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Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 1/20.2F1PDL.S1 Relator: NUNO GONÇALVES (RELATOR DE TURNO) Sessão: 27 Agosto 2021 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: NEGADO PROVIMENO. Sumário Texto Integral O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda: I. RELATÓRIO: a) a condenação: No Juízo Central Cível e Criminal ..... - Juiz .., mediante acusação do Ministério Publico, imputando-lhe a coautoria material de um crime de trá co de estupefacientes, agravado, p. e p. pelos arts. 21º n.º 1 e 24º al.ª s b) e c) do DL n.º 15/93 de 22/01, com referência às tabelas I -A, I-B e I-C, anexas ao mesmo diploma legal, foi a arguida (e outros): - AA, de 34 anos e os demais sinais dos autos, julgada e, por acórdão de 29 de janeiro de 2021: - absolvida do crime de trá co agravado; - condenada pela prática, em autoria material, de um crime de trá co de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº 1 do DL n.º 15/93, de 22 janeiro, na pena de 6 (seis) anos de prisão, O Tribunal coletivo decretou a perda em favor do Estado do numerário, da mala de porão, da mala pessoal e dos telemóveis, bem como a perda e destruição dos estupefacientes apreendidos. 2. o recurso: 1 / 43

Sumário Texto Integral

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Page 1: Sumário Texto Integral

Supremo Tribunal de JustiçaProcesso nº 1/20.2F1PDL.S1

Relator: NUNO GONÇALVES (RELATOR DE TURNO)Sessão: 27 Agosto 2021Votação: UNANIMIDADEMeio Processual: RECURSO PENALDecisão: NEGADO PROVIMENO.

Sumário

Texto Integral

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:

I. RELATÓRIO:

a) a condenação:

No Juízo Central Cível e Criminal ..... - Juiz .., mediante acusação do Ministério

Publico, imputando-lhe a coautoria material de um crime de tráfico de

estupefacientes, agravado, p. e p. pelos arts. 21º n.º 1 e 24º al.ªs b) e c) do DL

n.º 15/93 de 22/01, com referência às tabelas I -A, I-B e I-C, anexas ao mesmo

diploma legal, foi a arguida (e outros):

- AA, de 34 anos e os demais sinais dos autos, julgada e, por acórdão de 29 de

janeiro de 2021:

- absolvida do crime de tráfico agravado;

- condenada pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de

estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº 1 do DL n.º 15/93, de 22 janeiro, na

pena de 6 (seis) anos de prisão,

O Tribunal coletivo decretou a perda em favor do Estado do numerário, da

mala de porão, da mala pessoal e dos telemóveis, bem como a perda e

destruição dos estupefacientes apreendidos.

2. o recurso:

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Page 2: Sumário Texto Integral

A arguida, inconformada, recorre perante o Supremo Tribunal de Justiça.

Remata a alegação com as seguintes conclusões:

1. Nulidade de excesso de pronúncia: foi cometida no recorrido acórdão a

nulidade, tipificada no art. 379.º n.º 1 alínea c) do CPP.

2. em várias passagens, especificadas na motivação a pág. 2 a 5, a decisão

recorrida enumera situações que se não relacionam com os factos provados,

fazendo conjetura sobre provável viagem efetuada pela arguida a 9/09/2019,

fazendo alusão à natureza de um determinado bilhete de avião “possivelmente

relacionado com o regresso”, viagem não efetuada pela arguida,

3. Aludindo ao facto de a arguida se encontrar profissional e familiarmente

desinserida, que “a relação de tipo conjugal com o companheiro não se

mostrou suficientemente forte para mantê-la afastada do mundo da droga”,

que a colaboração da arguida foi cirúrgica, omitindo deliberadamente factos

(que o acórdão não concretiza), e que não alcançou qualquer resultado prático

expressivo para além daquele que “a arguida poderá ter equacionado como

vantajoso”, o que traduz mera conjetura.

4. Nulidade da busca efetuada ao telemóvel da arguida: – meio de prova

enganoso art.º 126.º n.º 2 alínea a) “in fine” do CPP – Violação do art.º 174.º

n.º 6 do CPP – Violação do art.º 16.º n.º 4 da Lei 109/2009. Não foi cumprida a

obrigação da validação da busca feita ao telemóvel da arguida, uma vez que

validada não foi pelo Juiz de Instrução, como manda o disposto no art.º 174.º

n.º 6 do CPP.

5. Que seria exigível atento o constante do art.º 16.º n.º 4 na Lei 109/2009. Foi

por isso cometida a nulidade insanável e insuprível, - por violação do citado

art.º 174.º n.º 6 do CPP e ainda por cair no capítulo das chamadas “provas

proibidas” (elencadas no art.º 126.º CPP) escapando ao “catálogo” das

predeterminadas nulidades expressamente previstas nos art.º 119.º e 120.º do

mesmo diploma legal.

6. Ao efetuar a busca ao telemóvel da arguida e ao não comunicá-la ao JIC, o

OPC atuou de modo enganoso, “esquecendo” uma obrigação tendente à

validação da busca o que constitui prova proibida prevista no art.º 126.º n.º 2

a) “in fine” do CPP.

7. Sendo declarada nula a apontada busca, as provas através desta obtidas

não têm qualquer valor (art.º 122.º n.º 1 do CPP).

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Page 3: Sumário Texto Integral

8. O douto acórdão deveria ter interpretado a norma constante do mencionado

art.º 174.º n.º 6 do CPP em conjunção com o disposto no art.º 16.º n.º 4 da Lei

109/2009 no sentido de não aceitar tal prova desse modo obtida por ser,

também ela, nula.

9. Da medida da pena - Violação do art.º 40.º n.º 2 e art.º 71.º 1 e 2 do CP:

A pena aplicada à recorrente mostra-se, pelas razões especificadas na

Motivação e os considerandos “supra” aduzidos, excessiva e desconforme

ultrapassando a medida da culpa – em violação do disposto no art.º 40.º n.º 2

do Código Penal, limite inultrapassável para qualquer condenação em matéria

criminal, pelo que a instância violou, por erro interpretativo, o disposto nos

arts.º 40.º n.º 2 e 71.º n.º 1 e 2 do CP.

10. Violação do art.º 31.º do DL 15/93 de 22 janeiro O comportamento

processual da recorrente – “maxime” a sua postura no decurso dos autos, com

especial relevância para a confissão abrangente (a ponto de outras pessoas

virem a ser detidas, constituídas arguidos e alvo de prisão preventiva), aliada

ao sincero arrependimento manifestado nas declarações lidas em audiência –

imporia considerar-se como “arrependida” capaz de beneficiar da norma do

art.º 31.º da Lei da Droga.

11. este preceito prevê comportamentos semelhantes aos mantidos pela

recorrente.

12. A sua vontade de colaborar com a Justiça traduziu-se na revelação de

nomes, identidades concretas e reais, situações e, até, reconhecimento de

residências.

13. auxiliou as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação

ou captura de outros responsáveis” precisamente uma das exigências contidas

no referido art.º 31.º da Lei 15/93 de 22 de Janeiro.

14. Ao não incluir a colaboração da arguida na invocada previsão, o acórdão

violou, por erro de interpretação, o citado normativo.

15. Deveria o douto acórdão considerar a colaboração como reunindo os

pressupostos de aplicação do citado art.º 31.º da Lei da Droga, condenando-se

a arguida em pena de prisão especialmente atenuada e não excedendo 3 anos

de prisão.

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16. num caso da dimensão humana deste jaez, mesmo que não existisse a

norma do art.º 31.º Da Lei da Droga, ainda assim a arguida deveria beneficiar

do regime de atenuação especial da pena, nos termos do disposto no art.º 72.º

n.º 1 do CP.

17. Da suspensão da pena de prisão: na determinação/gradação da medida da

pena, deve o Tribunal atender à conduta anterior do agente. No caso concreto,

a arguida, apesar de consumidora de drogas duras, sempre se manteve fiel ao

Direito, até ao cometimento do apontado tráfico, sendo isenta de condenações

criminais anteriores.

18. o instituto de suspensão se perfila como “um poder/dever” do julgador, de

indagar da possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável

para o futuro daquele que delinquiu.

19. Como entende a Jurisprudência, a suspensão da execução da pena de

prisão não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e

reeducativa, com vista à realização das finalidades da punição, isto é, da

proteção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art.º

40.º n.º 1 do Código Penal).

20. A arguida não tem antecedente penais ou processuais criminais

pendentes. O que deve significar que este terá sido um acto esporádico no seu

percurso de vida.

22. “In casu”, a formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao

comportamento futuro da arguida resulta da sua conduta anterior e as

provações porque tem passado. A censura do facto e a ameaça do

cumprimento da pena de prisão se mostrariam suficientes para afastá-la da

criminalidade.

24. “a capacidade de do arguido se ressocializar em liberdade” é quase um

pressuposto na filosofia do nosso Direito Penal, onde a matriz cristã impera e

onde a reintegração do agente na sociedade é ela própria, elemento

preponderante dos fins das penas.

25. Ao condenar a recorrente em pesada pena de prisão, o recorrido acórdão

violou, por erro de interpretação, quer o disposto no art.º 40.º n.º 2 e 71º n.º 1

e 2 do CP, quer o disposto no art.º 31.º do DL 15/93 de 22 de Janeiro, quer

ainda o disposto no art.º 50.º n.º 1 e 53.º (Regime de Prova) – do Código Penal.

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Page 5: Sumário Texto Integral

Peticiona a redução da pena, pretendendo ser condenada em 3 anos de prisão

com execução suspensa.

3. resposta do Ministério Público:

O Procurador da República no tribunal recorrido respondeu, pugnando pelo

improvimento do recurso e a confirmação da condenação.

4. parecer do Ministério Público:

O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, pronuncia-se,

doutamente, pela improcedência do recurso, argumentando (em síntese):

A nulidade da sentença por excesso de pronúncia, ocorre quando o

tribunal se debruça sobre questão de que não podia conhecer («ne procedat

judex ex officio»). O tribunal, deve emitir pronúncia sobre todos as questões

relevantes, compreendidas no objecto do processo, que constem da acusação/

pronúncia, contestação, e bem assim resultantes da discussão contraditória da

causa.

A leitura do narrado no ponto 9, da acusação pública, permite verificar qua aí

se indicam pelo menos doze viagens efectuadas pela recorrente AA, desde

data não apurada do ano de 2017 a 1 de Fevereiro de 2020, realizadas entre

….. e ............, pelo que, a não pronúncia sobre as mesmas é que constituiria

um vício da sentença, o de omissão de pronúncia, com assento no art.º 379º, n

º 1, alínea c) primeira parte, do Código de Processo Penal.

Como resulta do acórdão, foram apreendidos à recorrente à chegada em 2 de

Fevereiro de 2020, ao aeroporto …, em ......., três telemóveis. Como a própria

reconhece na motivação, as pesquisas de que resultaram as apreensões (prova

digital) foram antecedidas do seu consentimento voluntário, prestado à PJ

(de resto, quer nos documentos referidos no despacho de aplicação de medida

de coacção, datado de 3 de Fevereiro de 2020, onde consta a referência a «

termos de consentimento de fls.7e 9», quer na acusação pública, na indicação

da prova, sob E) - prova documental.

Temos assim, que é ponto assente que pesquisa e apreensão de dados

informáticos dos telemóveis da recorrente, foi feita com o consentimento

voluntário e expresso, reduzido a escrito, daquela que era a titular do seu

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conteúdo. Acresce que nos termos do n º 3, alínea a), do art.º 15º, n º

109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), era lícito à Polícia

Judiciária, independentemente, de prévia autorização de autoridade judiciária,

para tal, proceder à pesquisa de dados informáticos.

In casu tais dados eram constituídos por (vídeos, fotografias, chat no Facebook

e SMS) inscritos e operando através de sistema informático, pertencentes à

arguida/recorrente. No domínio da prova digital, a coexistência do CPP, da

Lei n º 32/2008, de 17 de Julho, e da Lei n º 109/2009, de 15 de Setembro,

com origem na transposição da Decisão Quadro n º 2005/222/JAI, do Conselho,

de 24 de Fevereiro, veio dar origem a um intrincado complexo normativo com

áreas de sobreposição, tornando, por vezes, tarefa difícil a sua hermenêutica.

Aqui, radicarão, as diversas correntes interpretativas do regime em causa,

como aliás vários obras sobre a matéria tem salientado, e a jurisprudência na

sua diversidade, reflecte (…).

Haver-se-á, a nosso ver, que concluir que o modus operandi seguido no caso

vertente, não releva de qualquer desconformidade processual e muito menos

de prova proibida.

Da alegada violação do art.º 31º do DL n º 15/93, de 22 de Janeiro e da

medida da pena:

Sob a epígrafe Atenuação ou dispensa de pena, dispõe o invocado preceito:

“Se, nos casos previstos nos artigos 21º, 22 º, 23º, e 28º, o agente abandonar

voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir por forma

considerável o perigo produzido pela sua conduta, impedir ou se esforçar

seriamente por impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique, ou

auxiliar concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a

identificação ou captura de outros responsáveis, particularmente tratando-se

de grupos, organizações ou associações, pode a pena ser-lhe especialmente

atenuada ou ter lugar a dispensa de pena.”

A jurisprudência tem vindo a acentuar que o inciso supratranscrito não é de

aplicação automática não prescindindo de uma ponderação casuística, em

ordem a aferir, in concreto se é ou não caso que releve da sua aplicação.

O Tribunal Colectivo, pronunciou-se sobre a colaboração da recorrente,

consignando, na individualização da medida da pena:

“§12.5 Pese embora a arguida tenha prestado alguma colaboração com a

Polícia Judiciária em sede de inquérito como a testemunha BB deu nota, não

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foi de molde à responsabilização dos demais co-arguidos (relativamente aos

quais, de resto, não resultou provado o envolvimento na rede, sem prejuízo,

naturalmente, de as diligências de investigação lhe serem totalmente alheia).

Ademais tal colaboração, foi surgindo a «conta-gotas» (conforme mencionou a

citada testemunha) e iniciou-se numa altura em que, cronologicamente, já não

era possível orquestrar a «entrega vigiada» ao transporte de 1de Fevereiro de

2020. Por seu turno, tal colaboração foi cirúrgica naquilo que a arguida AA

pretendeu dizer e naquilo que deliberadamente pretendeu omitir (basta

compaginar as declarações prestadas em sede de 1º interrogatório de arguido

detido, comas demais «démarches» do inquérito, não tendo alcançado

qualquer resultado prático e expressivo para além daquilo que poderá ter

equacionado como vantajoso no contexto do seu estatuto coactivo, E tal

apenas surgiu, sublinhamos, por ter sido “apanhada” na traficância e não

podendo escapar, à sua responsabilidade, e não por hipótese, anterior e

espontaneamente, no contexto de qualquer rebate de consciência relativos aos

três transportes de droga anteriores (aí sim, como genuinamente, podia).

Deste modo e sem deixar de relevar para a determinação concreta da pena,

não se configura de molde à atenuação especial da pena, a que alude o art.º

31º do citado diploma, tal como pugnou nas suas alegações finais.” Itálico

introduzido no texto.

Ou seja, a «colaboração» da arguida/recorrente, não foi espontânea,

reveladora de arrependimento, mas surge, no contexto da sua detenção em

flagrante delito, e foi de tal modo faseada no tempo que impediu a PJ de

seguir o estupefaciente transportado para ...... até ao seu destino, o que

provocaria, naturalmente, diverso resultado final da investigação. Anote-se

que, no momento crucial que é da discussão ampla e contraditória da causa,

isto é na audiência de julgamento, a recorrente «entrou muda e saiu calada»,

como é seu direito.

Vista a matéria de facto provada, temos que a recorrente cometeu em autoria

material um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n º 1, do

DL n º 15 /93, de 22 de Janeiro, com referência as suas tabelas anexas I-B

(cocaína) e I-C, a que corresponde em sede de moldura penal abstracta pena

de prisão de 4 a 12 anos. O Tribunal Colectivo, como se vê da decisão , em

conformidade com o art.71º, n º 1 do CP, partindo do binómio culpa/

prevenção, e ponderando também os itens do n º 2 do referido inciso penal,

teve em conta a provada actuação da arguida enquanto «correio de droga», os

estupefacientes apreendidos em 2 de Fevereiro de 2020, a sua natureza e

quantidade, aplicou à arguida pena de seis (06) anos de prisão, quantum que

se nos afigura respeitar aquele mínimo penal ainda adequado a satisfazer as

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necessidades de prevenção geral, sem ultrapassar o que a culpa consente.

5. contraditório:

Observado o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, a arguida nada disse.

«»

Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

II - OBJETO DO RECURSO:

São as seguintes as questões para julgar:

- nulidade por alega omissão de pronúncia;

- nulidade da “busca” de dados armazenados no telemóvel

- prova eletrónica;

- atenuação especial - colaboração;

- medida da pena;

III – FUNDAMENTAÇÃO:

1. os factos:

O Tribunal coletivo julgou provados os seguintes factos: (respeitantes à

recorrente):

I. Da acusação pública

1. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, em 06.09.2019 e em

06.01.2020, a arguida AA, a mando e por conta de terceiros, viajou do

aeroporto ......., em ... ao aeroporto ........, em ........, transportando consigo, em

cada uma dessas ocasiões, haxixe em quantidades não concretamente

apuradas mas próximas de 6Kg., destinado a terceiros nesta ilha ......, ocasiões

em que combinava com estes as entregas, deles recebendo a quantia

monetária que deveria ser entregue aos terceiros da proveniência.

2. No dia 01.02.2020, a arguida AA transportava na mala/ bagagem de porão,

canabis-resina com o peso líquido de 5.887,242 gramas, suscetível de ser

dividida em 24.255 doses diárias individuais, e cocaína com o peso líquido de

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111,40 gramas, que poderia ser dividida em 325 doses diárias individuais,

produto esse destinado a ser entregue a terceiros, o que apenas não sucedeu

pois veio a ser detida pela Policia Judiciária na madrugada do dia seguinte, no

aeroporto ......., em ...... .

3. No dia 02.02.2020, pelas 1:05h., no aeroporto .........., em ........., a arguida

AA tinha os seguintes objetos na bagagem de mão: (i) um cartão de embarque

da Sata Azores Airlines relativo a uma viagem ,,,,,/ ............; (ii) um cartão com

a denominação Lisboa Viva, titulado por CC; (iii) um cartão com a

denominação Lisboa Viva, titulado por DD; (iv) um telemóvel da marca

Samsung, modelo Duos, com os IMEI …7/0 e ……….7/8; (v) um telemóvel da

marca Wiko com os IMEI …69 e ………..62; (vi) um telemóvel da marca

Samsung com os IMEI …17 e …17; (vii) seis notas no BCE com o valor facial

de € 20,00, perfazendo o montante total de € 120,00, por conta da realização

do transporte.

9. A arguida AA tinha perfeito conhecimento de que os produtos que deteve

são considerados, pela sua composição, natureza, características e efeitos,

substâncias estupefaciente/psicotrópica, e como tal, que toda a atividade

relacionada com ela, designadamente a detenção e o transporte lhe estava

vedada, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que

a sua conduta era proibida e punida por Lei.

II. Mais se provou, das condições pessoais da arguida AA e a sua

situação económica e das condutas anteriores aos factos

À data dos factos, e desde o verão de 2019, a arguida AA residia com um

companheiro num quarto tomado de arrendamento em ......., com o qual

mantém o contacto. A arguida tem uma filha fruto de um relacionamento

afetivo na sua adolescência, presentemente com 17 anos de idade, a qual se

encontra institucionalizada, e tem um filho fruto de uma relação amorosa que

durou cerca de seis anos, presentemente com 9 anos de idade, o qual reside

com o progenitor. Interrompeu processo de escolarização em Cabo Verde

quando da gravidez, ocasião em que emigrou para Portugal, onde residia a sua

progenitora. No ano letivo de 2012/2013 frequentou um curso de formação

profissional de cozinha, pastelaria e bar que lhe deu equivalência ao 9º ano de

escolaridade. Trabalhou pontualmente desde os 17 anos de idade. À data dos

factos estava desempregada. Iniciou o consumo de substâncias

estupefacientes em finais de 2016 e, desde então, o seu percurso de vida foi

determinado pela adição, tendo integrado grupos de pares conotados com o

consumo e a comercialização de substâncias ilícitas. Em dezembro de 2019

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Page 10: Sumário Texto Integral

iniciou um acompanhamento terapêutico no CAT ....., tendo mantido, no

entanto, os consumos de cocaína, o que somente terminou com o início da

medida de coação aplicada nos autos. Mantém o acompanhamento terapêutico

na referida unidade de saúde. Tem cumprido a medida de coação vigente sem

incidentes. Nada consta do seu certificado do registo criminal.

2. o direito:

a) do excesso de pronúncia

A recorrente argui a nulidade do acórdão recorrido imputando-lhe excesso de

pronúncia, por, em seu entender, conjeturar, na fundamentação, “sobre

provável viagem” em 9/09/2019, aludindo a um bilhete de avião «

possivelmente relacionado com o regresso», sem que conste dos factos

provados.

E também por conjeturar que a sua colaboração “foi cirúrgica, omitindo

deliberadamente factos (que o acórdão não concretiza), e que não alcançou

qualquer resultado pratico expressivo para além daquele que “a arguida

poderá ter equacionado como vantajoso”.

Estabelece o art. 379º n.º 1 al.ª c) do CPP que é nula a sentença quando o

tribunal “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Formula legal que consagra a nulidade da sentença ou acórdão por excesso de

pronúncia. Proíbe-se assim que o objeto do processo seja alargado

unilateralmente, agravando a sua responsabilidade penal, apenas na decisão

final do tribunal, obstando a que arguido possa ver-se confrontado com factos

ou crimes de que não vinha acusado ou pronunciado, nem pôde

satisfatoriamente defender-se, por falta de conhecimento atempado.

Excesso de pronúncia ocorre, então, quando a sentença extravasa a vinculação

temática do tribunal, estabelecida pela acusação ou pronúncia, pela

contestação e por questões de conhecimento oficioso convocadas pelos thema

probandum e decidendum. Se o Tribunal tem de conhecer e decidir sobre

todos os factos que conformam o objeto do processo, não pode conhecer de

factos diversos dos imputados ao arguido ou que este tenha alegado na defesa,

contanto intercedam diretamente como os factos de que vem acusado.

Na jurisprudência do STJ, “excesso de pronúncia significa que o Tribunal

conheceu de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não

compreendida no objeto” do processo. “O conhecimento proibido é o que

resulte de decisão não compreendida”[1] pelas concretas questões de facto e

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Page 11: Sumário Texto Integral

de direito submetidas a julgamento.

Assente nesta interpretação, adianta-se que a argumentação da recorrente é

manifestamente infundada.

No acórdão recorrido, da facticidade assente constam 4 viagens aéreas da

arguida para ....... transportando estupefaciente/s: uma em data não

concretamente apurada do ano de 2017; outra em 06.09.2019; outra em

06.01.2020 e a última em 01.02.2020.

Da alínea h) da decisão em matéria de facto consta que o tribunal julgou

não provado que a arguida efetuou, “entre outras, viagens ocorridas em

12.02.2018, 12.06.2018, 07.11.2018, 29.12.2018, 29.01.2019, 16.04.2019,

28.06.2019, 10.08.2019 e 23.11.2019 – , transportando consigo, em cada uma

dessas ocasiões, cerca de 6 kgs de canabis-resina e/ou pelo menos 120 gramas

de cocaína e/ou heroína”.

Estas – como as que o tribunal julgou provadas - eram viagens que a

acusação do Ministério Público imputava à arguida, nas quais teria

transportando estupefacientes entre o continente e ...... Isto é, imputando-lhe

em cada uma, concretos e especificados atos de tráfico na modalidade

denominada por «correio de drogas».

Incontestavelmente que a recorrente não visa a decisão da facticidade julgada

provada e não provada. Reporta-se, claramente, ao § 4 da motivação da

decisão da matéria de facto na parte em que do mesmo consta: “de todas

estas mencionadas viagens – dez, no total, excluindo as viagens de 2017 e de

01.02.2020 – é possível estabelecer, com segurança, a ligação ao transporte de

dinheiro (e, com isto, presumidamente ao transporte de droga a montante,

conforme o modus operandi descrito pela arguida) em duas dessas ocasiões,

atento o vídeo e as imagens de 07.01.2020 (fls. 192 e 193), onde a arguida

também surge, e de 09.09.2019, onde se veem garrafas de licores típicos e

produzidos na ilha, e que, num caso e noutro, evidenciam uma quantidade

avultada de dinheiro, precisamente nas cit. datas em que se encontrava em

..........”.

É certo que da acusação não consta que a arguida tenha efetuado, em

09.09.2019. viagem aérea para ............, transportando estupefacientes.

Imputou-lhe e resultou provado no acórdão recorrido ter efetuado viagem área

…….-............ em 06.09.2019.

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Page 12: Sumário Texto Integral

Como justificar então que, não constando da acusação nem da facticidade

provada (e não provada), na motivação da decisão da matéria de facto se dê

como assente ter viajado no dia 09.09.2019, “presumidamente” transportando

“droga”?

Explica-se por duas razões: ---------------------

- a primeira, porque a motivação da decisão da matéria de facto não foi tão

clara e explicita quanto se lhe exigia. Embora deixe implícito que essa viagem

da arguida em 09.09.2019, foi de regresso ao continente, porque tem outra “a

montante” (e, complementarmente, porque aparece nas imagens e vídeos com

“garrafas de licores típicos e outros produtos da ilha”), deveria ter completado

a exposição do raciocínio lógico subjacente, esclarecendo que a viagem de ida,

efetuada entre …. e ........, foi, - só poderia ter sido - a realizada três dias antes,

em 6.09.2029, na qual a arguida transportou estupefacientes para a ilha de

....... (conforme consta dos factos provados);

- a segunda, pela leitura truncada daquele trecho da motivação da decisão

recorrida que a recorrente propositadamente faz, olvidando-se da ali

mencionada viagem “a montante” para poder invocar excesso de pronúncia,

com o fundamento que aduz em primeiro lugar (em síntese: que da acusação

não consta viagem de ida a 09.09.2019).

Se o Tribunal poderia ter sido mais explicito, enunciando claramente que a

viagem daquele dia 9 foi regresso a ….., assim completando o percurso de ida

e volta, na qual a ida tinha sido dia 6 (três dias antes), certo é que a

recorrente compreendeu bem que subjacente ao expressado no acórdão

recorrido está o raciocínio lógico assente na consideração de que nessa

viagem a “montante”, transportou estupefacientes para .... .

De qualquer modo, mesmo na leitura sincopada da recorrente, a haver algum

defeito, não seria, certamente, a nulidade da decisão recorrida por excesso de

pronúncia, porque o tribunal não julgou provado que em tal viagem a arguida

tivesse transportado estupefacientes. Essa viagem e, sobretudo, os artigos que

a arguida trazia (no regresso ao continente), evidenciando possuir “uma

quantidade avultada de dinheiro”, levaram ou coadjuvaram o tribunal coletivo

a convencer-se que na viagem “a montante” – a efetuada em 06.09.2019 –

tinha transportado estupefacientes para ............. Em outro registo, aquela

viagem e, sobremaneira, os licores e produtos da ilha que nela trazia (no

regresso), - sendo, evidentemente, factos -, serviram aqui de prova indireta ou

indiciária para, num raciocínio logicamente razoável, concluir que a arguida

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tinha, com a mesma, conseguido montante monetário avultado, proveniente do

serviço de «correio de droga» levado a cabo na viagem de ida (a tal a

montante), realizada no terceiro dia antecedente, em dia 6.09.2019.

Não se está, pois, perante factos que tenham sido acrescentados pelo tribunal

ao objeto do processo definido pela acusação. A arguida não foi condenada por

transportar estupefacientes na viagem de regresso ...... -….. realizada em

09.09.2019. São factos meramente probatórios que influíram, sobremaneira,

na formação da convicção do tribunal, motivando a decisão de julgar provado

que a arguida, na viagem de ida, entre ….. e ......, havida em 6 de setembro de

2019, transportou estupefacientes.

Facto meramente probatório e objeto do processo, são entidades

juridicamente distintas. Quanto ao objeto do processo já se disse o suficiente.

A prova, de qualquer espécie, visa demonstrar – ou infirmar – o objeto do

processo, isto é, os factos que integram os elementos constitutivos de um

crime e os pressupostos da responsabilidade do agente.

Deste modo, com mais ou menos explicitação da decisão relativamente à prova

ou à afirmação de que se comprovaram as viagens efetivamente efetuadas

pela arguida para ....., umas sem transportar estupefaciente e outras levando-o

nos termos descritos na matéria de facto assente, é incontestável que o

acórdão recorrido não alargou o objeto do processo. Na viagem aérea de

9.09.2019, a que se refere a recorrente, de volta ao continente, não se julgou

provado que a arguida tenha transportado estupefacientes. Ou seja, da

realização dessa viagem - que não consta dos factos julgados provados (nem

dos julgados não provados), mas que na motivação da decisão em matéria de

facto se conclui ter sido efetuada -, não se extraíram quaisquer consequências

jurídicas para a responsabilização e punição da arguida. Serviu simplesmente

de dado de facto que influiu na formação da convicção do tribunal. Pelo que a

questão colocada pela recorrente só poderia dilucidar-se no âmbito da

validade (em sentido amplo) da prova e não, apropriadamente, em termos de

excesso de pronúncia.

Quanto ao outro segmento desta parte da argumentação da recorrente –

respeitante à avaliação da extensão e sinceridade da confissão -, não se

compreende em que se poderia consubstanciar excesso de pronúncia. Neste

aspeto a recorrente, questiona o exame crítico efetuado pelo Tribunal

enunciado no §12.5 da motivação da decisão recorrida, na qual se

fundamenta a escolha e medida da pena. A recorrente não ignora, certamente,

que a valoração das suas declarações, que não foram prestadas na audiência

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de julgamento nos termos do art. 344º n.º 2 do CPP, estão submetidas ao

regime de valoração probatório consagrado no art.º 127º do mesmo Código.

Outro tanto sucede com a valoração da postura processual que decidiu

assumir e manter. Pelo que, nada adiante pretender aqui, em recurso restrito

à matéria de direito, sobrepor a sua própria e interessada avaliação das

próprias declarações e da conduta assumida na audiência, ao juízo que desses

mesmos elementos de prova efetuou o tribunal. A discordância da convicção e

da avaliação não tem cobertura na norma processual penal convocada pela

arguida, nem pode fundamentar recurso perante o STJ.

Não enferma, pois, o acórdão recorrido da arguida nulidade por excesso de

pronúncia.

Assim, por infundada, improcede esta pretensão da recorrente.

b) da nulidade (da prova informática):

i. argumentação da recorrente:

A recorrente argui a nulidade – que qualifica “insanável e insuprível” - da

busca efetuada ao telemóvel que lhe foi apreendido, sem que tenha sido

observado o disposto nos arts. 174.º n.º 6 do CPP e 16.º n.º 4 da Lei 109/2009,

ainda que radicando em não ter sido validada por juiz de instrução.

Argumenta que a valoração, pelo tribunal de julgamento, dos dados assim

obtidos, traduziu-se na utilização de prova proibida, catalogada “no art.º 126º

n.º 2 a), in fine, do CPP.”.

Em síntese, questiona a admissibilidade da prova obtida na pesquisa efetuada

nos telemóveis que lhe foram apreendidos, insurgindo-se, não diretamente

contra a pesquisa – porque livremente consentida -, mas em razão da não

sujeição da apreensão dos dados assim obtidos a validação pelo juiz de

instrução.

A solução para o caso tem como pressuposto incontornável, o consentimento

da arguida, livre e documentado, na pesquisa e, concomitantemente, não

configurar uma situação de violação – intolerável e desproporcionada – de

direitos fundamentais catalogados na norma do n.º 8 do art. 32º da

Constituição da República.

Todavia, se bem que não tratadas autonomamente pela recorrente, são duas e

diversas as questões suscitadas:

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- a primeira, consistente na validade da pesquisa (que a recorrente qualifica,

impropriamente, de “busca”) nos seus telemóveis;

- a segunda, centrada na validação da apreensão, comportando três vertentes

distintas consistentes em: determinar:

- qual a autoridade judiciaria competente para validar a apreensão efetuada

pelo OPC;

. saber se a validação pode ocorrer tacitamente;

- as consequências processuais da não validação da apreensão.

ii. na decisão recorrida:

O acórdão recorrido, apreciando e decidindo a arguição da nulidade,

considerou tratar-se da apreensão de dados “inscritos e operando através de

sistemas informáticos”, submetidos à disciplina da Lei do Cibercrime.

Constatou que “as buscas foram consentidas” pela arguida, sendo, por isso,

legais, assim como a apreensão dos telemóveis e a pesquisa de “dados

informáticos - no caso, vídeos, fotografias, chat no facebook e sms” -, que

armazenavam. Expendendo que “embora devessem ter sido sujeitas a

validação pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas (…), o que,

(…), não teve lugar”, conclui tratar-se de “inobservância de formalidade legal

”, considerando ser vício gerador de mera irregularidade, que ficou sanada

por não ter sido tempestivamente deduzida.

Resultado – que não o entendimento subjacente - que, embora carecendo de

aperfeiçoamento terminológico, imposto pelo regime processual especial

aplicável. no essencial, - ademais de encontrar apoio jurisprudencial -, se tem

por fundado, mas, com a correção de a invalidade resultante da não validação

da apreensão dos dados informáticos em causa configurar a nulidade

cominada no art. 120º n.º 2 al.ª c) do CPP e não, portanto, mera

irregularidade. Todavia, a conclusão no caso é a mesma, tendo resultado

sanada por não arguição tempestiva – cfr. art.º 120º n.º 3 al.ª c) do CPP.

Vejamos:

iii. regime processual especial:

Assinala-se que o próprio legislador entendeu por bem advertir expressamente

que “as leis modernas têm que tratar de forma adequada as novas realidades

criminógenas, incriminando-as e dotando as entidades competentes das

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Page 16: Sumário Texto Integral

ferramentas necessárias à sua investigação e julgamento”. Por isso, “a

adopção, para a investigação de crimes informáticos, de medidas processuais

especiais, significa necessariamente uma compressão das liberdades dos

cidadãos no ciberespaço”[2].

Como entendeu, corretamente, o Tribunal recorrido, o procedimento da

pesquisa e da apreensão de dados armazenados nos telemóveis da arguida é

especialmente regulado pela Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro, doravante

Lei do Cibercrime. Pelo que, a situação concreta em apreço rege-se pelo

disposto nas seguintes normas legais (que, de passo, vamos comparando com

o regime adjetivo penal geral):

- art. 11º n.º 1 al.ª c) – porque o crime em investigação e pelo qual a arguida

vem condenada, - tráfico de estupefacientes, cometido na modalidade

habitualmente designada por «correio de droga» -, demandava que se

procedesse à pesquisa e recolha de prova em suporte eletrónico,

concretamente em dados armazenados nos telemóveis (três) que lhe foram

apreendidos;

- art. 15.º n.ºs 1 e 3 al.ª a) – na parte em que estabelece (sublinha-se para

realçar): “quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de

prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos

específicos e determinados, armazenados num determinado sistema

informático”, “o órgão de polícia criminal pode proceder à pesquisa, sem

prévia autorização da autoridade judiciária, quando a mesma for

voluntariamente consentida por quem tiver a disponibilidade ou controlo

desses dados, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma,

documentado – e n.º 6 – que manda aplicar à pesquisa, “com as necessárias

adaptações, as regras de execução das buscas previstas no Código de

Processo Penal” (pautadas nos arts. 176º e 177º);

- art. 16.º n.º 2 – na parte que dispõe: “quando, no decurso de uma pesquisa

informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem

encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de

prova, tendo em vista a descoberta da verdade” “o órgão de polícia criminal

pode efetuar apreensões, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no

decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos

termos do artigo anterior” – e n.º 4 – estatuindo “as apreensões efetuadas por

órgão de polícia criminal são sempre sujeitas a validação pela autoridade

judiciária, no prazo máximo de 72 horas”; e

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- art. 17º, dispondo: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou

outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados,

armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o

acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou

registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou

ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande

interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se

correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no

Código de Processo Penal” - nos arts. 179º e 252º.

iv. pesquisa consentida:

Na hermenêutica jurídica do regime processual especial – cfr. art.º 1º -, da Lei

do Cibercrime, bem assim como na sua própria expressão normativa, a

tradicional busca (de coisas, objetos ou animais relacionados com o crime, do

arguido ou de outras pessoas – art.º 174º n.º 2) do regime adjetivo penal geral,

foi adaptada[3], dando lugar ao instituto etimologicamente mais adequado,

mas também mais expedito, que em terminologia cibernética se identifica por

pesquisa em sistemas informáticos da representação de factos, informações

ou conceitos sob uma forma suscetível de processamento naqueles sistemas,

incluindo os programas aptos a faze-lo executar uma função. Pesquisa que

mais não é que procurar de dados, específicos e determinados, armazenados

num sistema informático.

No que releva para a economia da questão sub judicio, a referida pesquisa

(não, portanto, “busca”), quando livremente consentida, - consentimento

necessariamente documentado - por quem for o titular ou tiver a

disponibilidade ou controlo desses dados, pode ser efetuada por OPC, não

carecendo de autorização da autoridade judiciária. À semelhança, aliás, da

busca do regime processual comum, conforme estatuem os art.º 174º n.º 5 al.ª

b), 177º n.º 3 al.ª a) e 251º n.º 1, do CPP. Assim, sempre que seja necessária à

produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, pode o OPC,

obtido consentimento livre - com registo documentado -, de quem tem o

respetivo domínio ou disponibilidade, pesquisar dados específicos e

determinados armazenados no correspondente suporte informático (incluindo

dispositivos como os telemóveis)[4]. Como sucedeu no caso dos autos. O

consentimento na pesquisa dispensa, salvo disposição em contrário, o controlo

e validação posterior da autoridade judiciária, porque, nessas circunstâncias,

a intromissão na privacidade ou na correspondência do titular dos

correspondentes direitos fundamentais não é abusiva. Não é diverso o regime

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processual comum – art.º 174º n.º n.º 5 al.ª b) e n.º 6 (este à contrário) do

CPP.

A pesquisa consentida não dispensa a elaboração de relatório com a menção,

resumida, das pesquisas levadas a cabo, dos resultados obtidos, com a

descrição dos factos apurados e a indicação das provas recolhidas – art. 15º

n.º 4 al.ª b) da Lei do Cibercrime – e o seu envio à autoridade judiciária

competente. Igual procedimento se prescreve para a busca prevista no CPP –

cfr art. 253º n.º 1 do CPP.

A circunstância de o crime em investigação se incluir no catálogo do art.º 15

n.º 4 al.ª b) da Lei do Cibercrime – no caso criminalidade altamente

organizada -, não exclui o consentimento voluntário na pesquisa de dados

informáticos. E, consequentemente, não convoca a aplicação do regime

consagrado no art.º 15º n.º 4 al.ª a) da lei do Cibercrime. Este regime opera

apenas quando a pesquisa não seja consentida e não tenha sido previamente

autorizada pela autoridade judiciária competente.

Se à pesquisa não consentida de dados informáticos armazenados se aplicam

as regras de execução das buscas previstas no CPP, não assim os requisitos.

Os pressupostos da pesquisa de dados informáticos estão vertidos no art.º 11º

n.º 1 e 15º n.º 1 da Lei do Cibercrime.

No caso, a pesquisa de dados, efetuada pelo OPC nos telemóveis da arguida,

porque consentida pela própria (mediante consentimento documentado por

escrito), foi licitamente executada, não padecendo de qualquer invalidade ou

irregularidade.

O facto de se tratar de chats[5] e sms[6], em suma, de comunicações

eletrónicas (que podem incluir textos, imagens, vídeos, áudios, etc.) não obsta

a que o respetivo emissor ou o destinatário, conforme for o caso, consinta,

livremente, na respetiva pesquisa. Nada alterando porque, conforme

brevemente sinaliza o acórdão recorrido, não se trata da interceção de

comunicações que estão ou vão efetuar-se ou de correio eletrónico expedido,

mas ainda não aberto.

Sem olvidar o consentimento, nota-se que as comunicações eletrónicas são

praticamente instantâneas. Logo que redigidas e editadas ou enviadas ficam

imediatamente armazenadas no sistema informático operativo utilizado

(fornecido pelo servidor) e logo colocadas – e assim recebidas - no endereço

eletrónico do utilizador a quem se dirigem. Abrindo o destinatário o sistema

respetivo, ficam imediatamente visíveis, audíveis ou legíveis. Acresce que as

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conversações e publicações em redes sociais são, por regra, públicas porque

imediatamente acessíveis a um número mais ou menos amplo de

frequentadores (sendo esse, por norma, o seu próprio objetivo).

Conforme sustenta Santos Cabral “há uma diferença fundamental entre

intromissão nas telecomunicações, a que se destinam os artigos 188º e 189º e

o acesso a documentos que estão gravados em computadores e outros meios

digitais”. Citando Costa Andrade, expende “a tutela jurídica das

comunicações radica na «especifica situação de perigo criada no facto de a

comunicação estar exposta ao domínio e à heteronomia de um sistema de

telecomunicações (…). Assim, quando a mensagem comunicacional atinge a

esfera de domínio do destinatário, este deixa de estar na mencionada situação

de perigo (…)». Neste momento, no caso de comunicações eletrónicas, «o

destinatário passa a dispor de meios de autotutela (…)». Significa o exposto

que a equiparação de regimes se fundamenta no processo de comunicação à

distância, pelo que a mesma deve subsistir até ao momento em que a

mensagem é recebida e lida pelo destinatário. Quando o e-mail já foi recebido,

lido e guardado no computador do destinatário, deixa automaticamente de

poder ser entendido como telecomunicação, «passando a valer como um

normal escrito», estando assim sujeito ao regime de qualquer ficheiro

produzido e arquivado no computador (…)[7].

Concluindo: “estamos em crer que a interpretação mais adequada do

normativo em causa, e justificada pela sua razão teleológica, implica a

conclusão de que, em relação à comunicação eletrónica que foi aberta, (…)

entende-se que toda a correspondência já aberta pelo seu destinatário passa a

ter a natureza de documento (…)[8].

No caso, a pesquisa nos telemóveis apreendidos à arguida foi livremente

consentida pela própria e não vem alegado nem demonstrado que os dados

eletrónicos pesquisados pelo OPC não tivessem sido, anteriormente, expedidos

(os que a própria enviou, independentemente de terem ou não sido recebidos

pelos destinatários), abertos e lidos. Nada há, pois, a apontar à referida

pesquisa assim consentida.

Certamente percebendo que assim sucede, a recorrente alega a invalidade da

apreensão, com fundamento na não validação pelo juiz de instrução.

v. da apreensão de dados:

Rememora-se que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII

(que esteve na base da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, que alterou o CPP),

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justificou-se a alteração do “regime de apreensões, enquanto meio de

obtenção de prova (…) tendo em vista, por um lado, uma maior eficiência no

combate do crime e, por outro lado, a necessidade de reforçar a tutela do

direito de propriedade enquanto direito fundamental. Embora sem pôr em

causa a sua natureza, permite-se que a medida possa ser levada a efeito por

órgãos de polícia criminal no decurso de revistas ou buscas ou em caso de

urgência ou perigo na demora, conferindo, por esta forma, maior

exequibilidade às medidas de polícia; porém, exige-se, neste caso, a sua

validação por autoridade judiciária, no prazo de setenta e duas horas”.

No regime processual especial da Lei do Cibercrime, o OPC pode, no decurso

de pesquisa informática, legitimamente executada, - designadamente

mediante consentimento voluntário documentado -, apreender para os autos

dados ou documentos informáticos, em suma, prova eletrónica necessária à

demonstração de um crime e do seu agente, também sem prévia autorização

da autoridade judiciária – art. 16º n.º 2. Quando assim suceder, o OPC tem

sempre de submeter a apreensão efetuada a validação da autoridade

judiciária competente no prazo máximo de 72 horas. Com a diferença do

advérbio sempre, também no regime processual penal comum tem de

submeter-se a validação da autoridade judiciária a apreensão de instrumentos,

produtos ou vantagens e demais objetos relacionados com a prática do facto

ilícito típico, regulada no art.º 178º do CPP - cfr. n.ºs 3 e 6.

vi. autoridade judiciária competente:

Na construção da recorrente, competiria exclusivamente ao juiz de instrução

validar a apreensão dos dados informáticos pesquisados e apreendidos nos

telemóveis que lhe foram encontrados quando detida em flagrante.

Considerando os dados apreendidos, não tem razão.

O regime processual especial do cibercrime – identicamente ao regime

adjetivo criminal geral - prescreve formalidades diferenciadas, cuja

inobservância desencadeia consequências jurídico-processuais diversas

conforme a especificidade do conteúdo dos dados informáticos apreendidos.

Quando são apreendidos dados ou documentos informáticos com conteúdo

suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a

privacidade do titular ou de terceiro são, sob pena de nulidade,

apresentados ao juiz, que ponderará da sua junção aos autos tendo em conta

os interesses do caso – art 16º n.º 3.

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Page 21: Sumário Texto Integral

Nestas situações, a intervenção do juiz impõe-se pela necessidade de

acautelar direitos fundamentais do arguido ou de terceiros, entre os quais

avultam a liberdade e a intimidade da vida privada. Consagra-se assim uma

reserva absoluta de juiz, justificada pela necessidade de proteção efetiva dos

direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, contra a apreensão de dados ou

documentos que, atento a especificidade do respetivo conteúdo, os podem

aviltar irreparavelmente.

Diversamente, estabelece o n.º 4 que apreendendo o OPC dados informáticos

cujo conteúdo não “seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que

possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro”, tem

sempre de submeter a apreensão a validação da autoridade judiciaria

competente, no prazo máximo de 72 horas.

Autoridades judiciárias são, na definição legal – art.º 1º al.ª b) do CPP -, o juiz,

o juiz de instrução, mas também o magistrado do Ministério Público na fase de

inquérito, relativamente aos atos processuais que a lei não reserve para o juiz

de instrução.

Conforme entende este Supremo Tribunal e se acentua no acórdão n-º

387/2019 do Tribunal Constitucional, citando o Acórdão n.º 395/2004, 2.ª

Secção, ponto 8.1., «a intervenção do juiz na fase do inquérito preliminar

apenas é reclamada para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos

sujeitos processuais ou de terceiros relativamente àqueles atos processuais

que a podem pôr em causa. Com o rigor de alguma síntese, pode afirmar-se

que o juiz de instrução é, na fase do inquérito, um órgão que está vocacionado

essencialmente para o acautelamento dos direitos fundamentais, entre os

quais avultam a liberdade, a segurança, a reserva de intimidade da vida

privada. É o que se poderia apelidar de Juiz das Garantias. Nesta senda, não

se vê, na linha de fundamentação expendida, que o juiz de instrução haja de

interferir na realização dos atos do inquérito cuja direção está

constitucionalmente cometida ao Ministério Público, fora do quadro de atos

que são potencialmente lesivos de direitos fundamentais ou do controlo de

atos cuja prática a lei processual preveja como obrigatória». A reserva de juiz

comprime, portanto, a reserva do Ministério Público na direção do inquérito.

Uma tal compressão só encontra, porém, justificação na medida do necessário

para a proteção efetiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos

(sobre esta ponderação, vide Acórdão n.º 474/2012, 1.ª Secção, ponto 9.3.2.)”.

Doutrina aplicável, evidentemente, ao regime processual estabelecido na lei

do cibercrime e, consequentemente, no vertente caso. A letra da lei não deixa

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margem para diferente leitura: o Ministério Público é, na definição do

legislador uma autoridade judiciária no inquérito. Consequentemente, onde a

lei manda sujeitar a apreensão efetuada pelo OPC, nessa fase, a validação sem

indicar expressamente o juiz, quer dizer que é um ato processual de inquérito

da competência do Ministério Público.

No caso, porque não vem alegado pela recorrente nem se apura que os dados

ou documentos informáticos apreendidos nos seus telemóveis tenham

conteúdo suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam por com

causa a sua privacidade ou de terceiro, a validação, obrigatória, da apreensão

competia à Procuradora da República que dirigiu o inquérito.

A apreensão somente teria, - então necessariamente -, de sujeitar-se a

validação do juiz de instrução se os dados ou documentos informáticos

apreendidos tivessem conteúdo suscetível de revelar dados pessoais ou

íntimos que pudessem respeitar à privacidade da arguida ou de terceiros. A

omissão do correspondente ato processual fulminaria a apreensão de nulidade

– art. 16º n.º 3 da Lei do Cibercrime – e a correspondente prova seria proibida.

Nesta norma disciplina-se a admissão de provas com aquele conteúdo

fortemente intrusivo da reserva da intimidade e da privacidade, não apenas a

mera validação da apreensão dos dados e documentos informáticos. A

intervenção judicial é obrigatória porque indispensável para resolver o conflito

entre, por um lado, os referidos direitos fundamentais devassados e, pelo

outro lado os interesses da investigação. Quando os dados ou documentos

informáticos contiverem qualquer representação de factos, informações ou

conceitos com aquele conteúdo somente o juiz de instrução pode, em

inquérito, decidir que sejam – ou não - admitidos nos autos. Sem essa

ponderação e a decisão judicial de validação da apreensão dos dados pessoais

ou íntimos, a intromissão do OPC e do Ministério Publico na vida privada ou

na correspondência do arguido, carece de suporte legal e judicial, sendo, por

isso abusiva, utilizando a expressão da norma constitucional citada. Pelo que,

a prova assim obtida não poderá valorar-se no processo penal, porque

proibida. Consequentemente, a nulidade resultante da não apresentação ao

juiz de instrução dos dados e documentos apreendidos em suporte ou sistema

informático, que tivessem aquele conteúdo particular, consubstanciaria, a

proibição de obtenção de prova, estatuída nos arts. 32º n.º 8 da Constituição

da República e 126º do CPP.

Conforme se entende e sustenta Helena Morão “a proibição de prova em

sentido próprio no sistema processual penal português é somente aquela

norma probatória proibitiva cuja violação possa redundar na afectação de um

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dos direitos pertencentes ao núcleo eleito no art. 32/8 da Lei Fundamental e

que o artigo 126 do Código de Processo Penal manteve, sem alargar. Não

basta a mera violação de uma proibição legal em matéria probatória como na

lei italiana, nem a violação de um qualquer direito fundamental, como na lei

espanhola”.

Apontando que “o critério fundamental é o da afectação do núcleo valorativo

dos direitos elencados no artigo 32/8 da Lei Fundamental”[9].

v. a apreensão no caso:

No caso, a recorrente, repete-se, não alega a pessoalidade ou intimidade dos

dados – máxime fotografias, vídeos, chats no facebook e sms - que o OPC

apreendeu nos seus telemóveis, nem se extrai da facticidade provada, nem da

motivação da decisão em matéria de facto que os dados apreendidos e

utilizados como elemento de prova tenham aquele específico conteúdo. Ainda

que tivessem, não poderia ignorar-se que a arguida consentiu que o OPC os

pesquisasse e os recolhesse como elementos de prova para os autos. A provas

obtidas com intromissão na vida privada, na correspondência e nas

telecomunicações não são nulas – não são obtidas por método proibido -

sempre que o seu titular nisso consinta, livre e esclarecidamente - art.º 126º

n.º 3 do CPP. Se o titular os disponibiliza, consentindo na pesquisa, não advêm

de “abusiva intromissão” naqueles direitos fundamentais. A mesma norma da

Lei Fundamental – art.º 32º n.º 8 - que estabelece a inviolabilidade absoluta e

inalienável do direito à integridade pessoal, proibindo as provas obtidas

mediante tortura ou ofensa física ou moral e também o direito à liberdade

pessoal, fulminando com a mesma consequência as provas obtidas mediante

coação, admite, inequivocamente, a possibilidade de intromissão não abusiva

na reserva da intimidade da vida privada, no domicilio e na correspondência.

Não pode, pois, ter-se por abusiva a intromissão quando seja consentida pelo

titular do correspondente direito fundamental, esteja expressamente prevista

na lei, seja autorizada pelo juiz ou por autoridade judiciária nos termos legais,

contanto se revele necessária e não seja desproporcionada.

Conclui-se, por conseguinte, que à apreensão dos dados informáticos nos

telemóveis da arguida não se aplica a nulidade cominada no art.º 16º n.º 3 da

Lei do Cibercrime e, por conseguinte, não se está perante prova proibida.

vi. nulidade sanável:

O n.º 4 do art.º 16º da lei do Cibercrime, diversamente do n.º 3, mas

identicamente à norma “paralela” do regime do processo penal - art. 178º n.º

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6 do CPP - não comina, expressamente, a nulidade para a omissão da prática

do ato processual consistente na não sujeição a validação da apreensão

efetuada pelo OPC, de dados apreendidos em pesquisa efetuada em suportes

informáticos. A única dissemelhança entre o texto das duas normas é,

conforme assinalado. o advérbio “sempre” que consta da primeira e não da

segunda. Contudo, a obrigatoriedade de sujeição a validação da apreensão é

obrigatória nos dois regimes. Sendo idêntica a consequência jurídica da sua

inobservância: a nulidade consagrada no art. 120º n.º 2 al.ª d) do CPP[10]. A

validação, pela autoridade judiciária competente, da apreensão de dados ou

documentos informáticos é imposta por lei, sendo, por isso um ato obrigatório

do inquérito[11]. A omissão da prática de atos legalmente obrigatórios, gera a

insuficiência do inquérito. Insuficiência que é sancionada com a nulidade ali

consagrada.

Essa, como as demais nulidades previstas no art. 120º do CPP, resultará

sanada se não for arguida nos termos estabelecidos no respetivo n.º 3 al.ª c),

ou seja, até ao 5º dia posterior à notificação da acusação[12].

vii. da (não) validação da apreensão:

A recorrente, questionando a não validação (expressa), pela autoridade

judiciária, da apreensão dos dados informáticos – dos vídeos, fotografias, chats

no facebook e sms[13] - armazenados nos telemóveis que levava consigo e que

OPC – no caso a PJ -, pesquisou, com o seu consentimento (documentado),

naqueles suportes, qualifica-a de nulidade e ao mesmo tempo, de prova

proibida,

No § 2.1 da motivação do acórdão recorrido expende-se que aquelas

apreensões não foram sujeitas “a validação pela autoridade judiciária no prazo

máximo de 72 horas (art. 16º nº 4 do cit. diploma)”. Asserção, todavia,

desconforme com a realidade processualmente documentada. (Advertindo-se

que ao entrar neste domínio não está o Supremo Tribunal a extravasar os

respetivos poderes de cognição porquanto a questão respeita tão-somente à

fundamentação, ainda que da decisão em matéria de facto. De outra

perspetiva, a facticidade que o tribunal recorrido julgou provada e não

provada mantém-se imutável. A visitação à tramitação processual é

imprescindível porque demandada pela alegação da recorrente de que uma

concreta e determinada prova (eletrónica) não podia ter sido valorado

porquanto, na sua perspetiva, foi obtida por meio absolutamente proibido.

Saber se um meio de obtenção de prova é – ou não – proibido consubstancia,

evidentemente, uma questão de direito).

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Page 25: Sumário Texto Integral

Documentam os autos que as apreensões (todas, ainda que genericamente)

efetuadas pelo OPC à arguida aqui recorrente foram sujeitas a validação pela

Magistrada do Ministério Público titular do inquérito no prazo legalmente

prescrito. Procuradora da República que, por despacho datado de 3.02.2020,

com a ref-ª 49281740, validou, “ao abrigo do disposto no artigo 178.º, n.ºs 1, 3

e 5 do Código de Processo Penal, a apreensão do produto estupefaciente e

demais objetos, relacionados no auto de apreensão de fls. 10“. Sem dúvida que

o Ministério Publico -por razões que se desconhecem - não validou, como se

lhe impunha, a apreensão dos dados informáticos apreendidos e nem sequer

convocou o regime processual especial da respetiva apreensão e validação.

Contudo, no requerimento de apresentação da arguida a 1º interrogatório

judicial, o Ministério Público indica como elementos de prova, entre outros,

também os termos de consentimento na pesquisa em apreço. Posteriormente,

também os inclui como prova arrolada com a acusação.

No limite, poderia interpretar-se aquela primeira indicação como validação

tácita da apreensão dos dados informáticos, pesquisados e apreendidos em

2.02.2020, cerca de 24 horas antes, nos telemóveis da arguida.

Validação tácita, sem dúvida, irregular e, por isso, má prática, contra a qual a

arguida e o seu defensor poderiam ter reagido, arguindo, no prazo legalmente

estabelecido –art. 120º n.º 3 do CPP -, a nulidade da apreensão dos dados

informáticos em causa, perante o juiz de instrução. O que não fizeram.

A validação tácita da apreensão, nos termos referidos, colhe amparo em

jurisprudência deste Supremo Tribunal, nomeadamente no Ac. de

20/09/2006 e no Ac. de 17/05/2007 (ainda que nenhum versando sobre a

validação da apreensão de dados informáticos). No segundo destes arestos,

versando sobre a validação, 8 dias após ter sido efetuada, «[d]a apreensão da

facturação detalhada do telefone móvel do arguido», considerou-se tratar-se

de mera irregularidade. Justificando, expendeu-se: “é consabido que para que

se verifique uma nulidade processual necessário se torna que a mesma esteja

prevista na lei (cf. artigo 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Não o

estando, “(…) o acto ilegal é irregular” (cf. n.º 2 do artigo 118.º do referido

corpo de leis).

Contudo, lido cuidadosamente o artigo 178.º do Código de Processo Penal,

verifica-se que a violação de quaisquer dos seus ditames não envolve a

nulidade do acto, pelo que, à luz do artigo 118.º, n.º 2 do Código de Processo

Penal o acto ilegal seria somente irregular.

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Page 26: Sumário Texto Integral

É isso que se verifica com a situação do prazo das 72 horas, cominado no n.º 5

do referido artigo 178.º do Código de Processo Penal.”

Assim sendo, restaria ao recorrente invocar a invalidade do acto com

fundamento em irregularidade, nos termos do artigo 123.º do Código de

Processo Penal, o que, a acontecer, sempre seria manifestamente

extemporâneo, atento o regime da arguição em 3 dias, tal como resulta do seu

n.º 1”[14].

Também encontra conforto na jurisprudência do Tribunal Constitucional

que, no Ac. n.º 278/2007, decidiu “não julgar inconstitucionais as normas

constantes do n.º 5 do artigo 174.º e da parte final do n.º 2 do artigo 177.º do

Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que, efectuada busca

domiciliária por órgão de polícia criminal sem precedência de autorização

judicial, por se tratar de caso de criminalidade violenta e haver indícios da

prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de

qualquer pessoa, é de 48 horas o prazo para a comunicação ao juiz de

instrução da efectivação da busca e a decisão judicial da sua validação pode

resultar, de forma implícita, desde que inequívoca, da decisão de validação da

detenção do arguido e de fixação da medida de coacção de prisão preventiva”.

Jurisprudência que embora incidente sobre validação da busca domiciliária

efetuada pelo OPC, é extensiva, pelas mesmas razões de fundo, à validação da

apreensão de dados informáticos apreendidos pelo OPC em pesquisa

informática consentida, em que a intervenção, a posteriori, da autoridade

judiciária é justificada pela preocupação de controlar a legalidade da

diligência, em ordem a garantir direitos fundamentais, designadamente à

privacidade, intimidade e à inviolabilidade da correspondência, ou, por outras

palavras, em que a intervenção judiciária posterior é essencialmente

garantística, visando controlar a restrição ou violação de direitos

fundamentais – cfr Ac. n.º 114/95 do Tribunal Constitucional.

Reafirma-se que este Supremo Tribunal entende que a não validação, pelo

Ministério Público - autoridade judiciária competente em inquérito -, da

apreensão de dados ou documentos informáticos que não tenham conteúdo

suscetível de respeitar à privacidade ou intimidade, porque obrigatória – o

termo legal “sempre” não admite diferente leitura -, configura a nulidade

cominada no art.º 120º n.º 2 al.ª d) do CPP. que tinha de ser arguida nos

prazos estipulados no n.º 3.

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Page 27: Sumário Texto Integral

No caso, não tendo a arguida deduzido tempestivamente a nulidade resultante

da não validação expressa da apreensão dos dados informáticos armazenados

nos telemóveis que lhe foram apreendidos, não resta senão conclui que ficou

sanada.

Improcede, assim, a nulidade probatória arguida pela recorrente.

c) da atenuação especial da pena:

i. no art. 31º do DL 15/93:

A recorrente reclama a atenuação especial da pena, convocando o regime

consagrado no art. 31º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro. Para tanto alega que

colaborou com a justiça, revelando “nomes, identidades concretas e reais,

situações e, até, reconhecimento de residências”, auxiliando “na recolha de

provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis”.

Em suma, pretende que ficou demonstrada postura processual que, todavia, a

facticidade provada não certifica. Da mesma consta que a arguida entregou a

terceiros os estupefacientes que transportou de ….. para ............ e que dos

mesmos recebeu quantias monetárias que entregou também a (outros)

terceiros. Não consta que tenha identificado e fornecido elementos de prova

que tenham permitido descobrir, perseguir e, o que era decisivo, condenar os

seus fornecedores e “clientes”.

Na motivação da decisão recorrida, refere-se que a arguida, na audiência de

discussão e julgamento, remeteu-se ao silêncio, conforme era seu direito,

assim inviabilizando a possibilidade de valoração das declarações

incriminatórias de outros coarguidos que tinha prestado no seu 1º

interrogatório judicial.

Consta que “alguma colaboração com a Polícia Judiciária em sede de

inquérito, (…) não foi de molde à responsabilização criminal dos demais

coarguidos””. “Ademais, (…) foi surgindo “a conta gotas” (…) e iniciou-se

numa altura em que, cronologicamente, já não era possível orquestrar a

“entrega vigiada” relativa ao transporte de 01.02.2020. Por seu turno, tal

colaboração foi cirúrgica naquilo que a arguida AA pretendeu dizer e naquilo

que deliberadamente pretendeu omitir (…), não tendo alcançado qualquer

resultado prático e expressivo para além daquilo que poderá ter equacionado

como vantajoso no contexto do seu estatuto coativo”. “Deste modo, e sem

deixar de relevar para a determinação concreta da pena, não se configura de

molde à atenuação especial da pena a que alude o art. 31º do cit. diploma, tal

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Page 28: Sumário Texto Integral

como pugnou nas suas alegações finais”.

Assinala-se que a lei é clara e expressa, condicionando a atenuação da pena a

aplicar ao arguido que cometeu um crime de tráfico de estupefacientes, a que

o mesmo tenha auxiliado “concretamente as autoridades na recolha de provas

decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis,

particularmente tratando-se de grupos, organizações ou associações” – art.

31º do DL 15/93 cit. Sublinha-se “auxiliar concretamente” “na recolha de

provas decisivas”.

Não constando da decisão recorrida que a arguida tenha prestada colaboração

relevante na recolha de provas decisivas para a incriminação dos outros

elementos da mesma “rede” de fornecimento, transporte e entrega de

estupefacientes, em que serviu de “correio de droga”, falecem os pressupostos

indispensáveis para poder beneficiar da atenuação especial da pena

consagrada naquela norma legal.

ii. no art. 72º do CP:

A recorrente, em duas linhas, termina apelando também à atenuação especial

consagrada no art. 72º n.º 1 do Cód. Penal. Contudo não aponta, certamente

porque inexistentes nos factos provados, circunstâncias que pudessem

configurar o seu como um caso extraordinário, tão diferente do comum tráfico

na modalidade de “correio de droga” que, à luz da justiça, escaparia

completamente a normal previsão do legislador vertida no art.º 21º n.º 1 do

DL n.º 15/93 de 22 de janeiro.

Tem este Supremo Tribunal entendido que a atenuação especial da pena legal,

ou com mais propriedade, da moldura penal especialmente atenuada de um

crime, é uma “válvula de segurança” para funcionar “quando, em hipóteses

especiais, existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as

exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global

especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o

legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal

respetiva[15].

Estabelece o art. 72º n.º 1 do Cód. Penal que, “para além dos casos

expressamente previstos”, a substituição da moldura penal do tipo de ilícito

cometido pelo agente por uma moldura especialmente atenuada, só pode dar-

se quando, no caso concreto, concorram circunstâncias anteriores,

contemporâneas ou posteriores que ainda não tenham operado e “que

diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a

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Page 29: Sumário Texto Integral

necessidade da pena”.

Como acentua J. Figueiredo Dias “o princípio regulativo da aplicação do

regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da

ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena

e, portanto, das exigências de prevenção[16]”.

Doutrina e jurisprudência coincidem em que não é suficiente a verificação

num determinado caso, das circunstâncias indicativamente enunciadas pelo

legislador ou outras de igual densidade para que o tribunal deva atenuar

especialmente a pena estabelecida na norma citada. Decisiva é “a imagem

global do facto, a gravidade do crime como um todo”[17] ou a desnecessidade

da pena pela acentuada diminuição das exigências de prevenção geral de

integração.

Critério decisivo é que essas ou outras circunstâncias concorrentes, pela sua

especial intensidade, configurem um caso de gravidade, tão acentuadamente

diminuída, seja ao nível da ilicitude ou da culpa, seja ao nível da necessidade

da pena, que escapa à previsão do tipo de ilícito que o legislador definiu e que,

por isso, seria injusto punir dentro da sua já prevenidamente muito ampla

moldura penal

Estando fora de cogitação a subsunção do caso a qualquer das circunstâncias

enunciadas nas alíneas a), b) e d) do n.º 2 do art.º 72º citado, também não se

verifica a situação descrita na restante alínea – a c). A arguida nem tão-pouco

foi capaz de, em julgamento, ao menos reafirmar a confissão e de verbalizar

arrependimento. Evidentemente que do exercício do seu direito a não prestar

declarações não pode resultar qualquer prejuízo, mas também não pode

pretender que o tribunal retire do silêncio arrependimento e menos ainda que

o pudesse qualificar de sincero. Acresce que o arrependimento sincero não se

basta como seca verbalização. Deverá traduzir-se em atos como o

exemplificado na lei ou, por exemplo, com o abandono espontâneo da

atividade criminosa, complementado com a prestação de informações

concretas e relevantes para a apreensão do produto e vantagens do crime ou a

descoberta da verdade e, quando existam outros coarguidos, para não só a

indicação do nome destes como, sobretudo, para a contribuição decisiva para

que sejam descobertos e se reúnam provas decisivas para a sua punição.

Somente a comprovada concorrência de circunstâncias concretas pode, em

cada caso, demonstrar que aquele se afasta extraordinariamente do comum

dos casos abrangidos pela previsão do tipo legal. Que punir o crime cometido

pelo arguido com pena a fixar dentro da moldura penal estabelecida pelo

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legislador – tão ampla no tráfico que os limites da respetiva moldura distam

entre si 8 anos, sendo o máximo o triplo do mínimo – seria fortemente injusto

porque a ilicitude do facto, ou a culpa do agente são consideravelmente

diminuídas ou porque a pena se revela desnecessária. Pressupostos da

aplicação do instituto em apreço são a acentuada diminuição da ilicitude do

facto, da culpa ou da necessidade da pena, designadamente por as

circunstâncias especiais do caso revelarem forte abrandamento das exigências

de prevenção.

Na facticidade provada – e bem assim o que consta da decisão recorrida sobre

a motivação atinente à escolha e determinação da pena – não se encontram

circunstâncias “extraordinárias” que pudessem configuram os pressupostos

exigidos na lei para que pudesse operar a peticionada atenuação especial da

moldura penal do crime de tráfico p. e p. no art.º 21º n.º 1 do DL 15/93 de 22

de janeiro. Ao invés, a concreta atuação da arguida – agiu com dolo direto e

intenso, com plena consciência da ilicitude dos factos -, o crime e o modo

como foi cometido demandam fortes necessidades de prevenção. Consiste num

vulgar caso de tráfico na modalidade de «correio de droga», em que se alguma

anormalidade se pode apontar até seria agravante, resultando da sua

repetição (quatro transportes) e do longo período de tempo em que foi

exercido (mais de 2 anos).

Por outro lado, tem-se por muito difícil que nos crimes de tráfico possa

atenuar-se especialmente a pena. Sumariamente pela própria “arquitetura” do

regime unitivo. O crime definido no tipo base, qualifica-se pela verificação de

factos que exponenciam a ilicitude do facto. Desqualifica quando a ilicitude da

“atividade global” se apresentar consideravelmente diminuída. Também

porque na qualificação bem como na desqualificação não intervêm

considerações atinentes à culpa do agente. Ainda porque a necessidade de

exercer um efeito dissuasor da prática de tais infrações, isto é, as

necessidades de prevenção especial positiva, são muito vivas. E, finalmente,

porque o legislador previu expressamente as situações em que a pena pode

ser especialmente atenuada – cfr. art. 31º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro.

Improcede, pois, por manifesta falta de fundamento factual e jurídico, a

pretendida atenuação especial da pena.

d) medida da pena:

A recorrente, alega a excessividade da pena de 6 anos de prisão em que está

condenada no acórdão recorrido, visando a sua redução através da atenuação

especial (como vem de tratar-se) de modo a fixar-se em 3 anos de prisão e, a

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final, a aplicação de pena suspensa.

Vejamos:

i. finalidade da pena

A moldura penal do crime de crime de tráfico (de estupefacientes e

substâncias psicotrópicas) previsto no artigo 21º, nº 1, do DL. nº 15/93, de

22/01, pelo qual a arguida vem condenado é de 4 a 12 anos de prisão

Encontrada a moldura penal (abstrata), o primeiro e decisivo fator a

considerar no procedimento de determinação da medida concreta da pena é a

finalidade da punição, firmada no art. 40.º do Código Penal: a aplicação da

pena visa a proteção do bem jurídico violado e a ressocialização do agente (n.º

1); e tem como limite inultrapassável “a medida da culpa” –n.º 2.

No Código Penal de 1982 não existia uma norma que direta e

autonomamente estatui-se sobre as “finalidades das penas”. Via-se então,

resumidamente, “a culpa como fundamento da pena”. Na introdução ao

referido Código Penal, ao mesmo tempo que se refutava a doutrina que

conferia “uma maior tónica à prevenção geral” porque, afinal, acabava

aceitando “inequivocamente a culpa como limite de pena”, afirmava-se que “

um dos princípios basilares do diploma reside na compreensão de que toda a

pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.”

Paradigma que o legislador do Código Penal de 1995 inverteu. Agora, “a

encimar o acervo de finalidades das penas que enuncia, coloca o artigo 40.º a

proteção de bens jurídicos”. Norma que o Presidente da Comissão Revisora

qualificou como paradigmático e que segundo o então deputado Costa

Andrade é marcante, “só ele a valer como um programa de política criminal”.

Ao princípio da vinculação à defesa de bens jurídicos aqui consagrado, subjaz

“a ideia de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, também, do n.°2 do

artigo 12.º da Constituição, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades

e garantias se limitarão «ao necessário para salvaguardar outros direitos ou

interesses constitucionalmente protegidos».

A Assembleia da República autorizou – Lei de autorização legislativa n.º

35/94 de 15 de setembro -,o Governo a alterar o Código Penal de 1982 de

modo a, além do mais, “introduzir como finalidades da aplicação das penas e

medidas de segurança a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente

na sociedade, bem como estabelecer, quanto à medida de segurança, a

proporcionalidade à gravidade do facto e subordinar a sua aplicação à

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perigosidade do agente; e, quanto à pena, consagrar o critério de que, em

caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa”.

Cumprindo esta incumbência, o legislador, na exposição de motivos do DL n.º

48/95 de 15 de março, plasmou clara e inequivocamente aquela solução, nos

seguintes termos: «Necessidade, proporcionalidade e adequação são os

princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável

à violação de um bem jurídico fundamental. De destacar, a este propósito, a

inovação constante do artigo 40.º ao consagrar que a finalidade a prosseguir

com as penas e medidas de segurança é "a proteção dos bens jurídicos e a

reintegração do agente na sociedade".

Sem pretender invadir um domínio que à doutrina pertence - a questão

dogmática do fim das penas -, não prescinde o legislador de oferecer aos

tribunais critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na

escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz

constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa».

Como bem sintetiza jurisprudência deste Supremo Tribunal: “Está subjacente

ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida

em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim

preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa”[18].

Não há, pois, razões plausíveis para discordar que no vigente regime penal, a

função primordial do direito penal é a de tutelar os bens jurídicos tipificados,

de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos.

Em consonância, “as finalidades de aplicação de uma pena residem

primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na

reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode

ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside

a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que

também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida

da pena”[19].

Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena

judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos

bens jurídicos violados estabelecendo, in concreto, o limiar mínimo abaixo do

qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, não satisfaz a

necessidade de reafirmação estabilizadora das normas, isto é, a pena aplicada

não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou

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prevenção de integração[20]”.

Sendo que “à proteção jurídico-penal há-de reportar-se àquilo que se entenda

relevante para a subsistência da comunidade ou, dito por outras palavras, há-

de reconhecer a natureza social do bem jurídico. Ele tem indefetível conexão

com a ideia de que nada é tão desvalioso como praticar «lesões insuportáveis

das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento

da personalidade de cada homem»[21].

Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena

judicial é também a culpa na execução do facto[22], estabelecendo o “teto” ou

limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à

«paz» comunitária a dignidade humana do agente. À culpa comete-se agora

uma “função politico-criminal de garantia dos cidadãos e não mais do que isso.

Entende-se que a pena não pode exorbitar a culpa, do mesmo passo que não

pode privar-se dela, como seu pressuposto”. Ou, nas sapientes palavras de

Costa Andrade: “por último, o terceiro axioma diz-nos que a culpa deve

persistir como pressuposto irrenunciável e como limite intransponível da

pena. A culpa não deve dar a medida da pena. A pena pode ficar aquém da

culpa, o que não pode é ultrapassá-la, até porque esta, (…) constitui um

«axioma antropológico» da ordem jurídico-constitucional portuguesa. Tem de

valer como limite, como barreira à instrumentalização do homem, em nome de

fins próprios da sociedade. Como garantia de que a racionalidade

instrumental, de que falava Max Weber, não vai dominar, absorver e sacrificar

inteiramente a racionalidade de valores de uma sociedade democrática.

Por respeito à exigência da culpa, o Código e o legislador penal português faz

eco daquela sábia advertência de Schiller, que já dizia ao príncipe:

«Desconfiai, nobre senhor, nem tudo aquilo que é útil ao Estado é

necessariamente justo». É o limite da culpa que garante que a prossecução de

tarefas e de metas legítimas, através do instrumento de conformação social

que é o Direito Penal, se faça com respeito pelas exigências inultrapassáveis

da justiça”.

Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação

da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na

sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização.

ii. outros fatores:

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O modelo define as linhas mestras ou parâmetros nos quais devem atuar as

“circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a culpa e a

prevenção”.

Por isso, o Código Penal, no art. 71.º estabelece que: “a determinação da

medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa

do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo o tribunal “a

todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a

favor do agente ou contra ele, considerando” as circunstâncias que enuncia,

exemplificativamente, nas alíneas do n.º 2, e que se reportam à culpa ou à

prevenção, às quais a doutrina adiciona outros fatores, designadamente

relativos à vitima[23].

Proibindo-se a valoração, nesta sede, de quaisquer circunstâncias que façam

parte do tipo de crime cometido pelo agente (proibição da dupla valoração). O

que “não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da

intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento do tipo”[24].

Fatores enunciados no art. 71.º n.º 2 que, grosso modo, podem respeitar:

- à execução do concreto facto cometido pelo agente, agrupando

circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídico-penal

cometida, que servem para caracterizar a medida da censurabilidade, e

(quando for o caso) o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

- à personalidade do agente revelada no facto, agrupando as condições

pessoais, sociais e económicas, a sensibilidade à pena e à influência que esta

pode exercer, as qualidades da personalidade comparadas com as do «homem

fiel ao direito».

- à conduta anterior e posterior ao facto, agrupando a história vivencial e

criminal do agente e o comportamento posterior empreendido no sentido de

assumir as consequências do crime cometido e, estando ao seu alcance,

contribuir para que os comparticipantes não restem impunes e a “governar-

se” com o proventos ilícitos assim obtidos.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal sustenta que “para o efeito de

determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai

constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo

71.º do Código Penal (…), estando vinculado aos módulos-critérios de escolha

da pena constantes do preceito”.

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Sustenta também que tais critérios e circunstâncias “devem contribuir tanto

para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a

natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de

prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento

comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência

das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a

idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também

transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do

agente”[25].

Por outro lado, “a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de

concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da adequação e

proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser

necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido, de

forma uniforme e reiterada, que «no recurso de revista pode sindicar-se a

decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das

operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que

devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de

fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação

dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da

moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro

da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do

quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou

a desproporção da quantificação efetuada»”.

No mesmo sentido conclui Souto de Moura[26]: “sempre que o procedimento

adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam

ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o

arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de

prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto

seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve

manter-se intocado”.

O que bem se compreende, porque a fixação do quantum da pena concreta

aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a

ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração

tabelada.

iii. no caso:

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A arguida cometeu um crime de tráfico de estupefacientes – de canábis e

cocaína - que é legalmente definido como criminalidade altamente organizada

–art. 1º al.ª m) do CPP.

O legislador entende que essa fenomenologia criminal provoca grave

danosidade social e forte alarme coletivo, demandando uma resposta jurídica

e judicial clarificadora e contundente.

O tráfico de estupefacientes põe em causa pilares essenciais da sociedade

entre eles a ordem pública e a segurança dos cidadãos. Concita uma

necessidade ingente de combate permanente. Do preambulo da Convenção

de 1961 consta que “a toxicomania é um flagelo para o indivíduo e constitui

um perigo económico e social para a humanidade”.

O tráfico de “drogas” representa não só uma grave ameaça para a saúde e

bem-estar dos indivíduos, provocando efeitos nocivos nas bases económicas,

culturais e políticas da sociedade, como também se interrelaciona com outras

atividades criminosas organizadas conexas que minam as bases de uma

economia legítima e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos

Estados. É, muitas vezes uma atividade criminosa internacional, dirigia por

organizações criminosas transnacionais que visam obter avultados lucros

ilícitos e que diretamente ou no branqueamento, acabam invadindo,

contaminando e corrompendo as estruturas do Estado cuja eliminação exige

uma atenção permanente e a maior prioridade – Convenção de 1991.

O crime de tráfico é uma das infrações catalogadas no artigo 83.º do TFUE

(ex-artigo 31.º TUE) como “criminalidade particularmente grave com

dimensão transfronteiriça” que há “especial necessidade de combater, assente

em bases comuns”.

É, pois, um tipo de ilícito em que se fazem sentir prementes necessidade de

proteção dos bens jurídicos tutelados, isto é, de prevenção geral de

integração. É uma atividade que reúne a quase universal postura de punição e

perseguição, como refletem diversas Convenções e Instrumentos

internacionais visando a sua repressão. O sentimento jurídico da comunidade

apela ao combate incessante e sem tréguas do tráfico de estupefacientes, pela

sua elevada frequência, por corromper, por vezes irreparavelmente, a saúde

mental e física dos próprios consumidores, com implicações graves ao nível

dos serviços de saúde pública e de assistência social, degradar a dignidade

humana dos consumo-dependentes, propiciar a propagação de doenças

infetocontagiosas graves ou incuráveis (hepatite, SIDA, tuberculose, doenças

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sexualmente transmissíveis), destruir a sua vivência socialmente útil e

laboralmente responsável, arruinar o sossego e harmonia das respetivas

famílias e, muitas vezes, também o património, fomentar fortemente a

criminalidade associada (furto, roubo, recetação, lenocínio, etc.).

Para determinar o grau da ilicitude e também a censurabilidade da conduta,

deve ponderar-se desde logo a quantidade e a qualidade do estupefaciente

traficado por refletirem o maior ou menor desvalor da conduta reprimida,

ilustrando bem a dimensão populacional dos potenciais compradores e

consumidores afetados e a maior potencialidade para afetação da saúde

pública. O resultado é irrelevante para a ilicitude na medida em que se trata

de um crime de mera atividade que se basta com o simples perigo abstrato.

Importando também o engenho e ousadia aplicados no processo executivo do

crime cometido.

Assim importa desde logo ponderar que a arguida traficou estupefacientes –

essencialmente canaábis mas também cocaína - em quantidades com

dimensão (transportava em cada viagem cerca de 6 quilogramas de canábis),

inserida em atividade organizada de tráfico, consistente em recolher o

estupefaciente, transporta-lo (de avião), para a região autónoma …, aí a

entregando a outros traficantes para a introdução e disseminação no “

mercado” daquela região.

A maior ou menor ousadia e sofisticação das referidas «operações», incluindo

as técnicas de «disfarce» para ocultar o transporte aéreo do estupefaciente

está, regra geral, conexionada com a preparação e eficiência da estrutura da

organização que o comanda ou, se exercida a título individual, com o lastro

económica do agente, de modo a não suscitar suspeitas. Em regra, trata-se de

estupefacientes de elevado valor de mercado (como é o caso da cocaína) e de

grande pureza e, consequentemente, de potente toxicidade, que podem

suportar a adição de substâncias (de “corte”) destinadas a aumentar a

quantidade e exponenciar as vantagens económicas ilícitas. Pelo outro lado,

não é espetável que os denominados «correios de droga» logrem transportar

em avião, com partida e chegada a aeroportos internacionais, quantidades que

não seja possível ocultar no próprio corpo ou em sítios recônditos da

bagagem, de modo a poder passar indetetáveis nos controlos de RX da

segurança. Neste contexto, 6 Kgs de cada vez (na última 5.887,242gr de

canabis+111,40gr de cocaína) é uma quantidade importante para o transporte

numa viagem de avião em linha regular de passageiros.

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Os denominados “correios de droga” desempenham um papel cada vez mais

relevante no tráfico, executando uma das atividades de mais elevado risco de

ser descoberta como é o transporte aéreo dos estupefacientes, razão pela qual

os “donos do negócio” a eles frequentemente recorrem com vantagem sobre

os grandes carregamentos (cada vez mais frequentemente detetáveis através

dos sistemas de vigilância e georreferenciação dos navios), por mais

facilmente iludirem a fiscalização das autoridades e, sobretudo, para evitarem

elevados prejuízos que pudessem advir da apreensão de grandes quantidades.

Sustenta-se no Ac. de 26-2-2020, deste Supremo Tribunal que “os

chamados correios de droga, embora sejam meros agentes de transporte de

estupefacientes, por conta de outrem, não são vítimas do sistema criminoso,

outrossim, assumem uma função preponderante na violação do bem jurídico,

permitindo e incrementando o negócio do tráfico, uma vez que de forma

consciente e, intencional, transportam a droga, do fornecedor ao destinatário,

permitindo assim o escoamento do produto, sendo que sem consumo, sem

escoamento, a produtividade emperra, o produto estupefaciente fica em stock,

a produção não dá lucro, e o negócio do tráfico fica sem viabilidade.[27]”

O tráfico de estupefacientes ademais de atentar gravemente contra a saúde

pública, com particular virulência na saúde e na inserção e realização familiar,

social e laboral dos consumo-dependentes, é fortemente censurado pela

comunidade, também porque pode propiciar elevados lucros ilícitos,

permitindo um modo de vida parasitário. Está também fortemente associado

ao branqueamento de capitais e, através da «lavagem» dos avultados lucros

ilícitos, à distorção das regras de funcionamento do mercado, particularmente

sensível em alguns sectores da economia produtiva (as offshore, a construção

civil, a hotelaria, o nicho dos bens de luxo, etc.).

Já ao nível da culpa resulta dos factos provados que a arguida quis e tinha

consciência plena da ilicitude e da forte censurabilidade desta sua conduta,

tendo agido com dolo direto de intensidade acima da media (a inerente à

atividade de transporte aéreo dos estupefacientes).

A sua atividade delituosa foi comandada pela intenção de obter compensação

monetária imediata, como contraprestação pela a prática do crime de tráfico

na modalidade descrita (recolha, transporte e entrega). Indiferente às

consequências que adviessem para a saúde dos consumidores, a quem sabia

bem destinarem-se os estupefacientes que aerotransportou para os ........

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Page 39: Sumário Texto Integral

Ao nível da prevenção especial de socialização, destinada a prevenir a

reincidência, verifica-se que a arguida empreendeu atos de tráfico

ousadamente e repetidamente entre 2017 e fevereiro de 2020.

Circunstancialismo que revela tendência, ou início de uma carreira criminosa

neste tipo específico de criminalidade rendosa e altamente prejudicial para a

saúde pública e para a economia licita.

A circunstância de não ter condenações anotadas no registo criminal, ademais

de corresponder ao que se espera de qualquer cidadã comum é frequente

nesta modalidade do tráfico porquanto, segundo as regras da experiência, os «

correios de droga» sem histórico criminal registado são mais apelativos para

as organizações criminais e, por isso, mais rapidamente recrutados porque

não suscitam, normalmente, suspeitas e controles mais apertados das

autoridades que vigiam a circulação de estrangeiros.

Ainda quanto às exigências de prevenção especial sobressai o desapego

laboral – sem qualquer atividade profissional estruturada - e um “percurso de

vida foi determinado pela adição, tendo integrado grupos de pares conotados

com o consumo e a comercialização de substâncias ilícitas”. O

“acompanhamento terapêutico” que iniciou em dezembro de 2019 não obstou

a que mantivesse “consumos de cocaína”.

A postura processual que apontava no sentido de uma colaboração relevante,

não foi mantida no lugar e momento decisivo, assim inviabilizando a

descoberta e punição dos “donos do negócio”, de quem lhe encomendou o “

serviço”, pagando as viagens e estadia, quem lhe entregou o estupefaciente, e

a quem o ia entregar. Que, assim, com certeza a a perspetivam como

colaboradora confiável.

Circunstancialismo que aponta claramente no sentido de serem prementes as

necessidades de prevenção da reincidência que no caso se fazem sentir.

Em conformidade com a que supra se assinalou, ou seja, que a fixação da

medida concreta da pena judicial tem como pilares essenciais: por um lado, a

quantidade e a qualidade do estupefaciente traficado, por refletirem

objetivamente o maior ou menor desvalor da respetiva ação, pelo alto número

de potenciais compradores e a consequente maior capacidade para afetar

mais intensa e gravemente a saúde de um maior ou menor número de

consumidores; pelo outro lado o modo de execução do crimes, isto é, o

conhecer bem e querer a atividade criminosa, levada a cabo com intensidade e

arrojo (no caso, consistente no transporte aéreo de canábis e cocaína,

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servindo como “correio de droga”, mediante compensação monetária que não

revelou); e a necessidade da pena com determinada medida decorrente da

menor sensibilidade da arguida para reconhecer, em audiência, a gravidade do

crime cometido. Por isso, pena de prisão em medida inferior àquela que lhe foi

aplicada não sortiria o efeito de adequada advertência individual ou

intimidação (da arguida) e de intimidação dos candidatos a «correio de droga

».

Num breve bosquejo pela jurisprudência deste Supremo Tribunal

incidindo sobre situações idênticas, constata-se que a pena mais

frequentemente aplicada variou entre os 4 anos e 6 meses e os 8 anos de

prisão, sendo que no âmbito desta escala avançou perante apreensões maiores

e compensações mais chorudas ou baixou perante a apreensão de quantidades

menores ou qualidades de estupefaciente menos “corrosivas” da saúde dos

consumidores.

O vertente caso enquadra-se nessa média, sem que o processo executivo

evidencie especial arrojo na dissimulação dos estupefacientes.

Conclui-se do exposto que o procedimento judicial de fixação do quantum da

pena aplicada à arguida por ter cometido o crime de tráfico de estupefacientes

que resultou provado nos autos, respeita as finalidades da punição e, em

geral, os critérios legais de determinação da medida da pena, sem que afete

excessiva e desproporcionadamente a dignidade pessoal da condenada, pelo

que não merece censura.

Improcede, por conseguinte, a pretensão do recorrente de ver reduzida a

medida da pena de 6 anos prisão que lhe foi aplicada no acórdão recorrido.

e) da pena suspensa:

A recorrente visava, essencialmente, que não lhe fosse imposta pena efetiva

de prisão, pretendo a aplicação de pena de substituição.

Nos termos do art. 50º n.º 1 do Cód. Penal, pressuposto formal da suspensão

da execução da pena judicialmente aplicada é que tenha sido fixada em

medida não superior a 5 anos de prisão.

Mantendo-se a pena de 6 anos de prisão que o Tribunal de 1ª instância aplicou

à arguida resulta imediatamente evidente que não se verifica o assinalado

pressuposto. Pelo que falece de sentido esta pretensão da recorrente.

IV. DECISÃO

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Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, decide:

a) julgar improcedente o recurso da arguida.

b) Condenar a arguida nas custas fixando-se a taxa de justiça em 6UCs (arts.

513º n.º 1 do CPP, 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).

*

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de agosto de 2021

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Sr. Juiz Conselheiro Paulo

Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março

na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[28] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

_____

[1] Ac. STJ . 3ª sec. -, de 27/10/2010, proc. 70/07.0JBLSB.L1.S1, in

www.dgsi.pt.

[2] Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 289/X/4ª

[3] O legislador do cibercrime teve o propósito de adaptar “os regimes das

buscas e das apreensões, já largamente previstas na legislação processual

penal, às investigações de crimes cometidos no ambiente virtual. Na verdade,

a essência destas medidas processuais coincide, no ambiente do ciberespaço,

com as clássicas formas de busca e apreensão, do processo penal. Porém, a

forma como a busca e a apreensão estão descritas no Código de Processo

Penal exigiam alguma adequação a estas novas realidades”.

[4] Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 289/X/4ª

[5] Conversação, em tempo real

[6] O Short Message Service/Serviço de Mensagens Curtas é um dos meios de

comunicação eletrónica mais utilizados, sobretudo através do telemóvel.

[7] Código de Processo penal Comentado, de Henriques Gaspar, Santos

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Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, 3ª

edição, 2021, pag. 767.

[8] Ob e A. cit., pag. 768.

[9]O efeito-à-distância das proibições de prova no Direito Processual Penal

Português”, RPCC, 16 (2006), pags. 589/90.

[10] Assim também Santos Cabral, in Código de Processo Penal Comentado,

de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes e Pires da

Graça., 3ª ed. 2021, pag. 706.

[11] Assim também Henriques Gaspar, in ob. cit, pag. 343..

[12] Autor e ob, cit, pag. 344.

[13] Máxime: mensagens entre a arguida e o arguido Kelton: “dois (sms) de

27.01.2019 a 14.01.2020 (fls. 195) e (facebook) de 05.09.2019 a 23.01.2020

(fls. 264-269) e da fotografia do telemóvel de 03.06.2018 em que ambos

surgem juntos (fls. 184” – cfr motivação da decisão em matéria de facto.

[14] Proc. n.º 07P1231, in www.dgsi.pt.

[15] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas

do Crime, Noticias Editorial, pag. 302.

[16] Ibidem, pag. 305.

[17] Proc. 232/14.4JABRG.P1.S1, 3ª secção, in www-dgsi.pt.

[18] Ac. STJ de 18/02/2016, proc. n.º 118/08.1GBAND.P1.S2, www.dgsi.pt/jstj.

[19] J. Figueiredo Dias, Direito, Penal Português, As Consequências Jurídicas

do Crime, Noticias Editorial, pag. 227.

[20] “isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu

sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida” – J. Figueiredo

Dias, ob. citada, pag. 72/73.

[21] Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,

Liberdades e Garantias.

[22] A censura ético-pessoal por ter violado bens jurídicos tutelados.

[23] Que manteve os postulados da versão equivalente do Código Penal de

1982 de 1982

[24] J. Figueiredo Dias, ob. citada, pag. 235.

[25] Ac. STJ de 18/02/2016, proc. n.º 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt/

jstj.

[26] A Jurisprudência do S.T.J. Sobre Fundamentação e Critério da Escolha e

Medida da Pena, pag. 6.

[27] ECLI:PT:STJ:2020:2186., Proc. 19.1JAPRT.P1.S1.

[28] Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em

tribunal coletivo)

A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em

tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de

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Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação

atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto

de conformidade dos juízes que não assinaram.

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