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tb['~ ~ _~L0~~ ENTREVISTA: MAGDA BECKER SOARES lifkar tal I alvez se pudessem fazer muitas .menções ábiografiae à obra da professora Magda Becker Soares, mas nenhuma delas a situaria tão bem no campo da educação brasileira comoa que lhe outorgasse o título de maior referência na- cional sobre letramento, conceito do qual foi a grande introdutora no país. Figura central na criação do Centro de Alfabe- tização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Ge- rais, e autora de Alfabetização e Letramento (Con- texto, 2003), Linguagem e Escola (Ática, 2000) e Letramento (Autêntica, 1998), ela comenta a se- guir aspectos das pesquisas no campo da aprendi- zagem da leitura e escrita. E defende um aprofun- damento da formação dos docentes responsáveis pela alfabetização, desvinculando-os da tradição do professor generalista das primeiras séries do fundamental. Esse professor, diz ela, assim como os bons mestres, deve simplificar sem falsificar. Missão para a qual se exige um grande domínio dos conteúdos específicos de su~.área. (1 GUIA DA ALFABETlZAÇÁO - 11 r Qual a importância do Ceale, que estácomple- tando 20 anos em 2010? _. . O Ceale começou coma pesquisa Alfabetiza- çãono Brasil:ó estado do conhecimento: juntou um grupo que se ampliou e diversificou nestes 20 anos. Historicamente, talvez esse período não signifique muita coisa quando pe~samosem universidades europeias,mas para a realidade brasileira significa muito. O grupo cresceu e permanece trabalhando em várias frentes, com um papel importante na questão da alfabetização e do letramento. Conjuga o trabalho de pesquisa, de pós-graduação res- ponsável pelo programa de linguagem e educação da Faculdade de Educação da UFMG), de extensão, além de realizar muitos convênios com o MEC. No programa Pró-Letramento, por exemplo, o Ceale trabalha do Acre ao Rio Grande do Sul, com mui- tos grupos de professores. Um aspecto importante é que o grupo trabalha muito para a socialização do conhecimento produzido e com a atuação junto às redes públicas de ensino, para que esse conhe- cimento chegue às professoras que estão em sala

Simplificar sem falsificar - Magda Becker Soares

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ENTREVISTA: MAGDA BECKER SOARES

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•I

alvez se pudessem fazer muitas.menções ábiografiae à obra da professora MagdaBecker Soares, mas nenhuma delas a situaria tãobem no campo da educação brasileira comoa quelhe outorgasse o título de maior referência na-cional sobre letramento, conceito do qual foi agrande introdutora no país.

Figura central na criação do Centro de Alfabe-tização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade deEducação da Universidade Federal de Minas Ge-rais, e autora de Alfabetização e Letramento (Con-texto, 2003), Linguagem e Escola (Ática, 2000) eLetramento (Autêntica, 1998), ela comenta a se-guir aspectos das pesquisas no campo da aprendi-zagem da leitura e escrita. E defende um aprofun-damento da formação dos docentes responsáveispela alfabetização, desvinculando-os da tradiçãodo professor generalista das primeiras séries dofundamental. Esse professor, diz ela, assim comoos bons mestres, deve simplificar sem falsificar.Missão para a qual se exige um grande domíniodos conteúdos específicos de su~.área.

(1 GUIA DA ALFABETlZAÇÁO

-

• •11 r

Qual a importância do Ceale, que estácomple-tando 20 anos em 2010? _. .

O Ceale começou coma pesquisa Alfabetiza-çãono Brasil:ó estado do conhecimento: juntou umgrupo que se ampliou e diversificou nestes 20 anos.Historicamente, talvez esse período não signifiquemuita coisa quando pe~samosem universidadeseuropeias,mas para a realidade brasileira significamuito. O grupo cresceu e permanece trabalhandoem várias frentes, com um papel importante naquestão da alfabetização e do letramento. Conjugao trabalho de pesquisa, de pós-graduação (é res-ponsável pelo programa de linguagem e educaçãoda Faculdade de Educação da UFMG), de extensão,além de realizar muitos convênios com o MEC. Noprograma Pró-Letramento, por exemplo, o Cealetrabalha do Acre ao Rio Grande do Sul, com mui-tos grupos de professores. Um aspecto importanteé que o grupo trabalha muito para a socializaçãodo conhecimento produzido e com a atuação juntoàs redes públicas de ensino, para que esse conhe-cimento chegue às professoras que estão em sala

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de aula. E o excepcional é que esse trabalho esteja.durando tanto tempo, pois normalmente esses cen-tros universitários são muito transitórios; existemenquanto há uma liderança centralizando os traba~

. lhos. No Ceale, não. Além de permanecer, se renovadia a dia.

A senhora coordenou uma pesquisa nacionalsobre a alfabetização no Brasil. Qual a extensãoe significado desse trabalho?

Comecei essa pesquisa nos anos 90, e ela conti-nua. É uma pesquisa que não tem fim, pois levantae analisa, de forma permanente, a produção acadê-mica sobre alfabetização no Brasil. Trabalhei nelaaté me aposentar, agora continua com a coordena-ção da professora Francisca Maciel. Começou em1998, mas levantamos a produção de dissertações eteses sobre alfabetização no Brasil desde 1962, datada primeira tese. Daí para a frente, recuperamostudo o que foi produzido sobre o tema. E isso conti-nua, pois o objetivo da pesquisa é ver as mudançasnas temáticas, nos focos colocados na alfabetização,

de que maneira os referenciais teóricos e os tipos depesquisa mudam ao longo do tempo. Relacionamosisso com os movimentos histórico, social, educacio-nal. Não é apenas um levantamento, éuma análisesobre a produção do conhecimento sobre alfabeti-zação ao longo das décadas.

E quais são as mudanças mais acentuadas emtermos de olhar?

Olhando em traços mais largos, no momentoinicial, que vai até o final dos anos 70, meado dosanos 80, o tema mais explorado era a questão dosmétodos de alfabetização e daquilo que na-época sechamava de prontidão da criança para ser alfabeti-zada. Era uma questão especificamente pedagógica.Na metade dos anos 80, a produção começa a mu-dar radicalmente. Com a introdução do constru-tivismo e da psicogênese da língua escrita, trazidapara nós, sobretudo, por intermédio de EmiliaFer-

,~ reiro, o foco mudou. Os métodos foram renegadosE nesse período. Passaram a ser tratados como tradi-~ cionais e inadequados os métodos silábico, fônico,]i até o global, e 'passou-se a trabalhar numa linhao

@ psicogenética, que teve um impacto muito forte noBrasil. Espalhou-se pelo país todo, com as secreta-rias de educação orientando suas redes a trabalharnessa linha. A produção nesse período é toda com.esse referencial teórico, com a ênfase em investigaro processo da criança para aprendizagem da línguaescrita. Embora as pesquisas fossem mais para con-firmar aquilo qúe vinha na teoria construtivista, doque para construir a partir dos dados ernpíricos.

..)

E isso vai até quando?Começa a desaparecer no final do século 20, com

o surgimento do conceito de letramento, em que aquestão não é apenas a criança aprender a codificare decodificar, a se apropriar do sistema de escrita,mas saber utilizar a língua escrita em seus usos so-ciais. É nesse momento que começam a aparecer naspesquisas a palavra e o conceito de letramento. Éum movimento, em grandes faixas, do estudo e dosresultados dos métodos tradicionais e da prontidãoda criança para o processo de aprendizagem numaperspectiva psicogenética. Num terceiro momento,que vivemos agora, a ênfase passa ao contexto so-ciocultural e sócio-histórico da aprendizagem dalíngua escrita.

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De que maneira a introdução do conceito deletramento contribuiu para os processos de al-fabetização? Que tipo de confusão ainda se fazentre ambos os conceitos?

Isso ainda não ficou muito claro para as pessoasque se responsabilizam pela aprendizagem da línguapela criança, que são as professoras de sala de aula.Quando esse conceito começou a ser adotado, surgiua dúvida sobre se se deveria alfabetizar ou letra r acriança. Mas a questão é que a conjunção aí não éuma alternativa, e sim uma aditiva. O que o conceitode letramento traz é uma ampliação do conceito dealfabetização, mas não tem sido entendido assim. .Parece que agora a coisa começa a avançar com aideiada junção desses dois processos, tarito quehojese fala muito em alfabetizar letrando.rouseja, alfa-betizar a criança num contexto dos usos sociais re- A que devemos atribuir o elevadonúmero deais da escrita. Mas isso, no meu entender, ainda não crianças que chéqam.ao final do fundamental 1

chegou de forma desejável em sala de aula. O COO8- sem saber ler, ou sem entender o que leem?trutivismo e o conceito de letramento trouxeram a Chamaria issode fracasso na aprendizagem inicialideia de que não seria necessário ensinar sistemática da língua escrita. Gosto dessa expressão porquê nela:e explicitamente o sistema alfabético e ortográfico de se incluem a alfabetização e o letramento. Quandoescrita. Ou seja, a criança se apropriar das relações se fala só na alfabetização, pensa-se só na aprendi- •fonema-grafema, o que é indispensável, mas foi co- zagem do código. Quando se fala letramento, pensa-locado em dúvida no construtivismo, imaginando-se se só nos usos sociais da escrita. Já a aprendizagem.que a criança descobriria por si mesma e não seria inicial da língua escrita envolve os dois cOrnpone~-preciso ensinar. Isso explica por que os partidários tesoE essa aprendizagem sempre foi um fracasso no

. do chamado método fônicoselevantaram, apartir Brasil É um engano dizer que estamos fracassando .do final do século 20, em defesa do seu método. Que . agora. Se olharmos parao início da democratização.também é um enganocpoís acham que éprecisopri- .. do ensino, nos~~os 40 esodo século passado, h~via ..meiro ensinar acodíficar e decodificar para, depois . queixas na mídia, na academia, nas publicações cien-disso, a criança poder efetivamente ler.É sempre esse. tíficas.denúncías sobre Q.fracasso do país-na alfabe-movimento pendular na área de alfabetização, aliás tização. Que naquela época se .revelava pelos a'ttosnas ciências em geral. índices de reprovação na Ia série, chamada de série

de alfabetização, e nos altos índices de evasão. Coma criação de ciclos, a rejeição - justa - do conceitode reprovação e, como consequência, o conceito depromoção praticamente automática, esse fracasso,antes concentrado na Ia série (de onde a criança nãosaía enquanto não aprendesse a ler e a escrever, o queàs vezes demorava quatro, cinco anos), passou a seespalhar ao longo do ensino fundamental. Alunos do5° ano, às vezes do 8° ou do 9° anos, são semialfabe-tizados. Como isso se explica? Pela ausência de umaação clara, sistemática dos professores; pelo fato deeles não serem formados para ensinar a língua escritano ensino fundamental, em particular nas séries ini-ciais e, ponto importante, na educação infantil, que équando a coisa deve começar.

É possível termos uma visão de síntese entreessas duas posições?

Claro. Alfabetizar implica que a criança aprendaa codificar e decodificar, pois é um sistema inven-tado, diferente da língua oral: o ser humano já nasceprogramado para falar. A escrita é uma convenção.É uma ingenuidade achar que a criança deva rein-ventar um sistema convencional, arbitrário. Entãoé preciso ensinar isso sistematicamente. O que nãoquer dizer que isso deve ser feito em contextos fal-sos, como no tempo das cartilhas, com textos ar-tificiais como o tradicional Eva viu a uva, em queninguém sabe quem é Eva, e a maioria das criançasnunca viu uma uva ...

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Mas a associação é possível e necessária quandose orienta a criança - e aí insisto nos advérbios - ex-plícita e sistematicamente a aprender .; e não desco-brir - as relações entre os sons da língua e a repre-sentação gráfica desses sons. Como? Com materialescrito, sim. Mas com materiais reais, como livros dêliteratura infantil, as propagandas; outdoors; folhetos;qualquer material que seja do interesse da criança,sobretudo a literatura infantil, que, de certa forma,deve substituir o antigo livro didático ou cartilha.Aí 'se faz o letramentó, o contato com a história, a.literatura, o poema. E a professora P9d~}~ra\uma.palavra, uma frase, para trabalhar sistematicamenteem sequência, explicitamente, as relações fonemà-grafema. O que o construtivismo nãofazia,~ão faz.

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De que maneira se daria esse processo na edu- A senhora tem alguma vivência nesse sentido?(ação fundamental? Tenho feito essa experiência em Lagoa Santa

Aí há uma divisão grande em relação àqueles que (MG), onde oriento a alfabetização, e estamos co-acham que não se deve alfabetizar na educação infantil meçando na creche. A criança de 2, 3 anos já está- tem um grupo que fala até que devemos ter "letra- com livrinho na mão, já está vendo o próprio nomernento sem letras': Ou seja, significa que é proibido escrito em vários lugares. Já está com o lápis na mão.trabalhar com a aprendizagem da língua escrita na tentando rabiscar. É frequente a criança chegar aoseducação infantil. Isso não tem o menor sentido em 5,6 anos já praticamente alfabetizada, se a educaçãonenhum país do mundo, pelo menos os países avan- infantil cria condições para isso. Caso contrário,çados na área de educação. E, para nós, isso só tem essa pretensão de que a criança se alfabetize até osfuncionado nas escolas públicas, porque as escolas 8 anos é impossívei. bois anos é pouco tempo, éprivadas começam a trabalhar coma língua escritá " . preciso começàr 'antes.quando as crianças têm 3 ou 4 anos. A criança de hojetem toda a condição para isso, pois nasce rodeada deescrita. Mesmo nas camadas populares; a cada ladoque se olhe está a escrita. Toda criança tem cúriosi- ,dade, quer aprender a ler. Não há sentido em marcaruma data. Antes era aos 7 anos, agora é aos 6.

Não há aí uma confusão entre alfabetização eintrodução de um ensino disciplinar, mais ca-racterístico do ensino fundamental?

Isso por um mau entendimento do que seria tra-balhar com a escrita na educação infantil: Associamaprender a língua escrita com uma disciplina, umatarefa pesada que tira a criança da brincadeira aque ela tem direito, quando isso pode e deve serfeito de forma lúdica, com grande interesse e 'pra-zer. A criança lida com o livro, com as letras; com

, a escrita do seu próprio nome, com atividades deconsciência fonológica para aprender os sons - oque é indispensável para aprendera escrever, perce-ber que língua é som. A criança precisa desenvolveressa consciência fonológica e a educação infantil.é a hora certa de fazer isso, de forma lúdica, o quecorresponde ao interesse dela. É uma sonegação im-pedir que a criança conviva com a língua escrita,pela qual ela tem interesse e condição cognitiva elinguística de aprender. Na pesquisa sobre o estadodo conhecimento, os estudos que procuraram re-lacionar o sucesso da criança na alfabetização noinício do ensino fundamental com a frequência àeducação infantil apontam de forma recorrenteuma relação positiva. A criança que frequenta aeducação infantil tem muito mais probabilidadede aprender com facilidade a língua escrita, por-que vem sendo preparada para isso. Quando essapreparação é feita de forma consciente, planejada,sistemática, mais ainda.

Qual a sua avaliação do material didático hojedisponível para a alfabetização?

O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)trouxe uma inovação recente. Até dois anos atrás,selecionava livros para o fundamental 1e, na últimaedição, há uma divisão, com uma coleção para 1° e

, 2° anos, ()utra para 3° a 5° e outra para 6° a 9°. Sãocoleções de dois livros para cada ano (I0 e 2°), paraalfabetização linguística e alfabetização matemática.•Issoleva os autores de livros didáticos a uma maior. especialização nesse momento inicial de aprendi-zagem da língua escrita. Embora estejamos numafase de transição nessa área de aprendizagem inicialda língua escrita, de conciliação entre alfabetizaçãoe letramento, o que supõe um domínio por partedos autores de livros didáticos e das professoras deconceito de gêneros textuais, há algumas coleçõesrazoáveis na minha avaliação.

.)

Quais conteúdos deve ter um curso para formarum professor alfabetizador?

Em primeiro lugar, deveria ter uma forma-ção específica. Não há possibilidade de alguémser alfabetizador, ensinar a língua e, ao mesmotempo, ser professor de ciências, de história, dematemática. Para introduzir a criança no mundoda escrita, o professor tem de, primeiro, dominarmuito bem a língua portuguesa, formação que não

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,é dada de forma adequada para que saiba usar alíngua escrita nas suas diferentes variantes; temde ter formação sociolinguística; psicolinguística;de fonologia - sem o que é impossível entender oprocesso da criança para relacionar fonemas comgrafemas; tem de conhecer literatura infantil, queé com o que se deve trabalhar para que a Criançaaprenda a língua escrita; gêneros textuais, teoriasda leitura e diferentes estratégias exigidas por di-ferentes gêneros textuais. Só isso mostra que nãoé possível colocar essa formação, que é essencialpara trabalhar com o ensino da língua escrita, aolado de ciências, que exigirá conteúdos específicossemelhantes. Ou seja, o professor teria de conhe-cer ciências, conceitos científicos, os processos depensamento científico ete. E issos~ repete parageografia, história, matemática.

Deveríamos ter uma graduação específica parao professor alfabetizador? . . .

Defendo isso. Ou que, se essa formação esti-vesse na pedagogia, que se fizesse um processo deespecialização.xorno uma residência médica. Osmédicos estudam seis anos e depois têm de f~ze~.uma residência ou mais para se especializar numadeterminada área. A professora pode entender deoutras coisas, mas tem de ter uma especialização emdeterminada área. O argumento de que a criançaprecisa ter uma referência, uma professora só, é dotempo que se pensava que professora era tia. Hojeem dia, as crianças convivem com uma multidãode pessoas fora da escola. As famílias hoje têm umaestrutura completamente diferente, convivem comtios, avós, madrasta, padrasto. Por que na escolateria de ser só urna pessoa? E ainda por cima tendode dar conta de conteúdos os mais diversos numafaixa etária - e isso é fundamental - em que é pre-ciso dominar muito bem o conteúdo, pois tem desimplificar sem falsificar. E só faz isso quem temum domínio muito grande do conhecimento dedeterminada área.

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Que aspectos do processo de alfabetizaçãoainda necessitam de investimento por partedos professores?

Precisam investir em praticamente tudo. Precisa-mos, com urgência, reformar a formação inicial noscursos de pedagogia, e promover a atualização dosprofessores em exercício. São duas ações enormes edifíceis de serem feítas.Comrelaçâo à primeira, dealterar a formação, isso vem sendo examinado peloConselho Técnico-Científico da Educação Básica daCapes, onde a discussão sobrea mudança dos cur-sos de pedagogia é recorrente. Mas a resistência émuito grande, por parte das várias associações, dospróprios cursos. Quanto à atualização para supriras deficiências da formação .recebidana graduação,vem sendo encarada deurna forma não muito ade-quada. Apesar dealgunsprogramas oficiais.xomoo Pró-Letramento, d0IvfEÇ~ as ações. são pontuais.Faz-se com algumas professoras, de forma esparsa ..Essas professoras se atualizam, masindividualmente,quando o que precisamos é de uma atualização maisampla. Seria um trabalho mais articulado de 'atua-lização de uma rede. Não é trabalho em rede, com •universidades, municípios e estados; mas sim umtrabalho de rede, com oconjunto dás escolas de ummunicípio, para que todas se atualizem e não hajadesperdício de recursos 'sem mudança efetiva.

A universalizaçã.o 'do -ensinofundamen-tal, que trouxe para ae~cól~ muitos alunosde ambientes não letrados.vafetou a práticados alfabetizadores? .; '. .

. A língua escrita está. amarrada na oralidade, pois .é a representação da língua falada. São correspon-dências entre fonemas e grafemas,' algumas vezesarbitrárias, e há semelhanças e diferenças entre osgêneros falados e orais. Isso é diferente em grupossociais diferentes. Os nossos problemas se agrava-ram quando as camadas populares conquistaram odireito à escola. Nesse momento, a clientela mudou, S

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com um alunado bem diferente daquele que está nacabeça de quem forma os professores. Na cabeça dosformadores de professores ainda está o aluno da-quela escola que servia à burguesia. A sociolinguís-tica, por exemplo, é fundamental. A criança que falaum dialeto popular, terá uma transferência da línguaoral para a escrita, em termos de representação, compeculiaridades. Afinal, o dialeto dela é um, e a línguaescrita é outra. Além disso, há a própria convivên-

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cia com a língua escrita. Na periferia, a criança temcontato com as promoções escritas no tabuleiro dobar da esquina, os rótulos de produtos, os jornaispopulares. Ou seja, convive com a escrita, só que nãoaquela que a escola quer desenvolver. Há um saltoa ser feito aLÉ bastante comum que as crianças, aochegar à ~scola: tenham pela primeira vez a chancede escolher um livro. A professora tem de estar pre-parada para trabalhar com essas dúlrentes subcultu-ras, que lidam com outros materiais escritos.

Qual sua opinião sobre o ciclo de alfabetizaçãode três anos, que deve ser criado com as novas'diretrizes do ensino fundamental?

Esse ciclo não deveria começar aos 6 anos.Quando se criaUlu ciclo para alfabetizar a criançaem três anos, se esquece de que é preciso começarantes. Deveria haver um ciclo antes desse, pelo me-nos, das crianças de 4 a-5anos. Aí teríamos a alfabe-tizaçâode 4 a 8 anos,que é o tempo necessário paraque a criança, considerando o seu desenvolvimentocognitivo e linguístico, domine a língua escrita mi-nimamente e possa prosseguir.

Ea questão da reprovação?Prefiro falar em retenção. Ascrianças são diferen ~

tes entre si. Não se pode pretender que caminhemno mesmo passo, igualmente. Isso não acontece nemnos aspectos físico e emocional. Essa definição por·idade só serve porque é a única viável do ponto devista.prático. Dentro dessa faixa d~6a8anoshá di-ferenças enormes entre as crianças. Não se pode pre-tender que todas cheguem à meta que se pretendenesses três anosdo ciclo. Há aquelas que, para bene-fício delas próprias, precisam ser retidas, para ter umsuplemento para atingir o que não conseguiram. Masa escola pode fazer isso por diversos procedimen-tos que não deem essa conotação de reprovação. Aomesmo tempo, não é justo com a criança, nem coma família, que ela seja passada adiante sem estar emcondições. É bom que se admita que se, ao final dociclo, a criança não está em condição de passar parao seguinte, que ela possa - e deva - ser retida. Masse o ciclo funcionasse realmente com a característicaque os ciclos devem ter, com atendimento a gruposdiferentes entre si, com reforço para determinadascrianças, provavelmente se conseguiria chegar ao seufinal com todos mais ou menos no mesmo nível. Masescolas e professoras não estão preparadas para isso.

Qual a sua impressão sobre a Provinha Brasil?Tenho grande entusiasmo pela Provinha Brasil.

Onde tenho visto ser usada, como; por exemplo, emLagoa Santa, município em que venho trabalhando,tem ajudado muito. Embora também façamos diag-nósticos da própria rede, importantes porque sabe-mos o que estamosperseguindó.esseolhar externoé vital. Aliás, não só a Provinha Brasil, mas qualqueravaliação externa seria importante se tivesse a ca-racterística que a Provinha Brasil tem.

Qual a diferença?Em avaliações corno ()Saeb, o Saresp e o Simave

vão à escola, aplicam a prova.e não deixam a institui-ção ficar com ela ou vê-Ia,porque estão constituindobanco de questões. É um segredo. Ou seja, a escola éavaliada e g~~ha números no final, que dizem se sesaiu bem ou mal. Mas não sabe em que aspectos foi

. bem ou mal e, portanto, o que fazercom aquelesre-sultados. A Provinha Brasil é um bom instrumentode diagnóstico, e não de avaliação. Chega à escolacom todas as explicações necessárias sobre o queestá sendo avaliado, com análises sobre as dificulda-des dos alunos em função de suas respostas. O go-verno dáa prova e as orientações para trabalhar comaquele instrumento, todo o resto é feito na escola.Em Lagoa Santa, analisamos a Provinha, vemos oque ela está medindo, complementamos com o queela não está medindo.mas nos interessa medir, apli-

.. camos, levantamos os resultados, fazemos gráficos,tabelas, analisamos com as professoras, aluno poraluno; turma por tu~·~à,habiltdade porhabilidade eorientamos o trabalho para a frente.

Isso tem sido frequente em outros municípios?Há municípios que tomam isso como imposi-

ção do MEC, alguns até apenas devolvem as provasrespondidas. Não entenderam o objetivo. As redesprecisam ser mais bem orientadas. O que tem acon-tecido é que as escolas aplicam, tomam ao pé da letraa orientação que vem do Inep e, em função disso,começam a preparar os alunos para a próxima Provi-nha. Essa, aliás, é a maior crítica que se faz às avalia-ções externas: as escolas estão se transformando eminstituições que preparam os alunos para respondera testes que vêm de fora. O que significa restringir elimitar o processo de aprendizagem, subordinar-se aurna definição de fora sobre o que deve ser o processode seus próprios alunos.

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