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MICHEL DE CERTEAU E A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICAR ESUMO Michel de Certeau (1925-1986), intelectual francês, produziu obras que repercutiram em vários campos do conhecimento: história, sociologia, antropologia, pedagogia, filosofia, psicanálise etc. No presente estudo, são apresentadas algumas refle- xões acerca do trabalho do historiador, evidenciando questões levantadas por ele no seu texto “A operação historiográfica”. Palavras-Chave: Michel de Certeau — Historiografia — Teoria da história. A BSTRACT Michel de Certeau (1925-1986), a French intellectual, produced works which echoed in several fields of the knowledge: history, sociology, anthropology, pedagogy, philosophy, psychoanalysis etc. In this study we present some reflections about the historian’s work, evidencing matters which were studied by him in his text “The historiographic operation.” Key Words: Michel de Certeau — Historiography — History theory. Alarcon Agra do Ó Licenciado em História e Mestre em Educação pela UFPB. Doutorando em História pela UFPE. Professor junto à Área de Teoria e Metodologia da História da Unidade Acadêmica de História e Geografia da UFCG. VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 1, n. 02, p. 48–56, jul./dez. 2004

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MICHEL DE CERTEAU E A “OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA”

R E S U M O

Michel de Certeau (1925-1986), intelectual francês, produziu obras que repercutiram em vários campos do conhecimento:história, sociologia, antropologia, pedagogia, filosofia, psicanálise etc. No presente estudo, são apresentadas algumas refle-xões acerca do trabalho do historiador, evidenciando questões levantadas por ele no seu texto “A operação historiográfica”.

Palavras-Chave: Michel de Certeau — Historiografia — Teoria da história.

A B S T R A C T

Michel de Certeau (1925-1986), a French intellectual, produced works which echoed in several fields of the knowledge: history,sociology, anthropology, pedagogy, philosophy, psychoanalysis etc. In this study we present some reflections about thehistorian’s work, evidencing matters which were studied by him in his text “The historiographic operation.”

Key Words: Michel de Certeau — Historiography — History theory.

Alarcon Agra do ÓLicenciado em História e Mestre em Educação pela UFPB. Doutorando em Históriapela UFPE. Professor junto à Área de Teoria e Metodologia da História da UnidadeAcadêmica de História e Geografia da UFCG.

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A ESCRITA DA HISTÓRIA

Entre outros estudos de interesse para oshistoriadores, dos tantos produzidos por Mi-chel de Certeau, certamente o seu livro “A Es-crita da História” é um dos mais importantes.Em especial, destaca-se ali o capítulo “A ope-ração historiográfica”, que também foi edita-do, embora apenas em parte, na obra coletiva“História: novos problemas, novas abordagens,novos objetos” (Certeau, 1982; 1995).

Naquele capítulo, Certeau, ao mesmo tem-po em que descreve as principais característi-cas do trabalho do historiador, realiza umaespécie de balanço dos caminhos percorridospor nossa disciplina ao longo do século vinte.Escrito no estilo inconfundível de Certeau, otexto é denso e dotado de um sem número decitações (há cento e vinte notas, e com fre-qüência elas remetem a mais de um texto porvez), o leitor sendo levado a dialogar com sa-beres os mais variados.

O texto, que é aberto com pouco mais deuma página e meia de uma rápida apresenta-ção, é dividido em três grandes blocos, todosiniciados com uma pequena introdução, queantecipa os temas tratados a seguir: “um lu-gar social”; “uma prática”; “uma escrita”. Cadaum desses blocos, por sua vez, tem as suassubdivisões. A argumentação é articulada desorte a que as diversas partes remetam umasàs outras, o resultado final sendo marcadopela profundidade e pela abrangência dasquestões levantadas e tratadas.

Certeau ficou conhecido, nos meios aca-dêmicos, por sua capacidade de intervir emcampos distintos de forma sempre criativa esurpreendente. A sua escrita tem essa carac-terística: a de indicar ao leitor as principais

características do objeto que está sendo estu-dado, e, simultaneamente, a de deslocar ques-tões, a de transformar as perguntas que faze-mos ao real. Muito mais do que agregar àsnossas dúvidas novas respostas, Certeau in-troduz um outro olhar, uma perspectiva dife-rente da que estamos acostumados a conside-rar. Isso se deu, por exemplo, com as suasanálises acerca da cultura popular, ou quan-do tratou do consumo na sociedade capitalis-ta contemporânea, ou quando realizou pesqui-sas nos campos da história ou da psicanálise.Ao se dedicar, no texto aqui estudado, à in-vestigação acerca do fazer historiográfico, Mi-chel de Certeau não fez mais do que o que jáhavia praticado em outras circunstâncias: di-latar o campo do possível.

AS FORMAS DA HISTÓRIA

Para Certeau, a pesquisa em história sefaz a partir da articulação de um lugar — só-cio-econômico, político, cultural. Com isso elequer apontar para a idéia de que aquilo que ohistoriador faz, no dia-a-dia do seu ofício, éalgo que se dá sempre num enquadramento,em meio a um certo sistema de referências. Ouseja, a pesquisa em história não é outra coisasenão o gesto de se recortar a experiência, es-tabelecendo um jogo de pertencimentos e deafastamentos. Ao dizer algo, o historiador estáse movendo num campo, fazendo com que elerepercuta de alguma forma naquilo que vema ser a sua obra, e está, também, recusandodiálogos, conexões, cruzamentos.

É importante considerar que esse lugarimplica em passos da maior importância: adefinição de métodos, da topografia de interes-

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ses, das séries documentais, das questões etc.,tudo isso está ligado à relação que o historia-dor mantém com o lugar em que se encontra.Fazer história, assim, é um procedimento nãoapenas epistemológico, mas também estraté-gico e político, na medida em que implica emposicionamentos os mais variados, e na con-sideração cuidadosa dos seus efeitos.

Certeau indica, entretanto, que, se a pes-quisa em história se faz em meio a limites, elaos reinventa, à medida em que as questões vãosendo colocadas. Cada pesquisa, nesse senti-do, não é apenas a manifestação de um lugar,mas a sua demarcação e a sua problematiza-ção. Isso se dá em meio a diálogos, os quaisàs vezes podem surpreender. À medida em queo historiador vai tecendo a sua teia, ele o faztrocando idéias e informações com outros sa-beres, com outros sujeitos do pensamento e daação cultural, e com isso os campos são dila-tados, os percursos são transformados. Quan-do o historiador age como tal, ele não somen-te faz funcionar em sua pesquisa e em suaescrita as determinações do seu mundo: ele asreinventa, tanto no movimento mesmo do seuofício quanto pelo impacto que provoca quan-do dá a público a sua narrativa.

A enunciação desse vínculo entre o lugare a produção historiográfica implica, no movi-mento do pensamento de Certeau, na afirma-ção de que os historiadores contemporâneosabandonaram os postulados que haviam sidocapturados anteriormente no seio do positivis-mo. A idéia de que o cientista social fala deum ponto situado para além da história, des-colado dos embates e das tensões do seu mo-mento histórico singular foi descartada, gra-ças à sofisticação teórica e metodológica quese alcançou no último século.

Também está sepultada a crença de quea história é o relato do passado, incapaz de sen-sibilizar o presente. Ou, pensando isso aindade uma outra forma, abandonamos o desejo decompor uma história que fosse “mestra da vida”no sentido de que ela nos permitisse pensar opresente como continuidade ou como repetiçãodo já vivido. Ela nos parece mais, hoje, comouma problematização incessante do vivido, doque se está vivendo, enfim, da busca mesmapelo passado.

Como conseqüência mais visível disso, anarrativa histórica não é mais tomada comosendo um espelho do real, como se fosse a ver-dade dos fatos transformada em relato escri-to. Ela é agora entendida como uma versão,pensada e construída de forma regulada e con-trolada por séries de princípios, mas sem maisnenhuma pretensão à plena identificação comuma suposta realidade que a antecederia e lhedaria sentido.

A narrativa, tal como descrita por Cer-teau, é uma interpretação — ou seja, uma in-tervenção criativa do historiador por sobre osseus materiais. E mais: ela é pensada por elecomo algo que só é possível se tomarmos comolimite ou condição de sua existência um sis-tema de referências. A narrativa é um gestocriativo, porque interpretar não é somente en-contrar um sentido que está para além da apa-rência, mas é avaliar algo, pensar a sua estru-tura em função das relações que ela mantémcom seus supostos, com seus suportes. Daí sepode imaginar que a análise de uma obra his-toriográfica seja o mesmo que a investigaçãodos fios que permitem a sua trama. A análisebusca, assim, evidenciar o sentido que a nar-rativa tenta impor a uma certa série de even-tos, colocando em primeiro plano as escolhas

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que levaram à construção do texto estudado.Mas as escolhas não se dão no vazio, con-

forme Certeau já havia alertado. O historiadornão compõe sua narrativa imune ao seu am-biente, às suas relações. E, aliás, a própriapesquisa transforma o historiador em um nô-made, em um personagem insistentemente àprocura do diálogo. Mas não qualquer diálo-go: apenas aquele que pode ser travado den-tro de certos princípios, de certas regras, deuma certa normatividade que individualiza oseu saber, que o singulariza. Não mais umaobjetividade desencarnada, também não umaconstrução soberana do sujeito: a narrativahistoriográfica é tomada por Certeau como oresultado (o produto) de uma prática social,historicamente possibilitada e articulada.

A história, no ocidente, é uma instituiçãode saber: um lugar de onde se fala, e cujos li-mites indicam formas e sentidos do que é, en-fim, dito. Suas condições de possibilidade sãoapresentadas e pensadas por Certeau. Segun-do ele, o saber moderno se fez possível medi-ante, a princípio, a criação de grupos e de dis-ciplinas singulares. Pessoas especialmentededicadas a pensar questões semelhantes, ouassim descritas, promoveram assim uma de-marcação no campo do saber, pela qual foirecortado do corpo social um espaço determi-nado à experimentação de certas práticas, decertos ritos. Constituiu-se, na modernidade,um lugar científico, que não era o lugar da fé,nem o lugar da política. É importante desta-car, aí, que o agrupamento leva à estrutura-ção de regras do dizer e do silenciar.

A construção de um lugar e de sua lin-guagem não se dá sem impactos no mundosocial mais amplo. Aí reside algo que é o não-dito da prática científica, ou seja, o seu diálo-

go com o que ela mesma recorta como sendoa sua exterioridade. O saber da história, parafalar mais concretamente, é produzido no in-terior de uma instituição — a universidade, porexemplo — e paga um preço por isso.

Uma dimensão bastante significativa dis-so diz respeito ao consumidor do saber histó-rico. Quem lê a história acadêmica são os aca-dêmicos, e o historiador sabe que fala paraseus pares. Esse diálogo interno no grupo nãoé livre de lutas e disputas: o texto deve sercomposto de forma a ser reconhecido comoparte daquela discursividade singular, sobpena de não ser lido, ou de ser duramente cri-ticado. Ou, o pior, de não ter o seu texto reco-nhecido como sendo propriamente histórico-historiográfico.

Assim, o que deve ter uma obra históri-ca, para ser aceita por seus pares? Certeauindica algumas características que não podemser negligenciadas: em primeiro lugar, se apretensão do texto for a de dizer algo novo, eledeve conter não apenas uma nova interpreta-ção, ou experimentar métodos novos, mas,principalmente, deve dar margem à “elabora-ção de outras pertinências”, a “um desloca-mento da definição e do uso do documento”,além de organizá-los de forma singular. Afinal,insiste Certeau, a construção da narrativa his-toriográfica não é outra coisa a não ser umaoperação, ou seja, algo que se dá em meio aum “conjunto de práticas”, e é essencial numapesquisa histórica que se queria séria e res-peitada um diálogo com o já posto que dilateas margens do saber. Cada enunciação devese dar em relação a outras, mas deve buscarintervalos, lugares de sombra ou de silêncio,e preenchê-los de sentido. Uma “obra de va-lor” em história, afinal, é aquela que é reco-

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nhecida como tal pela comunidade de histori-adores, e que amplia as fronteiras da discipli-na histórica, ensejando por sua vez novas ex-perimentações. Afinal, o resultado final dotrabalho do historiador é, sempre, “o produto

de um lugar”, e a isso paga um tributo.A narrativa esconde os seus andaimes: ela

não fala detalhadamente dos seus métodos,nem menciona que a sua escrita faz parte deum rito de iniciação, de pertencimento. O his-toriador não enuncia, a cada passo, que de-seja, com cada argumento, com cada metáfo-ra, saber-se reconhecido e acolhido por seuspares. Ele evita mencionar que o uso criterio-so dos métodos é uma chave para a sua acei-tação. Diz estar fazendo ciência, apenas: algorigoroso por si só. Este apagamento dos cru-zamentos entre o social e o científico não énatural, no entanto. A prática científica temaí uma de suas bases. Ora, lembra Certeau, otrabalho científico tende a cada vez mais serrealizado por equipes, submetidas a pressõesdos organismos financiadores e às relaçõeshierárquicas que as antecedem ou às que vãosendo montadas à medida em que o trabalhoprogride. As equipes, por sua vez, funcionamtomando como referência os procedimentos eas escalas de valor da profissão, a qual “temsuas próprias hierarquias, suas normas cen-tralizadoras, seu tipo de recrutamento psicos-social”. A escrita, assim tão regulada, afastatais questões para a sombra, e se apresentalinear e objetiva.

Por outro lado, a escrita histórica precisaainda considerar, no presente, que há as pres-sões do público. Para quem escreve, enfim, ohistoriador? Se ele quiser reconhecimento dospares, deve tê-los em mente como os destina-tários de sua prosa. Se deseja a penetração no

grande público, como é o caso de quem se de-dica ao ensino, por exemplo, ele terá que ce-der às pressões estéticas da cultura de mas-sa. Aí se produz uma divisão, ou é aberta aí apossibilidade de uma construção esquizofrêni-ca da subjetividade de quem escreve a histó-ria: o “professor é empurrado para a vulgari-zação, destinada ao ‘grande público’ (estudanteou não), enquanto que o especialista se exilados círculos de consumo.” Faz-se, então, lite-

ratura ou ciência.Certeau insiste numa idéia: a “situação

social muda ao mesmo tempo o modo de tra-balhar e o tipo de discurso”. Mesmo que issoseja silenciado, diz ele, é um fato, e o histori-ador talvez devesse ser o primeiro a entenderisso. A narrativa histórica não é, enfim, trans-formada com o tempo, vez que sempre termi-na por ser uma problematização, enviesada, dopresente? O que fazemos, desde quando reu-nimos os documentos até o instante em queredigimos o texto final, ou seja, a prática his-tórica, é algo inteiramente relativo à estrutu-ra da sociedade. A cada instante, em funçãodo mundo em que vivemos, e das mudançasque ele e nós sofremos, mudam os nossos re-ferenciais, os nossos pontos de apoio, altera-se a distância entre o nosso lugar e o que es-tudamos, e assim a nossa perspectiva estásempre em construção, em transformação.

O lugar, constituído historicamente, éuma possibilidade e um limite. Ele funcionacomo uma maquinaria que permite ou impos-sibilita que narrativas sejam pensadas, teci-das, dadas a ler. E a narrativa histórica fun-ciona aí como um elemento bem particular,que ao mesmo tempo respeita os limites do vere do dizer de sua época, e os distende. E, nessemovimento, ela se torna uma problematização

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incessante não apenas do morto de que fala,mas do vivo que lhe emoldura. Reconhecer olugar como condição de possibilidade da nar-rativa faz com que o discurso do historiadorpossa ser aceito não como uma lenda ou comoum discurso de fora do tempo, mas como umaprodução verdadeiramente histórica — ou seja,uma produção que trata “da sociedade e damorte”.

A construção da narrativa historiográfica,o que se faz em um certo lugar, ou em refe-rência a ele, é uma prática. Com isso se querdizer que há no seu fazer-se componentes téc-nicos, operacionais. E, mais, como aponta Cer-teau, o lugar que a história reconhece, em simesma, às técnicas e à interpretação definesua maior ou menor proximidade em relaçãoà ciência ou à literatura. A história, enfim, éconstruída a cada instante, pela sociedade, apartir de condições de possibilidade — entreas quais se destaca o aparato técnico que seencontra à disposição do historiador. O gestodo historiador, que é o de ver como culturalcada fragmento do real que lhe cai sob osolhos, é mediado por operações, por procedi-mentos técnicos.

A ação do historiador é, em termos práti-cos, a manipulação de vestígios, sob a obedi-ência a regras. Ele aí provoca deslocamentos,retirando materiais de séries a ele anteriorese ligando-os de forma nova, singular — a qualé montada a partir de sua questão e do movi-mento mesmo do seu trabalho. O historiadorcoloca as coisas em fluxo, retirando-as de umlugar e colocando-as em outro, alterando suasrelações de similaridade e de contigüidade. Elereorganiza o mundo, embaralhando as distin-ções comuns entre, por exemplo, natureza ecultura. É essa a sua ciência: redistribuir, re-

articulando, os cacos do mundo que ele vaicatando, reunindo.

O começo de tudo, entre nós, é a trans-formação de algo em fonte. É, na verdade, aprodução das fontes, pela atribuição a algodesse estatuto. Isso se dá no gesto de isola-mento de elementos e na sua rearticulação.Quando o historiador captura na pesquisafragmentos do vivido, os subtrai do seu ambi-ente e os rearruma, montando novas séries, eleestá inaugurando a sua ação. Nesse movimen-to o historiador percorre espaços específicos(arquivos, bibliotecas), e constrói relações comos lugares e com os seus usos. Ele não ape-nas vai aos arquivos conhecidos e lá executaações comuns, mas transforma ambientes in-suspeitados em acervos, e se vale de ações egestos que lhe parecem apropriados na suaexploração. A novidade do seu trabalho esta-rá no deslocamento produzido na pesquisaquanto ao uso de lugares e materiais já co-muns. A pesquisa, enfim, não é o ato de dar avoz a materiais adormecidos, mas o de fazerfalar aquilo de quem não se espera ouvir a voz,ou pelo menos aquela mensagem. O importan-te é o deslocamento, a redistribuição.

O desenvolvimento das técnicas, princi-palmente graças à informatização, permite aohistoriador o gerenciamento de uma quantida-de sempre maior e mais variada de fontes. Comisso ele pode construir modelos explicativossofisticados. O que é importante aí, no entan-to, não é apenas a organização das séries —até porque a informatização tornou esse atomenos criativo. Importa, realmente, o uso dateoria que o historiador pratica, no sentido detransformar o modelo em um enquadramentoflexível e dinâmico — a partir de que seu tra-balho será o de evidenciar os desvios, as sin-

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gularidades, e não apenas a obediência plenaaos modelos. Não se quer mais apagar dos ves-tígios os sinais de multiplicidade, homogenei-zando-os; quer-se, isso sim, explorar uma pro-blemática a partir de recortes seriais, a partirdos quais seja possível contar uma história doque diferiu, do que transgrediu. O historiadordesvia dos ideais de totalização para evidenci-ar margens, deslocamentos, fluxos.

A história, não querendo mais ser a ma-triz de explicações que dêem conta de tudo ede todos, quer ser pensada como uma experi-mentação constante dos modelos teóricos emetodológicos que estão à sua disposição. Elaquer levar os modelos ao seu limite, para tes-tá-los. O fato, o acontecimento, deixa aí de serum evento dado, do qual se vai contar a his-tória, para ser agora um corte, um elementodiferenciador, que emerge e implica aí numadiferença. E será dessa ruptura que o histori-ador vai se ocupar. Os modelos, por sua vez,serão tomados pelo historiador como algo a serusado de forma crítica, sendo constantemen-te problematizados, ao invés de simplesmenteaceitos.

A história se volta por sobre si todo o tem-po, e busca sua maior precisão justamenteinvestigando-se incessantemente. Na atualida-de, isso tem implicado em algumas posições.Em primeiro lugar, a história hoje é um esfor-ço de se entender a mudança, o deslocamen-to, o desvio — mais do que a regra, o total. Emsegundo lugar, a história o tempo inteiro estáexplorando os limites da inteligibilidade, dis-tendendo-os. Por fim, a história é uma distân-cia do presente em relação ao passado: é umestranhamento. Fazer a história é, assim, do-tar de espessura histórica o presente, mas é,também, dotar de espessura histórica o vivi-

do, separando-o do presente, permitindo aoshomens a sua distribuição no tempo.

A última parte do texto de Certeau é de-dicada à reflexão acerca do texto mesmo dohistoriador: a parte mais visível do seu traba-lho, aquilo que enfim é dado a conhecer aosseus pares e ao público em geral. Tratandodisso, Certeau pensa a escrita da história ima-ginando-a como algo que é recortado sobre ofundo comum da textualidade à medida emque se mostra como um ponto em uma rede,articulada a um lugar social e a uma certa prá-tica do desvio. A narrativa da história é, as-sim, sempre uma relação com o corpo social ecom uma instituição do saber. É uma figura-ção composta, um conjunto regrado de deslo-camentos. Com isso Certeau encerra a sua tra-ma, reunindo os fios que já dispôs ao longo deseu texto na composição de uma figura final,a qual ao mesmo tempo em que se deixa mar-car pela enunciação de novas questões, res-soa o que já foi dito anteriormente.

E, para tal, ele retoma a metáfora dos des-locamentos, que é central na sua argumenta-ção. Transformar o pesquisado num texto, en-fim, é dar margem a mais um deslocamento— ou a mais uma série de deslocamentos —no movimento do ofício do historiador. Antesde mais nada, o texto leva o seu consumidorao começo de tudo, quando ele mesmo, o tex-to, é o ponto final de todo um esforço do his-toriador. Além disso, o texto tem limites (co-meço, fim), que a dinâmica da pesquisa nãoencontra. A estabilidade do texto mascara ocaos encontrado na pesquisa. O nome do au-tor e a forma da obra darão ao vivido uma co-erência inédita.

Por fim, o texto é a ausência de brechas,o preenchimento de lacunas — e aí, mais uma

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vez, se coloca em oposição à pesquisa, que temsua razão de ser na falta. Mas a escrita não ésimplesmente o reverso da prática; ela é ummomento específico da operação historiográfi-ca, também uma prática social, responsávelpor mais deslocamentos de sentidos e de po-sições, exorcismo da morte. Pesquisa e escri-ta não se afastam, para Certeau; ao contrário,elas dialogam na construção da operação his-toriográfica.

O historiador organiza séries sob uma cer-ta cronologia. Esta, no entanto, não emana dosfatos investigados, mas sim do problema depesquisa, da maneira como o historiador en-caminha a sua operação específica. O histori-ador temporaliza, no sentido de que ele fabu-la, também, ao distribuir sua narrativa numacerta série temporal. Tudo depende da compo-sição que o historiador está fabricando em seutexto. A cronologia é uma condição de possi-bilidade do texto historiográfico, na medida emque ele é um dos ritos desse saber. O tempoda narrativa não remete a um começo origi-nal; ele se sabe arbitrário, um recorte.

O texto do historiador é uma narrativa,construída segundo regras. É um encadea-mento cronológico de eventos, o que é conse-guido mediante deslocamentos praticadospelo historiador em seus materiais de pesqui-sa. É um texto que se constrói mediante acaptura de outros textos, de outras formas deorganização do discurso. É fazer funcionaruma máquina heterogênea, um conjunto defragmentos.

Escrever um texto historiográfico é esta-belecer diálogos, é convidar outros textos paraum banquete, é estabelecer relações de apro-ximação e distanciamento com o que já estádito, em termos de forma e conteúdo. Em

suma: escrever é interpretar, é dar outros sen-tidos aos materiais. Escrever é fabricar unida-des, corroendo unidades já postas — e é, tam-bém, colocar em suspeição as unidades quesão construídas.

Compor a narrativa historiográfica, porfim, não é descrever, simplesmente o vivido.Isso porque a história não é o vivido: o vividonão existe a não ser quando relatado. A histó-ria, portanto, não é algo que nos acontece, eque depois contamos a alguém; é algo queacontece justamente porque é contado, porqueé vertido sob a forma de uma narrativa. Por-tanto, é o trabalho do historiador — trabalhocontrolado, submetido a regras e a ritos — quedemarca o vivido do por viver, o ontem do hojee do amanhã, o que somos e o que não somosmais.

É preciso insistir nisso: a análise histori-ográfica, tal como pensada a partir de Certeau,dedica-se a pensar a construção e os destinosde um texto que não existe apenas como umamontoado de palavras, mas que é, na suamaterialidade e no seu funcionamento social,uma máquina de atribuição de sentidos. Aquiloque o historiador conta, diz a todos o que foi,o que não é mais. E, com isso, muitos de nóstecem o que são, e o que querem ou não ser.Ou, para respeitar o que foi dito acima, com oque diz o historiador, existências são pensa-das, tecidas ou dissolvidas, dadas a ver ousepultadas na sombra e no esquecimento.

Certeau permite analisar um texto que temesses atributos descrevendo o conjunto deprocedimentos pelos quais ele emerge. A “ope-ração historiográfica” não é outra coisa senãoo rol de gestos, de acolhimentos e recusas queconstitui o cotidiano do historiador, naquilo quelhe define mais que tudo: na experimentação

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das possibilidades e limites que nos oferece olugar em que estamos, na execução das ativi-dades práticas do nosso ofício e, finalmente, naescrita da história que queremos contar.

É nisto que consiste, portanto, a análisehistoriográfica, tal como pensada a partir dasformulações de Certeau. Ela será um exercí-cio de problematização do texto, ele sendo co-locado em perspectiva em relação ao lugar deonde emerge, tendo esmiuçados os aspectosoperacionais da pesquisa que lhe antecedeu elhe possibilitou a existência e, finalmente, sen-do analisado enquanto texto “historiográfico”,produção dotada de particularidades social-mente aceitas e reconhecidas.

A descrição minuciosa e as análises pro-postas por Certeau acerca do fazer historiográ-fico, assim, devem ser lidas também como umcontra-texto: na medida em que ele aponta ascaracterísticas mais marcantes do nosso ofí-cio e das narrativas que compomos quandoinvestidos de nossas ferramentas, ele tambémdá as pistas para que a nossa obra seja anali-sada, e, mais que isso, avaliada. Interessa aCerteau definir se o texto que se estuda é, en-fim, história ou não.

Ora, afinal, é de pertencimentos que Cer-teau fala, todo o tempo: interessa-lhe demar-car um território que seja peculiar ao histori-ador, e que seja impossível — ou indesejável— abandonar. Ele fala de uma operação quese dá mediada por uma memória do ofício, porum diálogo de quem se diz historiador e seupróprio tempo, ou seja, de uma relação que é,em todo o sentido da palavra, histórica — ecom isso permite que o olhar do historiador sevolte para seu campo e reconheça, ou não,como próprio a ele aquilo que se dispõe sobos seus olhos.

A escrita da história, conclui Certeau, trazde volta mortos, reinscrevendo-os na vida apartir de sua transformação em matéria pri-ma de uma narrativa. A escrita resolve — nosentido psicológico — a morte, introduzindo-ano texto, na narrativa. Escrever é arrumar umoutro lugar para os mortos e, por conseguin-te, para os vivos. Ela diz o que não há mais,para que isso possa repousar e permitir a eclo-são do novo. Ela permite que o tempo presen-te se realize, na medida em que ajusta suascontas com o passado.

BIBLIOGRAFIA

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