46
7 Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew Lipman e os seus colaboradores Matthew Lipman é um professor americano, nascido em 1923, e que ainda goza de saúde. Ensinou, durante dezoito anos, Lógica, na Universidade de Columbia, e vinte e dois na Universidade City, ambas em Nova Iorque – Estados Unidos. Desde 1972, é professor na Universidade Estadual de Montclair (Nova Jersey – Estados Unidos) onde é Distinguished University Scholar. Lipman é conhecido por ser o criador do projecto educativo – Filosofia para Crianças – programa conhecido e aplicado em mais de 30 países dos cinco Continentes. É autor de numerosos artigos e alguns livros, entre eles, Philosophy Goes to School, Philadelphia: Temple University, 1988; Thinking in Education, Cambridge: University Press, 1991; Natasha – Vygotskian dialogues, New York: Teacher’s College Press, 1996 e Thinking Children and Education, org. Dubuque: Kendall, 1993. As três primeiras obras estão traduzidas em português. Matthew Lipman foi o fundador e Director do Institute for the Advancement of Philosophy for Children da Montclair State College, em Nova Jersey. É, ainda, autor de vários livros para crianças (Novelas Filosóficas 2 ) cujo intuito é introduzir as crianças na atitude filosófica. Dada a pertinência do seu projecto, em Outono de 1991, Lipman foi tema do

Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

  • Upload
    vunga

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

7

Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças

1. Matthew Lipman e os seus colaboradores

Matthew Lipman é um professor americano, nascido em 1923, e

que ainda goza de saúde. Ensinou, durante dezoito anos, Lógica, na

Universidade de Columbia, e vinte e dois na Universidade City, ambas em

Nova Iorque – Estados Unidos. Desde 1972, é professor na Universidade

Estadual de Montclair (Nova Jersey – Estados Unidos) onde é

Distinguished University Scholar.

Lipman é conhecido por ser o criador do projecto educativo –

Filosofia para Crianças – programa conhecido e aplicado em mais de 30

países dos cinco Continentes. É autor de numerosos artigos e alguns

livros, entre eles, Philosophy Goes to School, Philadelphia: Temple

University, 1988; Thinking in Education, Cambridge: University Press,

1991; Natasha – Vygotskian dialogues, New York: Teacher’s College

Press, 1996 e Thinking Children and Education, org. Dubuque: Kendall,

1993. As três primeiras obras estão traduzidas em português.

Matthew Lipman foi o fundador e Director do Institute for the

Advancement of Philosophy for Children da Montclair State College, em

Nova Jersey. É, ainda, autor de vários livros para crianças (Novelas

Filosóficas2) cujo intuito é introduzir as crianças na atitude filosófica. Dada

a pertinência do seu projecto, em Outono de 1991, Lipman foi tema do

Page 2: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

8

programa de televisão da BBC Transformers, sendo considerado um dos

três educadores pioneiros. Já que a sua tentativa comporta uma ideia e

uma prática. Ideia e prática que interagem e se influenciam mutuamente,

mas que não devem confundir-se, pois uma coisa é a ideia de introduzir a

filosofia nas crianças, ou seja, pôr as crianças a vivenciarem a sua

história, os seus métodos e seus problemas, e, outra bem diferente é

dispor de tudo que é necessário para concretizar essa ideia. Isto é,

instituições, materiais e cursos.

Mas tudo foi possível com a ajuda, persistência e trabalho dos seus

colaboradores, exemplo disso é Ann Margaret Sharp (norte-americana)

que junto com Matthew Lipman criou o Institute for the Advencement of

Philosopy for Children – Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia

para Crianças. É co-autora, com Lipman, de seis Manuais para o

professor do currículo de Filosofia para Crianças3 e autora de Hospital de

Bonecos, programa de filosofia para as crianças de três a cinco anos.

Dirige o programa de doutoramento em FpC que teve início em Janeiro de

1999 na Montclair State University. Realizou numerosos cursos e

conferências em mais de trinta países sobre o projecto de FpC, inclusive

no nosso país em 1989 na Sociedade Portuguesa de Filosofia.

Ronald Reed, norte-americano, fundador e director do programa

Philosophy for Childre na Texas Wesleyan Universiy (Texas, EUA), onde

foi nomeado, pelo seu trabalho e dedicação, Bebensee Distinguished

Scholar. Foi autor e co-autor de dez livros, sendo o mais conhecido

Talking With Childre e Rebeca, estando esta traduzida para português

2 Explicadas e analisadas no capítulo dois deste trabalho.

Page 3: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

9

pelo centro Brasileiro de Filosofia para Crianças. Trabalhou desde 1979,

em FpC, até a sua morte em 1998. Ainda nos E.U.A, Tom Jacson, director

do Centro Havaiano de Filosofia para Crianças desde a sua fundação, em

1984, doutor em Filosofia comparada e professor do Departamento de

Filosofia. Coordena o projecto Filosofia nas Escolas na Universidade de

Havai tendo como colega de trabalho Linda Oho.

A FpC tem muitos outros colaboradores em vários países, tais

como Walter Omar Kohan argentino. Licenciado em Filosofia pela

Universidade de Buenos Aires e mestrado na Universidade Ibero-

americana onde também se doutorou com a dissertação “A Filosofia na

Educação das Crianças”. A sua participação em congressos e cursos

sobre FpC tem percorrido vários países: Argentina, Chile, Estados Unidos,

México, Uruguai e Brasil onde actualmente é professor de Filosofia da

Educação na Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, onde

também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros

professores e crianças de escolas públicas. Apresenta várias publicações4

em castelhano sobre a temática em questão. Ainda na Argentina em

conta-se Gustavo Santiago. Licenciado em Filosofia pela Universidade de

Buenos Aires, é membro activo do Centro Argentino de Filosofia para

Crianças tendo experiência com crianças e professores de Argentina e

Chile.

Vera Waksman (Argentina) trabalha com crianças e na formação

de professores nas Universidades de Buenos Aires e La Plata Argentina.

3 Como serão enumeras às vezes que se fará referência à “Filosofia para Crianças” será utilizada a sigla “FpC”.

Page 4: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

10

Licenciada em Filosofia na Universidade de Buenos Aires, tem participado

em diversos Congressos e cursos de formação em Filosofia para

Crianças, sendo ainda, co-organizadora de Qué es filosofia para niños?

Ideias y propuestas para pensar la educación (Buenos Aires: Ofic. De

Publicaciones del CBC, 1997)

Ana Míriam Wuensch, colaboradora de Filosofia para Crianças no

Brasil, é licenciada em filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria

(UFSM), é especialista em Fenomenologia pela Universidade de Brasília e

mestranda em Filosofia Política na Universidade Federal de Goiás. Levou

a cabo a formação de professores e implantação de Filosofia para

Crianças em diversas escolas particulares de Brasília. Supervisiona a

Prática de Ensino da Filosofia no Departamento de Filosofia da

Universidade de Brasília e coordena, juntamente com Walter Kohan, o

projecto de “Filosofia na Escola”.

Angélica Sátiro, grande colaboradora no Brasil, licenciada em

Pedagogia pelo IEMG (Belo Horizonte, Minas Gerais) e especialista em

filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É directora de

projectos e responsável pela área de Filosofia para Crianças nas escolas

do Grupo Pitágoras. A sua participação em Congressos sobre Filosofia

para Crianças em países como Argentina, Brasil, Espanha, Estados

Unidos, e em Portugal tem demonstrado o quanto colabora na divulgação

deste projecto educativo. Tem publicado diversos artigos, livros sobre

filosofia, educação e literatura infantil, entre eles, o livro didáctico para o

4 As mais conhecidas são: (co-autor com Mário Berríos) Una outra mirada: niñas y niños pensando en América Latina; La Filosofia en la escuela;? Qué es filosofia para nños? Ideias y propostas para pensar la educación.

Page 5: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

11

ensino de filosofia, Pensando Melhor. Iniciação ao filosofar (co-autora com

Ana Míriam Wuensch).

No Canadá Marie-France Daniel, doutora em Filosofia da Educação

e professora da Universidade de Montreal (Quebec). É investigadora do

Centro Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Aprendizagem e o

Desenvolvimento em educação que promove pesquisas sobre as relações

entre educação física, a matemática e a filosofia para crianças. A

pesquisadora tem publicado numerosos artigos e livros sobre o tema, ente

eles La phisophie et les enfants (Montreal: Logiques, 1992).

Page 6: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

12

A Filosofia para Crianças5 tem ainda muitos mais colaboradores6

que investigam, reflectem e trabalham com este projecto educativo nos

trinta países onde é conhecido. Mas em que consiste a Filosofia para

Crianças? Que projecto é este que envolve filosofia e crianças? Qual a

5 Ao longo do trabalho serão muitas as vezes que se fará alusão à Filosofia para Crianças o que significa que será utilizada, a partir deste ponto, a sigla FpC. 6 Aqui fica, mais, um apontamento sobre alguns colaboradores que estão envolvidos com a FpC, ou porque reflectem sobre o tema e participam em Congressos, editam artigos, ou porque trabalham em Centros de Filosofia para Crianças. Nos Estados Unidos nomes como Ronald M. Green, (Professor em Dartmouth College, Hanover, New Hampsire), Philip Guin, (Professora de Filosofia, trabalha na investigação de Filosofia para Crianças), David Kennedy (Professor Associado de Educação e Filosofia para Crianças na Montclair State University) Gareth Matthews (professor de Filosofia na University of Massachusetts Amhert.), Maura J. Geisser (professor do departamento de Filosofia da Universidade de Browa). Um dos investigadores no Canadá é Michel Sausseville (professor da Universidade da Faculdade de Filosofia da Universidade Laval, Quebec.) entre outros. No Brasil encontram-se nomes como: José Ani Cunha (Director do Centro de Filosofia para Crianças de Campinas), Marcos António Loieri (Professor da Universidade Católica de São Paulo), Margarida Patriota (professora do Departamento de Letras da Universidade de Brasília), Maria Cristina Theobaldo (professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso), Moacir Gadotti (professor titular da Universidade de São Paulo e Director do Instituto PauloFreire), Peter Buttner (professor da Universidade de Mato Grosso), Olga Matos (professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo), Sílvio Gallo (Director da Faculdade de Filosofia, História e Letras e Coordenador do Curso de Licenciatura em Filosofia da UNIMEP), Sílvio Wonsoviez (Presidente do Centro de Filosofia – Educação para o Pensar, Florianópolis). Na Argentina nomes como Alejandro A. Cerletti (professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires), e Ricardo Sassone (Director do Teatro Universitário d Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires. Investigador do Instituto de Artes del Espectáculo da mesma Universidade) são assíduos em Colóquios e Congressos. Maria Teresa de la Garza (professora do Departamento de Filosofia da Universidade Ibérico - Americana do México) e Mónica Velasco (Directora do Centro de Filosofia para Crianças em Guadalajara) são alguns dos nomes ligados à Filosofia para Crianças no México. Ana Maria Vienña (professora de Pontifícia Universidade Católica do Chile) e Celso López (Professor da Universidade Nacional Andrés Bello do Chile) são os colaboradores do Chile. Maurício Longón (Membro da Associação de Filosofia do Urugai) é um dos representantes do Uruguai na Filosofia para Crianças. Passando para o Continente Australiano, Laurance Spliter (Membro do Departamento Australiano de Pesquisa Educacional – ACER) é também simpatizante deste projecto educacional. Do Continente Australiano passa-se para a Europa onde são vários os países que dedicam dentro da educação e da filosofia o seu estudo à Filosofia para Crianças. Como são muitos, os nomes, salientam-se só os que participam activamente no projecto, isto é os que publicam artigos, colaborando em Revistas sobre a matéria, assim como em Centros ou formação de professores de Filosofia para Crianças. Em Espanha nomes como Fernando Martínez e Félix Garcia – Moriyón (Professores da universidade Autónoma de Madrid), Irene de Puig (Professora do Instituto de Pesquisa sobre Ensino e Filosofia de Barcelona), entre outros trabalham na Revista Internacional de Filosofia para Crianças, assim como no programa educacional e na sua avaliação. Em Portugal são

Page 7: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

13

metodologia usada? Que vantagens trás para a educação? E para a

Filosofia? Poderá pensar-se nesta proposta como uma Filosofia da

Educação? Perguntas que de certa forma se vão respondendo ao longo

deste trabalho.

2. O que é Filosofia para Crianças?

O que é FpC? Para se entender a resposta à questão é necessário

primeiro passar pelo que motivou o pioneiro, o que o levou, a criar este

projecto. Assim a FpC surge em consequência do comportamento dos

estudantes da Universidade de Columbia, New York - EUA, onde Matthew

Lipman leccionava Introdução à Lógica. Observando as revoltas

estudantis de 1968, o filósofo preocupou-se com o que se estava a

passar. Percepcionou os esforços desajeitados da Universidade para se

reavaliar e não pôde deixar de concluir que os problemas de Columbia

não podiam ser resolvidos no quadro dessa instituição. Estudantes e

professores, todos tinham saído da mesma matriz da escola primária e

secundária. Concluiu: “Se não tínhamos recebido uma Educação boa,

muito provavelmente tínhamos chegado a compartilhar as mesmas ideias

erróneas que nos levariam a estropiar nossa educação posterior em feliz

conluio mútuo”. (1999a, 21-22)

Contribuiu, também, para o florir deste projecto a oportunidade que

Lipman teve de observar os esforços de um professor de crianças com

Maria José Rego Figueiroa , Zaza Carneiro de Moura e Alice Dos Santos as mais

Page 8: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

14

deficiência neurológica para ensiná-las a ler. Perante os esforços inúteis

do professor, o pioneiro sugeriu que lhes fossem dados exercícios para

tirar inferências lógicas. Mais tarde, o professor comunicou-lhe que essa

prática tinha funcionado. Lipman confirmou o seu palpite de que as

crianças podiam aproveitar a instrução no raciocínio, contando que

recebessem contribuições da Filosofia, especialmente das suas áreas de

lógica, ética, estética e epistemologia. Era claro que se podia ajudar as

crianças a pensar com mais clareza, já que lhe parecia que elas

pensavam tão naturalmente como falavam e respiravam. Porém, a

questão radicava em: como conseguir que pensassem bem?

As falhas nos raciocínios dos seus alunos, os comportamentos e o

trabalho de professores com crianças incapacitadas neurologicamente

foram as causas, entre outras, que levaram o pioneiro a pensar que os

jovens não só precisavam de estudos sobre a Lógica e Filosofia, como o

contacto com ambas teria que ser muito antes da universidade7. As

crianças e a filosofia são aliadas naturais, pois em ambas o assombro é o

princípio do questionamento. Lipman, diz mesmo: “só os filósofos e os

artistas se comprometem sistemática e profissionalmente em perpetuar o

assombro, tão característico da experiência cotidiana (sic) da criança”

(Lipman, 1999a, 24).

Um dos primeiros desafios de Lipman era criar um espaço até

então inexistente e o material didáctico a ele adequado. Em 1969, surge o

primeiro material. Lipman escreve uma novela filosófica para

empenhadas no projecto. 7 O contacto com a filosofia e a lógica nos EUA, só era possível na Universidade, “a filosofia tem, historicamente, uma fraca presença nas instituições educativas - ainda actualmente não faz parte dos currículos escolares em nenhum dos seus níveis”. (Kohan. e Wuensch, 1999a, 85).

Page 9: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

15

adolescentes, na forma de diálogo construtivo entre crianças

intelectualmente inquietas, preocupadas em saber cada vez mais. Harry

Stottlemeier’s Discovery8, título da obra que relembra Aristóteles e a sua

Lógica.

Lipman experimentou o Harry, porém descobriu o quanto era

necessário criar um manual adicional que permitisse uma melhor

aplicação filosófica na sala de aula, para evitar que os professores

levassem as crianças a um Doutrinamento9, pois, se acontecesse isso, o

projecto educativo não atingiria os objectivos. O manual foi criado,

contendo vários exercícios e orientações de discussão sobre os temas

abordados no romance. Deste modo, o filósofo avaliou que a FpC tanto

era necessária na escola como em casa, tendo em conta que deveria

existir uma continuidade do trabalho aplicado na sala de aula.

O projecto foi-se desenvolvendo, com a ajuda de alguns

colaboradores, criando o Institute for Advancement of Philosophy for

Children10 no Montclair State college, tornando-se, anos mais tarde, em

Montclair Satate University. Já lá vão mais de trinta anos. Após o seu

desenvolvimento realizaram-se seminários regulares intensivos e

internacionais de formação em FpC. Pode dizer-se que “pessoas do

mundo inteiro têm assistido a esses cursos e divulgado a proposta nos

seus lugares de origem ao longo dos últimos trinta anos. É de salientar

que já existe um número, ainda muito pequeno, de portuguesas que têm

8 Harry Stottlemeier’s Discovery, traduzido para português por “A descoberta de Ari dos Teles”. 9 Conceito que traduz o inglês “indoctrination” e o francês “endoctrinement” e que em português surge como “endoutrinamento” e/ou “endoutrinação”. (Cfr. Veiga, M. A. Da, 1998a, 241), a preferência vai para o conceito doutrinamento, na medida emque ver o outro como alguém que não é capaz de tirar as suas elações.

Page 10: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

16

frequentado cursos e mestrado em Philosophy for Children, na Montclair

State University, junto de Lipman, onde, segundo Mª José Rego11, o

“ritmo de trabalho é impressionante”. Aí, adquiriu hábitos de

profissionalismo que a marcaram, para o resto da vida.

Criou depois outras histórias; “(...) alguns romances para aplicar

essas ferramentas da lógica em questões éticas, literárias, artísticas,

políticas sociais e depois, “em ordem cronológica decrescente, escreveu

mais uns tantos romances para preparar os mais pequeninos para esse

contacto com lógica e as outras áreas de filosofia” (1999a, 87). Assim

sendo, a filosofia é a base e o método para levar as crianças e os jovens

a pensar por si mesmas; de forma adequada já que “poderá fazer coisas

de uma forma melhor que outras disciplinas, assim como investigar as

maneiras pelas quais a filosofia poderá fazer coisas - coisas vantajosas -

que nenhuma outra disciplina poderia fazer.” (1990, 55).

Sobretudo, “a filosofia implica aprender a pensar sobre uma

disciplina e, ao mesmo tempo, aprender a pensar autocorretivamente

(Sic) sobre o nosso próprio pensar” (1990, 59). Neste sentido, o currículo

de FpC foi crescendo tornando-se importante na educação.

Filosofia para Criança é um projecto educativo “cujo objectivo é o de

desenvolver o pensamento e o raciocínio de alunos desde o primeiro grau

e segundo graus12 através de discussões filosóficas nas salas de aulas.”

(1990, 9). Sendo que a filosofia é a disciplina por excelência a mais

10 Instituto para o Desenvolvimento de Filosofia para Crianças. 11 Directora do Centro Ménon – Centro de Filosofia com Crianças - e professora na Universidade Católica Portuguesa em Lisboa. 12 Desde o Jardim-de-infância até ao secundário, já que o currículo engloba crianças e jovens, dos 3 até aos 16/17 anos. Daí salientar-se filosofia para crianças e jovens.

Page 11: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

17

adequada para concretizar o objectivo. Lipman encontra a ideia em

Dewey, nas suas reflexões sobre filosofia da educação, reconhecendo

que “foi Dewey quem previu, nos tempos modernos, que a filosofia tinha

que ser redefinida como o cultivo do pensamento ao invés de transmissão

de conhecimento” (1990, 20) Porquê a filosofia?

Porque o projecto educacional que Lipman procura é aquele que

alcance tudo o que existe de desejável nos outros, e mais o que não

existe nos outros projectos. A filosofia porque, salienta o pioneiro, “é

investigação conceitual, que é a investigação na sua forma mais pura e

essencial.” Reforçando a ideia com o facto das “outras disciplinas não

envolverem tanto conhecimento quanto a prender a pensar uma

disciplina.” (1990, 59). Este pensar envolve um pensar histórico,

antropológico, físico, matemático e linguístico.

Conforme a obra A Filosofia vai à Escola, Lipman, aponta três razões

para responder a pergunta Porquê a Filosofia?, sendo que a primeira

realça para o facto da disciplina ser representativa de uma herança do

pensamento humano. “A filosofia não desmantela o seu passado, mas

toma o pensamento de qualquer filósofo para reinspiração e

reinterpretação,” refere Lipman. O espírito de racionalidade e juízo crítico,

que nenhuma disciplina pode proporcionar, só a filosofia é que consegue

dar à educação, segundo motivo. Como terceira razão aponta-se a

circunstância da filosofia preparar para o pensar, nas várias disciplinas, o

que deduz a importância da sua incorporação no currículo de todos os

grau de ensino tendo uma abordagem cultural. (Cfr. 1990, 59)

Lipman pretende “Oferecer às crianças um modelo de vida mais racional como membros de uma boa comunidade de participação e colaboração.” (1990, 61).

Page 12: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

18

Todas são razões para pensar-se no papel da filosofia na educação

escolar. Para Lipman esta é uma questão resolvida. E por que está

resolvida, não lhe foi difícil encaminhar-se para o projecto educativo de

FpC.

Dada a importância do tema filosofia e criança, não pode deixar de se

pensar em três expressões ou matérias diferentes É o caso de Filosofia

com Crianças, Filosofia para Crianças e Filosofia da Infância. O que são?

O que as diferenciam?

Segundo Lipman a expressão Filosofia com Crianças consiste em

fazer investigação com crianças, que “abrange tanto o papel informal de

conversações filosóficas com crianças que ocorrem nos lares e outros

espaços externos à escola.” (1999d, 362). A maior associação de

investigação com crianças denomina-se “Conselho Internacional para a

Investigação Filosófica com Crianças” (ICPIC).

Quando se pensa, ou se utiliza, a filosofia “como um elemento

nuclear da educação formal institucionalizado, das crianças” (Cfr,

Lipman), estamos perante a Filosofia para Crianças, já que não podemos

deixar de desenvolver matérias curriculares e pedagógicas apropriadas.

FpC é o nome de uma abordagem educacional específica, como já se

referiu, empregando um currículo próprio e uma pedagogia particular.

No entanto Kohan chega a mencionar esta abordagem educacional

como “filosofia com crianças, na medida em que o caminho aberto por

Lipman vai mais longe do que a sua proposta de praticar a filosofia para

crianças, sendo um campo fértil de pesquisa sobre a fundamentação, os

métodos e as finalidades dessa prática.

Page 13: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

19

A Filosofia da Infância consiste numa investigação filosófica em uma

área particular da experiência humana, a fase infantil da vida do ser

humano. Segundo Lipman a Filosofia da Infância contrasta fortemente

com FpC, sendo esta, sempre e em qualquer lugar educacional. A

“Filosofia da Infância é primeiramente um ramo da filosofia tradicional,

uma subdisciplina (sic) do tipo «filosofia de», ainda que lidando com um

assunto relativamente novo: infância”. (Cfr. 1999d, 362).

Fazer filosofia sobre o conceito, tema ou ideia historicamente

localizado, deve-se à época moderna onde a infância é vista como um

estado prolongado da vida humana que deve ser separado da maturidade

adulta. Mas como se dá esse crescer? Esse estado prolongado da vida?

3. A Criança e a Educação

3.1. A evolução do conceito de criança

A Filosofia da Educação do nosso tempo apresenta algumas

características que reflectem, nos seus aspectos mais essenciais, as

modificações sofridas pela evolução durante as mudanças históricas e

sociais. A realidade educativa, esboço de uma história e de uma filosofia

da educação, apresenta uma visão variável do conceito de criança, o que

não se verifica na psicologia.

Os estereótipos que se mantinham, até ao despertar do século XX,

acerca do conceito de criança e da pouca importância que lhe era

concedida, impediram durante muitos anos o aparecimento de uma área

Page 14: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

20

de investigação e uma visão sobre a sua educação mais adequada à

essência da criança.

Havia psicólogos e educadores que tinham uma visão negativa da

infância, encarando a criança como uma espécie de selvagem quase sem

humanidade, incluindo-a na mesma categoria em que mantinham os

primitivos e os deficientes mentais. Outros, ainda, viam na infância uma

idade em que a mente da criança funcionava como a do adulto. A

diferença entre criança e adulto era apenas encarada em termos de

crescimento13 e não de desenvolvimento14. A criança era vista como um

homem em miniatura. O mesmo já não acontece nos dias de hoje, pois a

grande luta da psicologia actual é, como nos diz Planchard: “não esquecer

que a criança é um ser qualitativo e quantitativamente diferente de nós

mesmos.” (1952, 12).

Não reconhecer o estatuto próprio da criança tinha reflexos

negativos na educação familiar e escolar que lhe exigiam condutas muito

próximas das do adulto, sem que ela pudesse comportar-se da forma

pretendida. Por isso é que, no que diz respeito à matéria de psicologia

educativa, deve-se evitar cair em qualquer destes excessos: só ver as

semelhanças entre a criança e o adulto é o erro que, noutros tempos, se

cometia com grande frequência; só ver as diferenças, é o defeito em que

certos pedagogos contemporâneos e psicólogos da educação se arriscam

13 Refere-se ao tamanho da criança, apresentando como diferença entre uma criança e o adulto, exclusivamente o seu tamanho e a sua força corporal. 14 Refere-se ao conjunto de transformações do ser humano ao longo da sua vida. É um processo que se inicia no momento da concepção e termina com a morte, e em que estão envolvidos múltiplos factores: biológicos, cognitivos, motores, morais, emocionais, linguísticos, afectivos e sociais.

Page 15: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

21

a cair, tendo em conta que, como diz Pestalozzi15, “a criança é um ser

dotado de todas as faculdades da natureza humana, sem que nenhuma

tenha, ainda, alcançado o seu desenvolvimento: é com se todavia fosse

um cartucho por abrir.” (1996, 9), e o levantar de cada ponta do cartucho

é cheio de surpresas. O que leva os filósofos da educação a

questionarem-se sobre o desenvolvimento da criança e se esse,

desenvolvimento é acompanhado por uma educação adequada.

Com agudeza e elegância, num tempo em que, por razões diversas

já que cada época tem as suas verdades, se menosprezava a linguagem

e as ideias da criança, Rousseau defendia a dignidade da mesma,

mostrando o quanto era importante que a criança vivesse a sua infância

para desenvolver pouco a pouco as tendências naturais que nela existem

e, em cada idade, ao nível da sua maturação. Para deixarmos a criança

ser ela mesma, ou viver a sua infância, é necessário conhecê-la nas

diferentes etapas do seu desenvolvimento.

A psicologia da criança tem vindo a desenvolver os seus estudos;

mas até que ponto tem contribuído, para um melhor conhecimento da

criança? E da sua educação? É sabido que, o movimento sofístico “é a

origem de educação no sentido escrito da palavra: a paideia” (Paideia,

335) e que a educação não pode ser senão um processo de

desenvolvimento interno, mas, para isso é necessário conhecer e

compreender esse mesmo desenvolvimento, o que operará uma

transformação completa da perspectiva pedagógica. A transformação,

15 Pestalozzi (1746-1827) nasceu em Zurich, suíço alemão, é um clássico da pedagogia, sendo esta fruto da observação e da experiência, intuindo a natureza da criança e do processo educativo. Pedagogo que se entrega totalmente à escola e à educação das crianças entende a educação como a formação do homem enquanto ser individual.

Page 16: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

22

não completa, mas, como alerta para a descoberta da criança, enquanto

criança, deve-se a Rousseau, pois via a educação como um processo de

desenvolvimento.

No tratado sobre a educação Émile, Rousseau descreve a

educação de um jovem para a sua sociedade ideal. A criança é tirada dos

pais e das escolas, isolada da sociedade e entregue às mãos de um

preceptor ideal que o criar em contacto com a natureza que é indicada

como inanimada sub-humana, mas bela e maravilhosa, onde a criança

deve estar em contacto directo com as plantas, fenómenos físicos e

forças de todas as espécies. Uma vez que a criança é intrinsecamente

boa, a sociedade é que a deforma. A educação deve ter em conta o

desenvolvimento natural da criança, para que possa agir, actuando por si

própria; porque as lições fornecem as experiências de outros e destroem

o germe da experiência própria da essência do ser humano. A concepção

educacional da natureza do ser humano, defendida por Rousseau, não

podia deixar de estar relacionada com o pensamento filosófico da época.

Um dos precursores da pedagogia contemporânea, Pestalozzi

“extrai as suas ideias, como Rousseau, da simples especulação ou

reflexão sobre a natureza humana” (1996, IX); porém, este opta pelo

caminho da experiência para conhecer e compreender o desenvolvimento

da natureza humana, que o coloca “de entre todos os educadores e

filósofos da educação (...) o único conhecido nos cinco continentes, o

único que alcançou a grandeza mística de um Beethovem: o génio

pedagógico” (Chateau, 232 - 233).

Page 17: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

23

Toda a criança deve ter como primeira e principal educadora a sua

mãe, diz Pestalozzi .

“Toda a mãe é chamada a consagra a atenção sobre

essa tarefa. Nisto consiste o principal dos seus

deveres; (...) a ideia de se ter um dever vai sempre

acompanhada da capacidade de o cumprir.” (1996,

108)

Nesta perspectiva a mãe é a única que consegue pôr a criança a fazer as

coisas por si própria, formar as ideias mediante os actos que executa

todos os dias. Tudo o que ela pode vir a ser, o ser do futuro, encontra-se

na espontaneidade das suas iniciativas. A criança é vista como um ser

que exercita o cérebro, o coração e as mãos, isto significa que trabalha

harmonicamente as várias faculdades humanas.

Assim, a criança deve, desde o berço, ser encarada de acordo com

a sua natureza, ideia também defendida por Froebel:16

“a criança não é boa nem má, é um ser em formação e

em desenvolvimento espontâneo (...) a criança é

chamada a realizar-se na vida que lhe é actual e o

ensino deve assentar na observação contínua da

criança.” (1977, 36)

Sendo pois da crença na natureza divina da criança que nasce a

característica reverência de Froebel pela infância, que considera

detentora de um valor absoluto. Foi sem dúvida através deste pedagogo

que se deu uma mudança na percepção da infância, criando um interesse

16 Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852) nasceu na Turíngia (Alemanha). A vida foi-lhe muito agitada, mas sempre inspirada, essencialmente, no amor à criança e à natureza, suas duas grandes paixões. Para Froebel, a educação consiste em suscitar as energias do homem, como ser progressivamente consciente, pensante e inteligente. A educação é antes de tudo desenvolvimento completo das energias latentes, com finalidade humana.

Page 18: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

24

pela criança e pelo próprio método de ensino, já a escola passa a centrar-

se no desenvolvimento da criança.

Froebel teve o prenúncio de antecipar a descoberta feita pelos

psicólogos que os primeiros anos de vida são os decisivos no

desenvolvimento mental do ser humano; apesar de apresentar uma

psicologia pobre foi feliz nas suas intuições, já que previram muito do

posterior descoberto pela Psicologia de hoje, pois em seu tempo não se

conhecia, como hoje, a vida anímica da criança. (Cfr, 1960, 201-265).

A base do conceito de criança, ou do que é a criança assenta “na

crença de que a alma da criança, no primeiro período de

desenvolvimento, não pode reconhecer-se senão na percepção das

formas mais simples do mundo exterior” (1967, 265-266). A pedagogia de

Froebel é uma pedagogia da acção, onde “a criança para desenvolver-se,

não deve apenas olhar e escutar, mas agir e produzir”(Ibid). Não

obstante, tem a escola uma função social, através da função individual: o

desenvolvimento das energias da criança e da consciência do grupo e da

colectividade; nomeadamente, a escola deve parecer-se o mais possível

com a vida; onde conste a actividade e a liberdade.

Froebel criou o Kindergarten17, escolas infantis, com aspecto

simpático, salas arejadas, espaçosas, perfeitamente limpas e cercadas de

jardins. As crianças sentadas em pequenos grupos ocupam as mãos e o

cérebro que desperta com cubos de madeira, réguas, pauzinhos. Jardim

onde, “o essencial é a actividade infantil, que se manifesta como jogo”

(Cfr, 1969, 202) sendo este, o mais puro produto da fase de crescimento

17 Jardim-de-infância.

Page 19: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

25

da criança, pois é do jogo que brota tudo, ou quase tudo, que há de bom

na criança em si mesma.

A caracterização da criança na época contemporânea não

apresenta grandes diferenças nas linhas gerais apontadas pelos filósofos

da educação da época moderna. Porém não se pode dizer que não houve

perspectiva novas em relação à educação, exemplo disso e John Dewey.

A educação, segundo o filósofo, tem a função de descobrir e desenvolver

capacidades, até aqui nada de novo. A novidade está no facto da filosofia

ser a teoria da educação, educação esta que assente numa sociedade

democrática.18

O que é que existe de semelhante entre as linhas gerais apontadas

sobre alguns pedagogos e a Filosofia para Crianças? Rousseau fala da

educação como processo de desenvolvimento. Lipman nem pensa a

educação se não como um processo de desenvolvimento da criança. No

entanto esse desenvolvimento é feito de outra forma bem diferente da

apresentada por Rousseau, é um desenvolvimento cognitivo para o

pensar por si. Em certo aspecto é uma classificação de contextos:

aprender a não confundir o especial com o temporal, o auditivo com o

visual, o físico com o pessoal. A criança em desenvolvimento cognitivo,

muito cedo adquire aprendizagem desses contextos, não defrontando

dificuldades em transcendê-los. (Cfr, 1990, 126). É a fase do Jogo

Simbólico da criança que será analisado, ainda, neste ponto.

No caso de Pestalozzi é a espontaneidade da criança, assim como

o desenvolvimento do cérebro através da criatividade, que apresenta de

18 Ideia a desenvolver no ponto seguinte.

Page 20: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

26

certa forma uma semelhança com o desenvolvimento das habilidades do

pensamento que pretende a FpC, sendo que as habilidades cognitivas em

Lipman são de quatro tipos19: Raciocínio, Questionamento e investigação,

Formação de conceitos e Tradução.

Quando Froebel salienta que é importante para a criança

desenvolva a consciência de grupo e de colectividade, onde conste a

actividade e liberdade, Lipman também de certa forma partilha dessa ideia

pois, assim estará a contribuir para uma sociedade democrática que leva

a uma crescente sociabilização20 da criança. Froebel ao descrever as

salas do Jardim-de-infância apresenta requisitos que Lipman aponta para

a sala de aula onde se pratica a Comunidade de Investigação. Lipman,

também acredita que o jogo é uma actividade importante na educação da

criança.

Para se entende, exactamente, onde se pode encontrar algumas

semelhanças é fundamental que se conheça em que tipo de educação

assenta a FpC. Assim como: quais as habilidades cognitivas a

desenvolver? Para que tipo de sociedade prepara as crianças a FpC?

3.2 A criança e o desenvolvimento das habilidades

O patamar das grandes mudanças, na psicologia do

desenvolvimento (estamos a falar de um processo básico relativo ao

19 Ver anexo. Quadro com as principais habilidades cognitivas. 20 Por sociabilização, Lipman entende: “a internalização de atitudes e modos de fazer e dizer institucionais é uma substituição progressiva de inocência pessoal por experiência

Page 21: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

27

organismo e à própria conduta), quanto ao modo de encarar a criança,

radica no conceito de evolução apresentado por Charles Darwin. A teoria

evolucionista de Darwin, estilhaçadora da fronteira intransponível entre

animal e ser humano, abre caminho a uma nova perspectiva em

psicologia genericamente apelidada de organicismo por oposição ao

maturacionismo e mecanicicmo. É objecto de mais atenção e

desenvolvimento, neste ponto, a perspectiva organicista, dada a sua

pertinente para a temática a desenvolver.

Os psicólogos que defendem o modelo organicista assumem uma

perspectiva interaccionista, considerando que o desenvolvimento

cognitivo “é uma competência geral e estrutural do sujeito para pensar e

raciocinar sobre o mundo físico e lógico - matemático considerados de um

ponto de vista científico” (1997, p.61), isto é, a dinâmica em que factores

maturacionais, genéticos e da experiência externa se combinam no

decorrer dos diferentes estádios21 por que o indivíduo passa ao longo da

vida.

O modelo organicista realça o carácter adaptativo do processo de

desenvolvimento dado considerar que, ao progredir na sequência dos

estádios22, o organismo dispõe de mecanismos psicológicos diferentes e

qualitativamente superiores de intervenção no meio. Essas intervenções,

por sua vez, contribuem para reorganizar os mecanismos psicológicos,

fazendo com que a criança fique melhor apetrechada para ajustar

mundana, de ignorância por conhecimento, de subjectividade por objectividade.” (1999c, 43). 21 Estádios consistem, segundo Piaget, em fases ou etapas qualitativamente diferentes por que passa o desenvolvimento intelectual. 22 Ver em anexo quadro com os estádios e características principais de cada um, sobre o desenvolvimento cognitivo segundo Piaget.

Page 22: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

28

adequadamente os comportamentos às exigências do meio. “A criança é

um ser dinâmico que tem a possibilidade de moldar o seu

desenvolvimento graças às numerosas competências que lhe permitem

orientar, reorientar e conduzir as suas interacções com o ambiente.”

(1996, p.9).

Jean Piaget23 elaborou uma teoria de desenvolvimento a partir do

estudo da inteligência da criança e do adolescente. Ultrapassou a velha

concepção de que a inteligência da criança era semelhante à do adulto,

existindo entre elas mera diferença quantitativa. A proposta de Lipman

encontra apoio no construtivismo de Piaget. A concepção

(construtivista/interaccionista) parte da tese de que o conhecimento não

depende nem só da criança (sujeito) nem só do conteúdo de estudo

(objecto). As estruturas da inteligência não são apenas inatas, mas

produto de uma construção contínua da criança. As estruturas intelectuais

constroem-se de modo progressivo num processo de troca entre o aluno

e o meio (sujeito/meio). Destaca a importância do trabalho em equipa e

cooperação para o desenvolvimento da inteligência24. O apelo às

actividades espontâneas da própria criança, objectivando uma

organização cognitiva preparatória das operações da inteligência é

conseguida através do processo de adaptação ao meio.

23 Jean Piaget (1896 - 1980) nasceu em Neuchâtel e morreu em Genebra, Suíça. Foi biólogo, zoólogo, filósofo, epistemólogo e psicólogo. Este conhecimento interdisciplinar dá-lhe uma vasta cultura científica impregnaram a sua obra com muitas contribuições para vários campos do saber. Piaget revolucionou as concepções de inteligência e de desenvolvimento cognitivo de pesquisas centradas na observação e em diálogos que estabelecia com as crianças. 24 Na perspectiva de Piaget inteligência define-se por: capacidade para resolver problemas; poder de adaptação a situações novas; faculdade de compreender, de discernir; fazer uso de símbolos abstractos; eficiência global das capacidades cognitivas.

Page 23: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

29

Sendo que a inteligência precede o pensamento25, o

desenvolvimento pressupõe, por um lado, a influência do meio físico,

social e ainda, a hereditariedade.

O desenvolvimento mental faz-se, pois, por etapas sucessivas em

que as estruturas intelectuais se constroem progressivamente:

“A cada instante, a acção é desequilibrada pelas

transformações que aparecem no mundo, exterior ou

interior, e cada nova conduta vai funcionar não só para

estabelecer o equilíbrio, mas também para tender a um

equilíbrio mais estável que o do estádio anterior a essa

perturbação” (1990a, 16),

Cada novo estádio representa uma forma de equilíbrio cada vez maior,

que permite uma adaptação mais adequada às circunstâncias. Sendo

assim, o desenvolvimento psíquico tem início com o nascimento e termina

na idade adulta, podendo comparar-se ao crescimento orgânico,

consistindo essencialmente numa marcha que tende para o equilíbrio,

portanto, em certo sentido, uma equilibração progressiva, uma passagem

perpétua de um estado de menor equilíbrio a um estado de equilíbrio

superior.

Em todos os estádios, a permuta entre o sujeito e o meio opera-se

por dois mecanismos constantes, que são a assimilação e a acomodação,

que segundo Piaget consiste em:

“Incorporar as pessoas e as coisas na actividade

própria do sujeito, portanto em «assimilar» o mundo

exterior às estruturas já construídas, (...) a reajustar

estas últimas em função das transformações sofridas,

25 Por pensamento Piaget entende: pensamento representacional, ou seja, pensamento que é internalizado e inclui representações mentais de experiências anteriores com objectos e acontecimentos.

Page 24: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

30

portanto em «acomodadas» aos objectos externos.”

(1990a,17).

Por isso, face a uma nova situação, a criança começa por

incorporar os objectos aos esquemas já construídos (se possui, por

exemplo, esquemas de agarrar, sacudir ou puxar, aplica-os aos objectos)

e, simultaneamente, transforma esses esquemas para uma melhor

adaptação. O desenvolvimento mental surge assim, na sua organização

progressiva, “como uma adaptação sempre mais precisa à realidade.” (Cfr

1990a, 18). São estes dois mecanismos funcionais que possibilitam a

construção das novas estruturas. Estes são, primeiramente, esquemas de

acção que, quando interiorizados, se transformam em esquemas

operatórios. Sendo que, qualquer regulação acrescenta novas

transformações que têm as suas próprias estruturas, designadamente

quanto às negociações, o que permite enriquecer na forma o sistema que

se queria equilibrar. (Cfr, 1977, 47).

Até aqui tudo bem, pois Lipman também faz um apelo às

actividades espontâneas da criança, para que se proporcione o

desenvolvimento das habilidades cognitivas. Porém é neste ponto que se

afasta de Piaget, pois, o conceito cognitivo em Lipman é muito mais que o

acto de conhecer. É desenvolver habilidades que exigem classificação de

contextos e não a forma piagetiena, que “visa traçar os limites do alcance

intelectual da criança propondo uma série de problemas (…) e

determinando em que idade a criança pode enfrentá-los com sucesso.”

(1990, 166). Mas em que assenta esse desenvolvimento? Tal como em

Piaget é num construtivismo, numa relação interactiva entre criança e

Page 25: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

31

escola. Não obstante Lipman rejeita a dicotomia entre o cognitivo e o

afectivo, pois no caso de se defender que não existe evolução com talento

artístico, então também não se pode atingir as habilidades na sua

plenitude. O pensamento é um componente de todo estado ou processo

psicológico, “sob alguns aspectos, uma actuação artística, e, sob outros, é

uma arte criativa”, diz Lipman. (2001,149). Pode-se reflectir sobre um

texto, tentando descobrir o seu significado intrínseco, na possibilidade de

existir uma semelhança aos artistas, ou pode-se criar uma nova hipótese,

ou escrever um texto original.

Lipman afasta-se de Piaget na correspondência entre as idades

dos estágios e as habilidades desenvolvidas em cada um deles. Os

esquemas de desenvolvimento conseguidos em cada estágio, propostos

por Piaget não são advogados por Lipman, pois as áreas de habilidade

mais relevantes para os objectivos educacionais são aquelas relacionadas

com os processos de investigação, processos de raciocínio, organização

de informação e tradução, que na perspectiva do pioneiro é provável que

as crianças, mesmo muito pequenas, as possuam de forma primária. E

não a abordagem neopiagetiana que “deixam a criança perplexa (…)

como consequência da ambiguidade ou da indiferença deliberada do

investigador.” (1990, 166)

Sendo assim, à que saber em que assenta o desenvolvimento das

habilidades cognitivas e não as suas limitações cognitivas da crianças,

mas de aumentar as suas capacidades cognitivas. O que imperiosamente

leva a uma sucinta análise da função simbólica da criança.

3.2.1 A função Simbólica: a linguagem e o jogo

Page 26: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

32

No campo dos estudos sobre o desenvolvimento da criança, um

dos itens que ocupa o estudo dos psicólogos e filósofos é o

funcionamento da linguagem e a configuração das primeiras palavras. A

Questão da linguagem surge associada ao âmbito da lógica já desde os

primórdios da filosofia grega.

Historicamente, verifica-se que o momento de ruptura no

equacionamento da relação entre pensamento e linguagem surge com o

movimento designado por positivismo ou logicismo. Porém, com o

desenvolvimento da psicologia e a reflexão filosófica, ao nível da lógica,

há autores que afirmam que a linguagem é simultaneamente o único

modo de ser do pensamento, a sua realidade e a sua realização.

Organiza o pensamento e realiza-o numa forma específica, torna a

experiência interior de um sujeito acessível a outro numa expressão

articulada e representativa.

Toda a criança quando nasce produz um grito reflexo automático

que “desempenha um papel fisiológico importante e incontestável: a

criança aprende a coordenar a respiração em função da sua intensidade e

duração.” (1975, 119) Assim, o grito está ligado a uma situação de

necessidade ou de sofrimento e que é em certa medida como que uma

necessidade neurofisiológica sem significação própria, acontece

rapidamente, diferenciando-se do primeiro, o grito emotivo que serve

incontestavelmente para traduzir, de uma maneira intencional, um estado

psíquico, que poderá ser de cólera ou decepção do bebé.

Page 27: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

33

A mãe é geralmente o ser humano com quem o bebé estabelece a

primeira relação afectiva de maior proximidade, pois é quem começa por

lhe proporcionar alimentação, conforto, protecção e carinho: “o coração

de uma mãe influência certamente de um modo preponderante na

maneira como ela põe em jogo a sua atenção.” (1996, 14). Existem no

bebé, para além de reflexos inatos dirigidos para a satisfação de

necessidades fisiológicas, como chupar ou mamar, outro tipo de

características inatas, com objectivo de sobrevivência, que visam

promover a interacção com os outros, como a necessidade corporal e de

aproximação física. Deve ser a mãe, tal como salienta Pestalozzi, a

“sentir-se capaz de ensinar ao filho os diversos nomes; pois, ao mesmo

tempo que mostra os objectos, de forma simples, pronuncia os seus

correspondentes nomes e faz com que a criança os repita.” (1975, 105).

Não podia deixar de ser um marco o momento em que a criança

começa a falar, tanto para os psicólogos que se dedicam ao estudo do

desenvolvimento da criança, como para os filósofos. A indiscutível

importância da linguagem, relacionada às diversas tentativas de

descrever e explicar a emergência das primeiras palavras na ontogenese,

levanta ainda questões concernentes aos processos de significação e ao

locus da linguagem na psicologia do desenvolvimento e na educação.

Só pelo simples facto de ter de viver em sociedade e porque esta,

de certo modo, actua sobre ela logo a partir dos primeiros dias de vida, a

criança deve dispor de sinais para traduzir os seus sentimentos e os seus

pensamentos, e deve ser capaz de reconhecer os sinais provenientes do

meio em que está inserida. Existem para o ser humano vários meios de

Page 28: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

34

comunicação, no entanto, a linguagem verbal “é sem contestação um

meio muito mais eficaz e muito mais prático de comunicar o pensamento

a outrem” (1975, 17). A linguagem proporciona a comunicação

intersubjectiva na sociedade. Sem esta possibilidade de comunicação

com os outros, ver-nos-íamos privados de uma série de experiências,

conhecimentos, valores, de outros sujeitos, o que nos tornaria ainda mais

incompletos e fechados. A nossa abertura ao mundo e aos outros e a

todo o universo de sentimentos e pensamentos passa fundamentalmente

por uma ponte: a linguagem. Com efeito, o uso da linguagem faz parte

essencial da vida e da acção humana, e é pela linguagem que o ser

humano se apropria da realidade.

Diferentemente das plantas e dos animais, os seres humanos

pensam, falam e argumentam, isto é, usam sistemas de linguagem mais

complexos para pensar e comunicar, sendo, por isso que pensamento e

linguagem estão necessariamente interligados como as duas faces de

uma moeda, que nos leva a perceber, que “entre a linguagem e o

pensamento existe assim um círculo genético, de tal modo que um dos

dois termos se apoia necessariamente no outro, numa forma solidária e

numa perpétua acção recíproca.” (1977,133).

Pensar é um acto lógico que implica o estabelecimento de relações

entre conceitos traduzidos na linguagem por signo ou palavras, e a

imagem acústica do conceito (signo) é o significante e a ideia é o seu

significado. Por outras palavras, segundo Saussure o signo é a totalidade

que resulta da associação de um significante com um significado (cfr.

Saussure, 1964, 123). Não podemos pensar que um signo é

Page 29: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

35

simplesmente a união de uma coisa e um nome, mas e continuando a

citar Saussure, é “um conceito e uma imagem acústica. Esta última não é

o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse

som, a representação que nos é dada pelo testemunho dos nossos

sentidos.” (1964, 122) É por isso que não podemos pensar sem palavras,

sem uma imagem acústica. Por outro lado, não podemos deixar de

constatar que esta está materializada numa Língua, num código comum,

numa determinada sociedade, e isto remete-nos para outro aspecto

fundamental da linguagem: a comunicação com os outros seres humanos.

Daí a necessidade da criança se sentir enquadrada no meio em que vive,

para descobrir o uso particular desta actividade espontânea e de natureza

puramente fisiológica.

A criança tem necessidade de expressar o que sente, e o que quer,

“o comportamento da criança que atira os brinquedos e que grita

zangando-se para que lhos apanhem, mostra que a utilização de valor

altamente simbólico pode adquirir finalmente o grito.” (1975, 120) A

inteligência prática ou sensório-motora da criança, sem outros

instrumentos que as percepções e os movimentos, são a base da

inteligência verbal ou reflexiva.

Segundo Piaget, no final do estádio sensório-motor e princípio do

pré-operatório, surge a existência de representações simbólicas que vai

permitir à criança usar uma inteligência diferente. “Voz e ouvido se

interligam: a criança controla a sua emissão segundo os efeitos acústicos

que ela lhe proporciona e a própria voz alheia parece actuar sobre a sua.”

(1976, 19) Mas afinal em que consiste a função simbólica? A função

Page 30: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

36

simbólica também designada por função semiótica designa os

funcionamentos fundados no conjunto dos significantes diferenciados, ou

seja, refere-se à capacidade de criar símbolos para substituir ou

representar os objectos e de lidar mentalmente com eles. É “um conjunto

de condutas que supõe a evocação representativa de um objecto ou de

um acontecimento ausente e que envolve, por conseguinte, a construção

ou o emprego de significantes diferentes.” (1997, 51).

Com a aquisição da linguagem abre-se um mundo novo para a

criança, em que as palavras substituem os objectos e as situações, a

linguagem nascente permite-lhe a evolução verbal de acontecimentos já

passados, nomeadamente, a criança não necessita de ver o cão para

dizer “ão, ão”, existe representação verbal, além de imitação. A aquisição

da linguagem, “cobre finalmente o conjunto do processo, assegurando

um contacto com os outros muito mais vigoroso do que a simples

imitação e permitindo, portanto, à representação nascente aumentar os

seus poderes, apoiada na comunicação.” (1997, 53). O uso da linguagem

permite-lhe comunicar com os outros, pois começa a adquirir a lógica e a

sintaxe, como refere Lipman é altura de: descrever, narrar, explicar,

fazendo julgamentos quanto à verdade ou falsidade. (Cfr. 2001, 47)

A emissão de palavras significa que a criança já possui imagens

mentais. Elas não são ainda conceitos, mas representações dotadas das

características particulares dos objectos que representam, por isso

levantam muitas questões sobre o que as rodeiam. Piaget fala, a este

respeito, de pré-conceitos, na medida em que a criança, não dispondo

Page 31: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

37

ainda de esquemas de generalização, é incapaz de distinguir com nitidez

“todos” de “alguns”.

Passemos à inteligência representativa, onde a utilização dos pré-

conceitos permite à criança produzir inferências. Mas estas não são do

tipo indutivo nem do tipo dedutivo: o raciocínio da criança procede por

analogia. O pensamento da criança, preso ainda ao sensível, vai apenas

do particular ao particular, pois a generalização, ainda incipiente,

apresenta-se imprecisa e sem controlo. Ao passarmos para o período

das operações concretas, as estruturas intuitivas transformam-se, agora,

num sistema de relações de tipo operatório que “consiste apenas em

operações aditivas e multiplicativas de classes e de relações e seriações

(...). A linguagem será a única fonte das classificações e das seriações,

que caracterizam a forma de pensamento ligada a estas operações.”

(1990, 125).

Efectivamente, a linguagem acompanha a acção da criança e a

sua percepção imediata das situações e das coisas; há uma correlação

surpreendente entre a linguagem empregada e o modo de raciocinar. Em

suma, os estudos da linguagem e os das operações intelectuais

pretendem uma colaboração entre os linguistas e os psicólogos.

O mundo da criança corresponde a uma acção interiorizada,

assente na capacidade de simbolizar. A criança necessita de algo que a

coloque em assimilação do mundo, sem obrigações ou castigos: só

assim encontrará o equilíbrio afectivo e intelectual. Deste modo, o jogo

simbólico assinala, sem dúvida, o apogeu do jogo infantil, tendo função

essencial, na prática da vida da criança, proporcionando uma

Page 32: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

38

equilibração entre a assimilação e a acomodação. O jogo diferencia-se

das condutas de adaptação propriamente ditas. A criança não procura

uma adaptação ao real, mas uma assimilação do mesmo ao Eu. A

criança não consegue satisfazer as suas necessidades através das

adaptações, “as quais, para os adultos, são mais ou menos completas,

mas que para ela permanecem tanto mais inacabadas quanto mais jovem

for” (1990b, 56). O interesse pelo mundo que a rodeia aumenta

significativamente depois de 1 ano de idade. O bebé faz tentativas na

descoberta de novos meios experimentando a existência da atitude

criadora, a energia potencial para construir um mundo psíquico à custa

do ambiente, ideia defendida, também por Montessori. (Cfr. Montessori,

62).

Ao longo do primeiro ano, os esquemas de acção vão-se

coordenando entre si: por exemplo, o esquema de acção de agarrar e o

de puxar permite ao bebé fazer funcionar o guizo suspenso por cima do

berço. Por meio de tentativas e erros, são seleccionados os

comportamentos que dão os resultados desejados. Nomeadamente, os

jogos das primeiras lalações (voz), os movimentos da cabeça e das mãos

acompanhados de sorrisos de divertimento são lúdicos ou adaptativos, já

que tudo é um jogo durante os primeiros meses de existência, tendo em

conta que “não têm mais finalidade exterior do que, mais tarde, os

exercícios motores atirar pedras numa poça de água, fazer esguichar a

água de uma torneira, saltar, etc. - que todo o mundo considera jogos ou

brincadeiras.” (1975119).

Page 33: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

39

Quando uma criança descobre por acaso a possibilidade de

destapar uma esferográfica, primeiro reproduz o gesto para se adaptar a

ele e para o compreender, o que não é jogo; porém, depois, utiliza essa

conduta por simples prazer. Para ilustrar o exemplo, ressalte-se um

registo observado por John Holt26:

“Estou sentado no terraço de um amigo. Ao meu lado

encontra-se Lisa, de 16 meses, uma criança esperta e

ousada.(...)

Um dos jogos preferidos de Lisa é tirar-me a

esferográfica do bolso, destapá-la e voltar a tapá-la. Para

isto é necessária destreza; Lisa nunca se cansa do jogo.

Quando vê que tenho a caneta no bolso, dá-me logo a

entender que a quer e não há forma de a contrariar. É

teimosa e se eu fingir que não percebo o que ela quer - o

que é mentira - faz uma cena. Quando sei que preciso da

caneta, o truque é ter uma outra escondida noutro

bolso.(...)” (2001,.30)

Posto isto, o jogo deixa de ser “jogo de exercício” aos dois para

dar lugar às representações simbólicas, podendo assim a criança usar

uma habilidade diferente, dominada por um pensamento mágico, onde os

desejos se tornam realidade, sem preocupações lógicas. Uma

imaginação prodigiosa permite tudo explicar ao invés do jogo de

exercício, que não supõe o pensamento nem qualquer estrutura

representativa especificamente lúdica. O símbolo implica a representação

de um objecto ausente, visto ser comparação entre um elemento dado e

um elemento imaginado. É natural, neste período, a criança bater à mesa

26 John Holt (1927 – 1985), escritor e figura de proa da reforma educacional americana. A sua profunda compreensão da mente das crianças tem vindo a ser cada vez mais apreciada, à medida que tentamos transformar a escola e a família em locais onde as

Page 34: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

40

onde se magoou, dizer à boneca que tem que comer a sopa toda. Assim

como é neste estádio que procura, sobretudo, saber “para quê”, apesar

de se argumentar que está na “idade dos porquê”.

O pensamento infantil neste estádio é sincrético, isto é, tem uma

forma global e confusa, não diferencia o essencial do superficial, a parte

do todo, o particular do geral.

Em terceiro lugar, surgem os jogos de regras. Ao invés do símbolo,

a regra supõe, necessariamente, relações sociais. Assim, se vários jogos

regulares são comuns às crianças e aos adultos, um grande número

deles, porém, é especificamente infantil, transmitindo-se de geração em

geração, ou seja, de criança em criança sem a intenção de uma pressão

adulta. (Cfr., Holt, 30). Os jogos27 são, pois, transmitidos tendo uma

importância na vida da criança, conforme o progresso da vida social da

mesma.

Do jogo simbólico desenvolvem-se os jogos de construção que,

graças aos esquemas mentais operatórios, a criança consegue agora

compreender: a relação parte - todo, fazer operações de classificação e

de seriação, obter a conservação do número, adquirir a noção de tempo

e de espaço globais. A criança pode compreender e explicar as situações

problemáticas graças à reversibilidade e às suas preocupações lógicas

de reflexão sobre o real. Essa reversibilidade não é mais que a própria

expressão do equilíbrio permanente, assim alcançado, entre uma

acomodação generalizada e uma assimilação que se tornou, por isso

crianças aprendem melhor. O seu trabalho está a ter continuação através da Holt Associates em Cambridge. 27 Os jogos a que nos referimos são: do exterior a macaca, os berlindes, as caricas, às escondidas, a cabra-cega. Do interior, o anel vai na mão, a mímica, a batalha naval.

Page 35: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

41

mesmo, não deformante. O pensamento descentrado vai agora permitir

que ela entenda que, quando um espanhol vem a Portugal, é estrangeiro,

e que, quando um português vai a Espanha, também o é.

Não podemos deixar de apontar que, das múltiplas funções do

simbolismo extraíram-se várias teorias que tentam explicar o jogo em

geral, isto é, a sua importância no desenvolvimento da criança. Lipman

também salienta o quanto é importante nas crianças a actividade lúdica.

A criança brinca para se conhecer e também para compreender o mundo

que a cerca. Para Lipman é importante ter em conta a noção de brincar

na medida em que “pode ser muito útil quando procuramos compreender

a relação entre criatividade e imaginação28. É na brincadeira que a

criança é desafiada a questionar, transformar e desvendar a realidade. A

criança precisa de tempo, de espaço e de elementos incentivadores para

trabalhar a construção do real, através do seu já familiar exercício da

fantasia.

Na perspectiva de Lipman a brincadeira, o jogo, o brinquedo, são

poderosos instrumentos de auto-conhecimento e de descoberta do

mundo. Proporcionam o desenvolvimento, da memória, da criatividade,

da expressão e da concentração.

3.2.2. As habilidades cognitivas a desenvolver

28 Por imaginar Lipman entende um pensamento divertido. Que é uma acção desincorporada, ao passo que a criatividade é uma espécie de imaginação incorporada.

Page 36: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

42

Salientou-se no ponto 3.2. que Lipman a ponta quatro principais

variedades de habilidades cognitivas29, sendo que as crianças estão

naturalmente inclinadas a adquirir habilidades cognitivas como adquirem

naturalmente a linguagem, como foi analisado, e a educação é

necessária para fortalecer o processo.

Assim, quando Lipman aborda as habilidades de investigação

refere-se à prática de autocorrecção. O que não pode corresponder a um

comportamento de investigação habitual, convencional, mas sim se à

prática subsequente da autocorrecção for acrescentada aquela prática,

acontecendo a investigação.

É basicamente através das habilidades de

investigação que as crianças aprendem a associar suas

actuais experiências com aquilo que já acontece em

suas vidas e com aquilo que esperam que aconteça.”

(2001, 66).

As crianças que aplicam a sua educação a investigação aprendem a

formular problemas, estimar, medir e distinguir, porque:

“Investigar é uma prática auto-correctiva onde um tema é

investigado com o objectivo de descobrir ou inventar

maneiras de lidar com aquilo que é problemático.” (2001,

72)

A partir de um argumento sólido formulado, onde se inicia com

premissas verdadeiras, infere-se uma conclusão verdadeira. Pois o

conhecimento diz Lipman “baseia-se na experiência do mundo” o que

significa que é pelo raciocínio (habilidade de raciocínio) que se

desenvolve esse conhecimento, assim como o preserva, sem recorrer a

29 Por habilidades cognitivas Lipman entende: “a capacidade para bem realizar movimentos e desempenhos cognitivos. (2001, 117)

Page 37: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

43

uma experiência adicional. A lógica é apontada como algo educativo, já

que demonstra “aos alunos incrédulos que a racionalidade é possível, (…)

e que alguns argumentos são melhores que outros”. (2001, 66) Quando

uma criança pensa por si mesma em diálogo, o processo de raciocínio,

através de silogismos, adquire mais entusiasmo, e a conclusão pode

surgir de modo inesperado. Já que raciocínio, segundo Lipman:

“é o processo de ordenar e coordenar aquilo que foi

descoberto através da investigação. Implica em descobrir

maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi

descoberto ou inventado enquanto era mantido como

verdade.” (2001, 72)

A criança tende para uma eficiência cognitiva, o que implica

organizar as informações que recebe em unidades ou grupo conceptuais.

Estes, representação universal de alguma coisa ou realidade, entendendo

os termos coisa e realidade num sentido lato que não se reduza aos

objectos físicos. Cada grupo ou rede de conceitos representa uma teia de

significados que “envolve esclarecer e remover ambiguidades” diz Lipman

(2001,68). Desta forma:

“o pensamento conceptual envolve relacionar conceitos

entre si a fim de formar princípios, critérios, argumentos,

explicações, etc.”(2001, 72)

O raciocínio é aquela forma de pensamento que preserva a

verdade através da mudança, a habilidade de tradução é aquela forma

que preserva o significado através da mudança:

O que implica na transmissão de significados de uma

língua ou esquema simbólico, ou modalidade de sentido,

para outra, mantendo-os intactos.” (Ibid)

Page 38: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

44

O que nem sempre é respeitado pelos que traduzem. O que é significativo

é que as habilidades de tradução possibilitam transitar entre línguas ou

quando se traduz um poema para a música, como um compositor

sinfónico, ou ainda, da linguagem corporal para a linguagem comum;

está-se a trocar e a preservar significados. Neste caso o pensamento é

compreendido como forma de produtividade e a tradução como forma de

troca.

Para atingir adequadamente estas quatro áreas de habilidades

cognitivas é necessário saber pensar e principalmente saber pensar por

si, para que seja possível seguir o caminho do pensamento de ordem

superior. O pensamento de ordem superior “inclui o pensamento flexível e

rico em recursos” (2001, 38). Rico em recursos no sentido que sabe

procurar os recursos de que precisa e flexível porque se mobiliza

livremente.

O pensamento de ordem superior ocorre sob o escudo de duas

ideias reguladoras: a verdadeira e o significado, envolvendo o

pensamento crítico e o criativo. O pensamento crítico envolve o raciocínio

e o julgamento crítico, enquanto que o pensamento criativo compreender

habilidade, talento e julgamento criativo. Os julgamentos são as

consequências do pensar crítico. E como consequências implicam,

portanto, uma determinação: do pensamento, da fala, da acção ou da

criação.

O pensar crítico apresenta quatro características fundamentais: (1)

facilita o julgamento pois (2) fundamenta-se em critérios, (3) é auto-

correctivo, e (4) é sensível ao contexto. (Cfr. 2001, 172). Facilita o

Page 39: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

45

julgamento porque utiliza critérios, isto é, regras ou normas para fazer

julgamentos. É auto-correctivo, portanto corrige-se por si no discurso e na

reflexão. O penar crítico é pensar hábil, e as habilidades em si não podem

ser definidas sem critérios através dos quais desempenhos supostamente

hábeis possam ser avaliados, o que o torna sensível ao contexto, na

medida em que sabe aplicar critérios ao contexto. “Pensar crítico significa

responsabilidade cognitiva” (2001, 175), pois o raciocínio como

componente do pensar crítico é estimulado em diálogo e investigação

atingindo a inferência, movimento cognitivo através do qual um aluno tira

uma conclusão a partir de premissas. Implica pensar por si mesmo sem

deixar que outro pense por si. Pensamento responsável que fornece,

também, responsabilidade intelectual.

Retomando a ideia de que: o pensamento de ordem superior

ocorre sob o escudo de duas ideias reguladoras: a verdadeira e o

significado e sendo que a verdade refere-se ao pensar crítico, não será

difícil inferir que o significado destina-se ao pensar criativo.

O pensar crítico tem uma preocupação essencial pela verdade,

apresenta um interesse genuíno em desviar o erro e a falsidade, daí o

seu controle auto-correctivo. No caso do pensar criativo, a sua

preocupação é mais com a invenção e a totalidade. Controla-se através

do objectivo de ir além de si mesmo, transcendendo-se com o objectivo

de alcançar a integridade. Lipman define o pensar criativo como “o pensar

que conduz o julgamento, que é orientado pelo contexto, é auto-

transcendente, e sensível aos critérios.” (2001, 279). Reconhecendo que

é sensível aos critérios, significa que não é um pensar irracional, já que:

Page 40: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

46

“não há nenhum pensar criativo que não seja permeado de

julgamentos críticos, assim como não há nenhum

julgamento crítico que não seja permeado de julgamentos

criativos.” (2001, 280)

Daí o pensar criativo não ser orientado por considerações analíticas, mas

não significa que não seja sensível as mesmas. Por outro lado, o pensar

criativo é sensível à forma como a qualidade universal incorpora valores e

significados.

Quando Lipman aborda o pensar criativo, está aborda-lo em

termos de processo, não de produtos. Se existe singularidade, não é

consequência do método prorrogar de ocasião para ocasião, mas porque

o método, quando empregue em contextos diferentes, engendrar

resultados diferentes. Não se pode pensar que a criatividade como

processo vem do nada. É pelo contrário, uma transformação daquilo que

é estabelecido em algo radicalmente diferente.

Aprender a pensar de forma a atingir o pensamento de ordem

superior é uma linha educacional de pensamento que, segundo Lipman,

sustenta o fortalecimento do pensar na criança como tarefa principal da

actividade das escolas e não somente como uma consequência casual.

(Cfr. 2001, 11)

John Locke foi um dos vários filósofos que fez uma associação

entre pensar crítico e a democracia, na medida em que o pensar crítico

melhora a capacidade de raciocinar e a democracia requer uma

sociedade com cidadãos que saibam pensar de forma racionalizante. Se o

objectivo da proposta de desenvolvimento das habilidades é uma

sociedade onde a internalização de atitudes e modos de fazer é uma

Page 41: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

47

substituição progressiva de inocência pessoal por experiência mundana,

de ignorância por conhecimento, de subjectividade por objectividade

então a educação propõe um olhar democrático.

4. A Educação: o olhar democrático

Na perspectiva de Lipman é ponto convencionado que é

fundamental que as crianças tenham uma educação para o

desenvolvimento das habilidades do pensar. As habilidades “são o

ingrediente que falta na educação.” (1990, 47) As crianças devem ser

ensinadas a pensar por si mesmas, dando-lhes a oportunidade de

desenvolverem critérios relativos ao que constitui o comportamento

racional e moral, para viverem em sociedade. Se isto se proporcionar

estão a produzir-se agentes morais, inteligentes sinceros e autónomos.

Sendo que esses dois papeis, socialização e autonomia, têm como

sustentáculo a Democracia:

“Uma sociedade que providencia a participação nos seus

benefícios de todos os seus membros em iguais

condições, e que garante o reajuste flexível de suas

instituições mediante a interacção das diferentes formas

de vida associativa, é, quanto a isso, democrática.”

(1999a, 162)

Perante este objectivo a sociedade tem que promover uma educação que

estimule nos alunos o interesse pessoal nas relações e controle social. As

escolas devem proporcionar metodologias e currículos que facilitem o

pensar crítico e o pensar criativo aos alunos, para que sejam interventivos

Page 42: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

48

numa sociedade de direitos e deveres. Diz Lipman que “Cada aspecto da

educação deve ser, em princípio a qualquer custo, racionalmente

defensável.” (2001, 21) Pois crianças educadas em escolas que

apresentam critérios racionais têm maiores probabilidades de serem

razoáveis do que crianças educadas sob conjuntura irracional.

As crianças podem ser auxiliadas a tornarem-se sensíveis à

necessidade que pode surgir nas suas vidas, podem adquirir hábitos que

lhes proporcionem uma mais fácil adaptação a novas situações.

Mas afinal qual é a função da educação numa sociedade

democrática? E o que entende Lipman por democracia?

Lipman apoia-se na noção de democracia proposta por Dewey que

faz referência a dois sentidos de Democracia, um político e outro social.

Sendo que o primeiro é designado como uma forma de governo ou um

sistema de instituições para organizar a vida em sociedade.

“Democracia é um modo de vida, social e individual. É

mais do que uma forma de governar; ela é acima de tudo

um modo de viverem sociedade, da experiência

participativa conjunta” (Cfr. 1999a, 155)

Definitivamente, J. Dewey entende Democracia como a

participação directa na eleição dos governantes tornando-se

imprescindíveis para satisfazer o princípio da equitatividade e bem – estar

da totalidade das pessoas de uma sociedade. E como modo de vida,

atingindo todos os grupos, instituições sociais: família, escolas, empresas

e religião. Sendo que o grupo social deve ter como critério para

determinar o carácter democrático, o grau de ligação entre as acções e os

interesses das diferentes pessoas que o formam, assim com o modo em

Page 43: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

49

que a livre interacção entre os seus membros faculta a reacomodação e

correcção dos hábitos e práticas sociais.

Neste último sentido, a democracia e a educação conciliam uma

relação dialéctica, isto é: a escola como instituição educativa gera hábitos

democráticos para estabelecer um processo de relações de abertura, sem

preconceito mas com enriquecimento de experiências individuais e

partilhadas. Segundo Dewey a educação tem de promover hábitos

democráticos “só a educação pode garantir a ampla difusão de uma

comunidade de interesses e objectivos.” (1999a, 165)

São vários os colaboradores, entre eles Walter Kohan, de FpC que

referem Lipman como continuador de Dewey, pois encaram a

democracia, como um ideal de vida social ao qual todo o grupo humano

tem um compromisso; muito mais que um sistema político. Grupo

humano, como grupo perfeito, que se funda numa educação como

processo de questionamento e auto-correcção. Educação que:

“se transforma em educação como investigação e

educação para a investigação, o produto social desta

mudança institucional será a democracia como

investigação e não meramente democracia.” (2001, 355).

O papel de uma educação em questionamento e investigação é

preparar alunos a viver como membros questionadores de uma

sociedade, que se interrogam trabalhando para uma democracia como

investigação, que une a racionalidade e o consenso e que este factor de

união é superior a ser orientado por qualquer critério isolado. (Cfr. 2001,

365).

Page 44: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

50

Uma relação perfeita entre democracia e educação leva à

concretização de uma sociedade organizada. Não se trata apenas de

educar para a democracia, senão democratizar para educar. Esta relação

recíproca implica o pensar e o julgar por um lado e o conhecer por outro.

Dewey sugeriu a escola como um espaço de construção para o pensar,

onde as crianças adquirem hábitos de exercícios para o pensar, e não

como um lugar de transmissão de conhecimento. “A educação tem de

preparar o aluno para compreender e criticar o modo de vida do seu

grupo”. (1987, 397) E nada melhor que a filosofia como disciplina do

pensar para conseguir esse objectivo. A filosofia, a educação e métodos

sociais caminham de mãos dadas, segundo Dewey, sendo a filosofia

a”teoria da educação nas suas fases mais gerais.” (1999a, 163).

O ponto onde Lipman se afasta de Dewey é exactamente quando

este considera a filosofia como a teoria da educação, pois para o pioneiro

de FpC a filosofia é a prática da educação. Argumentando da seguinte

forma:

“Eu acho um tanto estranho identificar a filosofia como

teoria, porque isso exclui a possibilidade de se fazer

filosofia, da filosofia como prática, e assim ele acaba

dando respaldo àqueles que querem separar a teoria da

prática e negar que a filosofia tenha algum valor prático

nas escolas”30(1999a, 167)

Lipman partilha da definição que Dewey atribui à filosofia como crítica,

centrada no juízo crítico, chegando a dizer: “Essa é uma das coisas mais

importantes que aprendi com Dewey”, porém não aceita que a filosofia

como pensar crítico tenha um papel de teoria na educação em vez de

Page 45: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

51

prática educativa. Para justificar a sua teoria, apresenta dois aspectos. O

primeiro, mostra como as outras disciplinas se sentem amedrontadas em

trabalhar com noções como verdade, justiça, felicidade, etc, com as quais

a filosofia trabalha sem qualquer tipo de inibição. Na educação essas

noções não podem ser irrisórias pois, pretendendo-se uma educação

para a democracia e a democracia para o educar não se pode fugir delas.

Só investigando o que significam e como aplicá-las é que se constrói uma

sociedade com respeito. Em segundo lugar, Lipman, realça a forma como

a filosofia aborda esses conceitos. A filosofia estuda-os “a partir de um

ângulo diferente das outras disciplinas. Ela desloca o foco dos termos

substantivos para os de ordem metodológica.” (1999a, 168)

De acordo com essa ideia o processo educativo de FpC aplica a

prática filosófica onde desloca o âmago do objecto de estudo para o

método de questionamento e investigação. A ferramenta mais importante

é conseguir que as crianças questionem. E se a filosofia é uma forma de

questionamento e investigação que estimula o questionamento e a

investigação, assim como encoraja a procura da verdade, então explica-

se a relação apresentada por Dewey e Lipman entre Filosofia, Educação

e Democracia.

A filosofia ocupa-se de considerações normativas e a educação de

considerações descritivas e também normativas. A filosofia trabalha com

critérios, com valores, com a lógica no sentido do que deveria ser a

causa, das inferências, o educar democrático ocupa-se do conhecimento

e a filosofia da epistemologia, ou seja, de como conhecemos e o que

30 Argumento utilizado numa entrevista que Walter Kohan lhe fez por motivo de um congresso.

Page 46: Sub. I – Como nasceu Filosofia para Crianças 1. Matthew ... · também coordena o projecto “Filosofia na Escola” em conjunto com outros ... O que é Filosofia para ... estética

52

conhecemos. A educação ocupa-se do pensamento e a filosofia da crítica

do pensamento. Posto isto, a “democracia em termos de questionamento

e investigação é um ideal de democracia”. (1999a, 177) Mas como e qual

o método utilizado por Lipman para fundamenta a Filosofia para

Crianças?