8
André Lefevere Tradução, reescrita e manipulação da fama literária Capítulo 1 - Pré-escrever Lefevere chama os tradutores, editores, compiladores, etc., isto é, os "homens e mulheres que não escrevem literatura, mas a reescrevem" de intermediários e, para ele, este são "co-responsáveis, em igual ou maior proporção que os escritores, pela recepção geral e pela sobrevivência de obras literárias entre leitores não-profissionais, que constituem a grande maioria dos leitores em nossa cultura globalizada" (p.13). Para ele, a reescritura é a "força motriz" por trás da evolução literária, e esta mesma reescritura é que traz à tona os textos que "convém" a cada época, republicando, traduzindo, comentando ou mesmo criticando-os. O pano de fundo social é que determina o que é ou não relevante de vir à luz, e não a presença/ausência de um determinado valor intrínseco ao texto: "o processo que resulta na aceitação ou rejeição, canonização ou não-canonização de trabalhos literários não é dominado pela moda, mas por fatores bastante concretos que são relativamente fáceis de discernir assim que se decide procurar por eles, isto é, assim que se evita a interpretação [dos textos] como o fundamento dos estudos literários e se começa a enfrentar questões como o poder, a ideologia, a instituição e a manipulação" (p.14). Para Lefevere, o "valor intrínseco" de uma obra tem um papel secundário nesse processo na medida em que são as escolhas de uma época (com base em questões políticas, ideológicas ou mesmo poetológicas) que determinarão a valorização (ou não) de determinada obra ou autor. Sendo assim, mesmo que haja uma qualidade literária "atemporal" num determinado texto, sua publicação - ou não - será escolha de um determinado grupo (de tradutores, compiladores, historiadores ou críticos literários) que recorrerá - ou não - a tal obra se julgá-la relevante naquele dado contexto, e que fará com que ela seja - ou não - inclusa nas histórias da literatura, compilações, antologias ou mesmo para que sejam ao menos traduzidas.

Seminário

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Seminário

Citation preview

Page 1: Seminário

André Lefevere

Tradução, reescrita e manipulação da fama literária

Capítulo 1 - Pré-escrever

Lefevere chama os tradutores, editores, compiladores, etc., isto é, os "homens e mulheres que não escrevem literatura, mas a reescrevem" de intermediários e, para ele, este são

"co-responsáveis, em igual ou maior proporção que os escritores, pela recepção geral e pela sobrevivência de obras literárias entre leitores não-profissionais, que constituem a grande maioria dos leitores em nossa cultura globalizada" (p.13).

Para ele, a reescritura é a "força motriz" por trás da evolução literária, e esta mesma reescritura é que traz à tona os textos que "convém" a cada época, republicando, traduzindo, comentando ou mesmo criticando-os. O pano de fundo social é que determina o que é ou não relevante de vir à luz, e não a presença/ausência de um determinado valor intrínseco ao texto:

"o processo que resulta na aceitação ou rejeição, canonização ou não-canonização de trabalhos literários não é dominado pela moda, mas por fatores bastante concretos que são relativamente fáceis de discernir assim que se decide procurar por eles, isto é, assim que se evita a interpretação [dos textos] como o fundamento dos estudos literários e se começa a enfrentar questões como o poder, a ideologia, a instituição e a manipulação" (p.14).

Para Lefevere, o "valor intrínseco" de uma obra tem um papel secundário nesse processo na medida em que são as escolhas de uma época (com base em questões políticas, ideológicas ou mesmo poetológicas) que determinarão a valorização (ou não) de determinada obra ou autor.

Sendo assim, mesmo que haja uma qualidade literária "atemporal" num determinado texto, sua publicação - ou não - será escolha de um determinado grupo (de tradutores, compiladores, historiadores ou críticos literários) que recorrerá - ou não - a tal obra se julgá-la relevante naquele dado contexto, e que fará com que ela seja - ou não - inclusa nas histórias da literatura, compilações, antologias ou mesmo para que sejam ao menos traduzidas.

Portanto, a reescritura ocupa uma posição central entre os fatores concretos que atuam neste processo, estando presente desde sempre entre nós. Na Grécia podia ser encontrada na organização, pelos escravos, de antologias de autores gregos para ensinar aos filhos dos senhores romanos. Nos dias de hoje, pode ser encontrada na forma de compilações como "Guia de Leitores" contemporâneos,

"que fornecem referências rápidas sobre autores e livros que deveriam ter sido lidos como parte da educação dos leitores não-profissionais mas que cada vez mais não são" (p.15).

As obras contendo resumos de livros para os principais vestibulares dos país, tão difundidas em nossos dias, também ilustram essa realidade.

À medida que o livro foi perdendo sua posição central no ensino da escrita e na transmissão de valores, a "alta" literatura ficou cada vez mais restrita ao contexto educacional e, com isso, foi limitada ainda mais a influência dos leitores profissionais no âmbito das instituições de ensino. Com isso, esses leitores profissionais vivem, na academia, por exemplo, um verdadeiro isolamento, e seu prestígio como leitor-profissional diminui, cada vez mais, "fora do círculo privilegiado construído à sua volta pelas instituições educacionais" (p.17).

Page 2: Seminário

"O leitor não-profissional mais frequentemente deixa de ler a literatura tal como ela foi escrita pelos seus autores, mas a lê reescrita por seus reescritores" (p.18).

Para Lefevere, assim acontece com a Bíblia, a qual a maior parte dos leitores se contenta em lê-la em uma edição na qual confia. Essa confiança que certas reescrituras inspiram nos leitores pode ser ilustrada pelo Ossian de McPherson, fraude literária que a muitos poetas inspirou e que serviu como precursora do romantismo.

Mesmo os grandes poetas românticos não escaparam a essa regra. Byron e sua geração leram o Fausto de Goethe a partir de uma versão francesa abreviada. Pushkin leu Byron através de traduções francesas e Pound conheceu a poesia chinesa também pela via da tradução.

A reescritura da Bíblia tal como a conhecemos (pós-Concílio de Nicéia) está carregada de uma forte carga ideológica que remete à necessidade de manipulação das massas já no início da cristandade. A Bíblia era um texto que, durante cerca de mil anos após sua escrita, outras pessoas continuariam reescrevendo-o, o rasurando-o e compilando-o em diferentes versões. A Bíblia cristã, tal como a conhecemos, surgiu após o imperador romano Constantino se aliar à Igreja (313 d.C.). Como ele pretendia usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império, precisava de uma fé una e sólida. Sua pressão levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no Concílio de Nicéia, em 325, surgindo o cânone do cristianismo, ou seja, a lista oficial de livros que, segundo a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus.

Para Lefevere,

"no passado, assim como no presente, reescritores criaram imagens de um escritor, de uma obra, de um período, de um gênero e, às vezes, de toda uma literatura. Essas imagens existiam ao lado das originais com as quais elas competiam, mas as imagens sempre tenderam a alcançar mais pessoas do que a original correspondente e, assim, certamente o fazem hoje" (pp.18-19).

Contudo, tanto tais imagens quanto seus impactos não foram e continuam não sendo estudados, mesmo sendo enorme o poder que elas e seus produtores exercem.

Diversos são os exemplos desse poder presentes na história da literatura. Edgar A. Poe, por exemplo, embora não servisse aos americanos e à sua literatura de caráter moralista, serviu muito bem aos decadentistas franceses (Baudelaire, Verlaine, Mallarmé) e mesmo aqueles que viriam após eles.

Recepção crítica de Poe após sua morte

O reverendo Rufus W. Griswold dedicou-se mais de uma vez a denegrir tanto a obra quanto a pessoa de Edgar A. Poe. Como moralista que era, via na sua obra um imoralismo marcado pela perversão dos caracteres. Para ele, Poe era um depravado e muitas das "aberrações psicológicas" de suas personagens ficcionais representariam o próprio escritor.

Mais tarde, na vanguarda dos detratores de Poe, eram figuras eminentes Henry James, Aldous Huxley e TS Eliot, que julgavam suas obras como juvenis, vulgares, e artisticamente rebaixadas. Em contrapartida, enquanto colecionava detratores entre os críticos ingleses e norte-americanos, Poe era defendido por críticos em outras partes do mundo, particularmente na França. Contudo, essas opiniões de renomados escritores (romancista/ensaístas/críticos) serviram para manter o nome de Poe nos EUA e na Inglaterra relegado ao limbo no qual este estivera jogado desde seu tempo de vida (algo que só mudara substancialmente após 1845, com a publicação do poema “O Corvo”).

Page 3: Seminário

Mesmo sendo um renomado crítico (Prêmio Nobel em 1948), Eliot repete os mesmos argumentos que um Rufus Griswold poderia haver emitido 100 anos antes. Para ele: "Hawthorne, Poe e Whitman são criaturas em tudo patéticas; nenhum deles foram tão grandes quanto poderiam ter sido". Eliot reconhece na obra de Poe apenas a qualidade de sua atividade crítica; Poe era "não apenas um crítico heroicamente corajoso... mas um crítico de primeira ordem".

No seu famoso ensaio “From Poe to Valéry” (1949), escrito a exatos 100 anos após a morte do poeta/narrador/crítico, T.S. Eliot parte da bem conhecida influência que Poe exercera sobre Baudelaire, Mallarmé e Valéry para criticar a sua obra, que julga como nada mais que uma "escrita desleixada", com "pensamentos pueris" e "experimentos aleatórios", sendo mesmo sua dicção poética às vezes inexata.

Para Eliot, Baudelaire pensava ter encontrado em Poe o tipo de poéte maudit que se rebela contra a sociedade e contra a moralidade da classe média (algo que o próprio Baudelaire sempre buscou). Já Mallarmé admirou-se com sua técnica da estimulação porque era muito contrastante com o verso tradicional francês e Valéry, por sua vez, encontrou a teoria da poesia enfática do poema como um fim em si mesma, como profética da poésie pure, profética, também, do intenso interesse no processo poético tão característico dos simbolistas franceses.

Para Huxley, Poe ilustra a vulgaridade na literatura e, dessa forma, não haveria forma de traduzir Poe sem melhorar-lhe o estilo. E a explicação para se admirar Poe (referência a Baudelaire) só poderia ser encontrada através do desconhecimento da língua inglesa...

Baudelaire mais de uma vez “apropriou-se” do trabalho de outros escritores com os quais julgava possuir forte identificação ideológica/poetológica. Foi assim que ele tornou-se o responsável pelo reconhecimento dado à obra de Poe ainda na segunda metade do século XIX, pouco após a sua morte (1849).

Suas traduções dos contos e poemas de Poe, assim como sua pequena biografia do poeta que prefaciava tal coletânea, fizeram com que na Europa e mesmo fora dela (o francês, à época, tinha o status de língua franca hoje ocupado pela língua inglesa) Poe tivesse seu lugar ao Sol entre os grandes escritores do século XIX.

Baudelaire também reescreveu ao seu gosto os "Paraísos Artificiais" de Thomas de Quincey, enxertando em sua tradução pensamentos seus, deixando assim suas marcas em mais uma obra da qual se tornou divulgador em França.

Devemos ter em mente, portanto, que

"as reescrituras são produzidas a serviço, ou sob as restrições, de certas correntes ideológicas e/ou poetológicas, e que tais correntes não consideram vantajoso chamar a atenção para si mesmas como se fossem apenas 'uma corrente entre outras'. Ao contrário, é muito mais vantajoso identificarem-se com algo menos partidário, mais prestigioso, e completamente irreversível como 'o curso da história'" (p.19).

A reescritura está marcada, então, por uma ideologia, por uma poetologia e por um determinado contexto político-social. Durante as vanguardas modernistas, por exemplo, os autores que possuíam um maior apreço pela forma - sobretudo os parnasianos - foram ridicularizados e tiveram toda sua obra desacreditada e jogada no “limbo” literário e, infelizmente, essa crença de tratar-se de obra sem valor poético/político-ideológico tornou-se bastante arraigada e (devido à grande influência do modernismo) afetou a recepção desses poetas até os dias de hoje, sendo reforçada mesmo no ambiente acadêmico.

Page 4: Seminário

Contudo, passado o furor desconstrutor que marcou o "ismos" (futurismo, dadaísmo, acmeísmo) modernistas, vemos que muitos desses poetas foram, no mínimo, injustiçados. Eles caíram em desgraça justamente devido à "guinada" ideológica do início do século XX que levou-lhes de modelo a ser seguido à vítimas de uma nova patrulha ideológica e da chacota literária modernistas.

Sendo assim, podemos concluir que seja possível que um escritor, ainda que mediano ou mesmo medíocre, possa ser recompensado por uma corrente ideológica no poder por seus "trabalhos" prestados a este poder instituído, enquanto um escritor notável pode ter sua obra desprezada, vilipendiada, exposta ao ridículo caso este não compactue ideologicamente com o poder instituído.

Recepção crítica de Dostoiévski na Rússia e no mundo

Devemos lembrar também da posição que Dostoévski ainda hoje ocupa na literatura russa: embora possua milhares e milhares de apreciadores por todo o mundo, é importante lembrar que em sua terra natal o romancista não possui o mesmo status angariado ao longo das décadas ao redor do mundo. Sua escrita tortuosa, sua sintaxe confusa e original, faz com que ele seja, ainda hoje, acusado pelos russos de se tratar de um escritor que não possui um "estilo" próprio (ao contrário de seus importantes conterrâneos, Gógol, Tolstói e Púchkin).

Se lembrarmos das diversas querelas ideológicas nas quais Dostoiévski tomou parte durante sua vida, muitas vezes indo contra o pensamento dominante de então, certamente encontraríamos uma pista para explicar o grande descaso no qual caiu a obra do grande escritor russo durante sua vida e mesmo após sua morte.

Já que Dostoiévski - ele próprio um reeescritor, tradutor de Balzac - não gozou de reconhecimento entre os seus, a reescritura de suas obras (via tradução) foram de grande importância - ainda que com os diversos problemas que tais traduções, sobretudo as francesas, apresentavam - para o reconhecimento de seu talento no Ocidente.

Mais tarde, ao lado de vários outros escritores (Bulgákov, Pasternak, Mandelshtan, Tsvetáeva, Akhmatova) suas obras sofreriam forte censura pelo regime soviético, que a tudo acusava de burguês e contra os ideais revolucionários. Da mesma forma como baniam escritores renomados, passaram a exaltar uma literatura de gosto duvidoso, "engajada", que ficou conhecida como "realismo socialista".

Estranhamente, estas reescrituras muitas vezes foram e são usadas (algo recorrente mesmo em nossa "esquerda" brasileira) como se fossem escritas por um revolucionário bolchevique, espécie de arauto do fim do capitalismo, quando, na verdade, Dostoiévski representava exatamente o oposto por grande parte de vida: era contra a revolução, contra a esquerda que ridicularizava ("Os demônios"), achava que o povo russo fora escolhido do Deus para libertar e conduzir o mundo e – mesmo já sido antes por ele perseguido – Dostoiévski perseguido amava o czar.

Um outro exemplo dessa carga ideológica que perpassa este processo pode ser visto na ausência de Heinrich Heine, poeta alemão de origem judaica, nas antologias alemãs publicadas durante o período nazista (seu único poema publicado sempre apareceu como se fosse de autoria "anônima").

Para Lefevere,

Page 5: Seminário

"Quando leitores não-profissionais de literatura (e deve estar claro a essa altura que o termo não implica qualquer julgamento de valor, referindo-se simplesmente à maioria dos leitores nas sociedades contemporâneas) dizem que 'leram' um livro, o que eles querem dizer é que eles têm uma certa imagem, um certo constructo daquele livro em suas cabeças. Esse constructo é frequentemente baseado de forma frouxa em algumas passagens selecionadas do livro em questão (fragmentos incluídos em antologias usadas na educação secundária ou universitária, por exemplo), suplementado por outros textos que reescrevem o texto original, de uma forma ou de outra, tais como: resumos de enredos em histórias da literatura ou obras de referência, resenhas em jornais e revistas ou revistas especializadas, alguns artigos críticos, montagens para teatro e, por último, mas não menos importante, as traduções" (p.21).

Recepção crítica de Nietzsche

Nietzsche trabalhava no que considerava sua obra derradeira, "Transvaloração de todos os valores", e com a composição do "Ecce Homo" pouco antes de ser vítima de um colapso psíquico (1889). Por isso mesmo, o filósofo não teve a oportunidade de testemunhar os primeiros impactos de seus escritos, nem de evitar os erros de interpretação e os maus usos de que sua filosofia foi vítima. Se tivesse a oportunidade, o filósofo teria ficado perplexo com a história da recepção de sua obra.

Durante os anos iniciais do século XX tal história é um emaranhado das mais diferentes leituras e apropriações. O caso da irmã de Nietzsche - Elizabeth Föster-Nietzsche - também é notório. Tornando-se sua tutora legal após seu colapso e atuando mais tarde como sua "editora" durante o após sua morte, através de recortes arbitrários da obra do filósofo, ela dedicou-se a “criar” um livro - reunindo 483 fragmentos póstumos escritos entre 1887 e 1889 - ao qual deu o título de “A vontade de potência” (1901), imputando-lhe ideias e associando-lhe posteriormente com a ideologia dominante (o filósofo fora apropriado como ideólogo do nazismo) de então.

Para tanto, Elizabeth Föster-Nietzsche procurou legitimar seu empreendimento editorial falsificando cartas escritas pelo irmão, utilizando-as para criar credibilidade entre os editores e os amigos do filósofo e demonstrando o claro objetivo de levar a crer que conhecia as intenções de Nietzsche melhor do que ninguém.