, lembrem-se, se for refletida por alguma opacidade. Se só houvesse luz, não veríamos nada. Agora imagine a terceira possibilidade, a de que a “moeda” não seja nem opaca nem transparente, mas translúcida, colorida ou não, e esculpida em mistura de alto e baixo relevo, mostrando, à frente da lâmpada escondida atrás, por meio de contrastes gerados por maior ou menor opacidade e translucidez, a figura de uma flor, digamos, uma rosa desabrochada. Que o expresse Leonardo Boff:

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Para pessoas religiosas e espirituais os fatos nunca são apenas os fatos. Representam sinais, valores e mensagens de outra coisa. É convicção destas tradições que o visível é parte do invisível, que o real desborda dos nossos conceitos e que, por isso, é sempre maior do que tudo o que podemos conhecer dele. Mais ainda, que as coisas não estão jogadas aí, arbitrariamente. Um fio sutil, às vezes visível, na maioria das vezes invisível, une todas elas, fazendo que surja um todo orgânico, contraditório e complementar. Tudo é como um bordado, feito de um emaranhado bizarro de fios. Mas perpassa um sentido secreto que ordena todos os fios, impedindo que a realidade se faça absurda e caótica./Empiricamente vemos o emaranhado de fios, mas o seu reverso, porém, forma uma rosa esplêndida. É próprio da leitura espiritual do mundo ver no emaranhado caótico o que, à primeira vista, não se vê, a rosa esplêndida./Em outras palavras, nada no mundo é fortuito e desgarrado de um sentido secreto. Já dizia ...nosso poeta maior Fernando Pessoa: “Ah, tudo é símbolo e analogia/ o vento que passa, a noite que esfria/ são outra coisa que a noite e o vento – sombra de vida e de pensamento/ tudo o que vemos é outra coisa” ... (Jornal do Brasil, 7/2/2003).

Pode ser que, na experiência que somos, não na que pensamos que “temos”, a “rosa esplêndida” não se “perceba”, no sentido ordinário de “perceber” (no caso da luminária, ou a luz é forte demais, ou o vidro está muito sujo, por exemplo). Contudo, garanto-lhes, a rosa está presente, como sugere o texto acima, nas dimensões mística, profética e sagrada da experiência, não apenas em “estados alterados de consciência” (sic), mas justamente na tessitura da mente, do pensamento e da linguagem, no “instante” da experiência que somos, que é sempre eterno. E está presente independentemente da “vontade” (sic), não só das “pessoas religiosas ou espirituais”, mas ainda do mais incrédulo, irreligioso ou “não-espiritualizado” dos seres humanos. Pois somos permanentemente conscientes em muito mais níveis do que nossa mente e órgãos sensoriais supõem (a mente ... mente! – o que não mente é a “não-mente”: Chin. wu-shin; Jap. mushin). Além disso, a mente é inconsciente e é ela que é “alterável”, não a consciência. Voltando à imagem da luminária, a verdadeira consciência é como o vidro perfeitamente transparente e invisível através do qual poderíamos ver as coisas cuja opacidade refletisse luz, ao passo que a mente estaria encarregada de produzir formas visíveis, alterando matizes de translucidez. Examinemos os três casos, separadamente: o caso de o vidro da luminária ser totalmente opaco; o caso de ele ser perfeitamente transparente; e o caso de ele ser translúcido. Pois me parece que essas ilustrações apontam para a verdadeira dimensão mística da experiência religiosa, além de seus aspectos proféticos e sagrados. Primeiro, a opacidade. Atribuo à mente social (pensamento, linguagem etc.), no papel como de um imenso editor ou projetor de “mundos”, os “efeitos”, ou “simulacros” produzidos pelo que pensamos que “experimentamos” no sentido ordinário, como se só tivéssemos contato com luz completamente refletida num espelho. Situo tais simulacros, pensados como “experimentados”, sobre uma rotunda opaca a ponto de esconder a fonte de luz, ou então considero tais simulacros como apenas reflexos, sequer translúcidos, que diria transparentes!, não na ordem dos autênticos entes (seres determinados), mas na ordem do que se chama geralmente de “fenômeno”, de “real”, de “existente”, do que pode ser “identificado”, ou “conhecido”, numa palavra, na ordem do não-ser. A mente, o pensamento e a linguagem são meramente um instrumento, embora magnífico, da Obra do Espírito. Não constituem dimensão alguma da experiência, mas servem para produzir aquilo que a ela cabe acolher, pela compreensão, à sua própria imanência. Então, e só então, os simulacros tornam-se verdadeiros entes, compondo o que se chama de “mundo”. “Ex-sistere” é estar fora do Ser, é “não-ser”:

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o Ser, é-se, não se “conhece”; o que se conhece “existe”, mas não “é”: não tem Ser. Segundo, a transparência. Atribuo à luz, invisível na ausência de opacidades que a reflitam, o papel da consciência como tal, em si mesma, não intencional, sem o “de” genitivo (“consciência de alguém”) e o “de” objetivo” (“consciência de algo”), como se estivéssemos nas “trevas”. Situo tal consciência na ordem do Ser enquanto Ser. É nesta ordem que estaria, mais propriamente, a dimensão mística da experiência, embora ela sustente neste Ser, tanto as dimensões profética quanto a sagrada, como se a altura sustentasse num sólido sua profundidade e sua largura. Temos, por enquanto, até este ponto, duas dimensões do Ser: como tal e como experiência. Para que haja experiência, no entanto, é preciso que haja alguma ignorância – por exemplo, é preciso que não se experiencie aquilo, o que quer que seja, que torna possível a própria experiência (o olho que vê não se vê a si mesmo, enquanto está sendo usado para ver). Entre o não-ser e o Ser (a moeda também pode ser vista de lado, assim: “/”), atribuo à presença de Espírito o pleno desvelamento da rosa, que desabrocha na translucidez, entre a pura opacidade e a pura transparência. Situo essa imagem de “moeda translúcida”, que a tudo distingue na ordem da existência, e a tudo une na ordem do Ser, na ordem da experiência, experiência em si mesma, ou seja, nossa verdadeira natureza. E é nesta ordem que está, por excelência, a dimensão sagrada dessa experiência que somos. A dimensão profética da experiência constitui-se de uma dualidade irredutível: ou há presença de Espírito (translucidez, compreensão), ou ausência de Espírito (opacidade, incompreensão). As “Escrituras” autenticamente religiosas são “precipitados gnósticos” (a “letra”) da presença de Espírito. Na ausência deste último, “carecem” de interpretação (hermenêutica); em Sua presença, revelam a verdade sem discussões, no silêncio da contemplação. Voltando a experiência para a mística: aquilo, o que quer que seja, que se nos apresenta, por mais que o pensamento o encare como ordinário, é sempre, infalivelmente extraordinário, extático, “milagroso” em sua verdadeira natureza, e não apenas em “casos excepcionais”. Situo tais incessantes e permanentes revelações (aparições e desaparições), geradas por formas translúcidas, como reflexo, não especular, mas criador (ou “criação” como reflexo atemporal), reflexo da ordem transparente do Ser, na translucidez da experiência, que se dá na presença de Espírito, que é a essência da compreensão. Esta última é o acolhimento, sem julgar, daquilo que se reflete na rotunda opaca e especular da existência, à imanência das “mônadas experienciais” que somos. A união entre Ser e não-ser na “/” constitui um dos aspectos da dimensão mística da experiência; o outro aspecto é a união entre criador e criatura. A “precipitação” dessa contemplação, desse “sopro”, nas escrituras sagradas, é o que constitui a dimensão profética; sua manifestação na ação constitui a dimensão sagrada. Não pressupondo o tempo, não poderia dizer que esses dois “lados” da “moeda” chamada experiência, aquele que é “cegado” para a transparência pela translucidez das formas de opacidade, e aquele que vê através dessas formas, sejam... “concomitantes”. Pois o tempo é artifício da mente (está de um só dos lados, do lado da existência) e não o pano de fundo, ou o tapete sobre o qual se dá a experiência. (Muito menos recorreria à imagem de uma alternância, de uma gangorra entre veladura e desvelamento.) A verdadeira experiência humana, que também chamei de “experiência em si”, e que é privilégio de todos, pois é a “verdadeira natureza” de todas as criaturas, constituída que é pela barra do binômio, ou da dualidade Ser/Existir, é como uma moeda transparente, sobre a qual, ou na qual, infinitas,

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distintas e irrepetíveis densidades de translucidez tecem a vida do Espírito. Somos a moeda, somos nossa experiência, que está sempre presente, mesmo contrariando as suposições do pensamento. Somos a transparência perfeita e a tessitura da translucidez, mas nem “ao mesmo tempo”, nem em “alternância”, ou seja, somos dualidades irredutíveis, as duas faces da moeda, manifestando-se a translucidez em infinitas formas distintas, únicas e irrepetíveis, de opacidade, mas no presente eterno. Em Filosofia e consciência, chamei a atenção do leitor para uma interessante comparação feita por um filósofo da mente, entre a evolução da palavra “consciência” e a evolução da palavra inglesa “window”: de “abertura por onde o ventro entra”, tornou-se “abertura por onde o vento não entra” (207). Observação análoga, mas inversa, poderia ser feita sobre a evolução das palavras “mistério” e “mística”: de “aquilo que é oculto” (grego: myein = fechar os olhos e a boca), torna-se, pelo menos em minha teoria, “aquilo que é plenamente revelado”. Ora, como disse logo no começo, entendo, à la Humpty-Dumpty, que o mistério só “oculta” por excesso, não por falta de luz (é o segredo que oculta por falta de luz, mas isso é problematizável na dimensão profética). A mística tudo revela. O medo de cegar-se com este excesso de luz é um mero pensamento confuso sobre os sentidos e a visão espiritual, já que “o olho com o qual eu vejo Deus é o mesmo olho com o qual Deus me vê” (Eckhart). Ou terminemos com Blake:

This Life’s dim Windows of the Soul/Distorts the Heavens from Pole to Pole/And leads you to Believe a Lie/When you see with, not thro’, the Eye/That was born in a night to perish in a night/When the Soul slept in the beams of Light. (The Everlasting Gospel). [As obscurecidas Janelas da Alma que pertencem a esta Vida/Distorcem os Céus de Pólo a Pólo/E levam você a Acreditar numa Mentira/Quando você vê com, não através, do Olho/Que nasceu numa noite para perecer numa noite/Quando a alma dormia nos raios de Luz (O Evangelho Eterno)].

Referências ALSTON, W. P. “History of Philosophy of Religion”, in: CRAIG (ed.), Routledge Encyclopedia of Philosophy. Routledge, 1998, 8, 238-48. ALSTON, W. P. “Religious Experience”, in: CRAIG (ed.), op. cit., 8, 250-255. CRAIG, E. (ed.) 1 Routledge Encyclopedia of Philosophy. 10 vols. Routledge, 1988. FERNANDES, Sergio L. de C. Filosofia e consciência. Rio de Janeiro: Arete Ed./Armazém Digital. FERNANDES, Sergio, L. de C. Ser humano – Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Ed. Mukharajj. PAYNE, S. “History of Mysticism”, in: GRAIG (ed.), op. cit., 6, 620-627. PAYNE, S. “Nature of Mysticism”, in: GRAIG (ed.), op. cit., 6, 627-634. RADHAKRISHNAN, S. The Principal Upanishads. Oxford U. P., 1953. ZAEHNER, R. C. Mysticism – Sacred and Profane. Oxford U. P., 1957. ZAEHNER, R. C. The Comparison of Religions. Oxford U. P., 1958.

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COMENTÁRIOS

DA SUBSTÂNCIA DO NADA (COMENTÁRIO-FANTASIA DO OPÚSCULO DE FREDEGIS DE TOURS “DO NADA E DAS TREVAS”)

Introdução Ao iniciar a breve exposição sobre Fredegis, no livro Storia della Teologia nel Medioevo1, relata Giulio D’Onofre que alguns anos depois da morte de Alcuíno, o sábio astrônomo Dungal, que vivia na clausura do mosteiro de São Dionísio, recebeu uma carta do rei Carlos Magno, pedindo-lhe parecer sobre um opúsculo, escrito e dirigido a ele, por Fredegis ou Fredegisus, abade do mosteiro de São Martinho de Tours. O opúsculo se chamava: De substantia nihili et tenebrarum. O rei estranhara no livro a nova maneira de abordar temas teológicos e de usar os textos bíblicos a modo filosófico-silogístico. Também estranha o seguinte comentário o opúsculo de Fredegis; mais, porém, no que diz respeito a dois itens do seu conteúdo. O primeiro é a maciça afirmação de que o nada existe. O segundo é a sua tese, inusitada para nós, de que a cada vocábulo corresponde necessariamente um ser realmente existente. Essas duas posições, avaliadas conforme a opinião usual dos manuais da história da filosofia medieval, mostrariam o modo ainda um tanto ingênuo e primitivo do realismo exagerado dos pensadores da pré-escolástica. O nosso breve comentário da primeira parte do De substantia nihili, do mencionado opúsculo ignora quase por completo inúmeros estudos historiográficos competentes e especializados desse período do pensamento medieval e das suas implicações. Certamente por isso, ao mesmo tempo em que estranha os 2 itens acima mencionados, sente um fascínio todo próprio para com o modo de pensar desse pretenso realismo exagerado que sabe ao gosto tosco e primitivo da simplicidade ingênua dos pré-escolásticos. Assim, a abordagem desse comentário aplicada sobre o texto de Fredegis não passa de uma hipótese, quase uma “chutação” interpretativa que não possui nenhuma comprovação da sua validade objetiva. 1 A substância do nada Diz Fredegis: “A questão do nada é, pois, assim como segue: o nada é algo ou não? Se alguém responder ‘parece-me que nada é nada’, essa enunciação pensada por ele, compele-o a dizer que nada é algo, enquanto diz: parece-me que nada é. Isto é assim como se dissesse: parece-me que nada é um certo quê. É que, se parece que é algo, então, que não seja não pode ser visto, de modo algum. Portanto, parece restar que nada seja algo. Se, porém, a resposta for: “parece-me ser nada nem algo”, ela deve ser enfrentada, primeiramente pela razão, enquanto a razão humana pode receber, e então, pela autoridade; não por uma qualquer, mas pela autoridade enquanto avalia pela razão, que é a autoridade única e a única a obter a firmeza imóvel”. Fredegis afirma que o nada é. É algo. É um certo quê. Portanto: é substância. Daí o título do opúsculo: De substantia nihili et tenebrarum. Se Fredegis tivesse dito apenas que nada é ou é algo poderíamos nos aquietar dizendo: certamente é, é algo no sentido de ens rationis, projeção mental puramente lógica ou em última hipótese: ens rationis cum fundamento in re. Mas um quê?! Uma substância?! Fredegis nos diz insistindo: Sem dúvida é no duro substantia, res, realidade. Nada de aguar, de 1 D’ONOFRE, Giulio. Storia della Teologia nel Medioevo, I princìpi, Piemme: Casale Monferrato (AL) 1996, p.140.

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volatilizar a entidade na qual foi cunhada a pregnância da palavra do Criador, pronunciada no Verbo, cuja comunicação, cuja doação de si criativa é um Sim pleno, total, gratuito e cordial, onde não há nada de sim/e/não, mais/e/ou/menos, condicional, enfermo, sem firmeza generosa substancial, sem presença fiel e total da coisa ela mesma: res, realidade, substância. Mas foi o Criador que cunhou o termo “nada”? Nada foi cunhado pelo homem, pela criatura que é a imagem e semelhança Dele. Portanto, se o homem pronuncia uma palavra, o modo de ser dessa pro-nuncia, dessa pro-posição tem a força criativa de impregnar de entidade o que nomeia. E Fredegis parece ouvir o que estou a murmurar, falando com meus botões: “Mas tudo isso é ingênuo, primitivo demais. É infantil, a modo de crianças que ainda não chegaram ao uso da razão e por isso a tudo atribuem uma presença palpável da plasticidade corporal de coisa”. E me responde, trazendo à cena a força do testemunho, nada menos do que da razão e da autoridade, dizendo: “Se, porém, a resposta for: parece-me ser nada nem algo”, ela deve ser enfrentada, primeiramente pela razão, enquanto a razão humana pode receber, e então, pela autoridade; não por uma qualquer, mas pela autoridade enquanto avalia pela razão, que é a autoridade única e a única a obter a firmeza imóvel”. 2 Substância do nada significa nada enquanto ens creatum Diante dessa resposta, começo a ficar perplexo comigo mesmo e desconfiar: Fredegis não está a dizer nem disse no seu texto que esse algo que se chama nada possui uma maciça plasticidade corporal de coisa, que é uma substância física palpável, mensurável, material. Uma tal interpretação é imaginação dessa nossa reflexão. Mas diz insistentemente: custe o que custar, nada é uma substância, uma res, uma realidade criada. Dito com outras palavras, nada é algo, ente pleno e elementarmente participante da imensidão, profundidade e liberdade da absoluta doação de si mesmo de Deus, no Verbo, às criaturas na criação. Por isso, “treme” de preocupação que pusilanimidade e mesquinhez de nossa compreensão nos façam passar por cima de uma decisiva incisão no nosso entendimento. Assim exorta para que com muita precisão examinemos a suposta possível resposta “parece-me ser nada nem algo” pela “razão enquanto a razão humana pode receber, e então, pela autoridade; não por uma qualquer, mas pela autoridade enquanto avalia pela razão, que é a autoridade única e a única a obter a firmeza imóvel”. E aqui mais tarde no mesmo texto, no que diz respeito ao relacionamento entre razão e autoridade, principalmente divina, observa que a aparente submissão da razão à autoridade é uma potencialização da acuidade da mente2: “Deve-se, portanto, potencializar a acuidade da mente em direção à autoridade de tamanha culminância, que não pode ser anulada por nenhuma razão, não pode ser refutada por nenhum argumento, impugnada por nenhuma força”. Mas de que se trata? Em que consiste esse ponto de incisão de tamanha importância que para compreender, devemos potencializar a mente na sua acuidade? Coloquemo-nos na situação da questão que jaz dentro da supostamente possível resposta ao lado da resposta de Fredegis: nada é um quê, um algo, uma substância. A outra resposta soa: ‘videtur mihi nihil nec aliquid esse”: parece-me nada ser nem nada nem algo (?); parece-me que nada não é nada nem algo (?); parece-me nada 2 Mens,-tis, a mente era o supremo grau da nossa capacidade de compreender que penetrava para dentro de Deus. Havia, pois, uma escalação de excelência no poder da compreensão no homem: razão, intelecto, espírito, mente.

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nem algo ser (?). Se entendermos videtur não tanto como um opinar (parece-me), mas diretamente referido ao videre (ver), não na voz ativa, nem passiva, nem reflexiva mas medial, então videtur poderia significar vem à evidência, aparece, vem à claridade. O que aparece pois? O que se manifesta? Nada ser e não algo ser. Isto quereria dizer: há um nada que é anterior a ser e não ser algo? Fredegis parece então temer que esse nada se esvaia como não sendo, como apenas ens rationis sem nome. Pois, diria Fredegis: é quid, é aliquid (ali+quid)3, um lá, e olha lá, não somente algo, mas um lá grande4. “Mas Fredegis”, objeto eu, “que coisa grande é essa que é um quase nada, que suspeito ser nada mesmo, pois não passa de um elemento funcional lógico da minha mente?” Fredegis responderia: “Você quer dizer, um elemento funcional lógico do seu cérebro dentro do crânio que você chama de cabeça? Era exatamente isso que eu temia, quando ao afirmar que nada é, que nada é algo, um quid, um aliquid, sim, substância, apelei à razão, à mente e à autoridade, para não abandonar a grande questão do nada e algo no baldio terreiro da função cerebral, onde o ‘nada’ se torna tão mirrado, mesquinho e ridículo que nem se quer pode ser chamado de algo nem nada do nada. Foi por isso que escrevi no opúsculo De substantia nihili et tenebrarum: embora já tenhamos examinado o assunto segundo a razão, “seja-nos lícito recorrer à divina autoridade, que é o abrigo e o firmamento da razão. Com efeito, toda a Igreja, instruída divinamente, nascida do lado de Cristo, nutrida com o alimento da sua sacratíssima carne e com a bebida do seu precioso sangue, desde o berço, instruída nos mistérios dos arcanos, confessa assegurar com fé inabalável que o poder divino fez terra, água, ar e fogo, também luz, e anjos e a alma do homem, do nada. Deve-se, portanto, potencializar a acuidade da mente em direção à autoridade de tamanha culminância, que não pode ser anulada por nenhuma razão, não pode ser refutada por nenhum argumento, impugnada por nenhuma força. É esta, a autoridade, que proclama que não se pode avaliar aquelas coisas que são primeiras entre as criaturas, primeiras e precípuas, já que uma dessas coisas que Dele são nascidas não pode ser avaliada assim como é o ser avaliado. Quem, pois, mediu com o as, a natureza dos elementos? Quem, pois, com o termo ‘luz’ ou com o véu dos anjos abraçou substância ou natureza? Se, pois, a estas coisas que propus, não as podemos compreender pela humana razão, como haveremos de conseguir saber quanto e qual seja aquilo, a partir de onde elas trazem a origem e o gênero?” De repente, nessa linguagem de Fredegis – decidida, de uma aderência firme e total à autoridade divina a modo da Igreja, por ele descrita, cheia de fidelidade e intimidade com Cristo, de cujo lado ferido na Cruz nasceu – percebe-se uma postura toda própria que de imediato sabe à pieguice e ao fundamentalismo. Mas logo sentimos como esta estranha impostação, conote ela o que conotar, possui pregnância, digamos, substancialidade, muitas vezes inteiramente ausente na impostação proveniente do sentido hodierno do ser como entidade da objetivação. E quando o estranhamento se esvai, não mais sentimos nessa densa pregnância que se denominou substancialidade aquele bafo adocicado sufocante da pieguice nem aquele imobilismo duro, áspero e agressivo fundamentalista. E, então, possamos talvez escutar na linguagem de Fredegis a sonoridade da positividade ab-soluta,

3 Aliquid (ali) = advérbio, lá, além; aliquid originalmente significava lá um quê. Cf. WALDE, A. Lateinisches Etymologisches Wörterbuch. 4a. ed.,Vol. 1 A-L, Heidelberg: Carl Winter Universitätsverlag, 1965, p. 30. 4 Quoniam vero ad demonstrandum quod non solum aliquid sit nihil, sed etiam magnum quiddam, paucis actum est ratione…

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plena e rotunda. A saber, a sonoridade da disposição na cordialidade prenhe da afirmação do ser, onde tudo e cada momento é percussão e repercussão do grande sim, sem sim-e-não, sem lacuna nem vácuo, sem fissura e enfermidade, mas apaixonado e contido, límpido e puro e pulsante na afeição, sim, minucioso e complexo mas lógico e bem estruturado na ordenação, a proclamar, a conclamar em alta voz: tudo é ens creatum, “o em sendo” pro-posto, pro-nunciado continuamente, a cada momento, sempre de novo como doação sem limite de si de um “Deus”, de-nominado pelos medievais de “ens a se”, “ipsum esse”, a saber, vigência e presença, do abismo inesgotável e insondável da plenitude de ser-fonte que brota a partir de si e em si; é a Vida Eterna, como imensidão, profundidade e generosidade criativa de uma Liberdade ab-soluta, a Bondade ela mesma na difusão de si: o ser (verbo) Ele mesmo na criação. Abre-se assim a paisagem interna da mundividência medieval, cuja doutrina do ser, na linguagem manualística da história da filosofia medieval denominamos de ontologia substancialista. O “ontologicum”, o sentido do ser – que qual cor fundamental se oculta no fundo da matiz dessa paisagem medieval e dá a cada parte dessa paisagem a pregnância, que qual tonalidade de fundo percute nas diversas repercussões em múltiplas e diversificadas modulações da sinfonia medieval – é ens creatum que explica a sua implicação como Creator-creatio-creatura. Esse ontologicum, que é propriamente teológico, toma emprestado da filosofia o termo substantia. Assim são substâncias o Criador (ipsum esse: ens a se) e todas as pro-postas da dinâmica de difusão generosa dessa plenitude de ser, a saber, as criaturas (= imagens e semelhanças do Criador). Portanto, são substâncias,5 o ente supremo, Deus, o espírito perfeitíssimo, e a seguir numa cadência descendente de escalação em ordenações constitutivas das dimensões do universo, os espíritos ou anjos em nove coros, o homem6, os viventes sensíveis7, os viventes vegetais e os entes não-viventes, a saber, corpos físico-materiais, e por fim a pura matéria. Em vez de pura matéria se pode também dizer matéria oboedientialis (matéria obediencial) ou também nihil (nada)! É dessa substantia nihili que diz Fredegis: “Nada significa algo. (…) a significação dele é o quê é, isto é, da coisa existente. (…) nada não somente é algo, mas também um grande algo (…)”. E é desse nada que “o poder divino fez terra, água, ar e fogo, também luz, e anjo e a alma do homem”. E o nada é uma dessas coisas “que não se pode avaliar assim como é o ser avaliado”, pois, é uma daquelas coisas que “são primeiras entre as criaturas, primeiras e precípuas”. E então exclama como que numa louvação: “Quem, pois, mediu com o as, a natureza dos elementos? Quem, pois, com o termo ‘luz’ ou com o véu dos anjos abraçou substância ou natureza? Se, pois, a estas coisas que propus, não as podemos compreender pela humana razão, como haveremos de conseguir saber quanto e qual seja aquilo, a partir de onde elas trazem a origem e o gênero?” E agora, segue nesse comentário hipotético uma chutação, que raia a pura fantasia que poderia vir da leitura equivocada do texto. É, pois, o seguinte:

3. Nada é a substancialidade da pura recepção, a potentia oboedientialis

A frase acima, em negrito, grifada e sublinhada por nós (quanto e qual seja aquilo,

5 Ou quidditas (quê-dade), quid (quê), aliquid (um lá). 6 Definição medieval do homem é animal rationale; leia-se, animus rationalis, o ânimo racional. 7 Vivente sensível animal no sentido de bruto, bicho. Aqui nessa ordenação a palavra animal é reservada somente ao homem e significa como foi dito acima ânimo.

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a partir de onde elas trazem a origem e o gênero), relaciona o gênero à origo (origem) e com isso nos leva a interpretar gênero não referido ao geral, ao genérico, ao comum classificatório, portanto ao lógico, mas a génos, ao gígnomai8, referido à origem, ao nascimento, à filiação. Quando falamos da criação, do Criador, e principalmente do ente criado, da criatura, entendemos usualmente todos esses termos a partir de e seguindo o binômio causa-efeito, portanto a partir e dentro da causação. Fredegis com insistência entende a criação como geração. E “hipostetizemos” “geração” como filiação. Se for assim, criaturas são filhos e filhas; criador, Pai, e aqui com mais precisão e concreção Pai, anunciado, admirado e amado por Jesus Cristo, e com isso referido ao abismo do mistério do amor que a tradição cristã denomina de Mistério da Trindade una e Unidade trina, Pai e Filho e Espírito Santo. A nossa fantasia hipotética diz: é dentro dessa perspectiva que Fredegis diz: “toda a Igreja, instruída divinamente, nascida do lado de Cristo, nutrida com o alimento da sua sacratíssima carne e com a bebida do seu precioso sangue, desde o berço, instruída nos mistérios dos arcanos, confessa assegurar com fé inabalável que o poder divino fez terra, água, ar e fogo, também luz, e anjos e a alma do homem, do nada”. Tudo isso não soa assim, como se Fredegis nos estivesse insinuando, a nós algos criaturas, aliás, filhos e filhas: “Vamos tratar o nada como gente, ou melhor, como a gente, também como filho, todo próprio e não como um algo lógico qualquer, um nada qualquer abstrato, formal, como apenas negação de um quê que nem sequer é um ponto, mas um vazio inominável, esvaído, cujo sentido do ser nem sequer é um ponto matemático. Ele, o nada, esse grande algo é condição da possibilidade do surgimento, melhor, do nascimento da terra, água, ar e fogo, também da luz, e dos anjos e da alma do homem. De repente, na minha mente, a perspectiva usual da nossa consideração hodierna das ordenações do universo medieval vira de cabeça para baixo. O que de imediato e na maioria dos casos me vem à representação quando ouço os termos algo, um quê, substância é um bloco, algo como um átomo, um corpo material neutro, sem vida. Esse núcleo, bloco material e neutro, seria então o ponto de referência formal, um ponto x sobre o qual podemos acrescentar os acidentes que formam o conteúdo concreto da coisa, em cuja constituição o núcleo x apenas tem a função de dar ponto formal de referência para que haja ali um núcleo que permaneça no fluxo de tantos acidentes. Mutatis mutandis, esse seria o algo, a substância, digamos um quase nada, mas ainda um certo quê, um aliquid na concepção dos medievais, naquela última esfera da escalação nas ordenações dos seres, na esfera das coisas material-corpóreas físicas sem vida.9 Para nós hoje esse tipo de substância se tornou a medida de outras substâncias, de tal modo que na escalação das ordenações das esferas dos entes, substância significaria em todas as esferas, univocamente, esse algo formal neutro, abstrato-lógico. De imediato e na maioria dos casos, quando o medieval ouve a palavra “substância”, o que lhe vem à mente é a plenitude do ser na sua excelência “qualitativa”, denominada espírito. E espírito não é algo espiritual. É a substância, a substancialidade ela mesma, na plenitude da sua vigência e qualificação. E na 8 Génos = nascimento, origem, o que foi gerado, família, rebento, criança, filho; gígnomai = tornar-se, ser nascido, nascer, surgir. 9 Essa compreensão da substância como algo formal abstrato atômico é mais da concepção objetivo-objetivante do sentido do ser funcional da metafísica moderna da subjetividade e não corresponde com precisão à compreensão concreto-artesanal da substância material, cuja paisagem talvez possa ser ilustrada por paisagem de uma curva do rio, no tempo de seca, onde se forma um espaço aberto cheio de pedras de diversos tamanhos, uma ao lado da outra, ou paisagem de um Ike-bana (arte japonesa de arranjo de paisagem em miniatura) feita só de pedras.

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escalação das ordenações das esferas de realidade o espírito é a esfera, a mais alta, a mais rica, a mais vigorosa, digamos a mais substancial, pois é a substância, por excelência, a própria substancialidade: o próprio ser de Deus, o único ser, total, absoluto, pleno, de tal modo que fora dele não há ser, ou melhor, não há de modo algum nenhum ente que não seja substância, pois tudo que é, nasce e permanece no amplexo dessa plenitude do ser que é o Bem difusivo de si, é substância atinente, pertinente ao ser substância-espírito. Aqui é necessário sempre de novo nos acautelarmos para não entender o espírito como ente espiritual. Espírito aqui é Ser, ipsum esse, e não um modo de ser. Nesse sentido, São Francisco de Assis, na sua primeira admoestação em vez de dizer “Deus é espírito” diz “Espírito é Deus”10. Se digo “Deus é espírito”, classifico Deus entre a classe dos entes espirituais, Ele é uma modalidade de espírito. Se, porém, digo “Espírito é Deus”, Espírito se identifica com Deus e Deus com Espírito e, sendo Deus para os medievais ipsum esse, Ser e Espírito se identificam, e se Espírito quer dizer Substância no seu sentido pleno, Ser, Substância e Espírito se identificam. Se, portanto, entendermos algo, quid, substância como Espírito e se “Espírito é Deus” todo e qualquer ente, esteja ele em que esfera do ser na escalação das ordenações dos entes, possui em si, ou melhor, é algo divino, assemelha-se a e é imagem de Deus, do Bem difusivo de si. E se observarmos bem o mapa da ordem do universo medieval, no qual tendo no ápice da escala o Deus Criador, qual fonte irradiante do ser que através e no Verbo encarnado se comunica e se difunde – vindo do alto através de todas as esferas dos entes, desde a sublimidade dos espírito-anjos até à baixeza do pó e excremento da terra –, percebemos um jogo de proporcionalidade: Assim como o ente “a se”, incriado “in se” absoluto na cordialidade e gratuidade da sua doação, está para o mundo dos espíritos (nove coros dos anjos), dos entes “ab alio” criados “in se”, assim também o homem, o “ânimo racional”, ente “ab alio” criado “in se” na cordialidade do cuidado, está para o mundo dos entes viventes e materiais não viventes, que são também entes “ab alio”, criados “in se”. Nesse esquema temos duas “partes”: o mundo das substâncias simples, a saber, o mundo dos espíritos; e o mundo das substâncias compostas. São chamados substâncias simples: Deus Criador, os espírito-anjos; são chamados substâncias compostas: homem, animais, vegetais, corpos físico-materiais. A palavra substância ocorre tanto na primeira parte, superior, no mundo dos espíritos, sob a denominação de substâncias simples, como também na segunda parte, inferior, no mundo dos entes viventes e materiais, sob a denominação de substâncias compostas. Isto significa que a vigência, o vigor de ser, a substancialidade está presente de alto a baixo, de lado a lado em toda a profundidade e em toda a extensão do céu e da terra, impregnando tudo, cada realidade no todo, entre si e mutuamente, numa “toada” de fundo. Substância conota presença (estância que está debaixo de) de fundo e é a tradução latina do grego hypokeímenon. Hypo-keímenon diz pré-jacência, assentamento de uma imensidão, de grandeza profunda bem fundada em si. Essa presença de magnanimidade generosa assentada em si, se diz em latim na expressão “ens in se”, termo que assinala a substância. É o algo, o quid, o aliquid de Fredegis. O caráter, o próprio dessa presença, digamos, a sua “toada” se chama spiritus, espírito, a dinâmica do sopro vital, que recebe o seu significado próprio e qualificado da compreensão que se tem de Deus, o ens a se, anunciado como Pai, na Boa Nova do Evangelho de Jesus Cristo, Filho Unigênito do Pai, Filho encarnado, Deus feito homem. Nele se dá 10 “…et spiritus est Deus”, cf. Admonitiones, cap. I – De corpore Domini, in: MENESTÒ, Enrico; BRUFANI, Stefano (a cura di). Fontes Franciscani. Assisi: Edizione Portiuncola, 1995, p. 25.

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a síntese do céu e da terra, a união íntima Deus e homem, o encontro11 de mundo dos puros espíritos e mundo dos espíritos encarnados (homens), dos viventes sensíveis, viventes vegetais e entes destituídos de vida, i. é, dos entes físicos materiais. Essa qualificação toda própria na compreensão do que seja o espírito (cf. Espírito é Deus) nos faz mudar totalmente a compreensão dos elementos constitutivos do universo medieval, libertando-a da conotação de um sentido do ser como de ocorrência neutra de coisas, impregnando as próprias coisas do sopro vital do espírito. Mas em que sentido? No sentido da qualificação toda própria na compreensão do espírito, proveniente do Espírito que é Deus, de tal modo que a própria matéria é no fundo “espírito” como criatura, gerada do Pai de Bondade, difusiva de si. Chamemos a Bondade difusiva de si de Amor de Deus, i. é, Amor que Deus tem. De que se trata, pois? Amor de Deus aqui é o próprio de Deus, ou melhor, é Deus ele mesmo (Amor é Deus). Esse Amor que é Deus se chama ens a se, i. é, é o em sendo, a dinâmica do ser-fonte, a partir de si gratuitamente, livremente, na incondicional doação inesgotável e insondável de si. Essa soltura total da liberdade de ser-Amor se qualifica como ab-soluta. O em si (in se), o assentamento, o enraizamento da identidade nesse ser-Amor absoluto é o que está expresso no termo substância e a sua substancialidade. Todos os entes, desde os anjos até o mais insignificante pó e excremento da terra, a matéria, são também in se, substância, no assentamento para dentro desse ser-Amor ab-soluto, pois nós, o universo inteiro, viemos Dele, Nele nos movemos e Nele, por e para Ele somos e repousaremos, somos substâncias, quer simples, quer compostas, ab alio, criados, ou melhor, gerados Dele, Nele. Provavelmente mais ou menos coisa semelhante deve estar suposta atrás das já muitas vezes repetidas frases de exclamação de Fredegis quando afirma: “seja-nos lícito recorrer à divina autoridade, que é o abrigo e o firmamento da razão. Com efeito, toda a Igreja, instruída divinamente, nascida do lado de Cristo, nutrida com o alimento da sua sacratíssima carne e com a bebida do seu precioso sangue, desde o berço, instruída nos mistérios dos arcanos, confessa assegurar com fé inabalável que o poder divino fez terra, água, ar e fogo, também luz, e anjos e a alma do homem, do nada. Deve-se, portanto, potencializar a acuidade da mente em direção à autoridade de tamanha culminância, que não pode ser anulada por nenhuma razão, não pode ser refutada por nenhum argumento, impugnada por nenhuma força. É esta, a autoridade, que proclama que não se pode avaliar aquelas coisas que são primeiras entre as criaturas, primeiras e precípuas, já que uma dessas coisas que Dele são nascidas não pode ser avaliada assim como é o ser avaliado. Quem, pois, mediu com o as, a natureza dos elementos? Quem, pois, com o termo “luz” ou com o véu dos anjos abraçou substância ou natureza? Se, pois, a estas coisas que propus, não as podemos compreender pela humana razão, como haveremos de conseguir saber quanto e qual seja aquilo, a partir de onde elas 11 Se, em vez de encontro, disséssemos fusão, teríamos panteísmo. A concepção usual da substância como coisa, quando diz fusão, acha que ela é real, mais concreta e densa do que encontro, que conota distância, não mistura, o espiritual e com isso evita o panteísmo. Na perspectiva em que entendemos substância como espírito, fusão é fraca demais para sequer insinuar intensidade, concreção, intimidade de união, a realidade que se dá nessa presença onipresente de Deus nas criaturas. O medo do panteísmo no fundo é um equívoco proveniente da compreensão do sentido do ser, na qual se entende o ser do criador e das criaturas, no seu modo o mais deficiente de coisa. Se virarmos a situação dessa compreensão defasada e entendermos o ser como substancialidade do espírito, inclusive o ser das substâncias materiais, então a questão do panteísmo se transforma numa outra questão mais fascinante e interessante da questão do sentido do ser.

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trazem a origem e o gênero?” Mas… é o nada? Ao falar do nada, do algo-elemento, material com que foram feitas as criaturas, tiradas ex nihilo sui et subiecti, não acabamos saindo completamente do assunto?12 Conclusão Depois de todos esses arrazoados hipotético-fantasiosos, não haverá, pois, um quê de “objetivo” nessa leitura da primeira parte do opúsculo de Fredegis De substantia nihili et tenebrarum se concluirmos o comentário, chutando: Dentro dessa perspectiva hipotética, acima exposta, colocamos a paisagem do universo medieval, substituindo a compreensão da substância como coisa por espírito, e interpretando espírito por Amor de Deus difusivo de si. Com isso, colocamos o universo do cosmos medieval dentro do seu elemento, no médium chamado presença onipresente do Amor de Deus como Pai, no relacionamento com o Filho Unigênito, em quem, por quem, com quem e para quem foram gerados todos os entes do universo. Assim, o elemento do universo medieval, a matéria-prima do cosmos medieval, tornou-se o relacionamento de Amor entre Criador e criatura, não mais na tonância do ser da causação, mas da Filiação, de tal modo que a matéria-prima se torna potentia oboedientialis como disposição grata, cheia de cordialidade e docilidade da pura e límpida recepção. Essa disposição nos é dada pelo Filho, Verbo encarnado, Deus e homem no mistério da Encarnação, e torna-se a essência do homem, o núcleo dinâmico, o mais íntimo do ânimo racional (animal rationale) e através desse ânimo racional, i. é, do homem, repercute em e impregna todo o mundo vivo e não vivo não humano. Assim, a pura materialidade se nos revela como amostra da humildade e simplicidade do Deus de Jesus Cristo na disposição do encontro do amor, no qual doando-se gratuitamente, todo e inteiro, incondicionalmente, pede para ser recebido gratuitamente, doando-se no receptor, em suscitando nele a potentia oboedientialis, a disposição livre de receber como Filho a dádiva da filiação. Com o risco de estar dizendo levianamente uma grande bobagem teológica, não poderíamos chutar e dizer: Quem sabe, o nada, a substância do nada, esse algo ex nihilo sui et subiecti, a pura matéria-prima, a potentia oboedientialis, não será o próprio Deus de Amor e do encontro de Amor, a presença substancial nas criaturas e como criatura (Deus e homem) no vigor e ternura da pura recepção e doação do encontro? Não é o que diz pois o Evangelho de João no silêncio e na toada de jovialidade da Festa do Natal?

No princípio era o Verbo E o Verbo estava com Deus E o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio Dele E sem Ele nada foi feito. O que foi feito Nele era a vida. E o Verbo se fez carne, E habitou entre nós; E nós vimos a sua glória, Glória que Ele tem junto ao Pai como Filho único, Cheio de graça e de verdade (Jo 1,13-14).

12 Do nada de si e de algo prejacente.

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ENTREVISTAS

ENTREVISTA COM MONJA COEN SENSEI – SOTO ZEN BUDISMO *– SOBRE EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

1. Qual sua busca fundamental? Como chegou a essa convicção e como se dá atualmente sua prática religiosa?

A busca do Caminho de Buda é a não busca, é o encontro, é o tornar-se o próprio Caminho. Transcender as dualidades, penetrar a Unidade da qual jamais nos separamos e, entretanto, quando há o menor fio de seda de diferença o Caminho se perde, Céu e Terra se separam.

Iniciei minhas práticas religiosas formais e sistemáticas no Zen Center of Los Angeles, no início da década de 1980. Interessava-me a meditação. Questionava eu sobre a vida, Deus, significado da existência, da morte, do amor, do ódio, da alegria, do rancor. Duvidava e investigava. Inquieta-mente procurava por toda parte respostas finais e definitivas. Encontrava mais perguntas, e a busca assim se auto-alimenta num penetrar incessante e cada vez mais intrigante no “quem sou eu, qual nosso papel de seres humanos na vida do Universo?”

Através da prática do Zazen fui revendo meu passado, penetrando meus processos mentais, conhecendo minha própria mente através da mente minha. Emoções, sensações, percepções.

Corpo-mente-espírito íntegro e integrados ao grande Corpo-mente-espírito. Ninguém a culpar, ninguém a desculpar. Apenas o processo de compreender, saber, entender, aceitar e transformar.

Tornei-me monja Zen Budista, ordenação em Los Angeles, Califórnia, pelo Abade Koun Taizan Daiosho. Poucos meses depois fui para o Convento Feminino de Nagóia, no Japão, onde ficaria por oito anos. Terminado o treinamento oficial monástico, que me classifica como “Monja Especial” e “Mestra Correta” – títulos dados aos monásticos que lhes permitem se tornar professores de mosteiros, auxiliares na formação de monásticos e de leigos – fiquei no Japão por outros quatro anos praticando em vários templos e auxiliando nas várias tarefas religiosas. Voltei ao Brasil em 1995 e assumi interinamente o Templo Busshinhi de São Paulo. Depois de seis anos foi enviado um Superior Geral do Japão e abri um novo grupo de prática que passou a ser chamado de Comunidade Zen Budista Zendo Brasil e em japonês tem o nome de Tenzui Zendo.

Minha prática atual é de ensinar o Zazen (meditação sentada), Caminhada Zen nos parques públicos (meditação caminhando), oficio casamentos, ordenações monásticas, cerimônias de Preceitos Budistas para leigos e leigas, bênçãos, enterros, serviços memoriais, outras liturgias da tradição, aulas, cursos, seminários, aconselhamentos, palestras para empresas, escolas, universidades e parceria com a Prefeitura de São Paulo através das secretarias de Saúde, do Verde e do Meio * Monja Coen Sensei é missionária oficial da tradição Soto Shu – Zen Budismo com sede no Japão e é a Primaz Fundadora da Comunidade Zen Budista, criada em 2001, com sede em Pinheiros – SP. Essa entrevista foi intermediada por Fr. Vagner Sassi, FFSB, Curitiba.

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Ambiente, levando a meditação nos parques com o propósito de cura e prevenção, além de educação ambiental. Também participo de um projeto com crianças e adolescentes de rua, em uma casa de acolhida no bairro de Pinheiros, em São Paulo e trabalho como voluntária no Hospital Emílio Ribas ensinando a meditação e a plena atenção para funcionários e voluntários interessados.

2. O caminho do ser humano dirige-se para a plenitude, para o todo. Esse caminho implica sempre um processo de formação. Como se dá a formação no caso do zen budismo?

No Zen Budismo da tradição Soto, a que pertenço, a formação monástica geralmente se faz após quatro ou cinco anos de estudos acadêmicos na Universidade de Komazawa, em Tóquio. Terminada a Faculdade de Estudos Budistas, os monges entram nos mosteiros para o treinamento. Esse treinamento pode variar de um a sete anos.

As monjas e monges sem nível universitário devem ficar mais tempo nos mosteiros.

Entretanto, a parte essencial do Zen não se limita a estudos acadêmicos, e sim à experiência do sagrado, da mesma maneira que nosso mestre original Xaquiamuni Buda a obteve. A prática deve ser acompanhada por um Mestre ou uma Mestra - professores qualificados e autenticados – e consiste numa rotina monástica de meditações, preces, estudos e debates, apresentação de trabalhos escritos e orais, serviços comunitários, obediência e pobreza. A pessoa responsável pelo noviço, noviça, percebe e encoraja a prática, a investigação, o questionamento sobre a Verdade e o Caminho. Quando o amadurecimento espiritual é pressentido faz-se uma avaliação e o noviço passa por uma cerimônia pública onde todos os outros noviços e monges o podem questionar sobre os ensinamentos. Sendo aprovado entra na fase seguinte, à espera de que o mestre o certifique como seu sucessor e assim sendo recebe autorização para trabalhar como monge completo. Esta fase varia de pessoa para pessoa, mas geralmente dura cerca de dois anos.

O treinamento evidentemente não termina com a autenticação de mestre, mas continua, e há toda uma hierarquia monástica até o cargo máximo de Mestre Zen, concedido apenas a abades superiores dos Mosteiros Sede do Japão.

3. O Zen e, particularmente a Escola Soto, privilegia o caminho da meditação no seguimento. De que modo essa meditação pode estender-se e fecundar todos os demais afazeres da vida?

No início da prática Zen Budista escolhemos alguns momentos do dia e da noite

para o Zazen – a meditação.

Com o tempo percebemos que toda nossa vida é a nossa prática. E nossas atividades comuns estão inseridas no Zazen.

Zen é o caminho da vida diária. Da simplicidade. De podermos chegar à essência de quem somos. O Zazen nos faz perceber nosso mais íntimo e mais sagrado, assim como todas as esferas mentais e físicas do ser.

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Cada momento de vida é único e jamais se repete.

Estando todos nós em uma grande teia – a rede da vida –, para que possamos alcançar o bem-estar e a felicidade, temos de proporcionar bem-estar e felicidade à nosso volta.

Como um cientista que investiga a verdade, o praticante deve investigar a si mesmo. É a mente investigando a mente. E isso não se limita a uma posição e a um lugar específico.

Como estamos falando? Como estamos agindo, tocando objetos, pessoas? Como nos inter-relacionamos? Como pensamos? E como não pensamos?

Ao lavar as mãos apenas lavamos as mãos. Ao comer apenas comemos. Ao dormir apenas dormimos. Ao planejar, planejamos. Ao orar, oramos. Ao sentir, sentimos. Ao meditar, meditamos.

Simples. Presentes no aqui e agora, onde todo o eterno é e está.

4. A Ciência moderna dá muito valor ao método (derivado da palavra caminho) enquanto técnica. Quanto a isso, que diferença se pode estabelecer entre caminho de meditação e técnica de meditação?

Alguns chamam o Zen de uma técnica de meditação. Nós dizemos ser o Caminho de Buda, a prática de um ser iluminado. Não meditamos para nos tornarmos Buda, mas por sermos seres iluminados encontramos nas práticas meditativas a maneira de expressar nosso ser verdadeiro.

No Japão a palavra “Caminho” é muito importante. Tem o significado de alcançar a essência.

“Quando duas flechas se encontram em pleno ar, ponta com ponta, será apenas a técnica a responsável?” Esse questionamento é de um poema do século VIII na China, de um Mestre Zen chamado Tozan Ryokai.

Quando um virtuose toca um instrumento, transcende a técnica, torna-se a própria música.

Este é o propósito mais correto de nossas práticas: nos tornarmos o próprio Caminho Iluminado.

5. Por se tratar de uma experiência própria (de cada um), a “busca religiosa” vai sempre ao encontro de uma auto-realização pessoal. Em que sentido esta realização não se fecha em si e se abre necessariamente para a comunidade em vista de servir ao todo?

O eu não está separado do outro. A prática religiosa deve nos fazer perceber que somos um só corpo e uma só vida com tudo que existe.

Xaquiamuni Buda, o Buda histórico que viveu na Índia há mais de dois mil e seiscentos anos, no momento de sua iluminação exclamou:

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“Eu e todos os seres da Grande Terra, simultaneamente, nos tornamos o Caminho”.

Este “eu” é o mesmo que “todos os seres da grande terra.”

A realização, a experiência mística, não é de uma identidade separada, uma auto-realização pessoal. É a transcendência dessa individualidade para o encontro com o Todo. Nesse sentido a realização implica em servir e cuidar. Pois tudo que nos cerca é nosso próprio ser.

O mestre vietnamita Thich Nath Hahn até mesmo sugere que tenhamos uma nova palavra nos Dicionários: o interser.

Estamos todos interligados, interconectados com toda a vida do universo. Assim para a minha auto-realização é preciso que aconteça, como a Xaquiamuni Buda, que todos os seres se tornem o Caminho. Se houver a menor separação entre o ser e o Ser, não é iluminação. Por isso desenvolve-se a Compaixão e a Sabedoria.

Não há sabedoria sem compaixão e não há compaixão sem sabedoria. São as bases de um ser iluminado.

Compaixão de estar próximo, de sentir-se um igual, de saber das necessidades verdadeiras tanto pessoais como do que e de quem nos está próximo e procurar meios de atendê-las. Não por sermos especiais, mas por sermos simples e iguais. Pois todos queremos alcançar o verdadeiro bem-estar nesta vida.

6. No Ocidente há uma compreensão do nada como negação do ser e se atribui ao Budismo uma certa conotação niilista. Como entender propriamente a significação do nada no Budismo?

Nada tem uma entidade fixa e/ou permanente. O “eu” é feito de elementos “não-eu”.

Não existimos sem o sol, a lua, os planetas, as formigas e os cupins, a nuvem e as

plantas, os sentimentos e as emoções, o frio e o calor, a luz e a sombra. O nada ou

o vazio é a abertura total a todas as possibilidades. A fonte de todas as

manifestações. Tudo e todos estamos fluindo num processo constante de

transformação.

“Forma é vazio. Vazio é forma” É uma das frases mais conhecidas do Sutra da Grande Sabedoria Completa.

Vazio de um estado permanente. Não é niilismo. Não é negação. É a compreensão da Lei da Causalidade e da Origem Dependente – um dos ensinamentos básicos de Buda. Isto existe porque aquilo existe. Aquilo cessa e isto cessa. Toda causa tem um efeito e precisa de condições apropriadas. Nada existe por si só.

7. Como entender a realização de si enquanto esquecimento de si?

Mestre Eihei Dogen (1200-1253), fundador da tradição Soto Zen no Japão escreveu o seguinte:

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“Estudar o Caminho de Buda é estudar a si mesmo.

Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo.

Esquecer-se de si mesmo é ser iluminado por tudo que existe.

É transcender corpo e mente, seu(de si próprio) e dos outros.

É colocar a iluminação a serviço de todos os seres.

E nenhum traço de iluminação permanece”.

Estudar a si mesmo é estudar a essência. A essência vai além da superfície. É a superfície, mas não se limita a ela. Esquece-se da superficialidade e penetra o profundo do ser. Para podermos ouvir, temos de nos calar. Não se limita a um “eu” pequeno, fechado em si, que faz de si o centro de tudo, mas se percebe pequeno e manifestação do ilimitado. Não parte do ilimitado, mas uma de suas infinitas manifestações. Ao transcender, ir além da mente comum, da dicotomia eu e o outro, penetra-se na Iluminação de todos os Budas. Tudo e todos são o Caminho e com todos compartilhamos a vida.

8. Tanto budismo como cristianismo trazem consigo um "–ismo", a saber, a presença de uma pretensa mediação que, de certa forma, os afastam da origem, da fonte enquanto experiência religiosa direta. Como conciliar a liberdade da experiência direta com a imposição da instituição?

As imposições institucionais não limitam a experiência direta. Até mesmo as instituições fazem parte da mística.

Se nem todos os religiosos ainda alcançaram a realização suprema, eles têm sua função e posição dentro das tradições. Todos são necessários e todos estão em um processo contínuo de prática e de realização.

Cabe a nós transcender os “–ismos”. Que não nos podem prender ou limitar.

Quando Buda percebe o Caminho não projeta criar uma instituição nem mesmo um grupo chamado budista. Ele diz:

“Sou a maravilhosa mente de Nirvana e a visão que mantém a Lei Verdadeira”.

A verdadeira mística inclui as instituições e as vê como são. Assim como vemos a cada um como é, para que serve e de que maneira pode servir melhor ao maior número de seres, conduzindo-os ao Caminho, à Verdade e à Vida?

9. O Ocidente, desde seu início com os gregos, sempre insistiu na separação entre natureza (corpo, irracionalidade, matéria) e ser humano (alma, razão, espírito), bem como na necessidade desta última subjugar a primeira. O Zen, contudo, sem perder a austeridade, parte de uma leveza e de uma harmonia. Como se dá essa conciliação?

Reconciliando o aparente irreconciliável, pois penetramos além da aparência, além dos conceitos, antes dos julgamentos e das dualidades. Esta a terceira visão, este o

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olhar iluminado, esta a capacidade de incluir o visível e o invisível, o vazio e a forma, o corpo e o espírito. A integridade do ser, a integração da mente.

Criar harmonia é harmonizar-se com tudo e todos.

Dizemos que Prajna Paramita – a Sabedoria Completa – é a mãe de todos os seres iluminados. Nascemos, vivemos em Sabedoria. Esta inclui a Compaixão, o cuidado, o compartilhar, o estar junto com, sentir-se parte de. Isso é harmonizar-se. Viver em harmonia com a harmonia do Cosmos, que se faz e desfaz e refaz a cada instante.

Bodhidharma, o 28o ancestral a partir de Xaquiamuni Buda, que levou os ensinamentos da Índia para a China e é considerado o fundador do Zen, dizia que há duas entradas: pela razão e pela intuição. As duas nos levam à Sabedoria e à Compaixão. E as duas não se opõem, mas se completam.

Einstein dizia que depois de pensar e refletir, exaurir a mente lógica, ele se sentava em quieto silêncio e daí, desse nada, desse vazio, surgiam as idéias mais brilhantes.

10. O Zen muitas vezes é apresentado no Ocidente como um caminho de retorno. Essa imagem aparece descrita, por exemplo, na história do caminho percorrido por um vaqueiro que sai à procura de um boi. O que quer dizer propriamente o encontro do boi nessa história e o que isso tem a ver com a experiência de iluminação no Zen?

São dez os desenhos do vaqueiro, simbolizando o Caminho da Prática-Iluminação. É um retorno à origem, à fonte, à essência, à nossa casa verdadeira, onde ficamos bem e protegidos, tranqüilos e satisfeitos.

Mas não paramos aí. Saímos e vamos de mãos abertas à praça, ao mercado, oferecer nossos serviços a quem deles precisar.

Os primeiros desenhos mostram as pegadas do touro, depois seu rabo, seu corpo. O vaqueiro o laça e então o doma. Sobe em seu dorso e caminha tocando uma flauta.

Chega em casa e descansa.

O desenho seguinte é um círculo vazio.

A transcendência do touro e do ser humano.

O desenho seguinte mostra um cenário e ao final o ser humano transformado retorna ao mercado, à praça pública, ao coletivo.

Assim é a prática do Zen. Percebemos nossas próprias pegadas, nossos gestos, palavras, pensamentos. Parecem indomáveis, mas, ao conhecê-los e ao aceitá-los, deixam de nos dominar. Tornam-se dóceis. Caminham conosco.

Há o momento do grande silêncio, do encontro fecundo e único. Um só círculo.

Alguns terminam aí. Outros continuam. A natureza, a vida em sua plenitude, plantas, águas, terra, vento, animais, flores, frutos. O local sagrado, a terra pura.

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E o praticante retorna ao mundo comum, transformado em um servidor humilde e simples.

Estamos sempre indo, indo, caminhando. Chegando e já partindo. Ao mesmo tempo sem ir nem vir, sem surgir e sem desaparecer, apenas caminhamos.

O Sutra da Grande Sabedoria Completa termina com um mantra:

“Gyate, gyate, hara gyate, hara so gyate. Bodhi svaha!”

“Indo, indo, tendo ido, tendo chegado. Honrando a Sabedoria Iluminada.”

Mãos em prece!

São Paulo, Maio de 2006.

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TRADUÇÕES [Scheila, este texto em latim a seguir vem paralelo (página e contrapágina) com a tradução – latim de um lado português do outro] EPISTOLA DE NIHILO ET TENEBRIS. Ad proceres palatii.

Fredegisi

Omnibus fidelis et domni nostri serenissimi principis Caroli in sacro ejus palatio

consistentibus Fredigysus diaconus.

Agitatam diutissime a quampluribus quaestionem de hihilo, quam indiscussam

inexaminatamque veluti impossibilem ad explicandum reliquerunt, mecum sedulo

volvens, atque pertractans, tandem visum mihi fuit aggredi; eamque nodis

vehementibus, quibus videbatur implicata, disruptis absolvi atque enodavi,

deterosoque nubilo in lucem restitui; memoriae quoque posteritatis cunctis in futurum

saeculis mandandam praevidi. Quaestio autem hujusmodi est, nihilne aliquid sit, an

non. Si quis responderit, Videtur mihi nihil esse, ipsa ejus quam putat negatio

compellit eum fateri aliquid esse nihil dum dicit, Videtur mihi nihil esse. Quod tale est

quase dicat, Videtur mihi nihil quiddam esse. Quod si aliquid esse videtur ut non sit

quodam modo videri non potest. Quocirca relinquitur ut aliquid esse videatur. Si vero

hujusmodi fiat responsio, Videtur mihi nihil nec aliquid esse, huic responsioni

abviandum est, primum reatione, in quantum hominis ratio patitur, deinde auctoritate,

non qualibet, sed ratione duntaxat, quae sola auctoritas est, solaque immobilem

obtinet firmitatem. Agamus itaque ratione. Omne itaque nomen finitum aliquid

significat, ut homo, lapis, lignum. Haec enim ubi dicta fuerint, simul res quas fuerint

significant intelligimus. Quippe hominis nomen praeter differentiam aliquam positum

universalitatem hominum designat. Lapis et lignum suam similiter generalitatem

complectuntur. Igitur hinil ad id quod significat refertur. Ex hoc etiam probatur non

posse aliquid non esse. Item aliud. Omnis significatio est quod est. Nihil autem

aliquid significat. Igitur nihil ejus significatio est quid est, id est, rei existentis.

Quoniam vero demonstrandum quod non solum aliquid sit nihil, sed etiam magnum

quiddam, paucis actum est ratione, cum tamen possint hujusmodi exempla innumera

proferri in medium, ad divinam auctoritatem recurrere libet, quae est rationis

munimen et stabile firmamentum. Siquidem universa Ecclesia divinitus erudita, quae

e Christi latere orta, sacratissimae carnis ejus pabulo pretiosique sanguinis poculo

educata, ab ipsis cunabilis secretorum mysteriis instituta, inconcussa fide tenere

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confitetur divinam potentiam operatam esse ex nihilo terram, aquam, aera, et ignem,

lucem quoque, et angelos, atque animam hominis. Erigenda est igitur ad tanti

culminis auctoritatem mentis acies, quae nulla ratione cassari, nullis argumentis

refelli, nullis potest viribus impugnari. Haec enim est quae praedicat ea quae inter

creaturas prima (Sic in ms.) prima ac praecipua sunt aestimandum non est. Quippe

cum unum horum quae ex eo genita sunt aestimari sicut es aestimari non possit.

Quis enim elementorum naturam ex asse metitus est? Quis enim lucis nomine aut

angelicae (naturae) velamine substantiam ac naturam complexus? Si ergo haec

quae proposui humana ratione comprehendere nequivimus, quomodo obtinebimus

quantum qualeve sit illud unde originem genusque ducunt. Poteram autem et alia

quamplura subjicere. Sed docibilium quorumque pectoribus satis his insinuatum

credimus.

De tenebris, an sint.

Quoniam his breviter dictis commode finem imposui, mox ad ea expedienda

intentionem reduli quae curiosis lectoribus non immerito videbantur digna esse

quaesitu. Est quidem quorumdam opinio, non esse tenebras, et ut sint impossibile

esse. Quae quam facile refelli possit sacrae Scripturae auctoritate prolata in medium,

prudens lector agnoscet. Itaque quid libri Genesis historia inde sentiat videamus. Sic

enim inquit: Et tenebrae erant super faciem abyssi (Gen. I). Quae si non erant, qua

consequentia dicitur quia erant? Qui dicit tenebras esse, rem constituendo ponit. Qui

autem non esse, rem negando tollit. Sicut cum dicimus, Homo est, rem id est

hominem consituimus. Cum dicimus, Homo non est, rem negando id est hominem

tollimus. Nam verbum substantiae hoc habet in natura ut cuicunque subjectum fuerit

junctum sine negatione, ejusdem declaret substantiam. Igitur in eo quod dictum est

Tenebrae erant super faciem abyssi, res constituta est, quam ab esse nulla negatio

separat aut dividit. Item tenebrae subjectum est erant declarativum. Declarat enim

praedicando tenebras quodam modo esse. Ecce invicta auctoritas ratione comitata,

ratio quoque auctoritatem confessa, unum idemque praedicant, scilicet tenebras

esse. Sed com ista exempli causa posita ad demonstrandum quae praeposuimus

sufficiant, tamen ut nulla contradicendi accasio aemulis relinquatur, faciamus palam,

pauca divina testimonia aggregantes e pluribus, quorum perculsi formidine

ineptissimas ulterius voces adversus ea jaculari non audeant. Siquidem Dominus

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cum pro afflictione populi Israel plagis severioribus castigaret Egyptum, tenebris eam

involvit adeo spissis ut palpari quirent, et non solum obtutibus hominum visum

adimentibus, sed etiam pro sui crassitudine manuum tactui subjacerent. Quidquid

enim tangi palparique potest, esse necesse est. Quidquid esse necesse est, non

esse impossibile est: ac per hoc tenebras non esse impossibile est, quia esse

necesse est quod ex eo quod est palpabile probatum est. Illud quoque praeterendum

non est, quod cum omnium dominus inter lucem et tenebras divisionem faceret,

lucem appellavit diem, et tenebras noctem. Si enim diei nomen significat aliquid,

noctis nomen non potest aliquid non significare. Dies autem lucem significat. Lux

vero magnum aliquid est. Quid ergo tenebrae, nihilne significativae sunt, cum eis

vocabulum noctis ab eodem conditore impressum est, qui luce appellationem diei

imposuit, cassandaque est divina auctoritas? Nullo modo. Nam coelum et terram

facilius est transire quam auctoritatem divinam a suo statu permutari. Conditor

etenim rebus quas condidit nomina impressit, ut suo quaeque nomine res dicta

agnita foret. Neque rem quamlibet absque vocabulo formavit, nec vocabulum aliquid

statuit nisi cui statueretur existeret. Quod si foret, omnimodis videretur superfluum,

quod Deum fecisse nefas est dici. Si autem nefas est dici Deum aliquod statuisse

superfluum, nomen quod Deus imposuit tenebris nullo modo videri potest

superfluum. Quod si non est superfluum, est secundum modum. Si vero secundum

modum, et necessaria, quia eo ad dignoscendam rem opus erat quae per id

significatur. Constat itaque Deum secundum modum res consituisse et nomina quae

sibi ad invicem sunt necessaria. Sanctus quoque David propheta Spiritu plenus,

sciens tenebras non inane quiddam et ventosum sonare, evidenter expressit quia

quiddam sunt. Ait ergo: Misit tenebras (Psal. CIV). Si non sunt, quomodo mittuntur?

Quod autem mitti potest, et illo mitti potest ubi non est. Quod vero non est, mitti

quolibet non potest, quia nusquam est. Igitur missae dicuntur tenebrae, quia erant.

Item illud: Posuit tenebras latibulum suum (Psal. XVII). Quod scilicet erat posuit, et

quodam modo posuit tenebras quae erant, latibulum suum poneret. Item illud: Sicut

tenebrae ejus (Psal. CXXXVIII). Ubi ostenditur quia im possessione sunt ac per hoc

esse manifestantur. Nam omne quod possidetur est. Tenebrae autem in possessione

sunt. Igitur sunt. Sed cum ista talia ac tanta sufficiant, et arcem tutissimam contra

omnia impugnamenta teneant, unde levi repulsa tela in suos jaculatores retorquere

possunt, ex evangelica tamen firmitate quaedam poscenda sunt. Ponamus igitur

ipsius Salvatoris verba: Filii, inquit, regni ejicientur in tenebras exteriores (Matth. VIII).

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Attendendum est autem quod tenebras exteriores nominat. Extra enim, unde exterius

derivatus est Iocum significat. Quapropter cum dicit exteriores tenebras, locales esse

demonstrat. Nam non essent exteriores, nisi essent et interiores. Quidquid autem

est, id in loco sit necesse est. Quod vero non est, hoc nusquam est. Igitur exteriores

tenebrae non solum sunt, sed etiam locales sunt. In passione quoque Domini

evangelista tenebras esse factas commemorat ab hora diei sexta usque ad horam

nonam. Quae cum factae sint, quomodo non esse dicuntur? Quod factum est, effici

non potest ut factum non fuerit. Quod vero semper non est, nec nunquam fuit, id

nunquam est. Tenebrae autem factae sunt. Quare non ut sint effici non potest. Item

in Evangelio: Si lunem quod in te est, ipsae tenebrae quantae erunt (Matth. VI; Luc.

XI). Neminem dubitare credo (quin) quantitas corporibus attibuta sit quae [quia]

cuncta per quantitatem distribuuntur. Et quantitas quidem secundum accidens est

corporibus. Accidentia vero aut in subjecto sunt, aut de subjecto praedicantur. Per

hoc ergo quod dicitur ipsae tenebrae quantae erunt, quantitas in subjecto monstratur.

Unde probabile colligitur tenebras non solum esse, sed etiam corporales esse. Itaque

haec pauca ratione simul et auctoritate congesta vestrae magnitudini atque

prudentiae scribere curavi, ut eis fixe immobiliterque haerentes, nulla falsa opinione

illecti, a veritatis tramite declinare possitis, sed si forte a quocunque aliquid prolatum

fuerit ab hac nostra ratione dissentiens, ad hanc velut ad regulam recurrentes, ex

ejus sententiis stultas machinationes dejicere valetis.

Explicit de tenebris.

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DO NADA E DAS TREVAS1 (carta de Fredegis aos maiorais do Palácio)

A todos os fiéis e aos reunidos no sacro palácio do nosso sereníssimo príncipe Carlos, Fredegis,2 diácono!3 Pensando comigo mesmo com aplicação e considerando-a de início ao fim, me vi por fim assumindo a questão do nada. Questão por muito tempo remexida por grande número de pessoas, e sem ser discutida nem examinada abandonada, qual uma questão impossível de ser explicada. Uma vez quebrados os nós rígidos, nos quais ela parecia estar enredada, desembaracei-a e libertei-a, e, dissipando-lhe a nebulosidade, restituí-a à luz. Providenciei também em confiá-la à memória da posteridade para todos os séculos vindouros. A questão do nada é, pois, assim como segue: o nada é algo ou não? Se alguém responder “parece-me4 que nada é nada”, essa enunciação pensada por ele, compele-o a dizer que nada é algo, enquanto diz: parece-me que nada é. Isto é assim como se dissesse: parece-me que nada é um certo quê. É que, se, parece que é algo, então, que não seja não pode ser visto, de modo algum. Portanto, parece restar que nada seja algo. Se, porém, a resposta for: “parece-me ser nada nem algo”,5 ela deve ser enfrentada, primeiramente pela razão, enquanto a razão humana pode receber, e então, pela autoridade; não por uma qualquer, mas pela autoridade enquanto avalia pela razão, 1 Fredegisus, De substantia nihili et tenebrarum (ou Epistula de nihilo et tenebris ad proceres palatii, PL 105, Coll. 751-756; cf. GENNARO, Concettina (ed. a.c. de). Fridugiso di Tours e il “De substantia nihili et tenebrarum”: Edizione critica e studio introdutivo (“Pubblicazioni dell’istituto universitario di magistero di Catania,” serie filosofica – saggi e monografie, n. 46; Pádua: Casa editrice Dott. Antonio Milani, 1963; cf. CORVINO, Francisco. “Il ‘De nihilo et tenebris’ di Fredegiso di Tours”, in: Revista critica di storia della filosofia (1956), p. 273-286; cf. ENDRES, Jos. Ant., Fredegisus und Candidus, Philosophisches Jahrbuch (1906), vol. 19, Fulda, p. 439-450. 2 Fredegis ou Fredegisus nasceu na Inglaterra no fim do século VIII. Foi discípulo de Alcuíno (ca 735-804), primeiro em York, depois quando da ida de Alcuíno para França na corte de Carlos Magno (742-814) seguiu-o e trabalhou com ele na schola palatiana, centro de estudos, ensino e pesquisa, fundado e mantido por Carlos Magno. Alcuíno tornou-se alma desse centro de estudos. Em 796 Alcuíno tornou-se abade do mosteiro de São Martinho em Tours, cuja escola conventual ele transformou num estabelecimento-modelo de ensino. Após a morte de Alcuíno em 804, Fredegis sucedeu-o tornando-se abade do mosteiro de São Martinho. E também atuou como ele, eficazmente no fomento dos estudos, ensino e pesquisa, florescentes no reino, deixado por Carlos Magno. Faleceu no ano de 834. 3 Entre os estudiosos da vida de Fredegis, de modo geral é aceito que a carta foi escrita no tempo de sua estadia em Tours e de suas atividades no ensino. O título, mencionado por Fredegis ele mesmo, indicando o grau de ordenação (diácono), poderia ser usado por ele, mesmo sendo abade. 4 Parece-me é a tradução do mihi videtur = a mim se vê; algo é visto a mim. A voz ativa do verbo videre na voz passiva é videri. Mas aqui, essa forma passiva parece se referir à voz medial do grego. Entender, portanto, videri na formulação mihi videtur, como me parece, mas entendida como medial, pode nos exigir que ao se traduzir mihi videtur por “me parece”, entendamos: me é mostrado, me é feito visível, me aparece, se me vem à luz, e não na acepção de uma opinião, cuja evidência é “menor”. Aqui, videtur é traduzido ora como parece, ora como me é mostrado ou se me mostra ou me aparece. 5 Videtur mihi nihil nec aliquid esse. Como nec pode significar nem, não, e não, traduzimos: Parece-me que é nada e não algo. Aqui é nada significaria não é mais aquele nada na acentuação de que o nada é, no argumento anterior, mas, no sentido de é nada, a saber, é nem nada nem algo. Pois há diferença se digo: não é nada nem é não algo. Videtur mihi nihil nec aliquid esse poderia ser traduzido: Parece-me ser nem nada nem algo.

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que é a autoridade única e a única a obter a firmeza imóvel. Assim, ajamos, pela razão. Todo nome finito, pois, significa algo, como p.ex., homem, pedra, madeira. Com estes nomes, portanto, lá onde forem ditos, simultaneamente, i. é, ao mesmo tempo em que foram ditos, compreendemos as coisas que eles significam. Assim, o nome “homem”, colocado para além de qualquer diferença, designa a universalidade dos homens. “Pedra” e “madeira” contêm de modo semelhante a sua generalidade. Portanto, o nada se refere ao quê significa. Disso, também se prova que não pode algo não ser. Igualmente, um outro argumento. Toda significação é o que é. Nada, porém, significa algo. Portanto, o nada, a significação dele é o quê é, isto é, da coisa existente. Mas, porque, foi feita pela razão, apenas com poucas palavras a demonstração de que o nada, não somente é algo, mas também um grande algo, para que se possam trazer inúmeros exemplos de tal feitio para nosso meio, seja-nos lícito recorrer à divina autoridade, que é o abrigo e o firmamento6 da razão. Com efeito, toda a Igreja, instruída divinamente, nascida do lado de Cristo, nutrida com o alimento da sua sacratíssima carne e com a bebida do seu precioso sangue, desde o berço, instruída nos mistérios dos arcanos, confessa assegurar com fé inabalável que o poder divino fez terra, água, ar e fogo, também luz, e anjos e a alma do homem, do nada. Deve-se, portanto, potencializar a acuidade da mente em direção à autoridade de tamanha culminância, que não pode ser anulada por nenhuma razão, não pode ser refutada por nenhum argumento, impugnada por nenhuma força. É esta, a autoridade, que proclama que não se pode avaliar aquelas coisas que são primeiras entre as criaturas, primeiras e precípuas, já que uma dessas coisas que Dele são nascidas não pode ser avaliada assim como é o ser avaliado. Quem, pois, mediu com o as7 a natureza dos elementos? Quem, pois, com o termo “luz” ou com o véu dos anjos abraçou substância ou natureza?8 Se, pois, a estas coisas que propus, não as podemos compreender pela humana razão, como haveremos de conseguir saber quanto e qual seja aquilo, a partir de onde elas trazem a origem e o gênero? Eu poderia, porém, apresentar também muitas outras coisas. Mas acreditamos que foi insinuado nos seus peitos o suficiente daquelas coisas que podem ser aprendidas.

Das trevas, mas elas são?

Porque impus um fim cômodo às coisas que dissemos brevemente, a seguir, retomei

a intenção de volver-me àquelas coisas a serem deslindadas, que aos leitores

6 Firmamento significa a firmação, firmeza, alicerce, sustentáculo, mas ao mesmo tempo o céu aberto, o firmamento. 7 Unidade usada em Roma como termo de comparação para moedas, pesos e medidas. 8 O texto latino à nossa disposição diz: Quis enim elementorum naturam ex asse metitus est? Quis enim lucis nomine aut angelicae (naturae) velamine substantiam ac naturam complexus? A tradução acurada feita por Paul Vincent Spade, do Departament of Philosophy, Indiana University Bloomington, IN 47405 soa: For who has measured the nature of the elements in detail? Who has grasped the being and nature of light, of angelic nature, or of the soul? E Endres, Jos. Ant em Fredegis und Candidus, op. cit. p. 443, nota 1 diz: “Na frase incompreensível: ‘Quis enim lucis nomine aut angelico velamine substantiam ac naturam complexus’ as palavras ‘lucis nomine aut angelico velamine’ devem ser sem dúvida corrigidas para: ‘lucis aut angelorum vel animae hominis’ ”. Da nossa parte traduzimos literalmente o texto latino aqui usado por nós, interpretando lucis nomine por o termo luz, e angelico velamine por véu dos anjos. A realidade aqui apresentada por Fredegis é tão imensa que com medida como as, ou mesmo com medida muito maior do firmamento, nomeada por termo luz ou mesmo com a medida que serve de véu ou vestimenta dos anjos, não pode ser medida à modo de medição como conhecemos.

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cuidadosos pareciam, não sem mérito, dignas de ser buscadas. Há, pois, de várias

pessoas a opinião de que as trevas não são e de que não é possível que sejam. Um

leitor prudente logo reconhece com que facilidade essa opinião pode ser refutada

com a autoridade da Sagrada Escritura, trazida no nosso meio. Vejamos, portanto, o

que sente a história do livro da Gênese. Diz, pois, assim: E as trevas estavam sobre

a face do abismo (Gn 1,2). As quais, se não eram, por que coerência se diz que

eram? Quem diz que as trevas são, ele põe, constituindo a coisa. Quem diz que as

trevas não são, porém, tira, negando a coisa. Assim como quando dizemos que

homem é, constituímos a coisa, i. é, o homem. Quando dizemos que o homem não

é, retiramos a coisa, negando, i. é, o homem. Pois o verbo da substância, seja a que

for que a substância como sujeito, é ligada sem a negação, tem por natureza

declarar que ele o sujeito é a substância daquilo a que ele foi ligado sem negação.

Portanto, no que é dito “as trevas estavam sobre a face do abismo”, a coisa é

constituída, a qual nenhuma negação separa, ou divide. Pois, “as trevas” é sujeito,

“eram”, o declarativo. Declara, pois, predicando que as trevas são de algum modo.

Eis a autoridade, acompanhada pela razão, razão que também confessa a

autoridade; ambas predicam uma mesma coisa, a saber, que as trevas são. Mas,

embora sejam suficientes estas coisas postas como exemplo para demonstrar o que

acima colocamos, para que, porém, não reste nenhuma ocasião do êmulo de

contradizer, façamos patentes as testemunhas, acrescentando poucas, tiradas de

muitas, de modo que atingidos pelo medo delas, não ousemos lançar posteriores

vozes altamente inaptas contra elas. Quando, pois, o Senhor, movido pela aflição do

povo de Israel, castigou com as mais duras pragas o Egito, envolveu-o em espessas

trevas, de tal modo que se podia apalpá-las, mas também, por causa da sua

densidade, elas estavam sujeitas a serem tangidas pelas mãos. O que quer que,

pois, possa ser tangido e apalpado, é necessário que seja. O que quer que seja

necessário ser, é impossível que não seja: e por isso, é impossível que as trevas

não sejam: porque é necessário ser o que, pelo fato de ser ele é palpável, é provado

que é. Também não deve ser preterido o fato de que, quando o Senhor de todas as

coisas fez divisão entre luz e trevas, chamou a luz de dia e trevas de noite. Se, pois,

o nome “dia” significa algo, o nome noite não pode não significar algo. Dia significa

luz. Luz, porém, é um algo grande. Mas, o que há com as trevas? Acaso nada

significam? E, no entanto, a elas foi impresso o vocábulo “noite” pelo mesmo Criador

que com “luz” impôs a apelação ao dia? É, pois, para se anular a autoridade divina?

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De modo algum. Pois o céu e a terra passam mais facilmente do que a divina

autoridade ser removida de todo da sua posição. O Criador, no entanto, imprimiu

nomes às coisas que ele criou, para que toda a coisa dita por seu nome fosse

reconhecida. E não formou nenhuma coisa sem vocábulo, nem estatuiu vocábulo a

não ser que existisse algo para o qual o vocábulo foi estatuído. Se esse algo não

existisse, parece ser de todo supérfluo, o que Deus fez. Mas dizer isso é nefasto.

Se, porém, é nefasto dizer que Deus estatuiu algo supérfluo, de modo algum o nome

que Deus impôs às trevas pode ser visto como supérfluo. Se, não é supérfluo, é

conforme o modo. Se, porém, é conforme o modo, ele é necessário, porque para

conhecer a coisa era necessário que ela fosse significada por ele. Consta, portanto,

que Deus constituiu conforme o modo coisas e nomes, os quais, ambos, são

mutuamente necessários entre si. Também Davi, profeta cheio de Espírito, sabendo

que o nome trevas não entoava algo vazio e ventoso, disse expressa e claramente

que as trevas são um certo quê. Disse, portanto: Enviou trevas (Sl 104, 28). Se elas

não são, como é que são enviadas? O que, porém, pode ser enviado, pode ser

enviado a onde não é? O que, porém, não é não pode ser enviado a nenhuma parte,

porque não é em lugar nenhum. Portanto, diz-se que as trevas foram enviadas

porque eram. Do mesmo modo, a passagem: Ele colocou as trevas como seu

esconderijo (Sl 17,12). Ele pôs o que, a saber, era, e de algum modo pôs as trevas

que eram, para pôr como seu esconderijo. Igualmente também: Assim como suas

trevas (Sl 138,12). Aqui é mostrado que elas estão na sua posse e por isso é

manifestado que são. Pois tudo que é possuído é. As trevas, porém, são na sua

posse. Portanto, são. Mas, embora estas tais e tantas testemunhas sejam

suficientes e sejam tidas como uma fortaleza de segurança máxima contra todas as

impugnações, cujos dardos, com leve movimento de repulsão podem ser reenviados

aos que os lançam, exijamos algumas testemunhas vindas da firmeza evangélica.

Coloquemos, pois, as palavras do próprio Salvador: Os filhos, disse, do reino são

lançados nas trevas exteriores (Mt 8,12). Deve-se atender que se dá o nome de

trevas exteriores. Extra quer dizer de fora e deriva de exterius que significa

exteriormente. Ambos os termos extra e exterius significam lugar. Por isso, ao se

dizer trevas exteriores, demonstra-se que elas são localizadas. Não seriam, porém

exteriores, se não fossem também interiores. Mas, o que quer que seja, é

necessário que seja no lugar. O que, porém, não é, não é em nenhum lugar. Por

conseguinte, as trevas exteriores não somente são, mas também são localizadas.

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Também na paixão do Senhor, o evangelista recorda que se fizeram trevas da sexta

hora do dia até a nona. Se se fizeram trevas, como é que se diz que não são? O que

foi feito não pode ser feito que não fosse feito. O que, porém, sempre não é nem

nunca foi, isto nunca é. Fizeram-se, porém, trevas. É porque não pode ser feito que

não sejam. De novo no Evangelho: Se, a luz que está em ti é treva, quão grandes

serão as próprias trevas (Mt 6,23; Lc 11,35s). Creio que ninguém duvida que a

quantidade é atribuída aos corpos, e que todos, eles são distribuídos pela

quantidade. E certamente, a quantidade está nos corpos, enquanto acidentes. Os

acidentes, porém, ou são no sujeito ou são predicados do sujeito. Por isso, quando

se diz quão grandes são, mostra-se a quantidade no sujeito. Disso se conclui com

provas que as trevas não somente são, mas também são corporais. Procurei assim

escrever essas poucas palavras, endereçadas à vossa grandeza e prudência,

recorrendo simultaneamente tanto à razão como à autoridade. Tudo isso para que,

aderentes a elas de modo firme e inamovível, possais não vos declinar da vereda da

verdade por nenhuma opinião falsa. Mas se, por acaso, por quem quer que seja, for

pronunciado algo que dissinta dessa nossa razão, recorrendo a esta como a uma

regra, podeis expulsar de suas sentenças as estultas maquinações.

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DIÁLOGO SOBRE O DEUS ABSCÔNDITO ENTRE UM PAGÃO E UM CRISTÃO

E disse o Pagão: Vejo-te prostrado mui devotamente, banhado em lágrimas de amor, não falsas, mas vindas do coração. Pergunto, quem és?

Cristão: Sou cristão.

P: O que adoras?

C: Deus.

P: Quem é Deus, este a quem adoras?

C: Ignoro.

P: Como adoras tão seriamente, o que ignoras?

C: Porque ignoro, adoro.

P: Muito me admira ver um homem ser afeiçoado por algo que ignora.

C: Mais admirável ainda é um homem ser afeiçoado por algo que julga saber.

P: Por que isso?

C: Porque menos sabe isto que julga saber do que isto que sabe ignorar.

P: Aclara, te peço.

C: Todo aquele que julga saber, enquanto nada se possa saber, parece-me a-mente.

P: Antes, é a mim que parece careceres inteiramente de razão, tu que dizes: nada se pode saber.

C: Eu compreendo por ciência a apreensão da verdade. Quem diz saber diz ter apreendido a verdade.

P: O mesmo creio eu.

C: Como, pois, a verdade pode ser apreendida, a não ser por si mesma? E não pode ser apreendida, se antes há quem apreende e depois o apreendido.

P: Não compreendo quando dizes que a verdade não pode ser apreendida a não ser por si mesma.

C: Julgas que ela seja apreensível de outro modo e em algo outro?

P: Sim.

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C: Erras redondamente; pois fora da verdade não há verdade, fora da circularidade não há círculo, fora da humanidade não há homem. Assim, não há verdade fora da verdade nem de outro modo nem em algo outro.

P: Mas então como se me torna notável que é um homem, que é uma pedra e assim por diante acerca das coisas singulares, das quais sei?

C: Nada sabes dessas coisas, mas julgas saber. Se, pois, te interrogar sobre a quididade daquilo que julgas saber, afirmarás que não podes exprimir a verdade própria do homem ou da pedra. Mas que tu sabes que o homem não é pedra, isto não vem da ciência, pela qual sabes do homem, da pedra e da sua diferença, mas vem do acidente, da diversidade das operações e das figuras, à qual, enquanto discernes, impões nomes diversos. O movimento, pois, na razão impõe nomes discretos.

P: Há uma ou muitas verdades?

C: Não há se não uma una; pois não há senão uma unidade e a verdade coincide com a unidade, porque é verdadeiro que una é a unidade. Assim, portanto, como no número não se encontra senão unidade una, também em muitos não se encontra a não ser verdade una. E daí, quem não atinge a unidade, sempre há de ignorar o número, e quem não atinge a verdade na unidade nada pode saber verdadeiramente. E embora julgue saber verdadeiramente, experimenta facilmente que o que julga saber, isso, o pode saber mais verdadeiramente. Mais verdadeiramente pode ser visto o visível do que é visto por ti; visto mais verdadeiramente pelos olhos mais aguçados. Não é, portanto, visto por ti, como é visível na verdade; assim é também com o ouvido e com os outros sentidos. Mas como tudo que é sabido – sabido não por aquela ciência pela qual se pode saber – não é sabido na verdade, mas diversamente e de outro modo; (mas diversamente e de outro modo que a própria verdade é, a verdade não é sabida); aqui então é amente aquele que julga saber em verdade algo, e ignora a verdade. Não seria julgado amente aquele cego que presumisse saber a diferença das cores, quando ignora a cor?

P: Quem dos homens é, pois, sábio, se nada se pode saber?

C: A este deve-se considerar sábio, quem se sabe ignorante e este venera a verdade, quem sabe que, sem a verdade, nada pode apreender, nem ser, nem viver, nem compreender.

P: Fosse talvez isso que te atraiu para a adoração, a saber, o desejo de ser na verdade.

C: É isso mesmo, que dizes. Venero a Deus, não aquele a quem o teu paganismo presume falsamente conhecer e nomear, mas o próprio Deus, quem é a própria verdade inefável.

P: Já que veneras a Deus que é a verdade e nós não pretendemos venerar a um Deus que não é Deus em verdade, rogo-te, irmão, que nos digas qual é a diferença entre vós e nós?

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C: São muitas as diferenças; mas uma e a máxima está nisso que nós veneramos a própria verdade, absoluta, sem mistura, eterna e inefável, e vós não venerais a própria verdade, como é absoluta em si, mas como é em suas obras, não a unidade absoluta, mas a unidade em número e multidão. Assim andais errantes, pois a verdade que é Deus é incomunicável a outro.

P: Rogo-te, pois, irmão, conduz-me a que eu te possa compreender acerca de teu Deus. Responde-me: o que sabes de Deus, a quem adoras?

C: Sei não ser Deus tudo que sei e sei não lhe ser semelhante tudo o que concebo, mas que Ele, a tudo isso excede.

P: Portanto, nada é Deus.

C: Ele nada não é, pois esse mesmo nada possui o nome de “nada”.

P: Se não é nada, então é algo.

C: Também não é algo, pois algo não é tudo. Deus, porém, não é antes algo do que tudo.

P: Coisas espantosas, afirmas, a saber, que Deus, a quem adoras, não é nada, nem é algo; a ele nenhuma razão compreende.

C: Deus está acima do nada e do algo, pois o nada a ele obedece, para tornar-se algo. E isso é sua onipotência, pela qual potência, excede tudo o que é ou não é, a fim de que assim lhe obedeça, tanto o que não é, como o que é. Ele faz, pois, o não-ser ir para dentro do ser e o ser para dentro do não-ser. Ele nada é, portanto, daquelas coisas que lhe são submissas e às quais precede a sua onipotência. E por causa disso, dele não pode ser dito antes isto do que aquilo, já que por ele são todas as coisas.

P: Pode-se nomeá-lo?

C: Raro é o que é nomeado; sua grandeza não pode ser concebida; ele permanece inefável.

P: Logo, é inefável?

C: Não é inefável, mas acima de tudo que é dizível, por ser causa de tudo que é nominável. Aquele, pois, que aos outros dá o nome, como é ele mesmo, sem nome?

P: É, assim, dizível e inefável?

C: Nem isso. Pois Deus não é a raiz da contradição, mas é a própria simplicidade, anterior a toda raiz. Daí, nem sequer isso se pode dizer, que ele é dizível e inefável.

P: O que dizes, pois dele?

C: Que ele não é nomeado, não é inominado, nem nomeado e inominado; mas tudo que se pode dizer, disjuntiva e copulativamente, pelo consenso ou pela contradição,

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não convém a ele por causa da excelência da sua infinitude, visto ser princípio uno, anterior a todo pensamento que dele se possa formar.

P: Assim, por conseguinte, a Deus não convém o ser.

C: Dizes retamente.

P: Logo, é nada.

C: Não é nada, nem não é, nem é e não é, mas é fonte e origem de todos os princípios do ser e do não ser.

P: Deus é a fonte dos princípios do ser e do não ser?

C: Não.

P: Mas acabaste de afirmar isso!

C: Disse algo verdadeiro, quando disse e agora digo algo verdadeiro, quando nego. Pois, se há quaisquer princípios do ser e do não ser, a eles precede Deus. Mas o não ser não tem o princípio do não-ser, mas do ser. O não-ser necessita, portanto, do princípio. Assim, pois, é o princípio do não ser, porque sem ele o não-ser não é.

P: Não é Deus, a verdade?

C: Não, porém ele precede a toda verdade.

P: Ele é diverso da verdade?

C: Não, pois a alteridade não lhe convém; Ele, antes de tudo que concebemos e nomeamos por verdade, é infinitamente mais excelente.

P: Não nomeais Deus de “Deus”?

C: Nomeamos!

P: Dizeis algo verdadeiro ou falso?

C: Nem um nem outro. Não dizemos, pois, algo verdadeiro, no sentido de que Deus seja seu nome; nem dizemos algo falso, pois não é falso que Deus seja seu nome. Tampouco dizemos algo verdadeiro e algo falso, visto que sua simplicidade antecede tudo que é nominável e inominável.

P: Por que o chamais então de Deus, cujo nome ignorais?

C: Pela semelhança da perfeição.

P: Aclara, por favor.

C: Deus vem de theoro, i. é eu vejo. Pois Deus é, em nosso âmbito, o mesmo que a visão no âmbito das cores. A cor, porém, só pode ser atingida pela visão e para que se possa atingir livremente toda a cor, o centro da visão é sem cor. No âmbito da cor, portanto, não se encontra a visão, que é sem cor. Assim, segundo o âmbito da

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cor, a visão é antes nada do que algo, pois o âmbito da cor, fora de seu âmbito, não alcança ser, mas afirma que tudo que é está no seu âmbito, onde ele não encontra a visão. A visão, portanto, em sendo sem cor, é inominável no âmbito da cor, visto que nenhum nome da cor lhe responde. A visão, portanto, dá o nome a toda cor, pela discrição. Daí, no âmbito da cor, toda nomeação da cor depende da visão, mas o seu nome, do qual depende todo nome, é surpreendido como sendo antes nada do que algo. Assim, pois Deus se tem para com todas as coisas, como a visão para com todas as coisas visíveis.

P: Agrada-me o que disseste e compreendo plenamente que no âmbito das criaturas não se encontra Deus nem o seu nome, e que Deus se retrai de todo o conceito, antes do que ele seja afirmado como algo, visto que, não tendo a condição de criatura, não pode ser encontrado no âmbito das criaturas. E no âmbito dos compostos não se encontra o não-composto. E todos os nomes que nomeiam são dos compostos; o composto, porém, não é de si mesmo, mas a partir daquilo que antecede a todo composto. E ainda que o âmbito dos compostos e todos os compostos sejam o que são através desse, este, no entanto, por não ser composto, é incógnito no âmbito dos compostos. Assim, o Deus abscôndito aos olhos de todos os sábios do mundo, seja bendito pelos séculos.

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Do desprendimento e da posse de Deus*

Mestre Eckhart

Foi-me perguntado: muitas pessoas retiram-se terminantemente do meio dos homens e gostam de ficar sozinhas, nisso estaria sua paz, e se, estando na igreja, isso seria o melhor. Então eu disse: Não! E repara por quê. A quem tudo está direito, está bem em todo lugar e junto a todas as pessoas. Mas a quem não está tudo direito, este não está bem em nenhum lugar e junto a pessoa alguma. Mas quem está direito, na verdade, possui Deus junto de si. E quem tem retamente Deus, na verdade, tem-no em todo lugar, na rua, e junto a todas as pessoas, tanto quanto na igreja, no deserto ou na cela; se por outro lado ele o possui retamente e se possui só a ele, a este homem ninguém poderá criar empecilhos.

Por quê?

Ali ele só possui a Deus, só pensa em Deus e todas as coisas se lhe tornam limpidamente Deus. Este homem traz Deus em todas as suas obras e em todo lugar, e toda obra do homem é operada limpidamente por Deus; pois a obra pertence mais própria e verdadeiramente a quem a causa do que a quem a executa. Na verdade, se temos em mente límpida e somente a Deus, então ele deve obrigatoriamente operar nossa obra, e ninguém pode ser empecilho em todas as suas obras, nem multidão nem lugar. Assim, ninguém pode impedir esse homem, pois ele nada tem em mente, nada procura, nem nada lhe agrada a não ser Deus; e este se unirá com o homem em todos os seus anelos. E assim como nenhuma multiplicidade pode distrair a Deus, tampouco nada pode distrair nem dispersar esse homem, pois ele é um no Um, onde toda multiplicidade é um e uma não-multiplicidade.

O homem deve tomar a Deus em todas as coisas e habituar seu ânimo a ter Deus presente, todo tempo, no ânimo, no pensamento e no coração (minne). Repara, do jeito que pensas no teu Deus quando estás na igreja ou na cela, conserva este mesmo ânimo e leva-o para junto da multidão, na inquietação e na desigualdade. E, como já disse diversas vezes, quando se fala em igualdade, não se pensa que se deva considerar como iguais todas as obras, todo lugar e todas as pessoas. Isso não seria nada direito, pois a obra de rezar é melhor do que a de tecer, e a igreja é um lugar melhor do que a rua. Mas nas obras deves ter igual ânimo, igual fidelidade, igual amor ao teu Deus e igual seriedade. Crê, se tivesses uma tal equanimidade, ninguém te impediria da presença de teu Deus.

Mas quem não tem Deus dentro de si, em verdade, mas quer tomar a Deus totalmente a partir de fora, nisto ou naquilo, e se este procura a Deus de modo desigual, seja em obras, pessoas ou lugares, então não tem Deus. E isso sim pode facilmente criar empecilhos para este homem, pois ele não tem Deus e não procura somente a ele, não ama nem tem em mente unicamente a ele; e por isso não lhe cria impedimentos apenas a má companhia senão também a boa companhia, e não somente a rua mas também a igreja, e não apenas palavras e obras más, mas antes também as boas obras e palavras, pois os empecilhos estão nele, visto que nele * Tradução de Enio Paulo Giachini. Extraído de QUINT, Josef (Ed. e trad.), Meister Eckharts Traktate. Stuttgart: Kohlhammer, 1963 (Die rede der Underscheidunge, n. 6. “Von der abegescheidenheit und von habenne gotes”).

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Deus ainda não se tornou todas as coisas. Pois se isso lhe tivesse acontecido, então estaria plenamente bem e direito com ele em todo lugar e junto a todo mundo, pois tem Deus, e, este, ninguém lho pode tirar e tampouco alguém poderá criar empecilhos para sua obra.

Em que consiste pois esse ter Deus, de modo a possuí-lo verdadeiramente?

Esse verdadeiro ter a Deus encontra-se no ânimo e num votar-se a Deus e tê-lo em mente de modo interior e intelectivo, e não num pensar repetitivo, de modo igual, pois seria impossível à natureza ter isso em mente e muito difícil e não seria o melhor. O homem não deve contentar-se nem satisfazer-se com um Deus pensado, pois quando se esvai o pensamento, se esvai também o Deus. Antes: deve-se ter um Deus essencial e vigente (gewesende), que está longe acima do pensamento do homem e de todas as criaturas. Este Deus sim não se esvai, a não ser que o homem se desvie voluntariamente dele.

Aquele que assim possui Deus na essência e vigência toma Deus divinamente e então Deus reluz para ele em todas as coisas; pois para ele todas as coisas tem sabor divino, e Deus se lhe afigura em todas as coisas. Deus olha para dentro dele todo o tempo, nele está um recolhimento desprendido e um in-formar (înbilden) de seu Deus amado e presente. Do mesmo modo que alguém, num calor atroz, tomado pela sede; ele pode ocupar-se com outros afazeres e pensar em outras coisas que não beber, mas o que quer que faça ou com quem quer que esteja, o que tenha em mente, o que pense ou opere, enquanto durar a sede, não se lhe esvai a imagem da bebida. E quanto maior for a sede, tanto maior, mais íntima, mais presente e persistente será a imagem da bebida. Ou é como alguém que ama com toda força e paixão, o qual não sente nenhum gosto em outra coisa e nada lhe agrada a não ser isso, e só pensa nisso e em nada mais: crede, onde quer que este homem esteja, seja com quem for, o que empreenda ou o que quer que faça, jamais se apaga nele o fato de amar assim, e em todas as coisas ele encontra a imagem dessa coisa amada e se lhe torna tanto mais presente quanto mais e mais amor tiver. Um tal homem não procura repouso, pois não se sente impedido por inquietação alguma.

Esse homem encontra mais louvor diante de Deus, visto que toma todas as coisas divinamente e assim as considera mais do que as considera nelas mesmas. Crede, aqui é preciso zelo, amor e uma consideração atenta da interioridade do homem e um saber vigilante, real e verdadeiramente inteligente, observando onde está postado o ânimo nas coisas e junto às pessoas. Não é através de fuga que o homem aprende isso, fugindo das coisas e refugiando-se exteriormente na solidão; antes, ele precisa aprender uma solidão interior, onde e junto a quem quer que seja. Deve aprender a romper as coisas e tomar Deus ali dentro e com força poder formar a Deus dentro de si de modo essencial. Do mesmo modo como alguém que quer aprender a escrever: crede, se quiser dominar essa arte, deve exercitar-se muito e com freqüência, por mais penoso e difícil que isso se lhe torne e por mais impossível que lhe pareça; se ele busca exercitar-se com zelo e freqüência, aprenderá e dominará a arte. Crede, em primeiro lugar, ele deve ter em mente cada uma das letras e gravar muito firmemente em si sua imagem. Depois disso, quando já domina a arte, está inteiramente livre da imagem e de sua recordação. Então escreve de modo livre e espontâneo – o mesmo se dá para tocar viola ou outra execução que dependa de sua arte. Assim, para ele basta saber que quer executar a obra de sua

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arte, e mesmo que não mantenha o pensamento firme nisso, seja no que for que pense, executa sua obra a partir de sua arte.

Assim, o homem deve estar perpassado com a presença divina e transformado pela forma de seu Deus amado e nele ganhar a essência de Deus de modo que sua presença brilhe sem qualquer esforço; antes, que ele ganhe a simplicidade (blozheit) em todas as coisas, delas permanecendo inteiramente desprendido. Para isso é preciso em primeiro lugar meditação e uma atenta formação interior, como o discípulo para com sua arte.

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RESENHAS

EDUSF/EDIPUCRS COLEÇÃO PENSAMENTO FRANCISCANO

BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Escritos filosófico-teológicos: Brevilóquio; Itinerário da mente para Deus; Redução das ciências à teologia; Cristo, único mestre de todos. (EDUSF e EDIPUCRS, 1998, 391 p.) Vol. I

GUILHERME DE OCKHAM. Obras políticas: Tratado contra Benedito (Livro VI); Pode um príncipe; Consulta sobre uma questão matrimonial; Sobre o poder dos imperadores e dos papas. (EDUSF e EDIPUCRS, 1999, 254 p.) Vol. II

GUILHERME DE OCKHAM . Lógica dos termos. (EDUSF e EDIPUCRS, 1999, 366 p.) Vol. III

RAIMUNDO LÚLIO. Escritos antiaverroístas (1309-1311): Do nascimento do Menino Jesus; Livro da lamentação da filosofia. (EDUSF e EDIPUCRS, 2001, 200 p.) Vol. IV

JOÃO DUNS SCOTUS. Prólogo da Ordinatio. (EDUSF e EDIPUCRS, 2003, 448 p.) Vol. V

GUILHERME DE OCKHAM. Oito questões sobre o poder do papa. (EDUSF e EDIPUCRS, 2002, 320 p.) Vol. VI

JOÃO DE PIAN DEL CARPINE, GUILHERME DE RUBRUC, JOÃO DE MONTECORVINO E ODORICO DE PORDENONE. Crônicas de viagem: Franciscanos no Extremo Oriente antes de Marco Polo (1245-1330). (EDUSF e EDIPUCRS, 2005, 337 p.) Vol. VII

ROGÉRIO BACON. Obras escolhidas: Carta a Clemente IV; A ciência experimental; Os segredos da arte e da natureza e sobre a nulidade da magia. (EDUSF e EDIPUCRS, 2006, 191 p.) Vol. VIII [A coleção Pensamento Franciscano objetiva traduzir dos originais latinos para a língua portuguesa obras fundamentais dos grandes mestres franciscanos medievais na filosofia, teologia, política, epistemologia, lógica, bem como crônicas e relatos históricos. As obras que compõem a coleção constituem um legado inestimável para as ciências e a cultura e uma fonte de inspiração e referência para todos que, no saber e na espiritualidade, buscam raízes mais profundas do que os modismos passageiros podem oferecer. É resultado do esforço conjugado da Editora Universitária São Francisco (Edusf), Instituto Franciscano de Antropologia (Ifan) e Editora da Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Edipucrs). A coordenação é de Luiz Alberto De Boni e Alberto da Silva Moreira, sendo assessorados por pesquisadores do Brasil e do exterior.

Editora Universitária São Francisco – EDUSF Av. São Francisco de Assis, 218 – Jardim São José 12916-900 Bragança Paulista SP Tel. (11) 4034-8092; fax (11) 4034-1825

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E-mail: [email protected] Site: www.saofrancisco.edu.br/edusf

Espaço Universitário do Livro Av. São Francisco de Assis, 218 – Jardim São José CEP 12916-900 Bragança Paulista SP Telefone/fax: (11) 4034-2801 E-mail: [email protected]

EDITORA SÉTIMO SELO

www.edsetimoselo.com.br

Santo Tomás de Aquino – Sobre o mal, 2005.

Santo Tomás de Aquino é o mais influente filósofo medieval, autor cuja obra – pela magnitude e profundidade – influenciou os séculos seguintes em vários temas fundamentais para a filosofia e para a teologia moral. Sobre o mal é uma obra inédita em língua portuguesa, e está sendo lançada em edição bilíngüe. É o primeiro tomo de uma série com quatro volumes.

Da extensa obra tomista, muito pouco se publicou no Brasil, mas esta lacuna começa a ser suprida agora, com a apresentação da obra “Sobre o mal”, uma das chamadas questões disputadas (que fizeram época no auge da escolástica), texto no qual Santo Tomás de Aquino aborda a problemática da existência do mal a partir de diferentes ângulos filosóficos e teológicos.

Neste livro, com apresentação do professor e filósofo Paulo Faitanin (UFF) e tradução de Carlos Nougué, Santo Tomás aperfeiçoa a precedente análise filosófica sobre o tema em questão, conciliando a existência do mal no mundo – que é privação do bem – com a existência de um Bem Supremo, Deus.

EDITORA ÍBIS

www.editoraibis.com.br [email protected]

Vozes do trovadorismo galego-português. Lênia M. M. Mongeli; Maria do A. T. Naleval; Yara F. Vieira, 1995.

Por quem peregrinam os cavaleiros de Artur. Lênia M. M. Mongelli, 1995.

Mudanças e rumos: o Ocidente Medieval (Séculos XI-XIII). Lênia M.M. Mongeli (Coord.) vv.aa., 1997.

Um trovador na berlinda, as cantigas de amigo de Nuno Fernandes Torneol. Paulo R. Sodré; Frncisco M. Silveira (Orgs.), 1998.

Prêmio Almeida Cousin: Ensaio;1998.

Trivium e Quadrivium: As artes na Idade Média. vv.aa, 1999.

Fontes primárias da Idade Média (3 Volumes). Lênia M. M. Mongeli (Org.), 1999-2005.

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EDUFU

www.edufu.uru.br [email protected] Tomás de Aquino – Suma de teologia - Primeira parte, Questões 84-89 Tradução e introdução de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento

OUTRAS EDITORAS

Am Ursprung der Zeit. Studie zu Martin Heideggers phänomenologischen Zugang zur christlichen Religion in den ersten “Freiburger Vorlesungen” (Na origem do tempo. Estudo do acesso fenomenológico de M. Heidegger à religião cristã nas primeiras preleções de Friburgo), de Gerhard Ruff, série Escritos Filosóficos, vol. 23, Duncker & Humblot, Berlim: 1997, 162 p.

Com a edição do volume 60 das obras completas, em 1995, foi possível, pela primeira vez, estabelecer o processo do pensamento da fenomelogia da religião em Heidegger. Com este intuito, G. Ruff procura desvendar o horizonte em que Heidegger se ocupa da fenomenologia da religião. É bem verdade que pontos complicados como a relação com o neokantismo e a fenomenologia husserliana se apresentam no caminho em busca de um pensamento original e hermenêutico intentado por Heidegger. Por esta razão, a obra objetiva elucidar a questão do pensar fenomenológico e teológico a partir das preleções de Friburgo.

Die Zeit Heideggers (O tempo de Heidegger), editado por Norbert Lesniewski e Ewa Nowak-Juchacz, série Dia-Logos. Escritos de Filosofia e Ciências Sociais, vol. 2, Peter Lang, Frankfurt am Main; Berlim; Berna; Nova York, Oxford, Viena: 2002, 208 p.

O livro aborda a temática do tempo e da temporalidade com ênfase sobre o primeiro período do pensamento heideggeriano e as circunstâncias que fizeram com que se desenvolvesse de modo tão peculiar. Autores e editores procuram desenvolver suas idéias a partir da filosofia, existência, história e política, bem como compreender Heidegger tomando por base alguns pensadores contemporâneos (Husserl, Simmel, Benjamin, Patocka). Concluem que o pensamento heideggeriano continua sendo importante e desafiador para os dias atuais. Alguns temas abordados: “O conceito de tempo na primeira obra heideggeriana” (Marion Heinz); “O conceito de tempo em Husserl” (Maciej Potepa); “O problema do tempo subjetivo: Heidegger e Bergson” (Goran Gretic); “Temporalidade e contagem do tempo no primeiro Heidegger” (Bernd Irlenborn).

Augenblick und Kairos. Zeitlichkeit im Frühwerk Martin Heideggers (Instante e kairós. Temporalidade na primeira obra de M. Heidegger), de Katharina von Falkenhayn, série Escritos Filosóficos, vol. 52, Duncker & Humblot, Berlim: 2003, 255 p.

A obra é consagrada ao conceito de instante em Ser e tempo. A partir dali, a autora analisa o instante em vários textos heideggerianos até 1936. Temas como o conceito de kairós em Aristóteles, no Novo Testamento e em Kierkegaard são discutidos sob o ponto de vista da antigüidade e da cristandade. Sendo o instante o tema central da primeira obra heideggeriana, sua compreensão é fundamental para entender a construção do conceito de temporalidade. Por haver muitos pontos não esclarecidos, a autora assume a tarefa de preencher e mostrar algumas lacunas. Desse modo, lança nova luz sobre Ser e tempo a partir da pergunta-guia pela temporalidade do ser.

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Renato Kirchner (coordenador da Editora Universitária São Francisco e doutorando em filosofia pelo IFCS/UFRJ)

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XI CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA MEDIEVAL Em Fortaleza (CE-Brasil), 21 a 25 de agosto de 2006 Organizado pela Comissão Brasileira de Filosofia Medieval Inscrições, informações e reservas: www.igenio.com.br/filosofiamedieval Com apresentação de trabalho: Enviar resumo de agosto a dezembro de 2005 e texto completo (por e-mail), para publicação em livro eletrônico, de janeiro a março de 2006. Taxa: R$ 60,00, a ser paga no 1o dia, no local do evento. Ouvinte, com direito a certificado – taxa: R$ 25,00, a ser paga no 1o dia, no local do evento. Realização: Universidade Estadual do Ceará (UECE) – Instituto de Teologia Pastoral da Prainha (ITEP) – Instituto de Ciências Religiosas (ICRE) e Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCRS. Coordenadores para contactos: Prof. Dr. Jan ter Reegen – UECE/ITEP: e-mail: [email protected] ; Prof. Dr. Marcos Costa, Pres. da CBFM: e-mail: [email protected] Local do congresso: Casa de Retiro Nossa Senhora de Fátima Av. Alberto Craveiro, 2222 – cep 80861-070 – Fortaleza CE – Brasil.

Page 132: Scintilla vol. 3, n. 1 - saoboaventura.edu.br · J. of the Muhyiddin Ibn ‘Arabi Society, XXIX, 2001: 87-121; p. 95, n. 7 [com inserções nossas]). 4 Tawhîd significa literalmente

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