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Studium Theologicum de Curitiba STUDIUM REVISTA TEOLÓGICA

intranet.redeclaretiano.edu.br SUMÁRIO Editorial – O HOMEM (IN)DEFINÍVEL, MISTÉRIO PARA SI MESMO ............. 5 BLOCO TEMÁTICO: O homem em questão A (in)definição do homem:

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  • Studium Theologicum de Curitiba

    STUDIUMREVISTA TEOLÓGICA

  • 2

    Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 11 n. 19 - 2017.

    Semestral

    ISSN 1981-3155

    1. Teologia – Periódicos. I. Studium Theologicum de Curitiba.

    CDU: 2

  • SUMÁRIO

    Editorial – O HOMEM (IN)DEFINÍVEL, MISTÉRIO PARA SI MESMO............. 5

    BLOCO TEMÁTICO: O homem em questão

    A (in)definição do homem: desafios para a teologia ...................................... 11Alfonso J. Novo Cid-Fuentes

    O corpo humano. Reflexões desde a perspectiva filosófica........................... 29Carlos Beorlegui Rodríguez

    Bioetica, humanismo e pós-humanismo no século XXI: Em busca de um novo ser humano? 1ª parte......................................................... 51Leo Pessini

    Bioetica, humanismo e pós-humanismo no século XXI: Em busca de um novo ser humano? 2ª parte......................................................... 75Leo Pessini

    A antropologia cristã e as interrogações das neurociências.......................... 97Ignazio Sanna

    A identidade do ser humano à luz da fé............................................................... 119Hélcion Ribeiro

    Grandeza do corpo humano. Perspectiva teológica........................................ 141Luís F. Ladaria Ferrer

    A salvação da liberdade: A luz cristã sobre os caminhos do homem......... 157Card. Gianfranco Ravasi

    BLOCO DE TEMAS DIVERSOS:

    Discurso do Papa no III encontro mundial dos movimentos populares.............. 169Papa FranciscoO EXTRACANÔNICO ‘ACTA JOHANNIS’: conceitos operatórios e a reorganização das memórias ......................................................................................... 183Elias Santos do Paraizo Jr.

    A nova Jerusalém: breves considerações a partir do livro do apocalipse.. 205Daniel Luiz Medeiros

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    STUDIUM Revista Teológica

    Ano 11 – 2017Nº 19

    Revista semestral de Teologia do Studium Theologicum de CuritibaISNN 1981-3155

    EDITOR-CHEFEHélcion Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR.

    CONSELHO EDITORIALAlceu Luis Orso - Studium Theologicum, Curitiba, PR.Jaime Sánchez Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, PR.Marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, PR.Teodoro Hanicz – Faculdade S. Basílio Magno, Curitiba, PR.Valdinei de Jesus Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR. CONSELHO CONSULTIVOAgenor Brighenti – PUC, Curitiba, PR.Angelo Carlesso – Studium Theologicum, Curitiba, PR. Cesar Kusman – PUC, Rio de Janeiro, RJ. Diego Irarrazaval – Univ. Católica Silva Henriquez, Santiago, Chile.Ricardo Hoepers – Rio Grande, PR. Sávio Scopinho – CLARETIANO, Rio Claro, SP. Vitor P. Calixto dos Santos – CLARETIANO, Campinas, SP.

    Abstract: Joachim Andrade Diagramação : Luis Antônio Guimarães Toloi

    ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃOContato e assinatura

    Studium Revista TeológicaAv. Getúlio Vargas, 119380.250-180 Curitiba, PR.Tel. (41)33077754 - Tel. 33077759e-mail: [email protected]

    Solicita-se permuta/ Exchange requested/Se pide cambio/ On prie l’échange

    Nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos.

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    O HOMEM (IN)DEFINÍVEL, MISTÉRIO PARA SI MESMO.

    Durante séculos, o homem foi objeto especial da reflexão filosófica e teológica. Sem dúvida, conhecimentos sobre o homem sempre foram muitos, desde os poetas, cantores, comerciantes e outros mais. Todavia, nenhum deles ultrapassava os limites da filosofia e da teologia (baseada na bíblia). No entanto, desde a modernidade, a reflexão tornou-se mais científica e tomou novos caminhos. Ela adonou-se do tema e reservou para si a ”verdade sobre o homem”, agora fundamentada nas ciências naturais. O encantamento, a razão, a fé e a poesia, passaram a perder credibilidade ante as novas explicações que pareceriam ter atingido o significado pleno da verdade. De fato, as ciências modernas todas – mesmo que ainda tão jovens, na história humana – assombram nossos conhecimentos tanto pelas descobertas quanto pelo avanço das possibilidades técnico-científicas.

    Elas vivem seus momentos de glória e conquistas. Porém e apesar de tudo, os que creem percebem que elas não descobriram tudo. Percebem que Deus pôs muito mais como mistérios da natureza a serem descobertos. Os cientistas do ano 3.017 (eu disse três mil e dezessete), também terão muito a pesquisar, descobrir e revelar na natureza e na história. Os segredos de Deus são maiores do que os dos tempos das ciências atuais.

    Só Deus sabe sobre as surpresas maravilhosas que Ele reserva para cada tempo. Não seremos nós os últimos viventes da terra. Todavia, como não nos maravilharmos por tudo de novo que tem surgido? Mas, também não podemos ser ingênuos de que ocorrem apenas coisas maravilhosas. Como ignorar a fome, o desenvolvimento de armas de guerra que poderiam ser transformados em “arados” para produzir alimentos e construir escolas, melhorar a saúde, aumentar a escolaridade e desenvolver a comunicação inter-humana?

    Editorial

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    A emoção que trazem as novas ciências tem levado alguns a descartarem não só a sabedoria dos antigos, mas também as coisas da fé e do lugar de Deus. Perguntava-se alguém:

    Perderá a humanidade o controle sobre si mesma num futuro poshumano, transhumano, em que serão as máquinas que haverão de controlar, de maneira autônoma, o curso das coisas? Ainda que o avanço tecnológico nos dote de capacidades e possibilidades de vida com as que não contavam o homem primitivo, o certo é que a pergunta ainda fica no ar.

    A questão faz sentido. É preciso reconhecer que muitas velhas respostas se tornaram apenas “contos da carochinha”. Aos cristãos (teólogos, hierarcas e gente comum) compete buscar respostas desde a revelação divina, voltadas para os tempos atuais.

    Estas novas buscas não necessariamente eliminam patrimônios antigos, nem inventam novidades - pois estas não existem sob o sol, como dizia o antigo texto bíblico. Todavia, os crentes não podem desconhecer que Deus fala nos tempos atuais também pela boca de outros homens e mulheres que descobrem os mistérios que o Senhor quer manifestar pela natureza. Os tempos das autossuficiências e das inquisições estão superados. Deus manifesta clara vontade de que todos os homens – que sendo seus filhos e irmãos entre si - possam dialogar e repartir as benesses comuns.

    Assim, por exemplo, negar a validade dos Direitos Humanos - só porque provindos explicitamente da cultura cristã -, como querem muitos na ONU, é uma afirmação da desatenção para com o próprio ser humano. Tais valores, como inclusive a democracia, a universidade, etc. não são valores por terem sido criados pelos cristãos. Eles têm sua validade por serem profundamente humanos. E por isso, são também cristãos. Tudo quanto Jesus revelou está em função do ser humano, da família humana e da fraternidade universal. Jesus não veio criar uma religiosidade ou uma fé para os anjos...

    Pode acontecer – e tantas vezes no passado, até recente, tem acontecido – que cientistas e crentes não se entendam porque suas verdades parecem ser inconciliáveis. O desentendimento é bem mais ocasionado pela falta de maturidade e compreensão de uns e de outros. Isso também ocorre no presente – inclusive entre as afirmações dos crentes e dos cientistas sobre o homem. Não é negando ou ignorando as conquistas (atuais ou antigas) que se podem dar passos novos e interativos. Todos somos caminhantes...

    Se os cientistas oferecem, hoje, uma significativa contribuição desde a materialidade natural para compreender quem o ser humano, os teólogos e crentes significativamente também devem apresentar a contribuição da transcendência do humano. As duas contribuições têm linguagens limitadas. Mas,

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    elas não podem ser fechadas sobre si mesmas, sob pena de serem desprezadas por uns ou até por todos.

    - Todavia, como definir quem é o ser humano?

    Esse número da Revista Teológica Studium se alia à voz dos teólogos, que ouvindo também os cientistas, conclui ser o homem um mistério muito maior. A realidade humana nos ultrapassa a todos, mesmo que muitas vezes alguns só consigam falar a partir dos instrumentos das ciências.

    A incompletude dos enfoques não nega as possibilidades de compreensão que podemos ter. Reconhecer os limites e os impulsos das suas competências sempre é uma ajuda de Deus (que já nos falou) e a Deus (o que quer continuar falando ainda).

    Deste modo, no Bloco Temático, o presente número de STUDIUM buscou a voz da filosofia (que quase sempre embasou a teologia, com seus conceitos e rigor metodológico) e descobriu que a nossa “angústia” também é a dela. Buscou o eco do discurso dos teólogos que foram ouvir o que os cientistas estão dizendo. E ainda, retraçou o discurso teológico para lembrar sempre qual é nosso específico, pois se não fizermos o nosso discurso (teológico) quem o fará em nosso lugar?

    A (in)definição do homem: desafios para a teologia é um artigo que questiona o atual processo das ciências da natureza em querem delimitar o ser humano, num universo horizontal. Isso supõe, na prática, a negação da transcendência humana e da existência de Deus. O autor Alfonso J. Novo Cid-Fuentes discute as bases biológicas do plano filogenético e ontogenético, procurando evidenciar que entre o não-humano e o humano há algo mais a ser considerado. Exatamente aí, a teologia tem um papel precípuo para dizer: além das capacidades humanas, o ser humano é “capaz de Deus”, que o tem como sua criatura. A identidade humana perdura, para além da morte: Deus criou o homem para a ressurreição imortal.

    Nossa inserção no processo evolutivo e a densificação de nossa condição corpórea exigem uma nova reflexão sobre a unidade psicossomática, ou seja, sobre a singularidade humana e sua diferença qualitativa em relação ao resto dos animais que se definem desde sua peculiar corporeidade. Em O corpo humano. Reflexões desde a perspectiva filosófica, o filósofo espanhol Carlos Beorlegui Rodríguez constata uma tendência recorrente nos últimos tempos, e que parece querer converter-se em majoritária, negando a suposta diferença qualitativa entre os humanos e o resto das espécies vivas. Argumenta-se dizendo que os saberes científicos teriam demostrado suficientemente que o ser humano não é o centro do universo nem da biosfera, apenas uma espécie a mais. Somos os humanos uma realidade singular ou não? Existe entre a espécie humana e a das restantes espécies vivas uma diferença qualitativa, ou não? Dessa questão surge

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    a imperiosa necessidade de a filosofia e a teologia se debruçarem sobre as novas ideias, inclusive como serviço à própria humanidade sob pena de perderem a oportunidade do novo diálogo.

    As questões, em moda, do trans-humanismo ou póshumanismo desejam abolir Deus e transformar o ser humano como um mero animal entre tantos outros os transhumanistas. Daí surge a questão se é necessário, saber qual é a visão ou conceito de ser humano que está operacionalizado, colocado em pratica, quando estamos frente a inúmeras possibilidades técnico-cientificas de intervenções, que podem alterar profundamente a identidade do ser humano? Reflexão bioética, humanismo e pos-humanismo no século XXI: Em busca de um novo ser humano? de Leo Pessini que consta de cinco momentos, num olhar histórico evolutivo, do humanismo clássico, além de valores e limitações. O autor busca uma ciência com sapiência e urgência da bioética. Enfatiza a necessidade de um novo humanismo. E conclui com a pergunta sobre que futuro nos aguarda. A fim de facilitar a leitura e tendo, em conta a extensão do texto, o editor preferiu subdividir o artigo: (parte 1ª e parte 2ª). As duas partes estão publicadas na sequência na revista.

    O bispo Ignazio Sanna, é conhecido no meio teológico italiano como professor e autor de vários livros de antropologia teológica. No contributo A antropologia cristã e as interrogações das neurociências, ele discute as novas e candentes questões proposta pelas ciências, sobretudo ligadas às questões do cérebro. Antes que recusá-las in totum, o autor enfatiza os limites delas e advoga o direito da teologia em, não apenas querer dialogar, mas também evidencia que os limites delas estão em terem um horizonte de reflexão enquadrados apenas na verificabilidade dos dados. Tais elementos são insuficientes não só porque, em sua natureza global o homem é um alguém que vai bem além dos dados conjunturais das ciências, mas porque o ser humano é portador de algo que o faz singular. Esse proprium do humano é constatado pela teologia, pela fé. E a relação com Deus não pode ser objeto da ciência, sob pena de contradição. O discurso teológico, então, sobre o homem não pode ser ignorado.

    O teólogo e ex-professor da Gregoriana e agora Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé Luís F. Ladaria Ferrer, em Grandeza do corpo humano. Perspectiva teológica, sintetiza uma grande tradição que valoriza o corpo humano a partir, não tanto da criação em Adão, mas, que com Sto. Irineu, recorda sermos nós a corpórea imagem de Cristo. Quando Deus quis modelar Adão pensava no corpo que teria seu Filho ao se encarnar. Só no Cristo encarnado é que podemos saber de quem, realmente, somos imagem e semelhança. O autor ainda fundamenta sua expressão teológica com referências ao corpo eucarístico de Cristo e ao mistério corporal do matrimônio

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    A reflexão teológico-bíblica de Hélcion Ribeiro, em A identidade do ser humano à luz da fé é uma retomada teológica de ideias pertinentes ao discurso da antropologia teológica, em base à perspectiva cristológica – ainda pouco assumida. O autor faz, implicitamente, o convite a renovar as perspectivas teológicas que subsidiam vários outros discursos eclesiais, como a homilética e a catequese. Pensar o homem, para a teologia, implica ver seu modelo original, ou seja: Jesus Cristo. Quando dizemos ser o homem “imagem e semelhança de Deus”, logo ocorre a ideia da criação do mundo narrada no livro do Gênese. Porém. Tal imagem o Pai a encontra, vê, antevê, em seu Filho – aquele que se tornaria visível apenas há dois mil anos. Ele é o Deus em modo finito. E é nele que somos a imagem de Deus. Por isso nos tornamos também filhos no Filho e irmãos entre nós. Esse é a identidade de todos os seres humanos, independentemente de raça, cor e religião. Ele fundou o único povo - já prometido a Abraão – que por sua vez formará o corpo dos ressuscitados a ser apresentado ao Pai, no fim de tudo.

    Sempre foi muito ampla a reflexão – mesmo teológica - sobre a liberdade. Gianfranco Ravasi brindou-nos com sua conferência realizada V Congresso de Cultura cristã – Lublino,(IT) em outubro último sobre A salvação da liberdade. A luz cristã sobre os caminhos do homem. O cardeal e Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, perpassando significativa literatura sobre o tema, aponta a questão e os percalços da liberdade, na história, para detendo-se, primeiramente em dois dados teológicos capitais, a fé-confiança humana e a graça divina. Num segundo momento, ele aborda alguns corolários como a conexão da ética, da verdade e da natureza humana com a liberdade, tendo em conta o encontro entre a imanência e transcendência, isto é, entre o humano e divino que age no interior da pessoa. E para concluir, enfatiza que o imperativo moral fundamental deveria ser reconstruído a partir de uma ontologia pessoal relacional, na prática da figura universal (e cristã) do “próximo” e da lógica do amor na sua reciprocidade, mas também na sua gratuidade e doação.

    No Bloco de Temas Diversos, apresentamos três reflexões importantes. O Discurso do papa no “III Encontro Mundial dos Movimentos Populares é uma inspirada síntese do Magistério atual sobre as questões sociais e, sobretudo, está sendo considerado uma de suas mais importantes manifestações da Doutrina social da Igreja. (Ao discurso do Papa antepomos como roteiro crítico o comentário é de Guido Viale, sociólogo e escritor italiano, publicado por Huffington Post, 11-11-2016). O Papa Francisco renova o apelo em favor de três grandes causas: a economia a serviço dos povos; a construção da paz e da justiça, além da defensa do planeta. A Igreja renova a proposta do amor evangélico e da criação de pontes para resgatar a dignidade de todos os homens. É missão cristã e de todos os homens de boa vontade, frente à crise do sistema econômico predominante, buscar a preservação do meio ambiente, combater o medo com uma vida de

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    serviço, solidariedade e humildade em prol dos povos todos, especialmente dos que sofrem.

    O professor do Studium Theologicum Elias Santos do Paraizo Jr analisa, com profundidade acadêmica em O EXTRACANÔNICO ‘ACTA JOHANNIS’: conceitos operatórios e a reorganização das memórias, os diferentes aspectos do conceito de tradição de textos sagrados, assim como suas implicações exegéticas e tradutórias. Enfatiza o conceito de “apócrifo” e de “heresia” desde a diversidade dos cristianismo(s) na gênese da literatura cristã, especialmente no gênero dos Atos e, particularmente, em Atos de João. Descreve a riqueza de conteúdo que estes textos proporcionam. No que se refere a formas de tradução, o texto destaca a importância da influência do contexto histórico. Por fim, o autor apresenta um conjunto de temas bastante variados da literatura antiga.

    O livro apocalipse é um gênero literário da profecia escrita, característico dos séc. II a.C. e I d.C., surgido em momentos de crise, onde somente a intervenção divina pode garantir a reversão de um quadro avassalador. É um livro paradigmático da ação de Deus na história humana e por isso, ele sempre atual, capaz de iluminar a vida dos cristãos de todos os tempos. Daniel Luiz Medeiros desenvolve em A nova Jerusalém: breves considerações a partir do livro do Apocalipse uma análise exaustiva da obra. O livro bíblico que foi fruto dum contexto sócio-político e arquitetada com um rico conjunto de símbolos judaicos os quais fazem memória das experiências do povo do AT de maneira a reinterpretar o presente sob a ótica da história da salvação. O autor do Apocalipse está ciente de que o valor da vitória de Cristo é um fato a ser sempre celebrado, não obstante as intempéries cotidianas, as dificuldades, sofrimentos e aflições presentes nas estruturas humanas.

    A proposta deste número de nossa Revista Teológica STUDIUM é uma chamada ao leitor, não só para a contínua reflexão sobre o mistério do homem, mas, sobretudo para abrir o coração dos que fazem e refletem teologia a cerca das grandes questões que o mundo das ciências propõe, provoca e desafia. Nos novos tempos que vivemos, é preciso superar esquemas pré-modernos e criar a coragem de dialogar com os que, com seus saberes horizontais, nos desafiam.

    Desejamos o melhor aproveitamento possível aos nossos leitores nesta aventura de buscar a definição, se é que é possível, do homem – esse mistério de Deus. E aos nossos autores, além dos agradecimentos, desejamos poder contar sempre com suas valiosas contribuições.

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    A (IN)DEFINIÇÃO DO HOMEM: DESAFIOS PARA A TEOLOGIA*

    THE (IN)DEFINITION OF MAN: CHALLENGES FOR THEOLOGY

    Alfonso J. Novo Cid-Fuentes **

    RESUMO: A contínua descentralização da visão do universo e do inato antropocentrismo desafiam velhas concepções cientificas ou religiosas, bem como desmontam o conceito intuitivo da espécie como algo já dado, algo definido a priori. Tornou-se difícil, porém, definir quem é o homem. O avanço da compreensão da evolução orgânica parece supor uma negação do homem como criatura especial de Deus. Mas, poder-se-ia reduzir o homem a um organismo que somente atua de acordo com seus princípios biológicos do plano filogenético e ontogenético? A fronteira temporal delimitativa entre o humano e o não-humano, além de supor uma distinção entre homo sapiens e pessoa, pode ir além? A antiga antropologia teológica, fundada na filosofia, é, hoje, um pressuposto frágil demais. Para o teólogo, há algo que distingue o humano do não-humano, enquanto essencialmente distinto e «capaz de Deus»., inclusive pela perspectiva da ressurreição. “Ser diante de Deus” é o que caracteriza teologicamente todo ser humano, independentemente de como se está diante d’Ele. Mesmo melhorando as explicações materiais, nem por isso a vida adquire um valor pleno. Elas não fornecem a resposta última às aspirações do coração humano. Só a comunhão, isto é, a união no respeito à alteridade, permite que se realize a existência do homem. Essa comunhão que define a intimidade do Deus trino, e que se expressa numa palavra, única: amor.

    PALAVRAS CHAVE: Concepções científicas. Princípios biológicos. Homem. Definição. Teologia.

    SUMMARY: The continuous decentralization of the vision of the universe defies old scientific or religious conceptions, as well as, dismantle the intuitive concept of the species as something already given, something defined a priori. It has become difficult, however, to define who the man is. The advance of the understanding of organic evolution seems to suppose a denial of man as a special creature of God. But could man be reduced to an organism that only acts according to its biological principles of the phylogenetic and ontogenetic plane? The temporal boundary between

    Artigos

    * Texto inicialmente publicado na Compostellanum: Revista de la Archidiócesis de Santiago de Compostela,  ISSN 0573-2018, Vol. 50, Nº. 1-4, 2005, págs. 243-260, cedido pela direção da Revista.

    ** Doutor em Teologia Dogmática, com mais de 25 artigos de revistas, com 4 colaborações em obras coletivas, autor de Jesucristo, plenitud de la revelación e Los misterios de la vida de Cristo en Ambrosio de Milán. Coordenador das obras coletivas: El uso de la Sagrada Escritura en la Cristología, Los evangelios como fuentes para nuestro conocimiento de Jesús, Retos en las relaciones fe-cultura a la doctrina social de la Iglesia, El hecho de la creación y de la luz de la fe y de la teología e Cristianismo e religiones. Professor de Cristología, Mistério de Deus, Sacramentos em Geral, Escatología e Cursos do Biênio. Titular de Cátedra de dogmática do Instituto Teológico Compostelano, afiliado ao Centro Santiago de Compostela (La Coruña (Es).

    BLOCO TEMÁTICO

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    the human and the nonhuman, as well as assuming a distinction between homo sapiens and person, can go beyond? The ancient Theological Anthropology, founded on Philosophy, is, today, a too fragile presupposition. For the theologian, there is something that distinguishes the human from the nonhuman, while essentially distinct and 'capable of God', even from the perspective of the resurrection. 'Being in front of God' is what theologically characterizes every human being, independently of how it is in front Him. Even by improving material explanations, life does not acquire full value. They give us the ultimate answer to the aspirations of the human heart. Only communion, union with regard to otherness, allows the existence of man to be realized. This communion that defines the intimacy of the Triune God, and which expresses itself in a unique word: love.

    KEY WORDS: Scientific conceptions. Biological principles. Man. Definition. Theology.

    Uma das características da ciência moderna tem sido a continua descentralização de nossa visão do universo. Copérnico e Galileu deslocaram a Terra do centro, e hoje em dia sabemos que o Sol é só uma entre os milhões de milhões de estrelas dentro de uma galáxia que tem outros milhões de milhões como companheiras. De forma mais radicalmente humilhante para nosso inato antropocentrismo, nossa espécie humana é reconhecida como um produto mais-ou-menos aleatório dos processos de mutação e adaptação evolutiva. Isto é algo que não só desafia velhas concepções cientificas ou religiosas, mas que, além disso, desmonta o conceito intuitivo de espécie como algo já dado, algo definido a priori, de tal forma que a lógica, a linguagem e a metafisica se tornam profundamente afetadas.

    Definição e indefinição do homem

    O salmista, admirado do domínio do homem sobre o conjunto da natureza, se perguntava: “Que é o homem?” (Sal 8, 5). Hoje, perplexos diante da impossibilidade de formular uma definição satisfatória voltamos a perguntar-nos: que é o homem? A dificuldade em dar resposta a esta questão se agrava pela zona obscura dos limites entre o humano e o não humano. E isto tanto no plano filogenético como no ontogenético.

    O problema filogenético

    A teoria da evolução foi durante muito tempo uma ovelha negra para as religiões e, de modo particular, para o cristianismo. À primeira vista, tratou-se de uma manifestação a mais na historia de desencontros entre a ciência e o texto bíblico. Todavia hoje grupos de pressão fundamentalistas, presentes, sobretudo no chamado Bível Belt dos estados do sul de Estados Unidos, pretendem que nas escolas se ensine o criacionismo - entendido em sentido de uma leitura mais-ou-menos literal do Gênese -

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    como alternativa científica ao evolucionismo. Para um crente instruído, isto não deveria ser sequer ser levado a sério, pois já aprendemos a ler a Bíblia de outra maneira. O verdadeiro problema se situa numa questão mais radical. Prescindindo da fiabilidade histórica das narrações bíblicas, não supõe a evolução uma negação do homem como uma criatura especial de Deus? Todavia em 1950, Ρίο XII se viu obrigado a assinalar um ponto de inflexão definitório entre o humano e o substrato orgânico que o precede. Ainda que se tenham aberto as portas aos teólogos católicos para tratar do evolucionismo, isto se restringiu à origem do corpo humano a partir de uma matéria viva já existente, “pois a fé católica nos obriga a continuar afirmando que as almas são criadas imediatamente por Deus”.1 Não se trata unicamente de afirmar que as almas são criadas individualmente por Deus para cada sujeito humano, mas que, pelo contexto, se entende que se trata do momento de criação do primeiro homem. Quer dizer, a evolução orgânica por si só não pode produzir o homem, mas que exige um principio extrínseco não derivável do próprio dinamismo biológico. Isto tem implicações para a questão mesma de definição do homem como composto de corpo e alma, que veremos, mas adiante; porém, para o que aqui nos interessa, supõe de fato negar a aparente aceitação do diálogo da teologia com a ciência. Um cientista, em geral, não aceitaria de bom grado recorrer a um principio extrínseco para explicar a aparição do homem, como uma espécie de ruptura na cadeia causal2.

    A presunção mesma de que houve um primeiro humano não goza de grande consideração entre os paleoantropologos. Ao menos no modelo neodarwinista estandar, a evolução é gradual, contínua, e funciona normalmente mediante micromutações que, só depois de um longo período de isolamento da população, durante o qual se vão acumulando novas mutações acabará por produzir uma nova espécie. O modelo do equilíbrio pontuado, defendido por Stephen Jay Gould, não resolve a dificuldade. Este modelo afirma que a longos períodos de estabilidade sucedem períodos breves de especiação.

    Porém trata-se de um breve espaço de tempo na escala geológica, que pode requerer centenas de anos. Uns poucos cientistas se mostram partidários de aplicar a teoria matemática de catástrofes a este campo, vendo a evolução como um processo de adaptação de sistemas complexos, onde uma modificação pequena pode provocar um resultado imprevisível. Assim, mais que de evolução gradual, ter-se-ia que falar de mudanças “catastróficas” de um sistema estável a outro. Quando o intercambio termodinâmico e de informação entre o sistema

    1 “Ecclesiae Magisterium non prohibet quominus ‘evolutionismi’ doctrina, quatenus nempe de humani corporis origine inquirit ex iam exsistente ac vivente materia oriundi -animas enim a Deo immediate creari catholica fides nos retinere iubet-... pertractetur” (Humani generis: DS 3895).

    2 Ter-se-ia que assinalar a notável exceção do neurobiólogo e premio Nobel John Eccles.

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    e seu entorno não permite uma adaptação equilibradora, “a mínima flutuação (antes irrelevante) decide agora o futuro do sistema macroscópico. Os sistemas deixam, depois se adaptarem, tendem a novos e imprevisíveis estados que, por seu distanciamento do equilíbrio, são chamados atualmente de estruturas dissipativas, que supõem... um novo estado da matéria”.3 Aplicando esta perspectiva à origem do homem, poder-se-ia dizer que “faz dois ou três milhões de anos certo mono experimentou uma notabilíssima catástrofe e se converteu no primeiro filosofo” 4.

    A dificuldade se torna maior por causa da existência de linhas paralelas na evolução. Cada vez que os paleontólogos encontram um cemitério com restos ósseos semelhantes aos dos humanos devem empreender cuidadosas análises comparativas para estabelecer com uma certa margem de segurança a espécie a que pertencem. O que, para além das dificuldades inerentes à própria analise, leva a uma série de decisões que com frequência soam como arbitrarias: encontramo-nos diante de uma espécie nova ou são apenas variantes morfológicas de uma espécie conhecida? - pertence ao gênero homo ou não? - basta classificar um espécime dentro do gênero homo para considerá-lo humano? - e, se é humano, podemos dizer sem ter receio de equivocar-nos que isso que temos ai diante dos olhos são os restos de um homem? O homem de Neandertal, para dar um exemplo significativo, não é um antepassado nosso, mas uma ramificação paralela a nossa espécie (homo sapiens), a partir de um ramo comum (o homo antecessor?5). Sem dúvida, seu crânio era ligeiramente maior que o nosso, manejava ferramentas produzidas por ele mesmo e, em alguma ocasião ao menos, praticava sepultamentos. Era ou não era humano? Se o era, a humanidade não se fecha exclusivamente nas fronteiras de nossa espécie. E se não o era, o que define o humano?

    Em grande parte poder-se-ia pensar que se trata de uma questão de palavras. Mas, definitivamente, humano será aquilo que decidimos em nossa convenção linguística chamar assim. Porém esta solução nos deixa insatisfeitos, entre muitas outras coisas por causa de seus efeitos práticos. Bastaria que os ideólogos ou políticos de turno decidissem o que é e o que não humano para jogar pelos ares toda a moral e todo o direito.

    Além do mais, não estamos em condições de julgar adequadamente as capacidades mentais e, se queremos denominá-las assim, espirituais todas aquelas “espécies”. A arqueologia poderá nos informar sobre sua capacidade cranial, porém não sobre o funcionamento de seu cérebro; poderá nos mostrar artefatos que permitam suspeitar certas atividades culturais – isto é, sociais e transmissíveis -, porém a base ideológica de todo isso, se é que há alguma, deve ser reconstruída, o que acontece em

    3 J. WAGENSBERG, Ideas sobre la complejidade del mundo. Barcelona 1994 (3* ed.), 42.4 Ibid. 1505 Cf. J. M. BERMUDEZ DE CASTRO, El chico della grande Dolina, Critica 2005,43.

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    grande parte segundo as preferencias do investigador. Um crânio com uma perfuração ocipital pode ser sinal de canibalismo, de cirurgia rudimentar ou de um ritual fúnebre; o próprio canibalismo - atestado pelos sinais de incisões nos ossos, semelhantes aos dos animais - pode ter um valor ritual ou somente alimentício. O mesmo crânio perfurado pode fazer parte de um rito de culto à morte, em função do próprio defunto ou de alguma divindade; porém também pode ter sido exposto cravado em uma estaca como uma macabra advertência aos inimigos.

    A compreensão que o homem tem hoje de si mesmo está necessariamente marcada por esta nova compreensão de suas origens. Ainda que, todavia permaneçam bastantes fundamentalistas - mais do que se crê – aferram-se irracionalmente a suas convicções, normalmente religiosas, baseadas na aceitação de uns textos sagrados revelados diretamente por Deus, e que por fim não podem errar. Desde a comunidade cientifica reivindica-se para a evolução uma certeza semelhante à da esfericidade da Terra, e se lamenta, com razão, de que se instrumentalize os desacordos existentes entre os próprios investigadores sobre o modo para desacreditar uma teoria inteira.

    Porém a crise do modelo - que poderíamos chamar platônico - sobre a essência do homem não deriva só desta relação das fronteiras evolutivas entre o animal e o humano. O conhecimento do modo em que reagem os ácidos nucleicos como codificadores das proteínas que organizam e constituem o corpo permite a investigação e consequente manipulação dos mesmos, de tal maneira que, se não eticamente, ao menos cientificamente, tudo parece possível. Já há alguns anos, se levantaram vozes protestando contra o uso de órgãos animais como próteses humanas. O que hoje temos diante de nossos olhos supera em muito essa intromissão de espécies. É possível, e de fato já se consegue, manipular as células misturando genomas de espécies distintas, inclusive a humana. É o que alguns chamam, com uma linguagem enigmática, julgar ser Deus.

    O problema ontogenético

    O homem foi expulso do reino das essências para viver na precariedade das definições ad hoc. Isto vale também na hora de considerar em que momento dentro do processo reprodutivo nos encontramos diante de um ser humano. Não se trata unicamente de um exilio conceitual, já que as implicações no terreno ético são de grande alcance. Pense-se no dilema moral do aborto, que se presta a fáceis desqualificações entre as partes contrarias. Os partidários de sua liberação reivindicam o direito tácito da mulher frente ao mais que duvidoso direito de um embrião cuja condição de pessoa humana não pode ser definida com clareza. Os contrários a ela

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    defendem como direito primigênio e inalienável o da vida desde o momento mesmo da concepção, já que, ao renunciar a este momento como se que define a origem do individuo, só a arbitrariedade que pode decidir quem tem direito à vida e quem não. Não se trata, pois, como às vezes se simplifica, de garantir o direito humano à vida, mas antes de estabelecer quem pode ser considerado verdadeiramente humano. Ainda que sempre seja possível apelar ao tuciorismo (isto é, que, em caso de dúvida sobre o caráter de pessoa do embrião, dado que o direito à vida é superior a outros direitos de decisão, sempre se deve optar pela vida do neonato), uma vez que desaparecem as espécies como formas definidas em uma alternativa do tipo aut-aut, o estabelecimento dos códigos morais passa inevitavelmente pelos acordos semânticos.

    A teologia escolástica, partindo da definição do homem como composto de corpo e alma, se perguntava pelo momento em que tem lugar a união entre os dois elementos. Rechaçada, em geral, a ideia da preexistência das almas (presente ainda no origenismo), assim como o modelo traducionista, que entendia que a alma, assim como o corpo, era transmitida pelos pais, a questão era: em que momento Deus cria e infunde esta alma. Na realidade, “o problema do momento da criação da alma humana, se bem alcança a sua maturidade unicamente no período da Escolástica, é, em seus elementos essenciais, anterior ao cristianismo”.6 Ainda que os primeiros cristãos que tratam do aborto o condenem sem exceção, em alguns autores encontramos uma distinção entre feto não formado e feto formado7. A escolástica medieval, baseando-se em alguns textos veterotestamentarios, assim como na interpretação de certas passagens de Agostinho, chegou à afirmação da animação retardada do feto, quarenta dias despois da concepção no varão e noventa no caso da mulher, segundo santo Tomas8. Por isso, um aborto provocado nas primeiras semanas de gestação, ainda que sendo pecaminoso, não seria propriamente homicídio.

    Hoje em dia o problema se situa num plano distinto. Já não se trata de averiguar quando tem lugar a animação do feto - pois o conceito mesmo de alma não goza de boa saúde -, mas de estabelecer, e assim por convenção, em que momento se reconhece uma dignidade humana nesse feto. Dito de outro modo. Diante do medo frente à arbitrariedade, diante do temor de que a lei positiva se converta no único critério do agir moral, a postura tuciorista recorre a um ponto divisório entre o que não é e o que é pessoa: o momento da concepção. O problema é que não existe tal momento, mas que é um processo que dura bastante tempo. No extremo oposto situar-se-iam os

    6 A. LANZA, “La questione del momento in cui l’anima razionale è infusa en el cuerpo”, Bolletino Filosofico 4 (1938) 214.

    7 Cf. J. GAFO El aborto y el comienzo da vida humana, Santander 1979, 72-75. 8 O processo de concepção do ser humano se realiza de forma sucessiva, até que tenha lugar a

    formação dos membros e a animação do corpo orgânico. “Maris conceptio non perficitur nisi usque ad quadragesimum diem...; feminae autem usque ad nonagesimum” (In Sent. Ill, d. 3, q. 5, a. 2).

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    que opinam que, enquanto o feto se encontre no corpo da mulher, é esta quem deve decidir. Às vezes se assinala como fronteira entre o aborto permissível e o punível a viabilidade, ainda que esta dependa em grande parte do desenvolvimento da técnica medica9. Outros sugerem que desde que existe qualquer sistema nervoso, mesmo que rudimentar, temos já um ser vivo capaz de sentir e, portanto, ter-se-á que considerá-lo também sujeito do direito à vida.

    O problema da pessoa

    Mais além do problema de delimitar a fronteira temporal entre o humano e o não-humano, tanto no plano filogenético como no ontogenético, o filósofo Peter Singer propõe uma distinção entre homo sapiens e pessoa. Segundo ele, a consideração de toda vida humana como valiosa se funda na teologia cristã: “a crença de que todo nascido de pais humanos é imortal e está destinado a uma vida eterna ou a um tormento perpetuo”.10 Sem dúvida, em sua consideração, “poderia haver uma pessoa que não fosse membro de nossa espécie do mesmo modo que poderia haver membros de nossa espécie que não sejam pessoas” 11. Ele propõe empregar “pessoa” no sentido de “ser racional e consciente de si mesmo” 12, consciente de ser uma entidade diferenciada com passado e futuro13. Seguindo esse critério de forma chamativa, a primeira vista escandalosa, porém plenamente coerente com esta eliminação das fronteiras, poder-se-ia chegar à conclusão de que um primata humanóide, como é o caso do chimpanzé, é, mas sujeito de direitos que um individuo humano deficiente mental profundo, já que se encaixaria melhor nessa definição de pessoa.

    É óbvio, não se pode considerar a postura de Singer como paradigmática. Porém é sintomático do exilio das essências a que antes me referia. O paradoxal do pensamento contemporâneo é que, ao mesmo tempo em que se torna cada vez mas problemático definir o homem, vivemos em uma contínua reivindicação dos direitos humanos. Se no plano conceitual se põe em dúvida inclusive a ideia de homem, até chegar ao que se poderia chamar de a dissolução do sujeito, no terreno prático se coloca o homem como medida da moral. Quiçá, o sintoma mais significativo de tudo isto é que, enquanto a neurobiologia se encontra cada vez, mas incômoda com o livre arbítrio. A liberdade individual se converteu na regra última do comportamento. Exigimos que se respeite nossa liberdade de decisão – pense-se no debate em torno à eutanásia - uma vez que identificamos tal liberdade como ilusão provocada pelo desconhecimento de nossos processos neuronais.

    9 Cf. P. SINGER, Ética practica. Segunda edicion. Cambridge, 1995, 173.10 Ética practica, 111.11 Ética practica, 109.12 Ibid.13 Ética practica, 137.

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    Deste modo, a autocompreensão do ser humano se vê ameaçada já não só pela incerteza de sua origem como espécie nem pelo incerto de seu nascimento como individuo, mas pela dissolução de sua própria mesmidade. O eu, como sujeito consciente e autoconsciente, gestor não só de sensações, mas também, e, sobretudo, de decisões, parece desvanecer-se entre bilhões de sinapses neurais para descobrir-se, quando muito, como um epifenômeno de processos sobre os quais não se tem nenhum controle.

    A visão desde a teologia

    Esta localização do ser humano dentro do mundo da natureza tem serias implicações para a teologia, cuja reflexão ficou marcada de forma substancial não só por uma leitura literal da Bíblia, mas também por uma concepção determinada do cosmos.

    No modelo de santo Agostinho, o homem ocupa uma posição intermedia entre as criaturas espirituais e a criação material. Sintetiza a ordem jerarquizada, próprio da filosofia neoplatônica, no que o espiritual tem de proeminência sobre o corporal. Por isso, mesmo carne desobedeça, ou inclusive exerça sua ditadura contra a razão, é prova mais que suficiente de que a condição atual do homem não responde à natureza originaria com que saiu das mãos de Deus. É uma autentica guerra, onde, segundo expressão paulina, a lei dos membros enfrenta à lei da mente (cf. Rm 7), e submete o homem ao cativeiro. 14

    O relato do Gênese adquire assim um significado antropológico que ultrapassa a função etiológica originária. A expulsão do paraíso não é meramente um símbolo do desajuste entre as aspirações e desejos do homem, por um lado, e a constatação das condições árduas da realidade, por outro. O paraíso, donde fomos expulsos, é nossa própria condição humana presuntamente original. Deste modo, a aspiração se converte em origem e a frustração do sonho se interpreta como queda.

    Em relação a isto, é interessante resenhar como santo Agostinho e são Tomas adotam um ponto de partida diferente na hora de individuar a natureza humana15. Ambos coincidem na ideia de que o submetimento da alma de Adão à vontade divina preservava ao homem de sua dissolução, tanto moral - como sucedera depois pela desordem da concupiscência - quanto física. Porém, mesmo que Agostinho conheça a possibilidade de entender por natureza humana o estado em que se encontra

    14 “Ilia est poena peccati, ilia plaga vestigiumque peccati, ilia inlecebra fomes- que peccati, ilia lex in membris repugnans legi mentis, ilia ex nobis ipsis aduersus nos ipsos inoboedientia iustissimo reciprocatu inoboedientibus reddita” (De nuptiis et concupiscentia II, 9, 22).

    15 Cf. A.-M. DUBARLE, Le peché originel. Perspectives theologiques, Paris 1983.

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    atualmente, em sentido próprio a natureza é o ser primigênio tal como saiu das mãos de Deus16. Por isso, o homem submetido à concupiscência e à morte não conserva sua verdadeira natureza, e a salvação consistiria em grande parte na restituição da integridade natural perdida. Santo Tomás, em troca, movido por seu aristotelismo, considera que os bens perdidos com a expulsão do paraíso não são naturais, pois, de tê-los tido, não teriam desaparecido depois do pecado17. Simples questão semântica? Há algo mais. A visão neoplatônica do Africano exige um mundo ordenado de forma jerárquica, onde cada coisa ocupa o lugar que lhe corresponde segundo a escala do ser. Dado que no homem convive o elemento corporal com o espiritual, este há de dominar aquele, pois, do contrário, Deus teria criado o ser humano desordenado, o que é impossível. Se na vida presente se dá esta desordem (como a própria experiência ensina... e Agostinho a conhecia em sua própria carne), isto só se pode explicar como consequência (efeito ou castigo) de uma desordem prévia: a desobediência do homem a Deus. O italiano herda do bispo de Hipona a descrição do estado paradisíaco, porém a explica segundo o conceito aristotélico de natureza, com o qual, na realidade, a visão agostiniana perde grande parte de sua mordência. Se a natureza humana não implica em si mesma o domínio da alma sobre o corpo, da razão sobre as potencias inferiores; se a imortalidade não é algo exigido por nossa natureza, mas que é um dom acrescentado por Deus; então, a expulsão do paraíso teria sido, sem dúvida, uma grande perda, porém não uma ferida mortal em nossa mesma condição humana. Evidentemente Agostinho também sabe que a imortalidade do primeiro homem está condicionada a sua inocência (não é o mesmo não poder morrer que poder não morrer), porém a mortalidade de Adão não é consequência de sua natureza, mas de seu pecado18.

    Se a primeira vista se trata só de uma questão de matiz, basta pensar nos efeitos devastadores que provocou a leitura de Agostinho no séc. XVI. Porque o Hiponense, lido depois de séculos de tomismo e de nominalismo, leva assim irremediavelmente a uma visão pessimista do homem, totalmente viciado em sua natureza e abandonado unicamente a uma vontade divina que mais que soberana se apresenta como

    16 “Sic etiam ipsam naturam aliter dicimus, cum proprie loquimur, naturam hominis in qua primum in suo genere inculpabilis factus est, aliter istam in qua ex illius damnati poena et mortqis et ignari et cami subditi nascimur, iuxta quern modum dicit apostolus: fuimus enim et nos naturaliter filii irae sicut et ceteri” (De libero arbitrio III, 19, 34). A natureza viciada “propter originem natura appellatur: quae origo utique habet vitium, quod é contra naturam” (Retractationes I, 10, 3).

    17 “Ilia subiectio corporis ad animam, et inferiorum virium ad rationem non erat naturalis·, alioquin post peccatum mansisset” (STh I, 95, 1).

    18 “Sed plane ilium non mori potuisse pronuntio. Aliud est autem non posse mori, aliud posse non mori: illud maioris est immortalitatis, hoc minoris. Si duo ista discemis, et quod vos de Adam dicitis, et quod nos contra vos dicimus, cemis. Vos enim dicitis, sive peccaret, sive non peccaret, moriturus esset: nos autem dicimus, quamdiu non peccaret, moriturus non esset; et si nunquam peccasset, mortals non esset” (Op. imperf. contra Iulianum 6; PL 45, 1560).

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    caprichosa. Torna-se paradoxal que alguns historiadores apresentem a Reforma protestante como um sintoma da reivindicação humanista do livre arbítrio, sendo assim que o protestantismo agudiza até o paroxismo a negação de liberdade no homem pecador19. Algo que, segundo Agostinho, é consequência da rebelião da carne (ou da lei dos membros) contra a lei da mente.

    Resulta, pois, que dentro da tradição teológica latina, inclusive quando se pretende ser fiel às auctoritates (entre as que distingue santo Agostinho), a visão filosófica do teólogo o leva a interpretar suas fontes segundo uma concepção determinada. A definição de homem não se livra desta influência. É verdade que o texto bíblico proporcionava uma pista específica para isso: a criação à imagem e semelhança com Deus. Porém, à parte da dificuldade em compreender qual pode ser o sentido original da expressão20, a história da exegese não oferece uma interpretação unânime. Se para Taciano com esta expressão se indica que o homem só é verdadeiramente homem quando supera sua condição humana21, a tradição alexandrina - perpetuada, através de Ambrósio, no agostinianismo latino - encontrara a iconicidade divina do homem nos aspectos imateriais de sua constituição: razão e vontade.

    A própria literatura bíblica – mesmo deuterocanônica, o que explica seu pouco uso na patrística antiga - havia explicado esta imagem de um modo muito concreto. O livro da Sabedoria diz assim: “Deus criou o homem na incorruptibilidade; o fez imagem de sua eternidade” (Sab 2,23). Há uma certa insegurança textual, já que em alguns manuscritos se encontra idiotetos e em outros aidiotetos, pelo que alguns tradutores optam pela primeira variante (“imagem de sua propriedade”). Mas, o contexto convida a eleger aidiotes (‘eternidade’) como aquilo que reflete a incorruptibilidade do homem. Tenha-se em conta que o livro da Sabedoria expressa uma antropologia, mas platônica de o que algum comentarista gostaria de reconhecer, e esta incorruptibilidade da qual se fala se refere ao que, a seu entender, constitui o verdadeiro ser do homem: a alma. Uma alma, tudo seja dito, que também pode morrer (pois os partidários do diabo experimentam a morte: 2, 24), mesmo que não esteja claro pelo texto se esta morte se refere à aniquilação, ao tormento - segundo se depreende do contraste que estabelece com as almas dos justos - ou ao próprio pecado - de modo semelhante ao que Filon ensina sobre o sentido duplo da palavra “morte”.22 Assim, pois, ao menos em uma corrente do judaísmo, a

    19 Ainda que seja verdade que a doutrina do livre arbítrio tenha favorecido a liberdade de pensamento, por mais que em teoria se atribuísse à ação do Espirito no crente.

    20 Cf. C. WESTERMANN, Genesis. Kapit o I -II. Neukirchen-Vluyn, 1983 (3. Aufl.), 201-218. 21 “Chamo homem não ao que realiza coisas semelhantes aos animales, mas ao que, vendo mais

    além da humanidade, chega ao próprio Deus” (Oratio adv. Graecos 15).22 A morte é dupla: uma própria do homem e outra própria do alma. “Pois a do homem é a

    separação da alma em relação ao corpo; porém a morte da alma é a corrupção da virtude e a assunção da maldade” (FIL0N, Alegoria das leyes I, 33).

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    característica da criação especial do homem é a participação, mediante a incorruptibilidade, da eternidade de Deus.

    O que foi feito da alma?

    A originalidade do homem frente ao resto da natureza foi justificada teologicamente mediante o recurso a uma antropologia filosófica que situava o homem como um espaço intermediário entre o material e o espiritual, Ou que é o mesmo, como o ponto de encontro entre o reino da necessidade e o da liberdade. Assumiu-se a existência de uma alma espiritual, dotada de liberdade e de imortalidade, como um dos pontos básicos da antropologia cristã. Este pressuposto é frágil hoje em dia. Por um lado, vários estudos exegéticos assinalam que esta antropologia não corresponde, ao menos cem por cento, com o que se deprende dos textos bíblicos. Por outro, o melhor conhecimento do sistema neuronal põe em discussão os postulados filosóficos que obrigava em outros tempos a recorrer à alma.

    A cosmovisão pré-científica não podia entender como algo podia ser seu próprio motor. Tudo o que se move é movido por algo - ou por alguém. A experiência da morte parecia implicar que o corpo não é seu próprio motor, pois neste caso, pois a um certo ponto ele deixava de se mover? Não era necessário postular um principio vital que distinguisse o homem vivo de seu cadáver? Esta conclusão não é consequência de um largo raciocínio, mas uma intuição mais-ou-menos generalizada, fomentada sem dúvida pela percepção introspectiva de que é possível dissociar-se mentalmente do próprio corpo. Além do mais, a noção de deixar de existir absolutamente torna-se bastante difícil de ser aceita, apesar da experiência da morte. Mais além de concepções teológicas, quem não se imaginou a si mesmo existindo ou inclusive tendo deixado de existir? Mesmo que se trate de uma sombra, algo subsiste. Como não continuar amando aos que já não poderiam ser objeto de nosso amor? É claro, nem todas as culturas deram os mesmos passos, porém a ideia de que eu não me identifico sem mais com meu corpo é uma noção generalizada.

    À medida que a ciência foi descobrindo a fisiologia humana, sobretudo o complexo sistema neuronal, parece que não se torna necessário postular nem um principio vital, nem um sensitivo, nem um racional. A vida é um fenômeno de origem química; a sensibilidade funciona por impulsos eletroquímicos, e o chamado pensamento não é mais que uma forma evoluída de sensibilidade que se resolve em atividade é neuronal. Parece que não resta um lugar para a alma dissociada, sequer conceitualmente, do corpo.

    Para muitos crentes, renunciar à alma como uma entidade imaterial, distinta do corpo e não derivada dele é sem dúvida uma crise poderosa. Antes de dar uma resposta

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    à questão de se existe a alma, tem-se que responder a uma pergunta: Que significa existir? No «existir» atua de predicado de infinidade de sujeitos, dos que ninguém duvida que existam, porém que, evidentemente, implicam modos diferentes de existência: um átomo, um elétron, um par virtual de particula-antiparticula, uma lei civil, uma lei física, uma teoria econômica, uma tendência, uma moda, uma poesia, uma sinfonia, uma melodia, uma recordação, um grupo financeiro, um grupo de amigos, uma sociedade... «Existem» do mesmo modo a poesia e o livro onde esta escrita? É uma sociedade as pessoas que a formam? Uma recordação é o acontecimento que se recorda? Por outro lado, considerando-se que existem níveis de existência de complexidade diversos, alguém pode se perguntar: Que é mais «real», o corpo ou as células que o formam? É o próprio corpo ou o conjunto de suas células?

    Em última instância, que é o eu? - É o corpo ou algo distinto do corpo? A linguagem nos tem acostumado a falar de “meu corpo”, porém é isso um modo adequado de falar? Por um lado, sabemos que a identidade não se perde com a amputação de um membro, porém, voltando à linguagem comum, seria meu corpo o que está coxo ou sou eu o coxo? Na realidade, se tomamos como corpo o conjunto de suas partes, o eu não se identifica com ele. Por mas dolorosa que seja uma amputação, o eu permanece; porém não permanece inalterado. O eu é o conjunto percebido como uno, e não alguém que percebe o conjunto como seu. Em certo modo, o eu é a consciência da individualidade. É, se queremos, a sensibilidade consciente. Isto, sem dúvida, desde o ponto de vista empírico, isto é, quando digo eu, que experimento como tal?

    Na época do materialismo reducionista mais militante se chegou a dizer que o cérebro produz pensamentos como o estomago as digestões, ou inclusive que o cérebro segrega pensamentos como os rins a urina23. Hoje em dia, a informática nos dá elementos para eludir o reducionismo sem necessidade de recorrer a um dualismo substancial. Porque os estômagos não podem transmitir digestões, porém os seres humanos podem comunicar entre si seus pensamentos. Mesmo que a informação necessite de um suporte físico, o suporte físico não se identifica com a informação, e por isso pode ser transmitida. Pois bem, a informação não é uma coisa, uma substancia; apesar do que, não é totalmente errôneo afirmar que um ordenador se compõe de hardware e de software, por mais que o modo de existência de um e de outro seja distinto. O software, certamente, necessita um suporte físico, porém não se identifica com ele.

    23 Assim se expressa Karl Vogt em suas Cartas fisiológicas (1847): “Os pensamentos são para o cérebro o que a bílis é para o fígado e a urina para os rins”. A comparação entre o pensamento, a bílis e a urina lhe é sugerida pelo livro As relações do físico e a moral (1812) do médico francês Pierre-Jean-Georges Cabanis, que sustenta que o mental equivale ao físico enquanto conhecido, e conhecido pelo físico mesmo, sabendo que o mental depende do clima, do sexo, da idade, da nutrição, etc. Já Cabanis havia chamado os pensamentos de “os excrementos do cérebro”.

  • 23

    Como se vê, o tema é mais filosófico que teológico. Para o teólogo, e para o crente em geral, o que está em jogo são os seguintes pontos:

    1. O que distingue o humano do não-humano, enquanto algo essencialmente distinto e «capaz de Deus»?

    2. Considerando que a ressurreição preserva a identidade da pessoa, uma ressurreição “do nada” seria então uma nova criação. Se não existe algo que garanta a continuidade entre esta vida e a outra, como se garantiria a identidade dos ressuscitados?

    3. Uma vez que “eliminamos” a ideia do eu como um homunculus que governa o corpo, não reduziríamos o homem a um organismo que somente atua de acordo com seus princípios biológicos? É verdade que todos temos experiência da liberdade de nossas decisões, mas isso não seria somente uma ilusão provocada pela ignorância de nossos processos neuronais? Como se pergunta Francisco Mora, "poderia a vida psíquica explicar-se eventualmente conhecendo os mecanismos neurobiológicos que são sua causa?24".

    Esta ultima questão não afeta somente aos crentes. Os próprios neurobiólogos e filósofos que renegam o dualismo são muitas vezes os que rejeitam a conclusão reducionista de que a mente e o livre arbítrio são “só” efeitos aparentes de um mundo que se move por leis físicas. Alguns recorrem, de forma bastante curiosa, à indeterminação quântica25; outros confundem a impredizibilidade com a indeterminação; outros consideram que o pensamento constituiu um tipo de energia ainda não suficientemente conhecida, porém intercambiável e transformável em energia eletroquímica; outros, por fim, consideram que a questão não tem resposta enquanto não se encontra a pergunta adequada, para qual não estamos suficientemente preparados, e não o estaremos enquanto não definirmos melhor o que se entende por “livre arbítrio”. Alguém estaria em parte tentado a dar razão a estes últimos, pois com frequência se apresenta ao eu-sujeito, ao agente livre das decisões, como o cocheiro de Platão, com o que, em lugar de resolver o dilema, procrastina a resposta. O bem confunde a liberdade com o azar, como se uma ação livre fosse uma ação sem causa. Penetrar no horizonte das motivações humanas é uma tarefa complexa que ultrapassa em muito o proposito desta exposição. Basta assinalar que a afirmação de uma alma entendida como substancia relativamente independente do corpo não traz solução ao problema.

    24 “Neurociencia y el problema cerebro-mente”, em F. MORA (ed.), El problema cerebro-mente, Madrid 1995, 261-288, 267

    25 Cf. R. PENROSE, La nueva mente del emperador, Mondadori, Madrid 1991.

  • 24

    Em relação à pergunta pela identidade do ser humano, já temos visto os problemas que se colocam tanto desde o ponto de vista filogenético como desde o ontogenético. Porém à teologia não compete estabelecer o conceito biológico ou filosófico de homem. Não é licito julgar o trabalho biológico desde um prejuízo teológico. Portanto, o importante é elucidar o que significa ser humano em perspectiva crente. Sem prescindir do fundamento biológico, porém vendo mais além dele, o ser humano se define em teologia por uma relação especial com Deus, tradicionalmente definida como a vocação à comunhão divina ou a elevação sobrenatural. O que constitui o homem como pessoa teologicamente, isto é, como alguém existente diante Deus como sujeito de uma relação, só pode ter sua origem em Deus mesmo. Desligados de uma visão excessivamente materialista, não é necessário que este “estar diante de Deus” seja considerado uma “coisa” localizável no homem. Por isso podemos seguir defendendo uma criação especial do homem da parte de Deus sem necessidade de recorrer a um principio substancial extrínseco ao processo evolutivo. Esta criação singular de Deus, que tal como criação, é sempre uma novidade e pressupõe a materialidade biológica da evolução orgânica. Quer dizer, Deus acolhe em seu diálogo um ser vivo cuja capacidade de reagir frente ao meio produziu um tipo determinado de consciência que podemos chamar vida intelectiva.

    Este “estar diante de Deus” caracteriza teologicamente todo ser humano, independentemente de como se está diante d’Ele. A oferta de Deus ao homem constituiu de tal maneira este ser que, se por hipótese Deus retirasse sua oferta a um homem concreto, este deixaria de ser, em sentido teológico, homem, ainda que o continuasse sendo em sentido biológico.

    Mas a alma tem desempenhado tradicionalmente em teologia outra função, para muitos, mais importante: a garantia da imortalidade. Por isso devemos concluir nosso texto com a seguinte pergunta: que nos diz a fé cristã sobre a morte? - como se situa a teologia a respeito dela?

    Mortalidade e imortalidade na definição de homem

    Ainda que a morte constitua uma experiência comum e universal, nunca o é em primeira pessoa. Todos nós sabemos que devemos morrer, porém ninguém é capaz de imaginar-se a si mesmo morto. Poderá tentar imaginar o mundo depois da própria morte, porém por isso mesmo ele aparece como espectador desse cenário. Não é de estranhar, portanto, que inclusive em culturas onde não aparece com clareza a ideia de uma vida do além os defuntos não se consideram como totalmente desaparecidos26.

    26 Cf. J. L. DE LE0N AZC ARATE, La muerte y su imaginario en la historia de las religiones, Bilbao 2000.

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    Por influência de certa teologia e de certa exegese protestante27, o pensamento católico dos anos sessenta e setenta do século passado aprendeu a distinguir entre a crença na imortalidade das almas, própria do pensamento grego, e a esperança na ressurreição dos mortos, característica do pensamento judeu ou inclusive semítico28. Esta visão é bem marcada e simplificadora para ser verdadeira; mais ainda, para ter sentido. Generalizações do tipo “pensamento grego” ou “pensamento judeu” (para não falar de “pensamento semítico”) não correspondem à historia do pensamento. Homero não é Pitágoras nem Aristóteles é Platão, que por sua vez pouco tem que ver com Epicuro. Pelo que respeita à presunta antropologia unitária dos povos semíticos, não se pode esquecer o episodio da nigromante de Endor (lSam 28), que invocou a Samuel, o já defunto do mundo subterrâneo. Dá a impressão de que os mortos se encontram em um estado de repouso do qual podem sair, ainda que a contragosto, pela ação de uma pitonisa. Não estamos tão longe da visão homérica do mundo dos mortos.

    Ademais, a ideia de ressurreição de mortos entra na religião judaica bastante tardiamente, por influência de ideais estrangeiras, e no contexto apocalíptico da reivindicação da justiça divina frente à prepotência dos injustos que cometem desmandos contra os fieis e contra à Lei. Mas esta perspectiva não é incompatível com a ideia de uma certa sobrevivência pessoal entre a morte e a ressurreição final. O próprio Paulo, convencido como está da iminente ressurreição, deseja partir para estar com Cristo, ainda que entenda que é mais útil para seus irmãos permanecer na carne (Fp 1, 23-26). Na linguagem paulina, esta dualidade entre o que morre e o que vai estar com Cristo não se expressa com a linguagem corpo-alma. A alma (se estabelecemos a equivalência linguística psyche = ‘alma’), em Paulo, corresponde antes à vida vegetativa e sensitiva, Porém não é o verdadeiro eu. O sujeito é o homem interior, que talvez pudesse identificar-se com o “espirito” da tríade espirito-alma- corpo (cf. 1Tes 5, 23). A divisão tripartite do homem era bastante frequente no mundo antigo para expressar o racional, o sensitivo-vegetativo e o material. Como é fácil entender, esta divisão não supõe uma distribuição equitativa de valor antropológico, mas que o verdadeiro eu se acaba identificando com o espirito ou a mente, isto é, com o sujeito da vida consciente.

    Apesar de certas resistências de alguns pensadores cristãos dos primeiros séculos, este modelo antropológico, cada vez mais impregnado de platonismo, se imporá na reflexão eclesial, até o ponto de entrar nas formulações de fé. Quando as disputas critológicas dos séculos IV e V forçaram precisar o alcance da dimensão humana de Cristo, se fez necessário especificar contra o apolinarismo que sua humanidade consta de alma racional e corpo. Quase milênio mais tarde, e também neste caso por motivos 27 Pense-se, por exemplo, no clássico de O. CULLMANN, Immortalite de l‘âme ou resurreccion des morts?

    Neuchat o 1956.28 Eco deste ambiente, ainda que tendo em conta as simplificações, é o núm. 60 da revista Concilium,

    do ano 1970.

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    cristológicos, o Concilio de Viena sancionará o modelo tomista da alma racional como única forma corporis. Quase duzentos anos depois, o V Concilio de Latrão evidenciará, contra o aristotélico Pomponazzi, que esta alma é individual, própria de cada um e imortal.

    Aqui haveria um pretexto mais que suficiente para fazer algumas considerações sobre as relações entre o dogma e a filosofia, porém não é este o lugar nem o momento. Basta observar como um modelo antropológico filosófico foi penetrando de tal modo a história da teologia que terminou por tornar-se conatural com ela, como única expressão possível da fé. Entende-se, então, a reação do século passado por parte daqueles que assinalaram as diferenças entre a visão bíblica e a filosófico-escolástica; ainda que isto não justifique os exageros que apontei mais acima.

    Questões exegéticas à parte, e fixando-nos em nossa situação atual, que nos exige crer a fé cristã a respeito da morte e do destino último do homem? Para responder a esta pergunta é necessário tomar em consideração as afirmações fundamentais da teologia acerca do ser humano:

    1. Na discussão que teve lugar no século XX sobre “sobrenatural”, ficou claro - se não a todos, mas a muitos - que teologicamente não tem sentido contrapor uma “natureza pura”, previa a toda ordenação à visão de Deus, frente à elevação ao estado sobrenatural. Não existe um “homem meramente criatura”, como passo anterior (cronológica ou logicamente) ao homem constituído na ordem sobrenatural.

    2. Sem dúvida, e como complemento necessário a isto, não se pode esquecer que nenhuma criatura, enquanto tal criatura, leva consigo a exigência de ser convidada por Deus a entrar em comunhão com ele. A evolução do homem, enquanto processo biológico, não desemboca na vocação sobrenatural.

    3. Apesar disso, o “sobrenatural” (para continuar empregando uma palavra talvez não demasiada acertada) tampouco é um posposto à condição biológica do homem. É o desenvolvimento orgânico, e especialmente cerebral, do homo sapiens o que lhe permite ter um acesso à realidade de forma inteligente e interpessoal, requisito para o diálogo com Deus.

    4. Teologicamente, tudo isto só pode ser visto na continuidade do projeto divino. Não existe uma criatura evoluída a que Deus lhe ofereça a comunhão com Ele, mas que o desígnio criador de Deus se orienta para esta comunhão. Quer dizer, Deus não eleva o homem

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    criatura ao plano sobrenatural, mas Deus cria o homem para fazê-lo seu interlocutor.

    5. Dado que esta orientação à comunhão faz parte da essência teológica do homem, a imortalidade também esta incluída no desígnio criador de Deus. Porém para garanti-la não é necessário postular um componente imortal, já que é o homem, e não este componente, o chamado à comunhão com Deus. Imortalidade da alma, sobrevivência do eu, ressurreição da carne, são três modos distintos com que se expressa esta ideia. Tratou-se de maneiras de afirmar esta convicção, e não se deveria insistir demasiado na forma concreta em que se realizará. É necessário, certamente, tentar dar uma expressão coerente a essa esperança, porém sem se aferrar obstinadamente a um modelo ou outro. Além do mais, dado que a morte nos subtrai à ordem temporal mundana, quiçá não tenha muito sentido perguntar-nos que sucede entre a morte e a ressurreição final (o que se conhece como “escatologia intermediaria”).

    6. Em consideração a tudo isto, podemos reconhecer na aspiração humana à imortalidade um sintoma desta vocação à plenitude da comunhão divina. Porém isto não se pode usar como argumento apologético, já que a mera aspiração à imortalidade não prova nada, e poder-se-ia explicar de muitas formas (como uma ilusão, ou uma estratégia eficaz desde o ponto de vista evolutivo). Só porque se lê a realidade desde essa visão de fé, cobram sentido novo os dados fenomenológicos. Por isso, quando desde a fé se insiste em que o ser humano, independentemente de suas condições intelectuais, está situado em uma posição especial diante de Deus, distinta das demais criaturas, se faz a partir de um pressuposto não compartilhado por uma parte significativa da sociedade. Não levar em conta esta realidade leva necessariamente a conflitos irresolvíveis, como irresolúvel é todo confronto que se envolve sobre as consequências sem discutir previamente os pressupostos.

    Para (não) concluir

    A mensagem cristã, ao menos desde são Paulo, associou pecado e morte. Este vínculo, desde logo, não se estabeleceu por uma repentina inspiração, mas que faz

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    parte do imaginário cultural compartilhado pela humanidade. Praticamente em todas as culturas, a morte tem servido como ferramenta punitiva para os delitos mais graves, não só como um meio eficaz de proteger a sociedade, mas desde a convicção de que toda ação humana traz de modo inerente um valor que merece retribuição. Quando este valor é negativo, só há lugar para o castigo, que pode levar à privação do mais estimado (ou talvez não; porém se, desde logo, do mais necessário para desfrutar do que mais se estima): a vida. Dado que, antes ou depois, a morte chega a todos, não parece lógico atribuir à mortalidade universal a uma culpa original? Sobretudo quando se contrasta a constatação da inadequação entre os desejos humanos e a crua realidade com a afirmação da existência de um Deus bom, poderoso, sábio e filantropo. O melhor conhecimento que hoje temos de nosso passado biológico nos proíbe aceitar uma equação tão sensível. Porém, numa perspectiva diferente, a relação entre pecado e morte, uma vez que se despoja de seu caráter mítico judicial, aponta para algo muito importante: que significa viver?

    A aspiração cristã não consiste no sono da imortalidade, como se o prolongamento da existência fosse um valor definitivo, ou inclusive o valor supremo. Só a comunhão plena de sentido a palavra “vida”, a qual não se mede por sua duração, mas por sua profundidade. Mesmo melhorando as condições materiais, nem por isso a vida adquire um valor pleno. Logicamente, aquelas contribuem de maneira importante para melhor a “qualidade de vida”. Porém não fornecem a resposta última às aspirações do coração humano. Só a comunhão, isto é, a união no respeito à alteridade, permite que se realize a existência do homem. Essa comunhão que define a intimidade do Deus trino, e que se expressa numa palavra tão adorável quanto perigosa, tão preciosa quanto desprezível; essa palavra, única que em toda a Bíblia se identifica com o próprio Deus: amor.

    Traduziu HR

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    O CORPO HUMANO: REFLEXÕES DESDE A

    PERSPECTIVA FILOSÓFICA*THE HUMAN BODY: REFLECTIONS FROM THE PHILOSOPHICAL

    PERSPECTIVE

    Carlos Beorlegui Rodríguez **

    RESUMO: É inegável a força atual das ciências na interpretação do lugar do homem no conjunto dos seres vivos.. O autor repassa quatro grandes posturas. São elas: reducionismo biológico, biologismo subordinacionista, culturalismo dualista, e estruturismo unificador. Algumas correntes científicas querem superar as teses humanistas e antropocêntricas, negando a suposta diferença qualitativa entre os humanos e o resto das espécies vivas: o humano é apenas uma espécie a mais. E aí não tem sentido falar da singularidade da espécie humana, pois que não passaria de ser um dos restos da concepção humanista cristã. Para o autor, porém, os avanços científicos não constituem provas nem a favor das teses antropocêntricas e humanistas, nem a favor das reducionistas. Ele defende que o gênero humano está envolvido no processo evolutivo, porém experimentou um salto qualitativo, que fez emergir com ele uma realidade qualitativamente nova, dotada de uma densidade ontológica específica e de um valor ético que as demais espécies não possuem. Nós somos uma espécie que tem a capacidade de possuir autoconsciência, liberdade, capacidade linguística de usar e construir ferramentas e de transformar o ambiente em mundo, além de capacidade estética, filosófica e a religiosa (perguntar-se pelo fundamento de tudo).

    PALAVRAS CHAVE: Ciências. Humanismo. Antropologia. Reducionismo. Processo evolutivo.

    ABSTRACT: The present force of the sciences in the interpretation of the place of the man in the set of the alive beings is undeniable. The author reviews four main postures on the subject. These are: biological reductionism, subordinationist biologism, dualist culturalism and unifying structuralism. Some scientific currents want to surpass the humanistic and anthropocentric theses, denying the supposed qualitative difference between humans and the rest of the living species, for these, the human is just another species. Thus, there is no sense in speaking of the uniqueness of the human species, for it would be no more than the remnants of the Christian

    Artigos

    * Este texto - cedido pelo autor para a Revista Teológica STUDIUM - corresponde ao conteúdo de uma conferencia, levemente corrigida, pronunciada dentro da V Jornada sobre: Ciência y Cristianismo, sob o título La gran maravilla del cuerpo humano, celebrada em Burgos, no Centro Cultural Cordon, e organizada pela Faculdade de Teologia del Norte de Espanha e a Vicária de Cultura da Arquidiocese.

    ** Doutor e Catedrático de Filosofia na Universidad de Deusto (ES) e professor convidado da Universidade Centroamericana de San Salvador. Entre ínúmeros livros, destacam-se: Antropología Filosófica. Nosotros: urdimbre, Lecturas de antropologia filosofica ,Historia del pensamiento filosofico latinoamericano: una busqueda incesante de la identidad e La singularidad de la especie humana. De la hominización a la humanización.

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    humanist conception. For or author, however, the scientific advances do not constitute evidence neither in favor of the anthropocentric and humanistic theses nor in favor of the reductionists. He argues that mankind is involved in the evolutionary process, but has experienced a qualitative leap, which has made it emerge with a qualitatively new reality, endowed with a specific ontological density and an ethical value that the species do not possess. We are a species that has the capacity for self-awareness, freedom, linguistic ability to use and build tools and transform the environment and the world. Moreover, the aesthetic, philosophical and religious capacity, which are capable of questioning the foundation of all that exists.

    KEYWORDS: Biological body. Anthropocentrism. Scientific advances. Self-consciousness. Singularity.

    1. INTRODUÇÂO

    Na hora de falar sobre o corpo humano, não podemos deixar de constatar que se trata de uma temática de perspectivas quase inabarcável. Pois bem, o enfoque filosófico já tem como tal uma amplitude de pontos de vista sobre o que refletir que se torna muito difícil não dispersar-se para acertar os aspectos que são os mais importantes, assim como os de maior interesse para os leitores destas páginas. De imediato, o ser humano não percebe a realidade, nem a si mesmo. É a lei da urgência mediada, consequência do que H. Plessner denominava nossa condição excêntrica. O ser humano, como advertia também Cl. Lévi Strauss, não pode assimilar a realidade de forma crua, mas também cozida, guisada, interpretada. Por isso, o enfoque filosófico sobre o corpo humano, ou a corporalidade, tem que ser necessariamente uma referencia como quando vamos cozinhando/interpretando os humanos ou nossa própria realidade, nossa realidade corpórea, como meio de conhecer-nos melhor. Porém se nos detivermos para apresentar todo esse amplo panorama, se tornaria interminável. Por isso, vou tratar de dar um enfoque geral, e limitar-me depois a refletir sobre alguns aspectos que considero mais interessantes.

    Entendo que falar do corpo humano, ou da dimensão corporal do ser humano, é tanto como falar do homem próprio em sua totalidade. Nós somos nosso corpo, nem mais nem menos. Eu sou meu corpo, como já o afirmou, entre outro s. P. Laín Entralgo1. Só desde uma postura dualista se poderá negar e opor-se a esta afirmação, à medida que o dualismo defende que os seres humanos são feitos de matéria biológica e de outra realidade ontológica, o espírito. Porém, ainda que seja evidente que o dualismo está hoje em dia defendido por muito poucos e não passa por seus melhores momentos, fica aberto o problema de lidar com as múltiplas formas de entender esta afirmação e de valorizar o corpo humano e o modo de viver nossa corporalidade. Que outra coisa somos, ao lado disso? 1 Cfr. LAIN ENTRALGO. P.. El cuerpo humano. Teoria actual, Madrid España- =a-Caipe. 1989.

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    Portanto, deixando de novo claro que eu sou meu corpo, nos resta a questão de explicar e esmiuçar como interpretar esta afirmação.

    É evidente que o ser humano não tem entendido (cozinhado) nem vivido seu corpo e sua corporalidade da mesma forma ao largo de sua história. Essa é precisamente uma das características dos humanos. Passamos a desconhecê-lo e desvalorizá-lo, postergá-lo e entendê-lo como algo adjacente e secundário desde uma visão dualista e teocêntrica; a recuperá-lo e considerá-lo como aquela dimensão ou realidade específica que nos constitui como humanos; e inclusive, no outro extremo, desde uma postura reducionista, hedonista e narcisista, a engrandecê-lo e adorá-lo, como está acontecendo em muitos âmbitos culturais de hoje, onde predomina a obsessão pela imagem corpórea.

    Esta tarefa inevitável de interpretar e dar sentido ao nosso corpo tem, além do mais, duas vertentes, que estão relacionadas estreitamente: a vertente individual e pessoal; somos como nos vemos a nós mesmos, como temos aprendido a ver-nos; porém também, e de forma essencial, somos cada vez mais conscientes de que nosso corpo e a forma de vê-lo e entende-lo é um produto social. Os antropólogos sociais têm estudado o modo como a sociedade foi configurando nossa corporalidade2. Assim, nosso corpo não é ó um produtor natural, mas também, e, sobretudo, um constructo social. Isto se vê nas normativas sociais com as que vivemos e que nos propõem orientações e valorizações sobre o vestir e a desnudez; os papéis sexuais; as relações entre raças e etnias; a saúde e a enfermidade; os critérios de magreza e de obesidade; o corpo como expressão das diferenças de classe (usos sociais e hábitos corporais de cada classe social), desde o trabalho, o vestido e demais diferenças, dentro daquilo que M. Foucault denomina as biopolíticas do corpo (como se foram conformando em instituições como prisões, sistemas hospitalários, etc.), orientações todas guiadas por interesses sociais e econômicos3.

    Como se pode ver, o leque é imenso e de uma riqueza e complexidade extraordinárias. É desde aí que temos que eleger e deixar de lado aspectos sem dúvida muito interessantes, para concentrar-nos naqueles outros que consideramos de maior atualidade e interesse, atendendo ao maior impacto que as ciências biológicas, neurocentíficas e cognitivistas estão tendo em nosso entorno cultural mais recente. Vou restringir-me, em concreto, a três aspectos da

    2 Cfr. MARTINEZ FREIRE. P./ARREGUI, Jorge V./GARCIA GONZÁLEZ, J.A,/ PARRILLA, M.V. (eds.), Cuerpos: subjetividades y artefactos, Málaga, Reprodigital 2004. RIVERA DE ROSALES. J./LOPEZ SAEZ, Mª del C. (coords.), El cuerpo. Perspectivas filosóficas, Madrid, UNED Ediciones, 2002.

    3 Cir. SANCHEZ GODOY, R.A., “El cuerpo dentro de una ontologia histórica de nosotros mismos. La aproximación al cuerpo en la obra de Foucault”, en RIVERA DE ROSALES. J./LOPEZ SAEZ, Mª del C. (coords.), El cuerpo. Perspectivas filosóficas, o.c., pp. 243-262.

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    reflexão científica e filosófica, que em datas mais próximas têm contribuído para entender de forma nova o corpo e a corporalidade humana, assim como, de forma consequente, a intentar conhecer melhor a própria essência do ser humano.

    Em definitiva, a estrutura de minhas reflexões vai se centrar nestes aspectos:

    - A tomada de consciência de nossa inserção como espécie no processo evolutivo, cobrando maior densidade nossa condição de realidades corpóreas, aprofundando na consciência de nossa unidade biocultural, e colocando a questão de como conjugar o biológico e o cultural.

    - O novo posicionamento de nossa unidade psicossomática, desde uma nova filosofia da mente, advertindo como competem entre si diversas posturas ou teorias, destacando entre elas a proposta emergentista.

    - E como conclusão, a análise renovado da questão sobre a singularidade humana frente ao resto das espécies vivas, singularidade que se pôs em interdito desde a postura dominante do cientificismo reducionista.

    2. NOSSA INSERÇÃO NO PROCESSO EVOLUTIVO E A DENSIFICAÇÃO DE NOSSA CONDIÇÃO CORPÓREA

    Tanto na cultura judaico-cristã como na grega, à hora de afirmar e defender a essência do humano, sobre a base de sua densidade ontológica e de sua dignidade específica, defendeu-se sempre sua singularidade a partir de uma realidade espiritual que se situava mais além do corpóreo, seja a razão (logos), o nous, a alma, o espírito, etc.4 Independentemente do que se entendera por ser humano como realidade dual ou unitária, o corpo era visto como um componente secundário, de inferior categoria, em comparação com sua dimensão racional e espiritual. Basta ver as afirmações de Descartes: “A alma pela qual eu sou, é inteiramente distinta do corpo e até mais fácil de conhecer que este, e, ainda que o corpo não seja a alma não deixaria de ser quanto é.” 5

    O ser humano, à diferença dos demais animais, se entendia como possuidor de algum tipo de realidade ontológica que o distanciava e o elevava acima do resto da criação, e o diferenciava qualitativamente de tudo. É significativo que, durante a época medieval, o capítulo que reunia os estudos sobre os seres humanos se denominava De anima. O corpo era visto como algo acidental, e subordinado à

    4 Cfr. CANOBBIO, Giacomo, Sobre el alma. Más allá de mente y cerebro, Salamanca. Sígueme. 2010.

    5 El discurso del método, Madrid, Espasa-Calpe, 1976, p. 50.

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    condição transmundana e transcendente, tanto desde a concepção dualista como desde a unitária, como veremos mais adiante. Esta forma de ver o corpóreo não só se manteve ao longo da época medieval, mas que também também perdurou durante toda a modernidade, como pode se ver em Descartes, Malebranche, Leibniz e outros6.

    Somente mudatiam radicalmente estes posicionamentos na metade do século XIX com a aparição da teoria evolutiva, e sobretudo com as teses sobre a seleção natural de Ch. Darwin. Desde a modernidade renascentista, o homem mudou o enfoque de sua autocompreensão, passando de um ver-se a si mesmo, sobretudo e quase em exclusividade, desde a ótica do religioso e transcendente a um ver-se desde sua própria autonomia e valor específico, centrado cada vez mais em sua vida intramundana. No século XIX, o século das ciências humanas, o ser humano se descobriu mais arraigado, todavia à materialidade do mundano, lugar que tem, mal que lhe pese, de assumir que constitui uma espécie a mais, surgida do processo evolutivo, como consequência das leis naturais que regem o mundo da biosfera.

    Quando se combinam, já quase à metade do s. XX, as teses da seleção natural de Darwin com as da genética (seguindo Mendel e a seus redescobridores: de Vries e outros) 7, e se chega a articular a teoria sintética da evolução8, produz-se uma convicção quase generalizada de ter-se dado um giro definitivo à teoria dos homem e de ter chegado a compreender quase todos os mecanismos que conformam e explicam a realidade humana. A espécie humana se nos apresenta, portanto, como uma a mais, nascida dos suores e prós e contras da evolução, e reduzida a sua dimensão corporal, que tem que lutar para sobreviver e reproduzir-se no marco da biosfera. Esse é o único horizonte hermenêutico desde o que, segundo a perspectiva dominante, há que estudá-lo e compreendê-lo na atualidade.

    Na primeira onda desta concepção evolucionista, parece que se torna suficiente defender, seguindo os mecanismos da teoria sintética, que as leis da genética e da seleção natural regem a aparição das espécies, e a humana entre elas, assim como os diferentes traços morfológicos que a constituem. Agora, pois, estes posicionamentos, ainda que descartem todo tipo de atuação divina na aparição da espécie humana, parecem deixar, todavia, a salvo a nível mental, a dimensão racional e espiritual. E aí é onde podia refugiar-se, por assim dizer 6 Cfr. GEVAERT, J., El problema del hombre, Salamanca, Sígueme, 1976, pp. 79-82.7 BARAHONAA. Ana/AYALA, F.J., El siglo de los genes. Patrones de explicación genética. Madrid.

    Alianza, 2009.8 Cf BEORLIGUI. C., La singularidad de la especie umana. De la hominización. Bilbao, Universidad

    de Deusto, 2011, pp. 71-82.

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    de alguma maneira, a interpretação humanista e religiosa do ser humano, que tratava de conjugar as contribuições da ciência com a reflexão antropológica humanista e crente.

    Porém uma segunda onda evolucionista ou biologista se orientou mais adiante, a partir dos anos 70 do século passado, não só para defender a rígida relação entre o genótipo e o fenótipo no âmbito do morfológico, mas também no terreno dos mecanismos que estruturam o comportamento (isto é, a estrutura comportamental), tanto nos animais como nos humanos. É o que se propuseram, primeiro os pioneiros da etologia (Lorenz, Timbergem e seu discípulos: I. Eibl Eibesfeldt e outro s) 9, e mais recentemente, e de forma mais radical, os sociobiólogos (Hamilton, Wilson, Dawkins, R. Trivers, R. Alexander) 10

    seus continuadores, dentro da denominada Psicologia Evolucionista (L. Cosmides, J. Tooby, S. Pinker) 11. Não se trataria, portanto, de aceitar tão só que os dados biológicos e morfológicos que nos caracterizam (fenótipo) são o resultado e a expressão do desenvolvimento de nossa herança genética (genótipo, cariótipo), mas também que nosso comportamento estaria também ditado e controlado por nossos genes. Tudo estaria regido, no fundo, pela lógica do gene egoísta, que nos orienta e se explicita em todos os aspectos de nossa vida: desde aí, eles orientam e controlam a agressividade, até as relações intersexuais, paterno-filiais, e os mecanismos que explicam o “altruísmo”, segundo eles12.

    Em consequência, a lógica do gene egoísta (Dawkins) seria o motor que rege a evolução, puxada pela seleção natural; de tal forma que, em último termo, e depois de um complicado processo coevolutivo do genético e do cultural (se é que se pode falar de cultura, como campo diferente da biologia), somos o resultado de estratégias egoístas e complexas de nossos genes para sobreviver. Para os sociobiólogos, na realidade, nossos